A crise do feminismo e a gestão pós-moderna
Segundo o mito bíblico da criação, a mulher nasceu quando Deus retirou uma costela ao homem. Essa imagem patriarcal é ambígua: de um lado, a mulher parece um simples apêndice do homem; de outro, porém, subentende-se que o homem, ao ser "cindido" da parte feminina, é ele próprio ferido e sofre uma perda. O problema, claro, não está no plano da anatomia. A "pequena diferença" que as crianças descobrem precocemente em seus corpos não diz nada de essencial sobre a maneira como as atribuições culturais e sociais são repartidas entre os sexos. A dominância masculina (patriarcado) não decorre de caracteres biológicos, mas é um aspecto central da forma social, sendo portanto o resultado de processos históricos.
Por isso o patriarcado está longe de se verificar em todas as culturas. Na história sempre houve sociedades que conheceram uma relação bastante igualitária entre os sexos. E cotejos interculturais mostram que também aquelas "qualidades" sociais ou psíquicas, rotuladas com aparente espontaneidade como "tipicamente femininas" ou "masculinas", podem apresentar-se sob formas totalmente contraditórias em épocas diversas, em diversas estruturas sociais e modos de produção.
O universalismo abstrato do moderno sistema produtor de mercadorias sempre deu a impressão de ser de certo modo sexualmente neutro. Mercadoria é mercadoria e dinheiro é dinheiro; onde estaria inscrita aí uma valoração dos sexos? A sobrevivência das estruturas patriarcais na família e na sociedade podia parecer assim, numa análise superficial, um mero resquício do passado pré-moderno. Nesse sentido, o feminismo reivindicou desde a Revolução Francesa uma "igualdade de direitos", sugerida como promessa pela forma universal da economia monetária moderna. Desse ponto de vista, a redução masculina do lema "liberdade, igualdade, fraternidade" era um puro arbítrio da dominação masculina subjetiva herdada do passado, devendo ser ampliada para abarcar a dimensão da “sororidade".
Até hoje o feminismo como política não foi além da exigência de participação feminina no universalismo do moderno sistema produtor de mercadorias. O "homem abstrato", o átomo individual da sociedade, pode ser tanto homem quanto mulher. De outro lado, a pesquisa histórica e sociológica feminista descobriu há tempos que a desvantagem e a depreciação da mulher na modernidade não representam nem um "resquício" de relações pré-modernas nem uma simples vindicação masculina do poder, mas radicam profundamente nessas próprias relações modernas. Isso porque o moderno sistema produtor de mercadorias não é tão universal como parece ser. Ele tem de certa forma um reverso, que permanece obscuro na teoria social oficial. Refiro-me a todos os âmbitos e aspectos da vida que não se podem exprimir em dinheiro. E esse reverso do sistema é tudo menos sexualmente neutro, pois dele foram feitas responsáveis fundamentalmente as mulheres.
Trata-se, por um lado, de certas atividades concretas que se dão no horizonte privado doméstico, para além da produção de mercadorias: cozinhar, lavar roupa, fazer faxina, cuidar dos filhos etc. Por outro lado, essa tarefa definida como "feminina" transcende a atividade meramente mecânica; a mulher deve ainda criar uma atmosfera agradável e afetuosa, na qual não impere o tom cortante da concorrência como "na vida lá fora", no espaço público capitalista da economia, da política e da ciência. A mulher, portanto, é responsável pela "dedicação afetiva", de uma certa maneira, pelo "trabalho amoroso" dedicado ao homem e aos filhos. Assim, é uma das "virtudes femininas" ter faro para relações pessoais, ser emotiva e "meiga"; em compensação, o homem deve bancar o intelectual, o durão, alguém pronto para a concorrência. Para tanto, não precisa ser bonito, o que por sua vez é o primeiro dever da mulher.
Ao contrário de opiniões correntes, a modernização não atenuou o patriarcado, mas o agravou. Foi a economia capitalista que primeiro cindiu de forma tão extrema homem e mulher, como se fossem seres de planetas diferentes. Nas sociedades pré-modernas ainda não havia uma divisão estrita entre a produção de bens e a gestão doméstica. Por isso as atribuições sexuais eram também menos unívocas; as mulheres tinham o seu próprio lugar na produção agrária e artesanal. A moderna economia de mercado, pelo contrário, transformou a produção de bens numa esfera economicamente autónoma de maximização empresarial abstrata do lucro e, com isso, num aspecto central da esfera pública burguesa dominada pelo sexo masculino. Capitalistas e empresários, como bem se sabe, assim como políticos, são sobretudo homens.
Essa nova e agravada repartição de funções entre os sexos na modernidade não podia ser igualitária. As atividades e condutas definidas como "femininas", é verdade, são tão necessárias à sobrevivência da sociedade quanto a produção de bens, que foi deslocada para o espaço funcional "masculino" da economia empresarial. Mas não se agradeceu às mulheres a sua parte na produção social total. Justamente porque foi feita responsável por tudo o que, pela sua natureza, não se pode exprimir em dinheiro e, portanto, "não tem valor" segundo os critérios capitalistas, a mulher foi considerada como inferior e secundária, a exemplo de suas esferas de atividade e das qualidades e virtudes a si imputadas.
Claro que, na modernidade, sempre se pôde encontrar mulheres na esfera pública burguesa, tanto nas atividades remuneradas da esfera econômica quanto na política, na cultura etc. Mas o estigma de sua depreciação sexual perdurou também nesses âmbitos. Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desenvencilha das marcas sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina. Ela continua, em princípio, como responsável pela cozinha, pelos filhos e pelo "amor", ou seja, nunca é levada a sério na economia ou na política. E este não é somente um modelo imposto de fora, mas também um aspecto psicologicamente interiorizado pela socialização feminina. Como todos sabem, as mulheres são até hoje em menor número que os homens nas atividades profissionais e públicas; muito mais raramente elas alcançam posições de destaque e, em regra, são pior remuneradas.
Aqui vem à tona o dilema do movimento feminista: para realmente suplantar o patriarcado, ele teria de pôr radicalmente em questão todo o modo de produção moderno; não no sentido, claro, de uma idealização retrógrada das relações agrárias, mas como exigência de uma forma de organização fundamentalmente diversa das forças produtivas modernas. Enquanto a racionalidade destrutiva e "masculina" da economia empresarial não for rompida, serão também perpetuadas as formas de atividade e as pseudo-qualidades “femininas” definidas como inferiores e dissociadas na esfera privada. Só para além da divisão estrutural entre uma "lógica do dinheiro", de um lado, e uma "falta de lógica" da vida doméstica, da dedicação pessoal e da emotividade, de outro, se poderia conseguir uma relação emancipatória entre homens e mulheres.
Ao contrário, um feminismo que se limite à exigência de "direitos iguais" no interior do modo de produção dominante terá necessariamente de ficar impotente perante a forma cindida da vida social. Sempre caiu em ouvidos moucos o simples apelo a que os homens participassem em igual medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida pessoal e familiar. Inversamente, a própria visão feminista limita-se cada vez mais à esfera político-económica. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no âmbito privado, mas pela mudança das mulheres no âmbito público. O modelo pós-moderno não é mais a mulherzinha dengosa e de miolo mole, mas o tipo andrógino da "mulher de carreira". Ao lado da loiraça oxigenada, da vampe e da mãe extremosa, fiel dona de casa, surge também a banqueira que faz jogging e surfa na Internet, em cujo caminho de solteira ela passa, feita um homem, por cima de tudo e de todos.
Ao mesmo tempo, pelo menos nas metrópoles do mercado financeiro, parece haver uma sinistra convergência entre os sexos e suas atribuições. Enquanto a mulher com profissão é obrigada a demonstrar uma boa dose de rigor e "frieza" emocional para subir na vida, a gestão pós-moderna descobriu, por sua vez, a chamada "inteligência emocional" para o cálculo empresarial e o planejamento do sucesso individual na luta da concorrência. Em livros e seminários é oferecido um programa inovador de treinamento em "gestão emocional". "Peritos em emoção" e "estudiosos da emoção" surgem aos montes, tagarelando sem parar. Fala-se tanto de uma "cultura emocional" quanto de uma "gestão do stress" emocional. Trata-se, portanto, de manipular e regular funcionalmente as sensações subjetivas e os sentimentos próprios. A emotividade, até hoje dissociada no domínio privado e delegada à mulher, deve ser de certa maneira “agarrada” pelo capitalismo e transformada numa técnica de sucesso.
A perversidade desse propósito fica especialmente clara quando a "tecnologia emocional" aparece como gestão de pessoal empresarial ou política. O economista alemão Hans Haumer, por exemplo, fala nesse sentido de um "capital emocional" que teria de render "suficientes ganhos". A medida para tanto é um "coeficiente de capital emocional", que indicaria em que ordem de grandeza a "tecnologia humana" da dedicação pessoal reverte em benefício do rendimento da empresa. Isto quer dizer que deve se exigir a sujeição dos trabalhadores às exigências da flexibilidade empresarial, a aceitação de desmandos de toda espécie e o estímulo da produtividade individual de certo modo através duma "racionalização emocional". O chefe "emocionalmente inteligente" evita atritos pessoais e passa aos trabalhadores a sensação de que são amados e reconhecidos, mesmo quando ele os trata como simples material humano. O rendimento do "capital emocional" atingiria o auge de eficiência quando as pessoas, comovidas até às lágrimas, agradecessem ao empresário o fato de serem postas no olho da rua.
Obviamente, há aqui uma reintegração das formas de vida e comportamentos cindidos, mas no sentido errado: o sistema econômico autonomizado começa a tragar as normas, modelos e "qualidades" reservados até agora ao âmbito doméstico e à intimidade, a fim de instrumentalizá-los no sentido da lógica do dinheiro. Só nessa medida os homens pós-modernos são mais emocionais que no passado, enquanto a mulher pós-moderna pode agora empregar de modo economicamente funcional suas "virtudes femininas" assocializadas. O que na mídia é sugerido como distensão na luta dos sexos, sob a forma de futebol feminino, strip-tease masculino ou casamento de homossexuais, na verdade resulta na redução economicamente funcional da lida doméstica dos sentimentos. A androginia consiste em que indivíduos de ambos os sexos mobilizem em igual medida "ternura e dureza" para a concorrência, e aliem a competência técnica à competência emocional, a fim de fazer avançar o processo de fazer dinheiro.
Se no passado a lida doméstica emocional da sociedade capitalista era repartida de maneira unilateral, agora ela se acha para sempre destruída. Pois justamente nesse aspecto vigora ironicamente a lei da escassez. O que é consumido em dedicação e sentimento pessoal na empresa, para lubrificar a máquina econômica, perde-se para o âmbito dissociado da vida privada e da intimidade. Se as atividades e condutas "femininas", na qualidade de reverso da produção de mercadorias, não forem superadas juntamente com a economia capitalista, mas forem tragadas por essa mesma economia, então o resultado pode ser apenas uma nova dimensão da crise. Os momentos da vida social necessários, mas não representáveis na forma do dinheiro, não serão assim repartidos igualmente entre homem e mulher, mas virarão ruínas.
O que hoje dá o tom é o modelo mediático da "mulher que quer tudo", que concilia carreira e família, e ainda se embeleza diariamente, para arrancar suspiros como "objeto do desejo". Mas para a maioria isso é exigir muito, algo de todo inviável. A percentagem de mulheres que consegue tal espargata com pompa e circunstância é ínfima. Só uma reduzida minoria de "mulheres de carreira" pode dar-se ao luxo de uma tal ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os filhos etc. a empregadas domésticas (migrantes, negras, desprivilegiadas) que, por sua vez, deixam de ter tempo para seus próprios filhos. A grande maioria das mulheres está absurdamente sobrecarregada com a tarefa de responder, ao mesmo tempo, pelo dinheiro, pelas atividades domésticas e pelo "amor". Na pós-modernidade o patriarcado não desaparece, mas "se embrutece" e se estilhaça em formas múltiplas de barbárie, como escreve a feminista alemã Roswitha Scholz. Este é o mundo que transforma crianças em assassinos e amoques.
*Original Weibliche Tugenden em www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo 09.01.2000 com o título O eterno sexo frágil. Também disponível em http://obeco.planetaclix.pt/
Nenhum comentário:
Postar um comentário