A função económica da máquina militar dos Estados Unidos no capitalismo global e os motivos ocultos da nova crise financeira
Desde 1989, quando se fala do "fim de uma era", na maior parte dos casos as pessoas referem-se à queda da RDA e do socialismo de Estado, na Rússia e na Europa Oriental; na sua sequência, ao fim da guerra-fria entre os blocos e ao desaparecimento das guerras "quentes" por procuração, nos pátios das traseiras do mercado mundial. Segundo os eufóricos da liberdade de então, a suposta vitória do capitalismo, paralelamente à generalização inevitável da "economia de mercado" e à constituição de um espaço económico unificado global segundo o padrão ocidental, deveria anunciar uma nova era de prosperidade global, desarmamento e paz. Esta expectativa revelou-se completamente ilusória. Nos últimos 17 anos desenvolveu-se realmente bem o contrário dos prognósticos interesseiros dos optimistas profissionais. A globalização trouxe, em levas sucessivas, cada vez mais zonas de pobreza em massa, guerras civis sem perspectiva, e um terrorismo pós-moderno neo-religioso que não se pode qualificar senão como bárbaro. O Ocidente, sob a direcção da última potência mundial, os Estados Unidos da América, reagiu a tudo isso com "guerras de ordenamento mundial" com igual falta de perspectivas e com uma precária administração da crise planetária (sobre isso vd. Kurz, 2003).
Pelos vistos, a interpretação dos acontecimentos pós-1989 foi meramente superficial e daí que não resultou. De facto, então não se desmoronou simples e isoladamente o bloco de Leste, como "sistema de penúria mal concebido", mas igual destino tiveram não poucos países de orientação pró-ocidental do chamado Terceiro Mundo. Mais ainda: mesmo nos países centrais ocidentais há muito tempo que o "milagre económico" do pós guerra tinha afrouxado, com as taxas de crescimento sempre a descer. Desde então constituiu-se um desemprego em massa estrutural, que vai de par com o subemprego e a precarização do trabalho. Sob a impressão destas tendências, poderia impor-se uma interpretação completamente diferente, a saber, que se trata de uma crise geral do moderno sistema mundial produtor de mercadorias, que não poupa os próprios centros capitalistas. Nesta perspectiva, o chamado socialismo real do bloco de Leste não constituiu uma alternativa histórica, mas um sistema de capitalismo de Estado de "modernização atrasada" na periferia do mercado mundial e sua parte integrante. Depois de, com o fim dos velhos regimes de desenvolvimento de diversas cores, os "elos mais fracos" deste sistema mundial terem sido os primeiros a romper-se, o processo de crise prossegue imparável no espaço da globalização directa.
A terceira revolução industrial é considerada, e não sem razão, a causa de longe mais profunda da nova crise mundial. Pela primeira vez na história do capitalismo os potenciais de racionalização ultrapassam as possibilidades de expansão dos mercados. Na concorrência de crise, o capital desfaz a sua própria "substância trabalho" (Marx). O reverso do desemprego estrutural em massa e do subemprego à escala mundial é, por isso, a fuga do capital monetário para a célebre economia das "bolhas financeiras", uma vez que os investimentos adicionais na economia real deixaram de ser rentáveis; é o que se depreende dos excessos de capacidade de produção a nível global (exemplarmente na indústria automóvel) e das batalhas especulativas das "fusões e aquisições" (vd. sobre isso Kurz 2005).
A interpretação aqui esboçada a traços largos no fim dos anos 90 era considerada com cabimento e até plausível, pelo menos junto de parte da crítica social de esquerda. Entretanto, as pessoas habituaram-se a que o capital pareça poder de algum modo viver, mesmo com uma acumulação simulada de bolhas financeiras ("jobless growth"). E a mais recente industrialização para exportação na Ásia, sobretudo na China, não apontará para uma nova era de crescimento real, só que já não na Europa? Simultaneamente as guerras de ordenamento mundial parecem reduzir-se, de forma muito banal, aos ordinários interesses do petróleo, pois ameaça faltar o "produto" para a cultura de combustão capitalista. Perante este pano de fundo, será que vem aí uma nova concorrência imperialista de blocos, por exemplo entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China? Com tais considerações, a esquerda regride em grande parte, com certas modificações, ao seu velho padrão de pensamento anterior à mudança de era. Existem, porém, boas razões para crer que esta reinterpretação fornece uma mera caricatura da realidade que, vista mais de perto, se apresenta de modo completamente diferente. Neste contexto é essencial o estatuto político-económico da última potência mundial, os Estados Unidos da América, no capitalismo de crise global.
A crise do dinheiro e do sistema monetário mundial
A crise mundial da terceira revolução industrial e da globalização das últimas duas décadas remonta, por assim dizer, a uma crise do dinheiro que já há muito tempo está a cozinhar em lume brando, nomeadamente desde a primeira guerra mundial. Até aí o carácter do dinheiro, como "mercadoria à parte" (equivalente geral) dotada de uma substância de valor autónoma, era reconhecido de forma quase unânime. Por isso as moedas dos grandes países capitalistas tinham de ter "cobertura" em reservas de ouro nos bancos centrais. O ouro era o verdadeiro dinheiro mundial, a "lingua franca" do mercado mundial; e a libra esterlina da potência mundial de então, a Grã-Bretanha, só pôde funcionar como moeda mundial graças ao seu "padrão-ouro". Contudo, as economias industriais de guerra das duas guerras mundiais e as forças produtivas da segunda revolução industrial (produção em massa fordista, linha de montagem, "automobilização") deixaram de poder ser expressas, mesmo numa circulação acelerada, na "vinculação ao ouro" do dinheiro, que por isso teve de ser cortada. Por outras palavras: a substância de valor do dinheiro, que se baseia na substância condensada de trabalho do metal nobre ouro, não podia ser mantida. Por isso a "dessubstancialização" se fez sentir no plano do dinheiro, equivalente geral como "mercadoria-rainha" e forma de aparência do capital, já muito mais cedo do que no plano da vulgar "ralé da mercadoria", onde ela só hoje se torna manifesta, na terceira revolução industrial. A consequência foi a "inflação secular", completamente desconhecida no século XIX, a ininterrupta desvalorização do dinheiro – ora galopante (hiperinflação), ora latente.
Apesar do efeito inflacionário, alguns teóricos fizeram da necessidade virtude, declarando desnecessária a vinculação do dinheiro ao ouro, e o dinheiro um mero símbolo, que apenas teria de ser garantido juridicamente pelo Estado (assim, por ex., já Knapp 1905). Mas a derrocada do mercado mundial e a crise da economia mundial nos anos 30 teve também algo a ver com a falta de um dinheiro mundial reconhecido, uma vez que tinham fracassado todas as tentativas de regressar à vinculação ao ouro na Europa. Quando em 1944, em Bretton Woods, se lançaram as bases de uma ordem económica e monetária do pós-guerra, a coberto da "Pax Americana", toda ela foi traçada para ter por base o dólar, como nova moeda de reserva e do comércio mundial. O fundamento para isso era não só a posição industrial incomparável dos EUA (sobretudo devido ao poderoso impulso ao crescimento da economia de guerra), mas também o facto de o dólar ser a única moeda convertível em ouro. No célebre Fort Knox estavam então guardados três quartos das reservas mundiais de ouro (cf. Kennedy 1933).
Só nesta base da ordem monetária mundial de Bretton Woods e de câmbios fixos em relação ao dólar se pôde desenvolver o "milagre económico" do pós-guerra, à sombra da guerra fria. Mas a recuperação da Europa e do Japão, no mercado mundial em expansão, começou logo a corroer a dominação económica dos Estados Unidos e, por conseguinte, a substância de ouro do dólar. Na medida em que a quota-parte na exportação de mercadorias e de capital se alterava em desfavor dos EUA, também o dólar perdia força e era cada vez mais trocado por ouro. As reservas de Fort Knox derretiam-se. Em 1973, o presidente Nixon viu-se obrigado a revogar a convertibilidade do dólar em ouro.
Assim chegou ao fim o sistema de Bretton Woods. As taxas de câmbio tiveram de ser liberalizadas, "flutuando" desde então conforme a situação nos mercados, o que constitui o ponto de partida para uma especulação monetária inteiramente nova com base nas oscilações das taxas de câmbio, com perigosas repercussões sobre a economia real.
Contudo, uma vez que não chegou a vir a grande catástrofe, apesar da crise monetária mundial dos anos 70, o problema do dinheiro e da moeda é considerado desde então empiricamente resolvido, mesmo entre os teóricos de esquerda: contrariamente à opinião de Marx, o carácter do dinheiro como "mercadoria à parte", com substância de valor própria, teria passado definitivamente à história (veja-se por exemplo Heinrich 2004). Mas a prática, de modo algum segura, de relações monetárias flexíveis no espaço de tempo historicamente curto de poucas décadas nada de essencial diz ainda sobre a sustentabilidade da nova constelação, tanto mais que as crises monetárias na periferia, nos anos 90 na Ásia e após a viragem do século na Argentina, apontam para um problema que continua latente.
Do dólar-ouro ao dólar-armamento
A crise monetária mundial dos anos 70 apenas terminou sem grandes prejuízos porque o dólar, apesar da perda da convertibilidade em ouro, conseguiu manter quase intacta a sua função de dinheiro mundial, isto é, como moeda de reserva e do comércio mundial, à falta de uma alternativa credível. Caso contrário, o resultado teria sido já então a repetição da catástrofe dos anos 30, elevada a um patamar superior, pois sem a função de um dinheiro mundial o mercado mundial tem de implodir. No entanto, a reconstituição do dólar como moeda mundial ocorreu sobre um fundamento completamente novo. Em lugar da substância de valor do dinheiro alicerçada em ouro surgia agora, efectivamente, uma espécie de garantia "política", contudo não apenas jurídico-formal, mas essencialmente militar. A moeda da potência mundial, ou "superpotência" do hemisfério ocidental, assumia agora a sua função de dinheiro mundial apenas em razão desta base de poder.
Aqui consumou-se um estranho processo recíproco: à medida que a posição económica dos EUA declinava no mercado mundial regular dos fluxos de mercadorias e de capital (um processo que se prolonga até hoje), crescia continuamente o "complexo militar-industrial", já assim designado pelo presidente Eisenhower. As exorbitantes taxas de crescimento da indústria de armamento na segunda guerra mundial prosseguiram, na forma de uma muito discutida "economia de guerra permanente". Perante este pano de fundo, também a terceira revolução industrial da microelectrónica saldou-se em sempre novos sistemas de armamento de alta tecnologia e abriu o caminho da industrialização para a electronicização da guerra. Com o desenvolvimento de sucessivas gerações de armas, os EUA foram-se colocando numa posição inalcançável para o resto do mundo, no que respeita ao armamento. O presidente Reagan ainda forçou mais esta tendência. A União Soviética, como potência oponente da "modernização atrasada", soçobrou, desde logo, devido às contradições internas de uma "economia capitalista planificada", mas foi também "armada até à morte" e não conseguiu aguentar a corrida à alta tecnologia, nem no plano económico, nem no plano militar.
O "factor extra-económico" da máquina militar dos EUA, cada vez mais sem concorrência, deu assim origem a uma tremenda potência económica. É verdade que houve nos EUA quem lançasse avisos contra a imparável caminhada para uma "economia de guerra permanente", na medida em que esta desencadeava uma avalanche de dívida estatal. Embora Reagan, estritamente neoliberal e monetarista, tivesse cortado brutalmente os programas sociais keynesianos dos seus antecessores, ele deixou explodir o "keynesianismo do armamento", contra a sua própria doutrina. Com isso o já de si inflado complexo militar-industrial tornou-se sob muitos aspectos o suporte do crescimento e a máquina de empregos (até em formas derivadas). A economia dos EUA dava sinais de força interna nominal, embora fosse cada vez mais fraca no mercado mundial.
A astronómica dívida ligada a este processo de militarização económica deixou de poder ser financiada com as poupanças próprias já nos anos 80. Mas a potência económica da máquina militar também se repercutiu nas relações externas. Era precisamente o poder militar dos EUA como "polícia mundial" que parecia oferecer um "porto seguro" aos mercados financeiros globais. Esta impressão iria ainda reforçar-se consideravelmente após a suposta vitória sobre o sistema contrário do Leste. O dólar conservou a sua função de dinheiro mundial ao metamorfosear-se de dólar-ouro em dólar-armamento. E o carácter estratégico das guerras de ordenamento mundial, nos anos 90 e após a viragem do século, no Próximo Oriente, nos Balcãs e no Afeganistão, consistia em primeira linha em perpetuar o mito do "porto seguro" e, com ele, o dólar como moeda mundial através da demonstração de capacidade de intervenção militar global. Nesta base, em última instância irracional, o capital monetário excedentário na terceira revolução industrial (já não susceptível de investimento real rentável) fluiu cada vez mais de todo o mundo para os EUA, financiando assim indirectamente a máquina militar e do armamento.
A maior bolha financeira de todos os tempos e o milagre do consumo dos Estados Unidos
O limite interno da valorização real do capital na terceira revolução industrial promoveu por todo o lado a fuga para a superstrutura do crédito e para uma economia de bolhas financeiras. Esta economia de crise do capital financeiro teve forçosamente que se concentrar no suposto "porto seguro" do espaço do dólar. Quanto mais capital monetário excedentário vagueava pelos mercados financeiros globais, tanto maior se tornava a força de sucção dos EUA para absorver estas torrentes monetárias. Deste modo se formou in Gods own country "a mãe de todas as bolhas financeiras". Através da venda de títulos do tesouro americanos em todo o mundo não só se financiou o boom do armamento endividado. Paralelamente a isso também inflaram nos EUA os mercados de acções nos anos 90 e os mercados imobiliários após a viragem do século. Assim se lançaram as bases de uma nova qualidade do endividamento.
Ao lado do complexo militar-industrial formou-se assim um segundo pilar de crescimento aparente, "irregular", da economia interna dos Estados Unidos. Em virtude da dispersão da propriedade das acções e do imobiliário, muito maior que na Europa, pôde colocar-se em marcha um paradoxal "milagre do consumo". Embora os salários reais, em média, tenham estagnado ou até regredido desde os anos 70 (Cf. Thurow 1996), o consumo tornou-se cada vez mais o suporte decisivo do crescimento. A causa profunda desse boom não era de modo algum o tão invocado "milagre do emprego". É que, além do emprego no complexo militar-industrial, por seu lado dependente do soro do endividamento estatal, criaram-se sobretudo empregos de miséria no sector dos serviços, a célebre "pobreza empregada". Em virtude da posição fraca dos EUA no mercado mundial, também o emprego no sector exportador tende a diminuir.
O boom do consumo alimenta-se, até hoje, não tanto de rendimentos salariais regulares como, e em primeiro lugar, das bolhas financeiras dos mercados de acções e do imobiliário. Os ganhos diferenciais, provenientes dos aumentos fictícios do valor dos respectivos títulos de propriedade, devido à sua ampla dispersão, reflectiram-se em milhões de casos de endividamento com cartões de crédito e créditos hipotecários, numa escala nunca antes vista. A garantia era constituída precisamente pelos preços acrescidos, primeiro das acções e depois do imobiliário. O ingresso maciço do capital monetário excedentário de todo o mundo para o suposto porto "seguro" do dólar foi encaminhado para financiar, não apenas o consumo armamentista endividado, mas igualmente o consumo privado endividado. Esta é a maravilhosa máquina do dinheiro que tem alimentado o milagre do consumo dos Estados Unidos.
O circuito do deficit do Pacífico e a conjuntura mundial
A fraqueza da economia real dos EUA no mercado mundial revelou-se num deficit da balança comercial que não parou de se avolumar. Em termos relativos, na economia interna da última potência mundial, dominada pelo complexo armamentista e pela prestação de serviços, foram sendo produzidas cada vez menos mercadorias industriais; em algumas áreas a regressão foi mesmo absoluta. A maior parte dos cidadãos americanos, que se puderam endividar com base no crescimento duradouro do preço das acções e dos imóveis, consumiam cada vez mais mercadorias produzidas noutros países. Assim foi impulsionado um circuito do deficit global, que se fez notar pela primeira vez nos anos 80, acelerou nos anos 90 e hoje começa a sobreaquecer. Se, em primeiro lugar, tinha sobretudo deslizado para negativo a balança comercial com o Japão, o deficit não tardou a crescer também face aos pequenos Estados asiáticos e face à Europa, para finalmente transbordar de forma incrível, no tráfego de mercadorias com os colossos Índia e China. Hoje quase já não existe uma zona industrial do mundo que não tenha saldo positivo no comércio com os EUA.
O reverso do endividamento monetário externo, através da absorção dos fluxos globais de capital, consiste por conseguinte em que, inversamente, também os fluxos excedentários globais de mercadorias são absorvidos. Por outras palavras: os consumidores americanos (Estado e privados) pedem emprestado o dinheiro com que pagam aos fornecedores a enchente de mercadorias. Deste modo, os EUA tornaram-se o buraco negro da economia mundial. No entanto, tal implica uma dupla dependência recíproca. Se os maravilhosos consumidores americanos não fossem, por assim dizer, consumindo heroicamente a produção excedentária de todo o mundo, a crise da economia mundial da terceira revolução industrial já há muito tempo se teria manifestado com todo o seu peso. Acresce que não se trata de um fluxo de mercadorias entre economias nacionais separadas, mas de movimentos no interior da globalização da economia empresarial. São sobretudo as grandes empresas americanas, além de japonesas e europeias, que usam a China como placa giratória das cadeias transnacionais de criação de valor, por causa das estruturas de baixos salários, e a partir daí fornecem os mercados dos EUA e doutros lugares. Os correspondentes investimentos limitam-se por isso às "zonas económicas de exportação" e nada têm a ver com um "desenvolvimento" económico nacional tradicional da China, da Índia etc.
A estrada de sentido único da exportação da Ásia sobre o Pacífico para os EUA transformou entretanto o circuito do deficit num volante que move toda a economia mundial. A indústria europeia não só fornece, como outras regiões do mercado mundial, uma parte dos seus excedentes aos EUA por via directa, como ao mesmo tempo exporta cada vez mais componentes de produção para a máquina trituradora da exportação asiática (sobretudo no sector da construção de máquinas). A famigerada "retoma" dos últimos anos deve-se quase exclusivamente a esta economia-vudu. É verdade que, periodicamente, há avisos para o perigo destes crescentes "desequilíbrios da economia mundial" sob a forma dos deficits externos acumulados dos EUA. Mas, uma vez que tudo de algum modo se tem passado bem há tanto tempo, na maior parte dos casos o alarme é desactivado logo a seguir.
O cenário da crise do crédito e do dólar que aí vem
Durante o ano de 2007, contudo, concentraram-se ameaçadoras nuvens negras no horizonte da economia mundial. Tal não podia deixar de acontecer: Está a esvaziar-se a bolha do imobiliário americano, principal combustível do consumo nos últimos anos, e os preços das casas estão a baixar a olhos vistos. Deste modo, os créditos hipotecários no sector "subprime" (devedores sem capital próprio digno de menção) começam a ficar em maus lençóis a uma escala maciça. A dimensão que a crise financeira crescente poderá assumir já se revelou em poucos meses: De repente, bancos e caixas de poupança de muitos países viram-se sob uma pressão maciça no sentido de amortizarem crédito mal parado, porque os títulos da dívida americana circulam à escala global. Mas isto foi apenas o começo. Em virtude dos ciclos de rotação do capital de crédito e do capital real, que muitas vezes se estendem ao longo de anos, a verdadeira dimensão da crise do crédito só se tornará visível nos anos de 2008 a 2010. Se, neste espaço de tempo, o consumo americano sofrer uma ruptura profunda, não só se tornará efectivo o revés nos mercados globais de acções, mas também ficará paralisado o circuito do deficit do Pacífico e, com ele, a conjuntura mundial. Ninguém pode prever com exactidão a sua dimensão, mas a crise ameaça ultrapassar todos os fenómenos de crise da terceira revolução industrial dos últimos 20 anos.
É como assobiar para espantar o medo, quando os comentadores económicos agora fingem esperar que a conjuntura interna, na União Europeia ou até na China, poderia de repente tornar-se "auto-sustentada" e substituir o consumo dos Estados Unidos, como sugadora das torrentes excedentárias de mercadorias. De onde haveria de vir o poder de compra nestas regiões, se ele não surgiu até agora, apesar do boom das exportações? Simultaneamente abre-se um duplo dilema no que diz respeito aos juros. Às crises asiáticas dos anos 90 e à derrocada da New Economy virtual a seguir a 2000 ainda se fez frente com uma corrida à baixa dos juros dos bancos centrais que inundou os mercados com dinheiro barato. É o que os mercados financeiros esperam agora de novo da reserva federal americana, e os outros bancos centrais deverão seguir. Mas, por um lado, uma nova enchente de dólares poderia despertar o potencial de inflação há muito latente na "inflação patrimonial" dos títulos de dívida, e fazer transitar para um estádio galopante a secular desvalorização do dinheiro, se se pretender alimentar desta maneira o moribundo consumo dos Estados Unidos. Por outro lado, está à vista que o afluxo do capital monetário excedentário aos EUA decairá se o Banco Central Europeu, perante uma inflação crescente, não estiver pelos ajustes e assim se anular a diferença dos juros entre os EUA e a União Europeia. A simultaneidade de depressão e inflação vai-se tornando uma possibilidade.
O dilema dos juros, como resultado da difusão por todo o mundo da crise do crédito dos Estados Unidos, começa também a pôr em causa a função do dólar como dinheiro mundial. Por detrás do problema está, em última instância, o gigantesco deficit externo acumulado, que clama por uma desvalorização drástica do dólar e uma igualmente drástica revalorização das moedas com excedentes de exportação. De facto, no passado o dólar já foi por diversas vezes desvalorizado de forma controlada, o que levou a que os países credores tivessem de pagar uma parte das dívidas dos Estados Unidos. Agora, porém, antevê-se uma queda descontrolada, que já começou face ao Euro, enquanto as moedas asiáticas ainda são mantidas artificialmente baixas. Se, porém, a crise do crédito se repercutir plenamente, também esta barreira será derrubada. Nessa altura chegará ao fim, não apenas a capacidade de financiamento do complexo militar industrial, mas também o mito do "porto seguro".
O lugar do dólar, porém, não pode ser ocupado por nenhum outro dinheiro mundial, ainda que haja muita propaganda a favor do Euro nesse sentido. O Euro não pode assumir o lugar do dólar porque não tem bases para isso, nem em ouro, nem em armamento. A crise do dinheiro mundial e o potencial de inflação a ela associado apontam para uma amadurecida crise do dinheiro em geral. É o que se esboça também na imparável subida do preço do ouro, com sucessivos novos recordes, que acompanha a crise monetária em formação: O carácter de mercadoria do dinheiro, com substância de valor própria, impõe-se na crise. O ouro, de simples matéria-prima, torna-se novamente no "verdadeiro" dinheiro, ou dinheiro mundial, mas as forças produtivas da terceira revolução industrial já não podem ser mediadas como movimento do mercado mundial com base no ouro. Seria como tentar esvaziar o oceano como uma colher de café em ouro. A situação do período entre as duas guerras ameaça regressar, mas num nível de desenvolvimento muito mais elevado.
Crise mundial, ideologia mundial e guerra civil mundial
O que se espera da crítica social emancipatória nesta situação de um limite interno histórico do capitalismo é a redefinição de socialismo, para lá das formas fetichistas da mercadoria, do dinheiro, do Estado nacional e das relações de género que lhes estão associadas. Porém, na medida em que a esquerda, em vez disso, regressa aos seus velhos padrões de interpretação e procura uma nova "força" imanente às novas constelações mundiais, susceptível de ser ocupada positivamente, ela própria ameaça tornar-se reaccionária. Nestas circunstâncias, a crítica do capitalismo converte-se muitas vezes em anti-americanismo e anti-semitismo aberto ou estrutural. As "formas de pensamento objectivas" (Marx) do fetiche capital, que incluem uma "inversão da realidade", constituem (se não forem destruídas) o fundamento para uma digestão ideológica da crise, como a que já no período entre as duas guerras levou a resultados devastadores. No contexto da globalização do capital, o resultado é uma ideologia mundial assassina. Causas e efeitos são invertidos: a crise do crédito surge, não como efeito do esgotamento da acumulação real, mas como resultado da "avidez do capital financeiro" (uma ideia desde há 200 anos ligada aos clichés anti-semitas); o papel dos Estados Unidos e do dólar-armamento surge, não como condição comum transversal a todo o capital globalizado, mas como opressão imperial sobre o resto do mundo.
O motivo desta inversão ideológica hoje é o desejo desesperado de se refugiar de novo nos tempos da prosperidade fordista e da regulação keynesiana. Neste âmbito afirma-se, mesmo entre a esquerda radical, uma opção no sentido de substituir "a versão americana, unilateral do Empire" (Hardt/Negri, 2004) por uma globalização "democrática" sob a direcção da União Europeia, e porventura com o Euro como nova moeda do comércio mundial e de reserva. Esta opção não só é completamente cega perante a crise, mas também ignora o contexto interno do capital mundial e o carácter da União Europeia. Também, de entre as ideias fantasmáticas de aliança deste reformismo mundial virtual, qual delas será a mais horripilante; por exemplo, quando se pretende incluir o regime da Gazprom e dos serviços secretos de Putin, ou a burocracia de exportação chinesa suportada em grande parte pelo investimento do capital transnacional, tal como a nada santa aliança entre o caudilhismo do petróleo de Chavez e o regime islamista anti-semita de Teerão.
Mesmo abstraindo do facto de que uma globalização centrada na Europa não valeria nem mais um chavo que uma globalização centrada nos Estados Unidos, ela nem sequer seria possível. Não se trata apenas de o Euro não conseguir substituir-se ao dólar-armamento em queda, mas a União europeia, por isso mesmo, também não está em posição de reverter a corrente do capital monetário excedentário, nem de absorver a produção excedentária global. A Rússia, a Venezuela e o Irão, cujas pretensões políticas contra o "satã americano" se nutrem apenas da explosão do preço do petróleo, estão na economia mundial numa dependência ainda maior deste papel paradoxal da economia americana. Se o volante do circuito do deficit do Pacífico parar e surgir uma depressão mundial, os regimes do petróleo, todos eles, serão os primeiros a ficar no fio da navalha.
A crise mundial da terceira revolução industrial, que vai amadurecendo e para cuja administração não há nenhum novo "modelo de regulação" à vista, certamente não vai simplesmente prosseguir o seu caminho económico. Na situação económica insuperável da nova constelação de crise global que se vislumbra, mais ainda que em anteriores rupturas na história da modernização, espreita o perigo de uma "fuga para a frente" irracional, em direcção à guerra mundial. Porém, no nível de desenvolvimento da globalização, esta já não pode ser nenhuma guerra entre blocos de poder, entre impérios nacionais, por uma "nova partilha do mundo". Haveria que falar antes de uma nova guerra civil mundial de tipo novo, tal como já se apresentou nas guerras de "desestatização" e de ordenamento mundial, desde a queda da União Soviética, que talvez não tenham passado dos seus prenúncios. Nunca a palavra de ordem "socialismo ou barbárie" teve tanta actualidade como hoje. Mas, simultaneamente, no final da história da modernização, o socialismo tem de ser reinventado.
Bibliografia
Hardt, Michael/Negri, Antonio (2004): Multitude. Krieg und Demokratie im Empire [Multitude. Guerra e Democracia no Império], Frankfurt/Nova Iorque
Heinrich, Michael (2004): Die Wissenschaft vom Wert [A Ciência do Valor], Münster
Kennedy, Paul (1993): In Vorbereitung auf das 21. Jahrhundert [A Preparação para o Século XXI], Frankfurt/Main
Knapp, Georg Friedrich (1905): Staatliche Theorie des Geldes [A Teoria Estatal do Dinheiro], Munique e Lípsia
Kurz, Robert (2003): Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung [A guerra de ordenamento mundial. O fim da soberania e as metamorfoses do imperialismo na era da globalização], Bad Honnef
Kurz, Robert (2005): Das Weltkapital. Globalisierung und innere Schranken des modernen warenproduzierenden Systems [O Capital Mundial. A Globalização e os limites internos do sistema produtor de mercadorias moderno], Berlim
Thurow, Lester (1996): Die Zukunft des Kapitalismus [O Futuro do Capitalismo], Düsseldorf/Munique
Nota póstuma: O texto que segue foi escrito em Novembro de 2007 para a revista de debates de esquerda "Widersprüch" (Zurique) e aí foi publicado no início de Janeiro [nº 53]. Sob o signo da crise financeira em curso e do mais recente crash bolsista, ele adquire uma actualidade insuspeitada.
Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz283.htm
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