segunda-feira, 30 de junho de 2014

Deus está morto?

Por Rafael Trindade, para o blog Razão Inadequada

                   

O Homem Louco – [...] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmo nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então” (Nietzsche, Gaia Ciência, §125).

Esta talvez seja a frase mais famosa e incompreendida de Nietzsche: “Deus está morto!”. Por que ele disse tais palavras? Para um homem cujo ateísmo era convicto, não fazia sentido anunciar a morte de algo em que não acreditava.

A grande razão para tal declaração tem motivos históricos. Através desta afirmação o filósofo procura condensar o espírito de sua época. Nietzsche faz todo o diagnóstico de sua cultura e denuncia o niilismo de seu tempo. Não interessa se Deus existe ou não, o que Nietzsche afirma é que a influência da religião em nossas vidas é cada vez menor. A igreja, os mitos, as idéias, os ritos, a moral por trás da teologia, tudo isso está desaparecendo. Não temos mais medo de deus, ele é fraco. Não ligamos para as datas religiosas, apenas para o feriado.

Deus está morto como uma verdade eterna, como alguém que controla e conduz o mundo, como um ser bondoso que justifica os acontecimentos. A secularização da civilização prova isso cada vez mais. Deus está morto como um grande ditador divino que exige obediência de seus servos. Ele já não é uma questão importante para se tratar.

A morte dos ideais divinos, o início da morte desta doença chamada cristianismo é uma constatação nietzschiana. O sentido está perdido, a Verdade Eterna está acabada, de agora em diante precisamos encarar o caos do mundo à nossa frente. Todo idealismo e platonismo estão se perdendo. Por isso enfrentamos o grande perigo do niilismo: estamos perdidos sem justificações supra-sensíveis e não sabemos para onde ir.

O primeiro momento da morte de Deus se dá com o niilismo passivo. Não sabemos o que fazer, como proceder, não sabemos mais o que é certo e errado sem um padre ou um livro velho para nos guiar. A falta de referencial externo é desesperador para o homem, ele fica aterrorizado diante do mundo. Passa então a buscar qualquer coisa para se segurar: razão, humanismo, ciência. Deus morreu, mas ainda velamos seu corpo em várias outras práticas que não encontram justificação no próprio mundo, mas em outros lugares. A fé virou razão. Nossa nova religião é o progresso do homem.

A única alternativa frente a esse niilismo passivo é tomarmos as rédeas da situação e fazer deste niilismo um novo modo de vida. “Nietzsche diz que o importante não é a notícia de que deus está morto, mas o tempo que ela leva a dar seus frutos” (Deleuze, Anti-Édipo). É só com a morte de Deus que temos finalmente a chance de criar novos e autênticos valores para nós. Sem ninguém para dizer o que é certo e errado, bem ou mal, temos plena liberdade para decidir por nós mesmos. Adquirimos assim a responsabilidade e a felicidade de sermos autores de nossa própria vida. O niilismo ativo, segundo momento do niilismo, significa que “se o homem não quiser perecer nas dificuldades que o sufocam, será preciso que as desfaça de um só golpe criando os seus próprios valores. A morte de Deus não dá nada por terminado e só pode ser vivida com a condição de preparar uma ressurreição” (Camus, O Homem Revoltado).

Ai está o valor da morte de Deus. Mesmo que ele exista, é importante que nós o matemos, para andar com nossas próprias pernas. Somos o filho que cresceu e quer agora libertar-se. Não podemos mais nos esconder atrás da sombra divina e dizer “Deus quis assim”. A responsabilidade agora é toda nossa, para desfazer as verdades antigas e criarmos novas e melhores formas de dizer sim à vida.

De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o Velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’“ (Nietzsche, Gaia Ciência, §343).

domingo, 29 de junho de 2014

Ato, potência e erro



Aristóteles, ao afirmar que os seres são formados por substância (aquilo que seria estrutural e essencial do ser) e acidente (aquilo que seria atributo circunstancial e não essencial do ser), podendo esses acidentes - casualidades quaisquer - interferir na concretização, em ato, das potências de um ser ignora que a própria essência do ser, o que ele se tornaria sob condições ideais, só surge mediante um ''diálogo'' com o que é externo ao ser, com as ''casualidades''.

 Diz Aristóteles que o movimento, a transitoriedade ou a mudança das coisas se resumem na passagem da potência (possibilidades de ser, capacidade de ser, aquilo que ainda não é mas pode vir a ser) para o ato (a manifestação atual do ser). Dá-se como exemplo uma árvore que está sem flores e que pode tornar-se, com o tempo, florida. Ao adquirir flores, essa árvore manifestaria em ato aquilo que já continha, intrinsecamente, em potência.

 Por outro lado, utilizando ainda o exemplo da árvore, poderia acontecer que, em virtude de certas condições climáticas, uma árvore frutífera não venha a dar frutos (o que contraria a potência de dar frutos). Esse caso é o que Aristóteles classificar como acidente, algo que não ocorre sempre e que não faz parte da essência da árvore.

 Essa maneira metafísica de pensar se dissolve ao perceber-se que a própria ''essência'' da árvore surgiu somente do contato e fusão entre ''casualidades'', através do processo hoje denominado seleção natural - numa dialética permanente com a natureza. E mesmo as suas ''potencialidades'' só podem se dar sob condições climáticas específicas - a árvore não é capaz de viver e se desenvolver per se, ela necessita do externo. O ser em potência, portanto, é qualquer coisa, visto que depende inteiramente das condições externas. O ser só é o que é.

terça-feira, 17 de junho de 2014

O Chandra, o Cosmos e a Química

Cassiopeia-A. Crédito: NASA/CXC/SAO

 Química, o estudo das danças intrincadas e dos agrupamentos de elétrons de baixa energia que formam as moléculas dos vários elementos que compõe o mundo em que vivemos, pode parecer distante do calor termonuclear no interior das estrelas e do poder das supernovas. No entanto, existe uma ligação fundamental entre elas.

 A formação dos elementos começou cerca de 14 bilhões de anos atrás, nos primeiros minutos do Big Bang. Após esses 20 minutos, a matéria comum no Universo era uma mistura de 75% prótons e núcleos de hidrogênio, 25% núcleos de hélio e elétrons livres, que começariam a se juntar em átomos em algumas centenas de milhares de anos depois. Essencialmente, a história da formação dos elementos pode ser dividida em duas fases principais: uma que terminou depois dos primeiros 20 minutos, e a outra que está em curso desde a formação das primeiras estrelas, há mais de 13 bilhões de anos.

 Após os 20 minutos iniciais, o Universo em expansão resfriou abaixo do ponto onde a fusão nuclear poderia operar. Isso significava que nenhuma evolução da matéria poderia ocorrer até que as estrelas fossem formadas alguns milhões de anos mais tarde, quando o acúmulo de elementos mais pesados que o hélio pudesse começar.

 Estrelas evoluem através de uma sequência de estágios em que as reações de fusão nuclear em suas regiões centrais acumulam hélio e outros elementos. A energia fornecida por reações de fusão cria a pressão necessária para segurar a estrela contra a gravidade. Ventos de gás que escapam das estrelas distribuem um pouco dessa matéria transformada no espaço de uma forma relativamente suave e as supernovas fazem isso violentamente.

A imagem do Chandra da SNR Cassiopeia-A mostra material ejetado rico em ferro fora do material ejetado rico em silício, indicando assim que mistura turbulenta e uma explosão asférica virou grande parte da estrela original do avesso.

 Imagens e espectros de remanescentes de supernovas individuais do Chandra revelam nuvens de gás ricas em elementos como oxigênio, silício, enxofre, cálcio e ferro, e acompanham a velocidade com que estes elementos foram ejetados na explosão. A imagem do Chandra da SNR Cassiopeia-A mostra material ejetado rico em ferro fora do material ejetado rico em silício, indicando assim que mistura turbulenta e uma explosão asférica virou grande parte da estrela original do avesso. Observações de linhas de emissão Doppler para Cassiopeia A e outras remanescentes de supernovas estão fornecendo informação tridimensional sobre a distribuição e velocidade do material ejetado da supernova que irá ajudar a restringir modelos para a explosão. Em observações da mesma linha da remanescente de supernova N49 revelam uma nuvem de gás na forma de uma bala rica em neon, silício e enxofre que foram ejetados para o gás circundante, a uma velocidade de 5 milhões de km/h.

N49. Crédito: NASA/STScI/UIUC/Y.H.Chu & R.Williams et al.

 Em uma escala maior, as observações de galáxias submetidas a surtos de formação de estrelas mostram que vastas regiões destas galáxias foram enriquecidas pela ação combinada de milhares de supernovas. O sistema de galáxias Antenas foi produzido pela colisão de duas galáxias. Esta colisão criou explosões de formação estelar e, alguns milhões de anos mais tarde, milhares de supernovas que aqueceram e enriqueceram nuvens de gás com milhares de anos-luz de extensão.

 Um agente inesperado para a distribuição de elementos pesados ​​em toda a galáxia é um buraco negro supermassivo no centro de uma galáxia. Gás em espiral na direção dos buracos negros podem sobreaquecer e produzir um vento de gás que flui para longe do buraco negro, ou pode criar um intenso campo eletromagnético que impulsiona material enriquecido nos alcances exteriores da galáxia e além.

 O gás enriquecido pode também ser retirado de uma galáxia, se a galáxia cair em um aglomerado de galáxias. A pressão do gás quente difuso que permeia um aglomerado de galáxias sopra o gás para fora da galáxia, para o meio intergalático, enriquecendo-o.

 Em uma escala maior ainda, o oxigênio tem sido detectado em filamentos galáticos de milhões de anos-luz de comprimento. Esse oxigênio foi provavelmente produzido há mais de 10 bilhões de anos, em algumas das primeiras supernovas que ocorreram na história do Universo. Se a taxa de supernovas fica tão alta, os efeitos combinados de muitas ondas de choque de supernovas dirigem um vento em escala galática que sopra o gás para fora da galáxia. Um bom exemplo é a galáxia M82.

M82. Crédito: Inset: X-ray: NASA/CXC/Tsinghua Univ./H. Feng et al.; Full-field: X-ray: NASA/CXC/JHU/D.Strickland; Optical: NASA/ESA/STScI/AURA/The Hubble Heritage Team; IR: NASA/JPL-Caltech/Univ. of AZ/C. Engelbracht

Ventos galácticos como o de M82 são raros hoje em dia, mas eram comuns bilhões de anos atrás, quando as galáxias eram muito jovens e as estrelas estavam se formando rapidamente por causa de colisões frequentes entre galáxias. O Chandra mostrou que o Sculptor Wall, uma coleção de gás e galáxias que se estende por dezenas de milhões de anos-luz, contém um vasto reservatório de gás enriquecido com oxigênio dos ventos galáticos. O Wall Sculptor é considerado parte de uma enorme teia de gás quente difuso que pode conter até metade de toda a matéria comum no Universo.

 Como o enriquecimento do gás interestelar e intergalático avançou sobre vastas extensões de espaço e tempo, a química do cosmos tornou-se mais rica também. As gerações subsequentes de estrelas se formaram a partir do gás interestelar enriquecido em elementos pesados​​. Nosso Sol, Sistema Solar, e de fato a existência de vida na Terra são resultados diretos desta longa cadeia de nascimento, morte e renascimento estelar. Desta forma, a evolução da matéria, estrelas e galáxias estão todas intrinsecamente ligadas e assim também estão astronomia e química.

Texto traduzido (por Jéssica Mapo, do Universo Racionalista) de: Chandra X-Ray Observatory

domingo, 15 de junho de 2014

''O que é ideologia?'', por Júlia Falivene Alves

''Desde que o termo surgiu, em 1801, ele foi usado de formas variadas por diferentes pensadores. Deixaremos no entanto de discuti-las aqui, limitando-nos a esclarecer, embora rápida e grosseiramente, o significado dado ao termo por Karl Marx, que será o usado por nós nesse livro.*

 Marilena Chauí analisa muito bem a questão no seu livro O que é ideologia? (São Paulo, Brasiliense, 1984, n.13, coleção Primeiros Passos). Ela diz mais ou menos o seguinte:

 Para Marx as ideias dominantes em uma sociedade nascem das condições materiais de produção, da existência e das relações sociais por elas geradas em determinado momento histórico. As ideias estão, pois, ligadas à maneira como são apropriados os bens, como é organizado o trabalho, estruturadas as divisões sociais etc, mudando quando também mudam essas condições.

 As sociedades de classe se caracterizam por se estruturarem na exploração do trabalho de uns por outros que detém a propriedade dos meios de produção. Isso significa que a maioria deve desempenhar as tarefas mais pesadas, menos prazerosas e pouco recompensadoras, para que a minoria, proprietária, possa ter suas necessidades mais amplamente satisfeitas e seus poderes e privilégios assegurados.

 Mas como podem se manter por longo tempo essas sociedades que beneficiam a tão poucos à custa da exploração de muitos?

 Nessas sociedades a ideologia aparece justamente como o conjunto de ideias, valores, regras e sentimentos que tem por objetivo justificar como racional, natural ou normal as diferenças sociais, políticas ou culturais, tornando-as mais aceitáveis e ocultando sua verdadeira causa - a luta de classes.

 A ideologia nasce da classe dominante  mas é assumida pelas demais, dando aos membros de cada sociedade certa coesão e sentimento de identidade. Isso é possível porque, entre outras coisas, os elementos ideológicos aparecem como valores humanos universais e não como valores de uma classe em particular, mesmo porque seus objetivos são exatamente minimizar as diferenças sociais e ocultar a dominação.

 A ideologia tem como função exatamente levar os membros de cada sociedade a se conformarem, sem críticas e revoltas, com a sua organização, que é apresentada como a única possível e desejável, sendo cada um o que é por ter se esforçado, por ter escolhido, ou por dispor de talento ou não para ocupar determinadas funções.

 A ideologia é portanto um ocultamente e não uma revelação da realidade. Justificando e legitimando a divisão de classes, funciona como instrumento de dominação.

Ao contrário, porém, do que pode parecer, ela não é uma construção consciente, uma invenção ou falsificação voluntária da realidade por parte de seus dominantes. Na verdade ela é a visão que a classe dominante tem do seu modo de existência e da realidade, conforme suas próprias experiências e condições.

 A ideologia é, pois, um fato social produzido pelas relações sociais em um determinado momento histórico, independente do desejo ou de 'maquinações cerebrais' da classe que tem o poder.''


*A invasão cultural norte-americana

Epígrafe de Marx a respeito da meritocracia na ideologia capitalista



''A acumulação primitiva desempenha na economia política relativamente o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã, e o pecado surgiu no mundo. A origem do pecado explica-se por uma aventura que teria se passado alguns dias depois da criação do mundo.

 Da mesma maneira, teria havido outrora, faz muito tempo isso, uma época em que a sociedade se dividia em dois campos: acolá pessoas de elite, laboriosas, inteligentes e, sobretudo, dotadas de aptidões administrativas; aqui uma porção de folgazões, divertindo-se de manhã à noite e de noite ao dia seguinte.

 Naturalmente, aqueles acumularam tesouros sobre tesouros, enquanto estes encontraram-se em breve desprovidos de tudo.

 Daí a pobreza da grande massa que, a despeito de um trabalho ininterrupto, devem sempre pagar com o sacrifício de sua própria pessoa, e, por outro lado, a riqueza de um pequeno número que, sem mover um dedo, recolhe todos os frutos e benefícios do trabalho alienado.

 A história do pecado original faz-nos ver, é verdade, como e por que o homem foi condenado pelo Senhor a ganhar seu pão com o suor de seu rosto; mas a do pecado econômico preenche uma lamentável lacuna revelando-nos como e por que há homens que escapam a esta ordem do Senhor.''

Fragmento de A origem do capital.

Em suma, a ideologia (falsa consciência) do capitalismo - cujos instrumentos de ação foram tema de uma obra de Louis Althusser chamada Aparelhos Ideológicos do Estado - funcionam replicando a ideia de que a miséria dos pobres é culpa dos mesmos, castigo divino ou mesmo ''ordem natural das coisas'', ocultando o fato de que ela é consequência dos séculos de exploração dos menos favorecidos pelas classes dominantes, sendo, portanto, uma condição social, que pode (e deve!) ser findada por meio de uma transformação das relações de produção.


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Como a livre concorrência termina invariavelmente em oligo ou monopólio



''O aumento de capitais, que faz elevar o salário, tende a baixar o lucro, em virtude da concorrência entre os capitalistas. (1)

  Caso, por exemplo, o capital que é necessário para o comércio de mercearias de uma cidade 'estiver dividido entre dois diferentes comerciantes, a concorrência levará cada um deles a vender mais barato do que se o capital se encontrasse nas mãos de um só; e se estivesse dividido entre 20, a concorrência seria maior, e menor seria a possibilidade de eles se entenderem entre si para subir o preço de suas respectivas mercadorias.' (2)

  Agora que já sabemos que os preços do monopólio são tão altos quanto possível, porque o interesse dos capitalistas se opõe ao interesse da sociedade, porque o aumento do lucro do capital com os juros compostos vai afetar o preço das mercadorias, segue-se que a concorrência constitui a única proteção contra os capitalistas, concorrência que, de acordo com a evidência da economia política, tem o efeito saudável de subir os salários e reduzir o preço dos produtos, em favor do público consumidor.

  Mas a concorrência só é possível se os capitais se multiplicarem, e, evidentemente, em muitas mãos. A formação de muitos capitais só é possível como resultado de múltipla acumulação, mas a múltipla acumulação torna-se necessariamente uma acumulação para poucos. A concorrência entre os capitais aumenta a concentração de capitais. A acumulação, que sob o domínio da propriedade privada significa concentração de capitais em poucas mãos, é uma consequência necessária quando os capitais se abandonam ao seu livre curso natural. É pela concorrência que o caminho fica aberto a essa natural tendência do capital.

  Já observamos que o lucro do capital é proporcional à sua grandeza. Independentemente de qualquer grandeza deliberada, um grande capital acumula mais rapidamente, em proporção com sua grandeza, do que um pequeno capital.

  Em consequência disto, independentemente da concorrência, a acumulação do grande capital é muito mais rápida que a do pequeno capital. Mas adiantemo-nos mais um pouco neste processo.

  Com o aumento dos capitais, diminuem os lucros, em virtude da concorrência. Assim, o primeiro a sofrer é o pequeno capitalista.

  Além do mais, o aumento dos capitais e um grande número de capitais pressupõe uma condição de crescente riqueza num país.

'Num país que atingiu um alto grau de riqueza, a taxa ordinária de lucro é tão pequena que a taxa de juro que esse lucro permite pagar é demasiado baixa para que outras pessoas, além das muito ricas, possam viver do juro do próprio dinheiro. Todas as pessoas de fortunas médias se veriam obrigadas a gerenciar pessoalmente a aplicação do seu capital, a ser homens de negócios ou a lançar-se a qualquer ramo dos negócios.' (3)

  Essa situação é a que é mais favorável à economia política.

'A proporção que existe entre a soma dos capitais e a renda determinam em toda parte a proporção em que se encontra a indústria e a ociosidade; onde o capital é predominante, impera a indústria; onde o rendimento é predominante, impera a ociosidade.' (4)

  O que acontece com o emprego do capital nesta situação de concorrência intensificada?

'Com o aumento dos capitais, deve aumentar a quantidade de recursos que são emprestados a juros; com a multiplicação destes recursos diminui necessariamente o juro. 1) Porque o preço de mercado das mercadorias baixa à medida que aumenta a sua quantidade. 2) Porque com o aumento dos capitais num determinado país torna-se mais difícil aplicar um novo capital de modo lucrativo. Surge uma concorrência entre os diferentes capitais, enquanto o proprietário de um capital faz todos os esforços possíveis para se apoderar do negócio que se encontra ocupado por outro capital. Mas, na maior parte dos casos, não pode ter esperanças de excluir do seu lugar esse capital senão pela oferta de melhores condições para negociar. Deve não só vender mais barato o produto, mas, muitas vezes, a fim de obter a oportunidade de venda, tem de o comprar mais caro. Quanto mais aumentarem os recursos para a manutenção do trabalho produtivo, maior será também a procura do trabalho; os trabalhadores encontram emprego com facilidade, mas os capitalistas tem dificuldade em encontrar trabalhadores. A concorrência dos capitalistas faz subir os salários de trabalho e diminuir o lucro.' (5)

  Consequentemente, o pequeno capitalista precisa escolher: 1) ou consumir o seu capital, visto que já não pode continuar a viver dos lucros, deixando de ser um capitalista; ou 2) montar pessoalmente um negócio, vender mais barato as suas mercadorias e comprá-las mais caro do que o capitalista mais rico e pagar salários mais altos; portanto, arruinar-se a si mesmo, uma vez que o preço do mercado já se encontra muito baixo como resultado da intensa concorrência por nós pressuposta. Se, em compensação, o grande capitalista quiser derrubar o pequeno capitalista, possui em relação a ele todas as vantagens que o capitalista enquanto capitalista terá em relação ao trabalhador. As pequenas taxas de lucro são-lhe compensadas pelo maior volume do seu capital, e consegue mesmo suportar perdas momentâneas até que o pequeno capitalista se arruíne e ele se veja livre da concorrência. Desta maneira, acumula também os lucros do pequeno capitalista.

  Além disso, o grande capitalista compra sempre mais barato que o pequeno, porque compra em grandes quantidades. Por essa razão, também pode vender mais barato sem prejuízo.

  Mas se a baixa taxa de juros transforma os capitalistas médios, de homens com meios privados, em negociantes, por sua vez o aumento dos capitais comerciais e o pequeno lucro daí resultante provocam a descida da taxa de juros.

'Mas quando o melhoramento que é possível alcançar pelo uso de um capital decresce, diminui também o preço que se pode pagar pelo uso desse capital.' (6)

'Ao aumentar a riqueza, a indústria e a população, tanto mais diminui o juro - por consequência, também o lucro dos capitais; entretanto, apesar do decréscimo do lucro, eles continuam a aumentar, mais rapidamente do que antes... Um volumoso capital, embora com pequenos lucros, cresce de maneira geral mais rapidamente do que um pequeno capital com grandes lucros. O dinheiro faz dinheiro, diz o ditado.' (7)

  Deste modo, se a este grande capital se contrapõem os pequenos capitais com lucros menores, como acontece nas condições pressupostas de intensa concorrência, este abaterá aqueles por completo.''

Notas:

1- Say, op. cit., H, pp.78.
2- Smith, op. cit., p.322.
3- Smith, I, p.86.
4- Ibid, p.301.
5 e 6-Smith, I, p.316.
7- Ibid, p.83.

MARX, Karl. Primeiro manuscrito - lucro do capital, parte 4: o acúmulo dos capitais e a concorrência entre capitalistas. In Manuscritos econômico-filosóficos. 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Um apêndice de Marx sobre a teoria do valor


''Equivocar-vos-eis por inteiro, caso acrediteis que o valor do trabalho ou de qualquer outra mercadoria se determina, em última análise, pelo jogo da procura e da oferta. A oferta e a procura só regulam as oscilações temporárias dos preços no mercado. Explicam por que o preço de um artigo no mercado se eleva acima ou desce abaixo do seu valor, mas não explicam jamais esse valor em si mesmo. Vamos supor que oferta e a procura se equilibrem ou, como dizem os economistas, se cubram mutuamente.

 No preciso instante em que essas duas forças contrárias se nivelam, elas se paralisam mutuamente, deixam de atuar num ou noutro sentido. No mesmo instante em que a oferta e a procura se equilibram e deixam, portanto, de atuar, o preço de uma mercadoria no mercado coincide com o seu valor real, com o preço normal em torno do qual oscilam seus preços no mercado. Por conseguinte, se queremos investigar o caráter desse valor, não nos devemos preocupar com os efeitos transitórios que a oferta e a procura exercem sobre os preços do mercado.
E outro tanto caberia dizer dos salários e dos preços de todas as demais mercadorias."

- MARX, Karl. In SALÁRIO, PREÇO E LUCRO - Fonte Karl Marx: Informe pronunciado por Marx nos dias 20 a 27 de junho de 1865 nas sessões do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. Publicado pela primeira vez em folheto à parte, em Londres, 1898, com o título Value, Price and Profit. 


sexta-feira, 6 de junho de 2014

''Por que me tornei a favor das cotas para negros'', por William Douglas



Roberto Lyra, Promotor de Justiça, um dos autores do Código Penal de 1940, ao lado de Alcântara Machado e Nelson Hungria, recomendava aos colegas de Ministério Público que “antes de se pedir a prisão de alguém deveria se passar um dia na cadeia”. Gênio, visionário e à frente de seu tempo, Lyra informava que apenas a experiência viva permite compreender bem uma situação.

Quem procurar meus artigos, verá que no início era contra as cotas para negros, defendendo – com boas razões, eu creio – que seria mais razoável e menos complicado reservá-las apenas para os oriundos de escolas públicas. Escrevo hoje para dizer que não penso mais assim. As cotas para negros também devem existir. E digo mais: a urgência de sua consolidação e aperfeiçoamento é extraordinária.

Embora juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos. A Constituição da República é pródiga em planos de igualdade, de correção de injustiças, de construção de uma sociedade mais justa. Quem quiser, nela encontrará todos os fundamentos que precisa. A Constituição de 1988 pode ser usada como se queira, mas me parece evidente que a sua intenção é, de fato, tornar esse país melhor e mais decente. Desde sempre as leis reservaram privilégios para os abastados, não sendo de se exasperarem as classes dominantes se, umas poucas vezes ao menos, sesmarias, capitanias hereditárias, cartórios e financiamentos se dirigirem aos mais necessitados.

Não me valerei de argumentos técnicos nem jurídicos dado que ambos os lados os têm em boa monta, e o valor pessoal e a competência dos contendores desse assunto comprovam que há gente de bem, capaz, bem intencionada, honesta e com bons fundamentos dos dois lados da cerca: os que querem as cotas para negros, e os que a rejeitam, todos com bons argumentos.

Por isso, em texto simples, quero deixar clara minha posição como homem, cristão, cidadão, juiz, professor, “guru dos concursos” e qualquer outro adjetivo a que me proponha: as cotas para negros devem ser mantidas e aperfeiçoadas. E meu melhor argumento para isso é o aquele que me convenceu a trocar de lado: “passar um dia na cadeia”. Professor de técnicas de estudo, há nove anos venho fazendo palestras gratuitas sobre como passar no vestibular para a EDUCAFRO, pré-vestibular para negros e carentes.

Mesmo sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular “para negros”, aceitei convite para aulas como voluntário naquela ONG por entender que isso seria uma contribuição que poderia ajudar, ou seja, aulas, doação de livros, incentivo. Sempre foi complicado chegar lá e dizer minha antiga opinião contra cotas para negros, mas fazia minha parte com as aulas e livros. E nessa convivência fui descobrindo que se ser pobre é um problema, ser pobre e negro é um problema maior ainda.

Meu pai foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de “chão de fábrica”, fui pobre quando menino, remediado quando adolescente. Nada foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a 350.000 livros vendidos e a fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho curto, nem fácil. Sei o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas tive heróis que me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros heróis, negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do STJ, Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários heróis, negros, do Supremo à portaria de meu prédio.

Apenas não acho que temos que exigir heroísmo de cada menino pobre e negro desse país. Minha filha, loura e de olhos claros, estuda há três anos num colégio onde não há um aluno negro sequer, onde há brinquedos, professores bem remunerados, aulas de tudo; sua similar negra, filha de minha empregada, e com a mesma idade, entrou na escola esse ano, escola sem professores, sem carteiras, com banheiro quebrado. Minha filha tem psicóloga para ajudar a lidar com a separação dos pais, foi à Disney, tem aulas de Ballet. A outra, nada, tem um quintal de barro, viagens mais curtas. A filha da empregada, que ajudo quanto posso, visitou minha casa e saiu com o sonho de ter seu próprio quarto, coisa que lhe passou na cabeça quando viu o quarto de minha filha, lindo, decorado, com armário inundado de roupas de princesa. 

Toda menina é uma princesa, mas há poucas das princesas negras com vestidos compatíveis, e armários, e escolas compatíveis, nesse país imenso. A princesa negra disse para sua mãe que iria orar para Deus pedindo um quarto só para ela, e eu me incomodei por lembrar que Deus ainda insiste em que usemos nossas mãos humanas para fazer Sua Justiça. Sei que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse assunto. E se não cresse em Deus como creio, saberia que com ou sem um ser divino nessa história, esse assunto não está bem resolvido. O assunto demanda de todos nós uma posição consistente, uma que não se prenda apenas à teorias e comece a resolver logo os fatos do cotidiano: faltam quartos e escolas boas para as princesas negras, e também para os príncipes dessa cor de pele.

Não que tenha nada contra o bem estar da minha menina: os avós e os pais dela deram (e dão) muito duro para ela ter isso. Apenas não acho justo nem honesto que lá na frente, daqui a uma década de desigualdade, ambas sejam exigidas da mesma forma. Eu direi para minha filha que a sua similar mais pobre deve ter alguma contrapartida para entrar na faculdade. Não seria igualdade nem honesto tratar as duas da mesma forma só ao completarem quinze anos, mas sim uma desmesurada e cruel maldade, para não escolher palavras mais adequadas.

Não se diga que possamos deixar isso para ser resolvido só no ensino fundamental e médio. É quase como não fazer nada e dizer que tudo se resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com duzentos anos de espera por dias mais igualitários. Os pobres sempre foram tratados à margem. O caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental, médio, cotas, universidade, distribuição de renda, tributação mais justa e assim por diante. Não podemos adiar nada, nem aguardar nem um pouco.

Foi vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance, sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários “dias na cadeia”. Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as cotas fazem todo sentido.

Se alguém discorda das cotas, me perdoe, mas não devem faze-lo olhando os livros e teses, ou seus temores. Livros, teses, doutrinas e leis servem a qualquer coisa, até ao nazismo. Temores apenas toldam a visão serena. Para quem é contra, com respeito, recomendo um dia “na cadeia”. Um dia de palestra para quatro mil pobres, brancos e negros, onde se vê a esperança tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos que são contra as cotas a passar conosco, brancos e negros, uma tarde num cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem, escola, psicólogo, cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive professores de todas as matérias no ensino médio.

Se você é contra as cotas para negros, eu o respeito. Aliás, também fui contra por muito tempo. Mas peço uma reflexão nessa semana: na escola, no bairro, no restaurante, nos lugares que freqüenta, repare quantos negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não vale porteiro, motorista, servente ou coisa parecida). Se há poucos negros ao seu redor, me perdoe, mas você precisa “passar um dia na cadeia” antes de firmar uma posição coerente não com as teorias (elas servem pra tudo), mas com a realidade desse país. Com nossa realidade urgente. Nada me convenceu, amigos, senão a realidade, senão os meninos e meninas querendo estudar ao invés de qualquer outra coisa, querendo vencer, querendo uma chance.

Ah, sim, “os negros vão atrapalhar a universidade, baixar seu nível”, conheço esse argumento e ele sempre me preocupou, confesso. Mas os cotistas já mostraram que sua média de notas é maior, e menor a média de faltas do que as de quem nunca precisou das cotas. Curiosamente, negros ricos e não cotistas faltam mais às aulas do que negros pobres que precisaram das cotas. A explicação é simples: apesar de tudo a menos por tanto tempo, e talvez por isso, eles se agarram com tanta fé e garra ao pouco que lhe dão, que suas notas são melhores do que a média de quem não teve tanta dificuldade para pavimentar seu chão. Somos todos humanos, e todos frágeis e toscos: apenas precisamos dar chance para todos.

Precisamos confirmar as cotas para negros e para os oriundos da escola pública. Temos que podemos considerar não apenas os deficientes físicos (o que todo mundo aceita), mas também os econômicos, e dar a eles uma oportunidade de igualdade, uma contrapartida para caminharem com seus co-irmãos de raça (humana) e seus concidadãos, de um país que se quer solidário, igualitário, plural e democrático. Não podemos ter tanta paciência para resolver a discriminação racial que existe na prática: vamos dar saltos ao invés de rastejar em direção a políticas afirmativas de uma nova realidade.

Se você não concorda, respeito, mas só se você passar um dia conosco “na cadeia”. Vendo e sentindo o que você verá e sentirá naquele meio, ou você sairá concordando conosco, ou ao menos sem tanta convicção contra o que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou ao menos uma chance. Não para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser heroínas e nós já conseguimos para elas uma estrada. Queremos um caminho para passar quem não está tendo chance alguma, ao menos chance honesta. Daqui a alguns poucos anos, se vierem as cotas, a realidade será outra. Uma melhor. E queremos você conosco nessa história.

Não creio que esse mundo seja seguro para minha filha, que tem tudo, se ele não for ao menos um pouco mais justo para com os filhos dos outros, que talvez não tenham tido minha sorte. Talvez seus filhos tenham tudo, mas tudo não basta se os filhos dos outros não tiverem alguma coisa. Seja como for, por ideal, egoísmo (de proteger o mundo onde vão morar nossos filhos), ou por passar alguns dias por ano “na cadeia” com meninos pobres, negros, amarelos, pardos, brancos, é que aposto meus olhos azuis dizendo que precisamos das cotas, agora.

E, claro, financiar os meninos pobres, negros, pardos, amarelos e brancos, para que estudem e pelo conhecimento mudem sua história, e a do nosso país comum pois, afinal de contas, moraremos todos naquilo que estamos construindo.

Então, como diria Roberto Lyra, em uma de suas falas, “O sol nascerá para todos. Todos dirão – nós – e não – eu. E amarão ao próximo por amor próprio. Cada um repetirá: possuo o que dei. Curvemo-nos ante a aurora da verdade dita pela beleza, da justiça expressa pelo amor.”

Justiça expressa pelo amor e pela experiência, não pelas teses. As cotas são justas, honestas, solidárias, necessárias. E, mais que tudo, urgentes. Ou fique a favor, ou pelo menos visite a cadeia.


William Douglas é juiz federal (RJ), mestre em Direito (UGF), especialista em Políticas Públicas e Governo (EPPG/UFRJ), professor e escritor, caucasiano e de olhos azuis.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Triste Kapteyn, por Alastair Reynolds

*Conto feito a respeito da descoberta do planeta Kapteyn b, da qual pode ser lido mais aqui.


''Olá, Terra. Sou eu de novo.

Eu espero que você esteja recebendo minha mensagem alto e claro.

Você vai ficar feliz em saber que eu me alarmei depois desse longo cruzeiro interestelar. Tendo feito um completo check-up da saúde, posso confirmar que todos os meus aspectos estão operando 'nominalmente'. Mais do que 'nominalmente', verdade seja dita. Correndo o risco de estar me ostentando, digo que realmente estou em excelente forma. Propulsão, núcleo AI, sensores de longo alcance e câmaras de instrumentação, navegação e comunicação - eu não poderia estar em melhores condições.

Nada mau para um pedaço de hardware espacial que já visitou seis sistemas solares, sem jamais precisar voltar para casa. De fato, eu não posso pegar o crédito para mim mesmo. Eu apenas fui produzido - moldado para resistir por milhares de anos.

Mesmo assim, obrigado por ter me feito.

Vamos para os negócios, enfim - e eu mal posso começar a te contar o que eu achei, aqui perto da estrela de Kapteyn! Isso é realmente um lugar extraordinário - um sistema solar diferente de qualquer um que eu á visitei. Eu queria que você estivesse aqui comigo, vendo as coisas através dos meus olhos.

Eu procurei em meus arquivos e entendi o por quê de você ter me enviado à estrela de Kapteyn. Diferente dos outros sistemas que já visitei, esse sol e essa pequena família de mundos não são parte de uma família normal de estrelas orbitando no disco e bojo de uma galáxia. Essa é uma estrela de halo - membra de uma população dispersa de estrelas e aglomerados de estrelas, encerrando a Via Láctea em uma grande esfera fina. É inteiramente possível que essas estrelas, originalmente, não tenham sido originalmente parte de nossa galáxia, mas tenham sido rasgadas e jogadas longe de outra galáxia através de uma espécie de colisão gravitacional. E algumas dessas estrelas são imensuravelmente velhas - mais antigas e vulneráveis, talvez, do que qualquer estrelas discoidais.

A estrela de Kapteyn está queimando tão lentamente, tão estavelmente, que nem meus instrumentos podem lhe designar um limite de vida. Pode ser quase tão antiga quanto o universo.

E seus planetas?

Tão velhos quanto.

Faça de mim o que você desejar - desligue-me por erro de programação, se quiser - mas eu posso sentir a idade desse lugar em meu esqueleto. Tudo bem, ó chassis do meu ônibus. Eu não tenho esqueleto; eu sei disso. Mas acredite em mim, esse sistema parece realmente assombroso em questão de tempo. O silêncio e a quietude são quase insuportáveis, como uma pressão que aumenta infinitamente. Nada aconteceu aqui por vários ciclos galáticos; nada vai acontecer. A estrela de Kapteyn queima, aumentando sua expectativa de  vida nuclear. Os mundos mortos tiquetaqueiam ao redor de suas órbitas mortas.

Mas, uma vez, já houve algo.

Eu sei, eu tenho tomado decisões por conta própria. Eu deveria ter transmitido um sinal de despertar antes de fazer qualquer investigação. Mas eu não pude resistir a mim mesmo. Você me fez curioso.

Eu achei sinais de civilização.

O primeiro planeta,  Kapteyn b,  ainda permanece dentro da zona habitável da estrela, realizando o movimento de translação a cada quarenta e oito dias. Não há nada vivendo lá agora, nem mesmo uma atmosfera, mas já chegou a existir cultura tecnológica.

Sim, o primeiro que eu achei. A razão pelo qual fui feito, em primeiro lugar.

Como foi a descoberta?

O fato é que não foi difícil de detectar. Cidades cobrem quase toda a superfície do planeta. Estruturas enormes - elas devem ter alcançado o espaço! Discos e torres e o que eu achei serem restos de elevadores espaciais, subindo até a órbita síncrona. Uma lua, e sua superfície coberta pela mesma arquitetura. Evidência de colonização do segundo planeta, Kapteyn c, em sua muito mais fria órbita.

Maravilhas além da comparação, mas de uma espécie de uniformidade cinza sepulcral, após eras de micrometeoritos e bombardeamento de raios cósmicos. Cidades mudas como esfinges.

E em nenhum lugar o menor sinal de vida.

Crateras de tamanho continental estragam Kapteyn b, e eu me pergunto se elas falam de alguma verdadeiramente incrível catástrofe - um acidente cósmico ou algo pior? Qualquer que seja o caso, os construtores das cidades se foram há tempos. Talvez eles tenham morrido antes mesmo que a estrela de Kapteyn ser arrancada das garras de sua galáxia mãe.

Correndo o risco de estar concluindo muito com tão poucos dados, eu não posso deixar de fazer pequenas especulações. Eu também fui o projeto de uma civilização tecnológica, com a capacidade de transformar uma planeta, de colonizar outras luas e mundos, de construir estruturas impressionantes. O povo de Kapteyn b era claramente mais avançados que vocês, meus próprios construtores - mas, com tempo suficiente, vocês também poderiam ter alterado um mundo da mesma maneira.

Algo para se pensar, não é mesmo?

Bom, vou desligar a transmissão por agora. Eu vou fazer um pouco mas de exploração nesse sistema, e talvez soltar alguns grupos de instrumentos em Kapteyn b. Haverá um pouco de risco nisso, uma vez que eu terei de entrar em uma órbita bastante apertada, e quem sabe o que vai acontecer? Ainda assim, isso é um perigo que estou disposto a aceitar. Você me fez para isso, e estou grato por tudo que tive permissão de ver e fazer.

Mas veja.

Eu sei que é uma coisa pequena, e eu realmente não deveria incomodá-lo sobre isso. Mas já faz muito tempo que eu não ouço nada de você. Pus um grande esforço nessas transmissões, e seria bom se - ao menos uma vez - saber que há alguém do outro lado, escutando.

Só uma palavra, para me mostrar que você ainda se importa?''

terça-feira, 3 de junho de 2014

A função social da religião em Durkheim, por Bertone Sousa

''[...] a verdadeira função da religião não é nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento, [...] mas sim nos fazer agir, nos ajudar a viver.'' - Durkheim

Grande parte das discussões entre ateus e religiosos na internet tem como plano de fundo a ignorância e mútua incompreensão. Da parte dos ateus, isso começa com a convicção de muitos deles de que as religiões são “irracionais”. As ciências sociais não trabalham com essa perspectiva. Elas são compreensivas. E as religiões, já reconhecia Durkheim, somente podem ser compreendidas historicamente. Desde o século 19, entendemos que fazer história é reconstituir contextos, épocas culturais, mentalidades. A história então monta o modelo do conhecimento das coisas humanas, que vai ser usado pela antropologia, economia, sociologia. Qualquer dimensão da ação humana deve ser entendida historicamente.

Foi o que Durkheim tentou fazer em “As formas elementares da vida religiosa”, onde extraí a epígrafe deste texto.  A obra clássica publicada originalmente em 1912, é uma proposta de estudar o totemismo como sistema de culto em algumas tribos australianas. Embora fosse positivista, Durkheim divergia da teoria de Auguste Comte acerca do progresso da humanidade. Embora também acreditasse na objetividade da ciência social, também rompeu com a ideia de linearidade, tão presente na cultura ocidental, para argumentar que a história não é como  uma linha geométrica nem a humanidade caminha em direção aos mesmos valores ou ao mesmo modelo de desenvolvimento tecnológico. Essa concepção foi bastante profícua para sua formulação de um conceito de religião e da função social da religião.

Sua famosa frase logo no início de que não existem religiões falsas porque todas correspondem a determinada condição da existência humana já sintetiza o olhar das ciências sociais sobre os fenômenos religiosos. A primeira parte, onde ele tenta chegar a uma definição de religião, também é particularmente importante. Uma das maiores dificuldade pra quem quer compreender ou estudar determinado sistema religioso é definir religião.

Sabemos que o sentido etimológico vem do latim re-ligare. Mas a questão é: a religião é um religar de quê? Inicialmente do homem com seus mortos. A religião não começa como uma crença em divindades, mas a partir do sentimento de continuidade da vida, a partir do momento em que o homem começa a sepultar seus mortos, com a realização de enterros e ritos fúnebres. Dessa forma, o sentimento religioso nasce de uma consciência da insuficiência humana e admissão da fragilidade e efemeridade da condição humana. No sistema totêmico, diz ele, a ideia de divindade é completamente estranha. Ele diz que a religião não se originou de cultos a divindades pessoais, mas de cultos a forças anônimas e poderes indefinidos.

Se a religião não se define por uma crença em uma divindade, Durkheim busca um ponto de convergência entre elas. E, pra ele, esse ponto consiste nos dois domínios em que as religiões dividem o mundo: o sagrado e o profano. Essas duas esferas definem determinado pensamento como religioso. Os templos teriam a função de separar os dois mundos. Para ele, a ideia de sagrado evoca a superioridade da coletividade sobre o indivíduo, sua autoridade moral e sua proteção. O sagrado e o profano também são dois temas sobre os quais Mircea Eliade discutiu amplamente em suas obras.  Eliade considera que a necessidade da religião está ligada a um desejo ontológico, isto é, o desejo do ser, oriundo do temor do caos, do espaço desconhecido, não consagrado, que caracteriza, para o homem religioso, o não-ser absoluto.

O sagrado é composto de crenças e ritos, ou pensamento (no casos das crenças) e movimento (no caso dos ritos). Os ritos tem a função de prescrever comportamentos. A pluralidade de crenças religiosas evidenciam o impulso criador da sociedade e também a permanente tentativa do homem de elevar-se a uma vida superior à realidade cotidiana. As crenças, enquanto representações coletivas, atribuem significados a essa outra vida, enquanto os ritos estabelecem os regulamentos que garantem o funcionamento do culto religioso. Os ritos são formas de reafirmação periódica do grupo.

Por este motivo, para Durkheim, a vida religiosa é voltada para ação. E Weber iria adiante ao dizer que toda ação é racional, portanto as religiões não podem ser irracionais. Mas em Durkheim o simbolismo religioso também atua com a função de reproduzir as hierarquias sociais.

A caracterização das religiões como sistemas de crenças irracionais, embora seja um equívoco, evidencia a tensão entre esses sistemas e nosso pensamento científico. A ciência nos ensinou a contemplar a natureza de outra forma, afastou a necessidade de um criador e da crença em mundos espirituais e tornou os ritos inúteis para aplacar as forças da natureza, que aprendemos a controlar a manipular a nosso favor. Contudo, não possuímos a totalidade do conhecimento, o que nos impede, por exemplo, de termos certeza se estamos ou não sozinhos no universo ou se existe algo parecido com um criador escondido em algum canto ou dimensão que não conhecemos.

Hoje, podemos viver confortavelmente sem nenhuma crença religiosa e com o direito de não sermos molestados por quem segue qualquer sistema de crença. Podemos ter espiritualidade sem precisarmos frequentar um templo ou acreditar em um Deus, podemos explicar o mundo sem o recurso a forças invisíveis e sobrenaturais. Isso também não suprimiu a religião como força cultural criadora. O fato de a religião ter sido legitimadora de diversas formas de poder arbitrários ao longo de milênios não anula seu potencial criador, seu impulso para a ação coletiva. Por isso Durkheim compreendia que, em última instância, a religião ensina as pessoas a viver melhor e fornece (especialmente para sociedades não modernas) o chão para a estabilidade das relações sociais.''

Bertone Sousa é professor do curso de História da UFT.

domingo, 1 de junho de 2014

O que é secularismo?, por Robert G. Ingersoll



''Várias pessoas têm me perguntado sobre o significado deste termo.

Secularismo é a religião da humanidade; ele abrange os assuntos deste mundo; está interessado em tudo que toca o bem-estar de um ser senciente; advoga a atenção para o planeta particular em que nós por acaso vivemos; significa que cada indivíduo conta para algo; é uma declaração de independência intelectual; significa que os bancos da igreja são superiores ao púlpito, que os que carregam os fardos colherão os frutos e que aqueles que enchem a sacola segurarão as rédeas. É um protesto contra a opressão teológica, contra a tirania eclesiástica, contra ser o servo, o súdito ou o escravo de qualquer fantasma, ou do sacerdote do fantasma. É um protesto contra o desperdício desta vida por uma da qual não sabemos. Ele propõe que deixemos os deuses tomar conta de si mesmos. É um nome alternativo para o bom senso; isto é, a adaptação dos meios para tais fins como são desejados e entendidos.

O secularismo acredita na construção de um lar aqui, neste mundo. Ele confia no esforço individual, na energia, na inteligência, na observação e na experiência em vez de no desconhecido e no sobrenatural. Ele deseja ser feliz neste lado do túmulo.

Secularismo significa comida e lareira, teto e vestimenta, trabalho razoável e lazer razoável, o cultivo dos gostos, a aquisição do conhecimento, o gozo das artes, e promete à raça humana conforto, independência, inteligência e acima de tudo liberdade. Significa a abolição das rixas sectárias, dos ódios teológicos. Significa o cultivo da amizade e da hospitalidade intelectual. Significa o viver por nós mesmos e uns pelos outros; pelo presente ao invés do passado, por este mundo ao invés de outro. Significa o direito de expressar seu pensamento a despeito dos papas, pastores e deuses. Significa que a ociosidade impudente não mais viverá do trabalho de homens honestos. Significa a destruição do negócio daqueles que comercializam medo. Propõe dar serenidade e conteúdo à alma humana. Ele apagará as chamas da dor eterna. Ele batalha para nos livrar da violência e do vício, da ignorância, da pobreza e da doença. Vive pelo sempre presente hoje, e o sempre vindouro amanhã. Ele não acredita em rezar e receber, mas em auferir e merecer. Considera trabalho como adoração, a lida como oração, e sabedoria como a salvadora da raça humana. Ele diz para todo ser humano 'Tome conta de si mesmo para que possa ajudar os outros; adorne sua vida com as joias chamadas bons atos; ilumine seu caminho com a luz chamada amizade e amor'.

Secularismo é uma religião, uma religião que é entendida. Ele não tem mistério algum, murmúrio nenhum, nem padres, cerimônias, falsidades, milagres ou perseguições. Ele considera os lírios do campo e pensa no amanhã. Ele diz ao mundo inteiro 'Trabalhe para que possa comer, beber e vestir-se; trabalhe para que possa usufruir; trabalhe para que possa não querer; trabalhe para que possa dar e nunca necessitar'.''

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