segunda-feira, 30 de junho de 2014

Deus está morto?

Por Rafael Trindade, para o blog Razão Inadequada

                   

O Homem Louco – [...] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmo nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então” (Nietzsche, Gaia Ciência, §125).

Esta talvez seja a frase mais famosa e incompreendida de Nietzsche: “Deus está morto!”. Por que ele disse tais palavras? Para um homem cujo ateísmo era convicto, não fazia sentido anunciar a morte de algo em que não acreditava.

A grande razão para tal declaração tem motivos históricos. Através desta afirmação o filósofo procura condensar o espírito de sua época. Nietzsche faz todo o diagnóstico de sua cultura e denuncia o niilismo de seu tempo. Não interessa se Deus existe ou não, o que Nietzsche afirma é que a influência da religião em nossas vidas é cada vez menor. A igreja, os mitos, as idéias, os ritos, a moral por trás da teologia, tudo isso está desaparecendo. Não temos mais medo de deus, ele é fraco. Não ligamos para as datas religiosas, apenas para o feriado.

Deus está morto como uma verdade eterna, como alguém que controla e conduz o mundo, como um ser bondoso que justifica os acontecimentos. A secularização da civilização prova isso cada vez mais. Deus está morto como um grande ditador divino que exige obediência de seus servos. Ele já não é uma questão importante para se tratar.

A morte dos ideais divinos, o início da morte desta doença chamada cristianismo é uma constatação nietzschiana. O sentido está perdido, a Verdade Eterna está acabada, de agora em diante precisamos encarar o caos do mundo à nossa frente. Todo idealismo e platonismo estão se perdendo. Por isso enfrentamos o grande perigo do niilismo: estamos perdidos sem justificações supra-sensíveis e não sabemos para onde ir.

O primeiro momento da morte de Deus se dá com o niilismo passivo. Não sabemos o que fazer, como proceder, não sabemos mais o que é certo e errado sem um padre ou um livro velho para nos guiar. A falta de referencial externo é desesperador para o homem, ele fica aterrorizado diante do mundo. Passa então a buscar qualquer coisa para se segurar: razão, humanismo, ciência. Deus morreu, mas ainda velamos seu corpo em várias outras práticas que não encontram justificação no próprio mundo, mas em outros lugares. A fé virou razão. Nossa nova religião é o progresso do homem.

A única alternativa frente a esse niilismo passivo é tomarmos as rédeas da situação e fazer deste niilismo um novo modo de vida. “Nietzsche diz que o importante não é a notícia de que deus está morto, mas o tempo que ela leva a dar seus frutos” (Deleuze, Anti-Édipo). É só com a morte de Deus que temos finalmente a chance de criar novos e autênticos valores para nós. Sem ninguém para dizer o que é certo e errado, bem ou mal, temos plena liberdade para decidir por nós mesmos. Adquirimos assim a responsabilidade e a felicidade de sermos autores de nossa própria vida. O niilismo ativo, segundo momento do niilismo, significa que “se o homem não quiser perecer nas dificuldades que o sufocam, será preciso que as desfaça de um só golpe criando os seus próprios valores. A morte de Deus não dá nada por terminado e só pode ser vivida com a condição de preparar uma ressurreição” (Camus, O Homem Revoltado).

Ai está o valor da morte de Deus. Mesmo que ele exista, é importante que nós o matemos, para andar com nossas próprias pernas. Somos o filho que cresceu e quer agora libertar-se. Não podemos mais nos esconder atrás da sombra divina e dizer “Deus quis assim”. A responsabilidade agora é toda nossa, para desfazer as verdades antigas e criarmos novas e melhores formas de dizer sim à vida.

De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o Velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’“ (Nietzsche, Gaia Ciência, §343).

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