domingo, 20 de setembro de 2015

Uma nota sobre 'protagonismo' nos movimentos de minorias



 Gastou-se muita tinta (ou muitos bits de informação, na verdade) sobre a questão do protagonismo – ou, sendo mais materialista, de algo que se chama de ‘protagonismo’ – nos movimentos das minorias, mais notavelmente os feminista, negro e LGBT; esse debate gira em torno de questões tais quais a cognoscibilidade da situação vivida pelas pessoas pertencentes às minorias, como se deve dar a direção desses movimentos etc. Sem supor que eu seja o portador de qualquer revelação não acessível aos muitos que já discutiram o tema, gostaria de tentar fazer minha própria contribuição (e desde já peço desculpas pela prosa fraca, repetitiva e quiçá irritante, bem diferente da escrita elegante de outros pessoas que já comentaram o tema).

 A primeira questão altamente discutida quando se fala em ‘protagonismo’ é sobre se pode haver qualquer contribuição, ainda mais relevante, de pessoas não pertencentes aos movimentos de minorias para as causas destas. Oras, penso que, ao menos do ponto de vista político, chega a ser ridículo ainda levantar essa questão: qualquer um de nós pode duvidar da importância e da efetividade que há no ato do pai que ensina seus filhos a respeitarem as meninas, ou de uma pessoa heterossexual que repreende colegas, parentes ou outros conhecidos por ter agido de forma homofóbica, ou mesmo um(a) professor(a) heterossexual que ensina seus alunos a respeitarem a diversidade de gênero e orientação sexual? De uma pessoa branca que explica a outra como as forças socioeconômicas de nossa sociedade levaram a população negra a uma tal situação que acabou-se associando pessoas negras a criminosos? 

 Caminhamos então para outra questão, que eu diria que se segue naturalmente ao último exemplo de contribuição de pessoas não-pertencentes aos ‘’grupos oprimidos’’ para a causa destes: a da compreensão das ‘’opressões’’, isto é, da capacidade de entender as causas dos estigmas de que são vítimas as minorias.* Bem, supondo-se que tais ‘’opressões’’ sejam fenômenos objetivos (como um raio ou a exploração da força de trabalho, para citar exemplos das ciências naturais e das ciências humanas) – e não um sentimento ou algo assim –, o bizarro seria se elas não fossem racionalmente cognoscíveis, e portanto de compreensão acessível a qualquer ser humano dotado de racionalidade. Isso traz, claro, consequências desagradáveis para certos militantes dos movimentos de minorias: o mantra de que um membro dos ‘’grupos opressores’’ não deve/pode contestar um dos ‘’oprimidos’’ quando este diz que determinado comportamento é ‘’opressor’’ depende exatamente da premissa de um ‘’privilégio epistemológico’’ dos últimos; sendo a razão universal plenamente capaz de prover o entendimento das situações estigmáticas vividas por mulheres, negros, LGBTs etc, desfaz-se em ruínas tal mantra (que eu não pude deixar de associar com uma espécie de abolição do princípio de ‘’in dubio, pro reu’’ do nosso Direito).

 Vamos então para a terceira e última questão: a da direção (talvez seja melhor dizer ‘’gestão’’) dos movimentos das minorias. Bem, se a condição de LGBTs, mulheres e negros é racionalmente cognoscível, até o mais branco, heterossexual, cisgênero e másculo dos homens brancos, heterossexuais e cisgêneros pode realizar contribuições teóricas e, daí, propostas táticas e estratégicas eficientes para a emancipação daquelas. Deveríamos então deixar a liderança dos movimentos feministas com homens, das organizações LGBT com heterossexuais cisgêneros, dos coletivos negros com pessoas brancas? Eu creio que não. Como se trata das nossas vidas, e como somos dotados dos mesmos potenciais de racionalidade daqueles que pertencem aos tais ‘’grupos opressores’’, cabe a nós mesmos decidir como agiremos para eliminar os males de que somos vítimas, podendo ouvir ou não (e daí acatar ou não) as sugestões advindas de pessoas fora do grupo. 

 Em resumo: apliquemos nosso direito de permanecer soberanos em nossa luta, saibamos absorver as contribuições teóricas, táticas e estratégicas de aliados ‘’outsiders’’ e evoquemos a ajuda daqueles que estiverem dispostos a nos ajudar, de forma que nos tornemos cada vez mais fortes, a caminho de uma sociedade mais livre e justa!


*Que, como disse em outro texto, não exatamente são de natureza semelhante. A ‘’opressão’’ da população negra aqui no Brasil, p. ex., parece ser uma coisa bem diferente do caso das pessoas LGBTs, estes identificados por suas práticas (modos de gesticular, vestir e falar; relacionamentos, etc) -- possíveis de ocultamento --, enquanto aqueles são identificados por uma característica de imediato perceptível. Para uma argumentação mais completa, ver Revendo privilégios teóricos). 

sábado, 19 de setembro de 2015

Marx, Engels e a política

O texto abaixo, de autoria do historiador Eric J. Hobsbawm (1917-2012), constitui o terceiro capítulo do livro ''Como mudar o mundo: Marx e o marxismo'' (São Paulo: Companhia das letras, 2011)

Os próprios.
 Este capítulo aborda as ideias e concepções políticas de Marx e Engels, vale dizer, tanto suas concepções sobre o Estado e suas instituições quanto o aspecto político da transição do capitalismo para o socialismo: a luta de classes, a revolução, o modo de organização, a estratégia e táticas do movimento socialista e questões semelhantes. Analiticamente, elas eram, sob certos aspectos, questões secundárias. “As relações jurídicas, assim como as formas do Estado, não podiam ser compreendidas por si mesmas [...], mas radicam-se nas condições materiais de vida”, naquela “sociedade civil” cuja anatomia era a economia política (prefácio de Crítica da economia política). O que determinava a transição do capitalismo para o socialismo eram as contradições internas do desenvolvimento capitalista e, em particular, o fato de o capitalismo gerar, inevitavelmente, seu próprio coveiro, o proletariado, “uma classe sempre crescente, e disciplinada, unida e organizada pelo próprio processo da produção capitalista” (O capital i, capítulo 32). Além disso, embora o poder do Estado fosse vital para o domínio de classe, a autoridade dos capitalistas sobre os trabalhadores “só está investida em seus detentores como uma personificação do fato de os requisitos do trabalho estarem acima do trabalhador. Não está investido neles em sua capacidade como detentores de poder político ou teocrático, da forma como ocorria em anteriores modos de produção” (Werke 1, iii, p. 888). Por isso, a política e o Estado não precisam ser integrados à análise básica, podendo ser examinados num estágio posterior. [1]

Na prática, é claro, os problemas da política não eram secundários e sim fundamentais para os revolucionários ativos. Por isso, um enorme volume de textos de Marx trata desses problemas. No entanto, esses textos diferem, em caráter, de sua obra teórica principal. Embora ele nunca tenha completado sua abrangente análise econômica do capitalismo, seu rascunho inacabado está presente em vários manuscritos longos que ele pretendia que fossem publicados ou que realmente o foram. Marx também dedicou atenção sistemática, na década de 1840, à análise da filosofia social e do que pode ser chamado de análise filosófica da natureza da sociedade burguesa e do comunismo. Não houve um esforço teórico sistemático análogo em relação à política. Nesse campo, quase todos os seus textos assumem a forma de matérias jornalísticas, investigações do passado político imediato, contribuições para a discussão dentro do movimento e cartas pessoais. Engels, que chegou a escrever sobre a questão principalmente comentários sobre posições políticas, tentou no entanto um tratamento mais sistemático desses assuntos, não apenas no Anti-Dühring, como sobretudo em vários textos posteriores à morte de Marx.

 Por isso, a natureza exata das ideias de Marx e, em menor grau, de Engels é muitas vezes incerta, sobretudo no tocante a assuntos que não lhes interessavam de perto. Com efeito, é possível que desejassem desestimulá-los, já que “o que cega as pessoas é, acima de tudo, a ilusão de uma história autônoma de constituições dos Estados, de sistemas jurídicos e das representações ideológicas em todos os campos especiais” (carta de Engels a Mehring, Werke 39, p. 96 ss.). O próprio Engels admitiu, já idoso, que, embora ele e Marx tivessem razão ao sublinhar, antes de mais nada, que “as teses políticas, jurídicas e outras concepções ideológicas derivavam dos fatos econômicos básicos”, de certa forma tinham negligenciado o lado formal desse processo em benefício do conteúdo. Isso vale não só para a análise do conteúdo ideológico das instituições políticas, jurídicas e de outra natureza, mas também — como ele destacou nas conhecidas cartas em que fez comentários sobre a concepção materialista da história — para a relativa autonomia desses elementos da superestrutura. Há lacunas substanciais nas ideias conhecidas de Marx e Engels sobre esses assuntos, e, por conseguinte, incertezas a respeito de quais eram ou poderiam ter sido essas ideias.

 É evidente que essas lacunas não preocupavam Marx ou Engels, uma vez que decerto poderiam tê-las preenchido, se isso tivesse se mostrado necessário no curso de sua práxis política concreta. Assim, quase não há referências específicas a leis nos textos de Marx, mas Engels não encontrou dificuldade para improvisar uma discussão sobre jurisprudência (em colaboração com Kautsky) quando isso pareceu oportuno (1887). 2 Tampouco é difícil entender por que Marx e Engels não se deram o trabalho de preencher certas lacunas teóricas que a nós parecem óbvias. O tempo histórico em que escreveram e sobre o qual escreveram não só era totalmente diferente do nosso, como também (salvo certa superposição nos últimos anos da vida de Engels) muito diferente da época em que os partidos marxistas se transformaram em organizações de massa ou em forças políticas de relevo. Com efeito, a situação real de Marx e Engels como comunistas ativos só ocasionalmente foi comparável à de seus seguidores marxistas que lideraram esses movimentos posteriores ou tiveram uma ativa atuação política neles. Isso porque, embora Marx, talvez mais do que Engels, tenha exercido um papel importante na política prática, sobretudo durante a revolução de 1848, como editor do Neue Rheinische Zeitung, e na Primeira Internacional, nenhum deles jamais dirigiu ou foi membro de partidos políticos do tipo que se tornou característico do movimento no período da Segunda Internacional. No máximo, assessoraram seus dirigentes, e estes (por exemplo, Bebel), apesar da enorme admiração e respeito por Marx e Engels, nem sempre acataram seus conselhos. A única experiência política de Marx e Engels que justifica uma comparação com a de organizações marxistas posteriores foi a liderança da Liga Comunista (1847-52), a que, por essa razão, os leninistas tenderam a recorrer desde 1917. Era inevitável que o pensamento político prático de Marx e Engels ficasse marcado pelas situações históricas específicas que eles enfrentaram, ainda que fossem situações perfeitamente suscetíveis de análise e resolução para aplicação em outros casos.

 Não obstante, devemos distinguir entre aquela parte de seu pensamento que era simplesmente ad hoc e a parte que era cumulativa, embora embasada por uma análise que, além de coerente, era gradualmente moldada, alterada e aprimorada à luz de sucessivas experiências históricas. Tal é, em especial, o caso dos problemas do Estado e da revolução, que Lênin fez bem em juntar na tentativa de apresentar essa análise de modo sistemático.

 O pensamento de Marx sobre o Estado começou com a tentativa de ajustar contas com a teoria hegeliana sobre o tema em Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843). Nessa fase, Marx era democrata, mas não ainda comunista, e por isso sua abordagem apresenta certa semelhança com a de Rousseau, ainda que os estudiosos que procuraram estabelecer vínculos diretos entre os dois pensadores tenham sido derrotados pelo fato indubitável de que “Marx nunca deu indicação alguma de ter ao menos uma consciência remota [dessa suposta dívida para com Rousseau]” [3] e na verdade parece tê-lo interpretado erroneamente. Esse texto antecipou alguns aspectos das posteriores ideias políticas de Marx, notadamente, de modo vago, a identificação do Estado com uma forma específica de relações de produção (“propriedade privada”), o Estado como criação histórica e sua eventual dissolução (Auflösung), juntamente com a da “sociedade civil” quando a democracia põe fim à separação de Estado e povo. Contudo, a obra é memorável sobretudo como uma crítica da teoria política ortodoxa e, portanto, constitui a primeira e única ocasião em que a análise de Marx opera sistematicamente em termos de constituições, problemas de representações etc. Cabe notar sua conclusão de que as formas constitucionais eram secundárias em relação ao conteúdo social — tanto os Estados Unidos como a Prússia baseavam-se numa ordem social de propriedade privada — e a análise que ele faz do governo exercido por representantes (parlamentares, por exemplo), isto é, vendo na democracia uma parte formal do Estado, em vez de vê-la como sua essência. [4] Marx imaginava um sistema de democracia em que a participação e a representação não seriam mais separadas, “um mecanismo, não um corpo parlamentar”, nas palavras que mais tarde aplicou à Comuna de Paris, [5] embora seus detalhes formais, em 1843 como em 1871, ficassem obscuros.

 A forma comunista inicial da teoria do Estado de Marx esboçava quatro pontos básicos: a essência do Estado era o poder político, que “é a expressão oficial da oposição de classes dentro da sociedade burguesa”; por conseguinte, ele deixaria de existir na sociedade comunista; no atual sistema, representava não um interesse geral da sociedade, mas o interesse da(s) classe(s) dominante(s); porém, com a vitória revolucionária do proletariado, ele não desapareceria imediatamente durante o esperado período de transição, e assumiria a forma temporária de “proletariado organizado como classe dominante” ou “ditadura do proletariado” (embora essa expressão só tenha sido usada por Marx depois de 1848).

 Essas ideias, ainda que Marx e Engels as tenham mantido íntegras pelo resto da vida, foram consideravelmente elaboradas, sobretudo em dois aspectos. Primeiro, o conceito de Estado como poder de classe foi modificado, sobretudo à luz do bonapartismo de Napoleão iii na França e dos demais regimes pós-1848, que não podiam ser descritos simplesmente como o domínio de uma burguesia revolucionária (ver abaixo). Segundo, principalmente depois de 1870, Marx e mais especialmente Engels delinearam um modelo mais geral da gênese e do desenvolvimento históricos do Estado como consequência do desenvolvimento da sociedade de classes, formulado mais plenamente em A origem da família (1884), que, aliás, constitui o ponto de partida da discussão posterior feita por Lênin. Com o crescimento de irreconciliáveis e intratáveis antagonismos de classe na sociedade, “faz-se necessário um poder situado aparentemente sobre a sociedade e chamado a amortecer o choque, mantê-lo nos limites da ‘ordem’”, isto é, para evitar que o conflito de classe consumisse tanto as classes quanto a sociedade “em luta estéril”. [6] Ainda que “como norma” o Estado represente claramente os interesses da classe mais poderosa e dominante, a qual, por meio de seu controle, adquiriu novos meios de manter sob sujeição os oprimidos, cumpre notar que Engels aceita tanto a função social geral do Estado, pelo menos negativamente, como um mecanismo para impedir a desagregação social, e também aceita o elemento de ocultação do poder, ou domínio por mistificação ou consentimento ostensivo, implícito no fato de o Estado parecer colocar-se acima da sociedade. Assim, a teoria do Estado do marxismo maduro tornou-se bem mais sofisticada do que a simples equação “estado = poder de coerção = domínio de classe”.

 Uma vez que tanto Marx quanto Engels acreditavam na futura dissolução do Estado e na necessidade de um Estado (“proletário”) de transição, bem como na necessidade de planejamento e gestão social até, pelo menos, o primeiro estágio do comunismo (“socialismo”), o futuro da autoridade política suscitava problemas complexos, que seus sucessores não solucionaram nem na teoria nem na prática. Já que o “Estado”, como tal, era definido como o aparelho para governar homens, podia-se aceitar que o aparelho de governo que lhe sobreviveria se limitaria à “administração de coisas” e, portanto, não seria mais um Estado. [7] A distinção entre governo de homens e administração de coisas foi tirada, provavelmente, de um pensamento socialista anterior. Fora usada em especial por SaintSimon. A distinção só se torna algo além de um artifício semântico se relacionada a certos pressupostos utópicos ou, de qualquer modo, muito otimistas, como, por exemplo, a ideia de que a “administração de coisas” seria tecnicamente mais simples e menos especializada do que se mostrou até agora, e, portanto, ao alcance de cidadãos não especializados — o ideal de Lênin de que todo cozinheiro fosse capaz de governar o Estado. Não parece haver dúvida de que Marx tinha a mesma ideia otimista. [8] Entretanto, durante o período de transição, o governo de homens ou, na frase mais precisa de Engels, “a intervenção do poder do Estado nas relações sociais” (Anti-Dühring) desapareceria, mas só aos poucos. Duas coisas ficam obscuras: quando o Estado começaria a desaparecer na prática, e como se processaria esse desaparecimento. A famosa passagem de Engels no Anti-Dühring só diz que isso ocorreria “por si só”, mediante “definhamento”. Para fins práticos, de pouco nos vale a declaração formal, puramente tautológica, de que esse processo começaria com “o primeiro ato em que o Estado apareça como o representante real de todo o conjunto da sociedade”, a transformação dos meios de produção em propriedade social, pois isso só afirma que, ao representar o conjunto da sociedade, o Estado não pode mais ser classificado como Estado.

 A preocupação de Marx e Engels com o fim do Estado é interessante não pelos prognósticos que se possam inferir dela, mas principalmente como uma clara indicação de suas esperanças para a futura sociedade comunista e da forma que lhe atribuíam: tanto mais clara porque as previsões deles para essa sociedade contrastam com a habitual relutância em especular sobre um futuro imprevisível. O legado que Marx e Engels deixaram para seus sucessores com relação a esse problema permaneceu enigmático e incerto.

 Cumpre mencionar brevemente outra complicação da teoria marxista do Estado. Na medida em que não era um mero aparelho de governo, mas um aparelho baseado em território (A origem da família, Werke 21, p. 165), o Estado tinha também uma função no desenvolvimento econômico burguês como “nação”, que seria a unidade desse desenvolvimento, pelo menos na forma de várias grandes unidades territoriais desse tipo (ver adiante). O futuro dessas unidades não é debatido por Marx ou por Engels, mas a insistência deles na manutenção da unidade nacional, em alguma forma centralizada, depois da revolução, ainda que levantasse problemas apontados por Bernstein e confrontados por Lênin, [9] não pode ser posta em dúvida. Marx sempre desaprovou o federalismo.
 As ideias de Marx sobre a revolução começaram com a análise da principal experiência revolucionária de sua época, a da França a partir de 1789. [10] A França continuaria a ser, pelo resto de sua vida, o exemplo “clássico” da luta de classes em sua forma revolucionária e o principal laboratório de experiências históricas em que se formaram a estratégia e as táticas revolucionárias. Contudo, a partir do momento em que ele entrou em contato com Engels, a experiência francesa foi suplementada pela experiência do movimento proletário de massas, de que a Grã-Bretanha era então e continuou a ser, durante várias décadas, o único exemplo importante.

 O momento crucial da Revolução Francesa, de ambos os pontos de vista, foi o período jacobino. O episódio teve uma relação ambígua com o Estado burguês, [11] uma vez que a natureza desse Estado consistiu em proporcionar campo livre para as operações anárquicas da sociedade civil/burguesa, enquanto, cada qual à sua maneira, tanto o Terror quanto Napoleão procuravam encaminhá-las para um quadro, dirigido pelo Estado, de nação/comunidade, o primeiro subordinando-as a uma “revolução permanente” — expressão usada pela primeira vez nesse contexto por Marx (A sagrada família, p. 130) —, o segundo levando-as à conquista e à guerra permanentes. A verdadeira sociedade burguesa surgiria depois do Termidor, e por fim a burguesia descobriu sua forma efetiva, “a expressão oficial de seu poder exclusivo, e o reconhecimento político de seus interesses específicos” no Estado parlamentar constitucional (Repräsentativstaat) na revolução de 1830 (ibid., p. 132).

 Todavia, ao aproximar-se o ano de 1848, passou-se a dar ênfase a outro aspecto do jacobinismo: a liquidação dos resquícios do feudalismo, que de outra forma poderiam ter perdurado durante décadas. Paradoxalmente, isso se deveu à intervenção, na revolução, do “proletariado”, ainda demasiado imaturo para poder alcançar seus próprios objetivos. [12] O argumento continua relevante, apesar de que hoje não veríamos o movimento dos sansculottes como “proletário”, pois ele levanta o problema crucial do papel das classes populares numa revolução burguesa e também o problema das relações entre os burgueses e a revolução proletária. Tais problemas constituiriam os principais temas do Manifesto comunista, dos textos de 1848 e das discussões pós-1848, e haveriam de ser sempre um tema importante do pensamento político de Marx e Engels e do marxismo no século xx. Além disso, na medida em que o advento da revolução burguesa oferecia a possibilidade, seguindo o precedente jacobino, de levar a regimes que fossem além do governo burguês, o jacobinismo também indicava algumas características políticas desses regimes, como o centralismo e o papel do Legislativo.

 Portanto, a experiência do jacobinismo lançou luz sobre o problema do Estado revolucionário de transição, inclusive sobre a “ditadura do proletariado”, um conceito muito controverso nas posteriores discussões marxistas. A expressão surgiu pela primeira vez na análise marxista — não importa que tenha vindo de Blanqui ou não — depois da derrota de 1848-9, ou seja, no ambiente de uma possível reedição de alguma coisa como as revoluções de 1848. Referências posteriores ao conceito ocorrem principalmente após a Comuna de Paris e em conexão com as perspectivas do Partido Social-Democrata da Alemanha na década de 1890. Embora o conceito nunca tenha deixado de ser um elemento crucial na análise de Marx, [13] o contexto político em que era discutido mudou profundamente. Daí algumas das ambiguidades do debate subsequente.

 Ao que parece, o próprio Marx nunca usou o termo “ditadura” para aludir a uma forma de governo institucional específica, mas sempre apenas para descrever o conteúdo, e não a forma, do domínio de um grupo ou uma classe. Assim, para ele a “ditadura” da burguesia podia existir com ou sem sufrágio universal. [14] É provável, porém, que numa situação revolucionária, quando o principal objetivo do novo regime proletário tem de ser ganhar tempo mediante a imediata tomada “das medidas necessárias para intimidar suficientemente a massa da burguesia”, [15] tal domínio tendesse a ser mais abertamente ditatorial. O único regime que Marx realmente descreveu como uma ditadura do proletariado foi a Comuna de Paris, cujas características políticas que ele enfatizou eram o oposto de ditatoriais (no sentido literal). Engels mencionou tanto a “república democrática” como sua forma política específica, “como a Revolução Francesa já demonstrou”, [16] quanto a Comuna de Paris. Entretanto, como Marx e Engels não construíram um modelo universalmente aplicável da forma da ditadura do proletariado, nem previram todos os tipos de situações em que ela poderia vigorar, de suas observações só podemos depreender que ela deveria combinar a transformação democrática da vida política das massas com medidas para evitar a contrarrevolução pela classe dominante derrotada. Não dispomos de textos que nos permitam especular sobre qual seria a atitude deles em relação a regimes pós-revolucionários do século xx, mas supõe-se quase com certeza que dariam absoluta prioridade inicial à manutenção do poder revolucionário proletário contra os perigos de derrubada. Um exército do proletariado era a precondição de sua ditadura. [17]

 Como é notório, a experiência da Comuna de Paris indicou a necessidade de reformulações importantes das ideias de Marx e Engels sobre o Estado e a ditadura do proletariado. Não bastava simplesmente assumir o comando da velha máquina do Estado — era preciso eliminá-la. Aqui Marx parece ter pensado basicamente na burocracia centralizada de Napoleão iii, assim como em seu exército e sua polícia. A classe operária “tinha de se proteger de seus próprios representantes e de suas autoridades” a fim de evitar “a transformação do Estado e dos órgãos do Estado, de servos da sociedade em seus senhores”, como acontecera em todos os Estados prévios. [18] Embora nas discussões marxistas posteriores essa mudança tenha sido interpretada sobretudo como a necessidade de salvaguardar a revolução contra os perigos representados pela manutenção da velha máquina estatal, o perigo previsto diz respeito a qualquer máquina estatal à qual se conceda um poder autônomo, inclusive a da própria revolução. O sistema resultante, discutido por Marx com relação à Comuna de Paris, tem sido objeto de intensos debates desde então. No tocante a ele, pouca coisa é inequivocamente clara, exceto que deve ser formado por “servidores responsáveis (eleitos) da sociedade” e não por uma “corporação que se coloque acima da sociedade”. [19]

 Seja qual for sua forma precisa, o poder do proletariado sobre a burguesia derrotada tem de ser mantido durante um período de transição, de duração incerta e, sem dúvida, variável, enquanto a sociedade comunista gradualmente transforma a sociedade capitalista. Parece claro que Marx esperava que o governo, ou melhor, seus custos sociais, “definhasse” durante esse período. [20] Embora Marx fizesse distinção entre a “primeira fase da sociedade comunista, tal como brotou da sociedade capitalista depois de um longo e doloroso parto” e “uma fase superior”, quando passa a ser possível a aplicação do princípio “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual, segundo suas necessidades”, porque as velhas motivações e limitações sobre a capacidade e a produtividade humanas terão sido deixadas para trás, [21] ele não parece ter previsto nenhuma separação cronológica nítida entre as duas fases. Como Marx e Engels eram inflexíveis em sua recusa de pintar imagens da futura sociedade comunista, deve-se evitar, por ser capciosa, qualquer tentativa de concatenar observações fragmentárias ou genéricas sobre o assunto a fim de compor essa imagem. É óbvio que os comentários do próprio Marx sobre esses pontos, pinçados em um único documento insuficiente (o Programa de Gotha), não são exaustivos. Limitam-se a reafirmar princípios gerais.

 Ao longo de todo o documento, a perspectiva pós-revolucionária é mostrada como um processo de desenvolvimento longo, complexo, não necessariamente linear e, em essência, imprevisível.

As demandas gerais da burguesia francesa antes de 1789 estavam mais ou menos definidas, tal como, mutatis mutandis, estão as demandas imediatas do proletariado hoje em dia. Eram mais ou menos as mesmas em todos os países de produção capitalista. Contudo, nenhum pré-revolucionário francês do século xviii tinha a mais longínqua ideia, a priori, da maneira como essas demandas da burguesia francesa viriam realmente a ser impostas. [22]

 Mesmo depois da revolução, como ele fez notar em relação à Comuna, “a substituição das condições econômicas da escravidão do trabalho pelas condições do trabalho livre e associado só pode ser obra progressiva do tempo”, e “a atual ‘operação espontânea das leis naturais do capital e da propriedade fundiária’ só pode ser substituída pela ‘operação espontânea das leis da economia social do trabalho livre e associado’ no decorrer de um prolongado processo de desenvolvimento de novas condições”, [23] como ocorrera no passado com a economia escravagista e a feudal. Tudo o que a revolução podia fazer era dar início a esse processo.

 Essa cautela com a previsão do futuro devia-se, em grande parte, ao fato de ser o proletariado, o principal agente e líder da revolução, ele próprio uma classe em processo de desenvolvimento. Os amplos contornos das ideias de Marx e Engels a respeito desse desenvolvimento, evidentemente baseadas, em essência, na experiência britânica de Engels na década de 1840, estão no Manifesto comunista: um progresso que parte da rebelião pessoal, avança por lutas econômicas localizadas e seccionais, primeiro informais, depois cada vez mais organizadas através dos sindicatos profissionais, e chega por fim a “uma só luta nacional entre as classes”, que deve ser também uma luta política pelo poder. “A organização dos trabalhadores como uma classe” deve ser feita, “por conseguinte, na forma de um partido político.” Esta análise não se alterou substancialmente durante o restante da vida de Marx, embora fosse um pouco modificada por causa da estabilidade e da expansão do capitalismo depois de 1848, e também em vista da experiência real acumulada por movimentos operários organizados. À proporção que diminuía a perspectiva de uma revolta imediata dos trabalhadores desencadeada por crises econômicas, Marx e Engels tornaram-se um pouco mais otimistas acerca da possibilidade de êxito da luta dos trabalhadores dentro do quadro do capitalismo, por meio da ação de sindicatos ou da aprovação de leis favoráveis, [24] embora Engels já houvesse esboçado, em 1845, o argumento de que o salário dos trabalhadores dependia, em algum grau, de um padrão de vida costumeiro ou adquirido, bem como de forças de mercado. [25] Segue-se que o desenvolvimento pré-revolucionário da classe operária seria mais longo do que Marx e Engels tinham desejado ou previsto antes de 1848.

 Ao examinar esses problemas, é essencial, embora difícil, evitar ler nos textos clássicos o que não existe neles: um século de posteriores controvérsias marxistas. Na época de Marx e Engels, e no entender deles, o fundamental era transformar o movimento operário em um movimento de classe, pôr às claras o objetivo implícito em sua existência, que era substituir o capitalismo pelo comunismo. Mais urgente ainda era transformar o movimento operário num movimento político, num partido da classe operária, separado de todos os partidos das classes dominantes e voltado para a conquista do poder político. Por isso, era vital para os trabalhadores não se abster de ação política, nem permitir qualquer separação entre seu “movimento econômico e sua atividade política”. [26] Por outro lado, a natureza desse partido era secundária, desde que ele fosse um partido de classe. [27] A palavra “partido” não tem aqui as acepções que adquiriu mais tarde, e não há nos textos de Marx e Engels referência alguma a tais acepções. Em meados do século xix, a palavra indicava tanto os adeptos de um ideário ou causa política quanto os membros de um grupo formal organizado. Na década de 1850, Marx e Engels usavam a palavra com frequência para se referir à Liga Comunista, ao grupo da antiga Neue Rheinische Zeitung ou ao que sobrava de ambos, mas com o cuidado de explicar que a liga, tal como outras organizações revolucionárias anteriores, “era um mero episódio na história do partido, que se forma de maneira espontânea no solo da sociedade”, ou seja, “o partido no sentido histórico mais amplo”. [28] Nesse sentido, Engels podia aludir ao partido dos trabalhadores como um partido político “já existente na maioria dos países” (1871). [29] É evidente que a partir da década de 1870 Marx e Engels apoiaram, onde possível, a formação de um partido político organizado, desde que não fosse uma seita; e era natural que, nos partidos formados por seus seguidores ou sob a influência deles, problemas de organização interna, estrutura, disciplina etc. requeressem opiniões emanadas de Londres. Onde não existiam tais partidos, Engels continuou a usar o termo “partido” para se referir ao conjunto total dos grupos políticos (isto é, eleitorais) que expressavam a independência da classe operária, sem considerar sua forma: “não importa como, desde que seja um partido separado de trabalhadores”. [30] Marx e Engels interessavam-se pouco, a não ser de passagem, pelos problemas de estrutura e organização partidária, ou de sociologia, que viriam a preocupar teóricos posteriores.

 Por outro lado,

os “rótulos” sectários devem ser evitados [...]. Os objetivos e tendências da classe operária procedem das condições gerais em que ela se encontra. Por conseguinte, esses objetivos e tendências são encontrados em toda a classe, ainda que o movimento se reflita, na cabeça de seus membros, das formas mais variadas, mais ou menos imaginárias, mais ou menos relacionadas a essas condições. Os que melhor compreendem o sentido oculto da luta de classes que acontece diante de nossos olhos — os comunistas — devem ser os últimos a cometer o erro de aprovar ou promover o sectarismo [1870]. [31]

  O partido deveria pretender ser a classe organizada, e Marx e Engels nunca se desviaram do que haviam declarado no Manifesto: que os comunistas não constituíam um partido separado, oposto a outros partidos da classe operária, nem criavam princípios sectários próprios com os quais moldar o movimento proletário.


 Todas as controvérsias políticas do Marx maduro visaram a defender o tríplice conceito de (a) um movimento político do proletariado; (b) uma revolução vista não somente como uma transferência definitiva de poder, a ser sucedida por alguma utopia sectária, e sim como um momento crucial que daria início a um período de transição complexo e não prontamente previsível; (c) a manutenção, consequentemente necessária, de um sistema de autoridade política, uma “forma revolucionária e transitória de Estado”. [32] Daí a especial contundência de sua oposição aos anarquistas, que rejeitavam tudo isso.

 Assim, é inútil procurar em Marx alguma coisa que antecipe controvérsias posteriores, como aquela entre “reformistas” e “revolucionários”, ou ler seus textos à luz de debates subsequentes entre direita e esquerda nos movimentos marxistas. O fato de seus textos terem sido lidos dessa forma faz parte da história do marxismo, mas pertence a um estágio tardio dessa história. Para Marx, o importante não era saber se os partidos da classe operária eram reformistas ou revolucionários, ou mesmo o que esses termos implicavam. Ele não via nenhum conflito, em princípio, entre a luta cotidiana dos trabalhadores pela melhoria de suas condições sob o capitalismo e a formação de uma consciência política que previsse a substituição do capitalista pela sociedade socialista, ou as ações políticas que levavam a esse fim. O importante para ele era a melhor forma de superar as várias expressões de imaturidade que impediam o desenvolvimento de partidos proletários — por exemplo, mantê-los sob a influência de vários tipos de radicalismo democrático (e, portanto, da burguesia ou da pequena burguesia), tentar associá-los a diferentes utopias ou fórmulas prontas para alcançar o socialismo, ou até mesmo desviá-los da necessária unidade na luta econômica e política. É anacrônico identificar Marx com uma ala “direita” ou “esquerda”, “moderada” ou “radical” no movimento operário, internacional ou não. Daí a irrelevância e até o absurdo das discussões sobre se Marx, em algum momento dado, deixou de ser revolucionário para tornar-se gradualista.

 A forma que tomariam a transferência do poder e a posterior transformação da sociedade dependeria do grau de desenvolvimento do proletariado e de seu movimento, que refletia tanto o estágio alcançado pelo desenvolvimento capitalista quanto seu próprio processo de aprendizado e amadurecimento pela práxis. Esse grau dependeria, naturalmente, da situação socioeconômica e política na época. Como era patente que Marx não se dispunha a esperar o proletariado se tornar uma ampla maioria numérica e a polarização de classes atingir um estágio avançado, é seguro dizer que ele previa que a luta de classes continuaria depois da revolução, ainda que “da maneira mais racional e humana”. [33] Antes da revolução e durante um período indefinido depois dela, cabia esperar, pois, que o proletariado atuasse politicamente como o núcleo e o líder de uma coalizão de classes, com a vantagem de, graças à sua posição histórica, poder ser “visto como a única classe capaz de iniciativa social”, mesmo que fosse ainda minoria. Não é exagero dizer que Marx considerava que a única “ditadura do proletariado” que ele realmente analisou, a Comuna de Paris, estava destinada idealmente a avançar mediante algo semelhante a uma frente popular de “todas as classes da sociedade que não vivem do trabalho alheio” sob a liderança e hegemonia dos trabalhadores. [34] Contudo, essas eram questões de avaliação concreta. Elas apenas confirmam que Marx e Engels não confiavam na atuação espontânea das forças históricas, e sim em ação política dentro dos limites do que a história possibilitava. Em todas as etapas da vida, eles sempre analisaram as situações tendo em mente a ação. Por isso, cumpre examinarmos a avaliação dessas situações.

 Podemos distinguir três etapas na evolução da análise que Marx e Engels empreenderam: de 1845 a 1855, aproximadamente; os 25 anos seguintes, quando uma duradoura vitória da classe operária não parecia estar para acontecer; e os últimos anos de Engels, quando o surgimento de partidos proletários de massa parecia abrir novas perspectivas de transição nos países capitalistas avançados. Em outros lugares permanecia válida uma modificação das análises anteriores. Veremos a seguir os aspectos internacionais da estratégia de Marx e Engels.

 A perspectiva de “1848” repousava em dois pressupostos. De acordo com o primeiro, que se mostrou correto, uma crise dos velhos regimes conduziria a uma generalizada revolução social; de acordo com o segundo, incorreto, a economia capitalista se desenvolvera o suficiente para permitir o triunfo do proletariado como resultado dessas revoluções. A classe operária, qualquer que fosse a sua definição, era na época, claramente, uma pequena minoria da população, exceto na Grã-Bretanha, onde — contra a previsão de Engels — não aconteceu revolução alguma. Além disso, era imatura e muito pouco organizada. Como previu Marx, de certa forma antecipando-se a Lênin, a burguesia alemã não poderia ou não desejaria fazer sua própria revolução, e um proletariado embrionário, dirigido por intelectuais comunistas, assumiria sua liderança, [35] ou, como ocorrera na França, a radicalização da revolução burguesa, iniciada pelos jacobinos, poderia continuar.

 A primeira possibilidade mostrou-se inteiramente irrealista. A segunda ainda parecia possível mesmo depois da derrota de 1848-9. O proletariado tomara parte na revolução, como um membro subalterno, porém importante, de uma aliança de classes que se inclinava para a esquerda, partindo de segmentos da burguesia liberal. Numa tal revolução, as possibilidades de radicalização surgiram em vários momentos, com os moderados concluindo que a revolução já avançara o suficiente, enquanto os radicais desejavam aumentar a pressão, com exigências “que eram, pelo menos em parte, do interesse da grande massa do povo”. [36] Na Revolução Francesa, essa radicalização só servira para reforçar a vitória da burguesia moderada. Não obstante, a possível polarização de antagonismos de classes na era capitalista, como na França de 1848-9, entre uma classe dominante burguesa, agora unida e reacionária, e uma frente de todas as demais classes poderia possibilitar que, pela primeira vez, uma derrota da burguesia tornasse “o proletariado, amadurecido pela derrota, o fator decisivo”. Essa referência histórica à Revolução Francesa perdeu grande parte de seu sentido com o triunfo de Luís Napoleão. [37] Estava claro que muita coisa — como se veria, coisas demais — dependia da dinâmica específica da evolução política da revolução, pois as classes operárias da Europa continental, inclusive a parisiense, tinham atrás de si uma economia capitalista muito pouco desenvolvida.

 A principal tarefa do proletariado consistia em radicalizar a revolução que viria, na qual, assim que a burguesia liberal se unisse no “partido da ordem”, o “partido democrata”, mais radical, provavelmente sairia vencedor. Isso era “manter permanente a revolução”, que foi o principal lema da Liga Comunista em 1850 [38] e que seria a base da efêmera aliança entre marxistas e blanquistas. Entre os democratas, a “pequena burguesia republicana” era o grupo mais radical e, como tal, o que mais dependia de apoio proletário. Era o estrato que deveria tanto pressionar o proletariado quanto ser combatido por ele. No entanto, o proletariado continuava a ser uma pequena minoria e, por isso, precisava de aliados, mesmo quando procurava substituir os democratas pequeno-burgueses na liderança da aliança revolucionária. Cabe observar, de passagem, que durante 1848-9 Marx e Engels, como a maioria da esquerda, subestimaram o potencial revolucionário ou até radical dos camponeses, que pouco lhes interessavam. Só depois da derrota, talvez incentivado por Engels (cujo livro As guerras camponesas na Alemanha, de 1850, já revelava o intenso interesse do autor pelo assunto), Marx veio a imaginar, pelo menos para a Alemanha, “alguma reedição da guerra camponesa” que apoiasse a revolução proletária (1856). O desenvolvimento revolucionário de tal confluência seria complexo e talvez prolongado. Tampouco era possível prever em que etapa surgiria a “ditadura do proletariado”. Contudo, o modelo básico era, naturalmente, uma transição mais ou menos rápida de uma fase liberal inicial, seguida por uma etapa democrata-radical, para culminar naquela liderada pelo proletariado.

 Até 1857, ano da crise capitalista mundial, Marx e Engels continuaram a desejar e até prever uma repetição, ampliada, das revoluções de 1848. Depois daquele ano, durante cerca de duas décadas, não tiveram esperança alguma de uma iminente e bem-sucedida revolução proletária, embora Engels mantivesse, mais que Marx, seu eterno otimismo. Com certeza não esperavam muito da Comuna de Paris e tiveram o cuidado de evitar declarações otimistas durante sua breve vida. Por outro lado, o rápido desenvolvimento, em todo o mundo, da economia capitalista e, principalmente, da industrialização na Europa Ocidental e nos Estados Unidos geravam agora grandes proletariados em vários países. Era na força crescente, na consciência de classe e na organização desses movimentos operários que eles agora depunham suas esperanças. Não se deve supor que isso fizesse alguma diferença fundamental para suas perspectivas políticas. Como já vimos, a revolução de fato, no sentido da transferência de poder (presumivelmente violenta), poderia se dar em várias etapas do longo processo de desenvolvimento, e iniciaria, por sua vez, um dilatado processo de transição pós-revolucionária. O adiamento da transferência de poder para uma etapa posterior do desenvolvimento da classe operária e do capitalismo sem dúvida afetaria a natureza do período de transição ulterior, mas, embora desapontasse revolucionários ansiosos de ação, dificilmente poderia alterar o caráter essencial do processo previsto. Entretanto, o importante nesse período da estratégia política de Marx e Engels é que, conquanto quisessem ter planos para qualquer eventualidade, não consideravam iminente ou provável uma bem-sucedida transferência de poder para o proletariado.

 O crescimento dos partidos socialistas de massa, sobretudo depois de 1890, pela primeira vez criou a possibilidade, em alguns países desenvolvidos, de uma transição direta para o socialismo, sob governos proletários que haviam chegado ao poder via eleições. Esse fenômeno ocorreu depois da morte de Marx, e portanto não sabemos como ele o teria visto, embora haja indícios de que talvez reagisse de modo mais flexível e menos “ortodoxo” do que Engels. [39] No entanto, como Marx morreu antes que a tentação de se identificar com um florescente partido marxista de massa do proletariado alemão fosse tão forte, só se pode especular sobre isso. Há indícios de que foi Bebel quem persuadiu Engels de que agora era possível uma transição direta para o poder, passando ao largo da “etapa burguesa-radical intermediária”, [40] antes vista como necessária em países que não tinham feito uma revolução burguesa. Seja como for, pareceu que daí em diante a classe operária não seria mais uma minoria, e sim — à frente de uma ampla aliança revolucionária, se tivesse sorte — um vasto estrato social que avançava para ser maioria, organizada como um partido de massa e reunindo aliados de outras camadas ao redor daquele partido. Aqui estava a diferença entre a nova situação e aquela (ainda singular) que havia na Grã-Bretanha, na qual o proletariado constituía a maioria numa economia francamente capitalista e havia alcançado “um certo grau de maturidade e universalidade”, mas que — por motivos que Marx não se dera o trabalho de investigar — não criara um correspondente movimento político de classe. [41] Foi a essa perspectiva de uma “revolução da maioria”, que poderia ser alcançada por meio de partidos socialistas de massa, que Engels dedicou seus últimos textos, ainda que devam ser lidos, até certo ponto, como reações a uma situação específica (alemã) nesse período.

 Três peculiaridades caracterizavam a nova situação histórica que Engels tentou compreender. Existiam pouquíssimos precedentes para partidos de massa socialistas da classe operária desse novo tipo e nenhum para um fenômeno que se alastrava cada vez mais: partidos “social-democratas” nacionais praticamente sem concorrência na esquerda, como na Alemanha. As condições que lhes permitiram crescer, e que se tornaram mais comuns depois de 1890, foram a legalidade, a política constitucional e a ampliação do direito de voto. Ademais, as perspectivas de revoluções, como concebidas tradicionalmente, estavam agora muito mudadas (as mudanças internacionais serão examinadas adiante). As controvérsias entre os socialistas na era da Segunda Internacional refletem os problemas decorrentes dessas mudanças. Engels se envolveu somente em parte nas fases iniciais dessas polêmicas, que só se acirraram depois de sua morte. Na verdade, pode-se até dizer que Engels nunca analisou plenamente as possíveis implicações da nova situação. Não obstante, suas opiniões eram obviamente relevantes para essas controvérsias, ajudaram a lhes dar forma e vieram a ser tema de muito debate na imprensa, devido à própria impossibilidade de identificá-las com qualquer uma das tendências divergentes.

 O que particularmente viria a provocar controvérsias foi a insistência de Engels nas novas possibilidades implícitas no sufrágio universal e o fato de ele abandonar as velhas perspectivas insurrecionais — posições claramente formuladas em um de seus últimos textos, a atualização de A luta de classes na França (1895), de Marx. A polêmica decorria da combinação de duas coisas: a afirmação de que a burguesia e o governo da Alemanha “temem muito mais a ação legal do partido dos trabalhadores do que a ilegal, mais o sucesso eleitoral do que a rebelião”. [42] Na verdade, embora haja nos últimos textos de Engels certa ambiguidade, certamente não se pode ver em suas palavras uma aprovação das ilusões legalistas e eleitoreiras de posteriores social-democratas alemães e de outros países.

 Engels renunciou às velhas esperanças de insurreição, não só por motivos técnicos, mas também porque o surgimento de claros antagonismos de classe, que possibilitaram os partidos de massa, também tornaram mais difíceis as velhas insurreições, vistas com simpatia por todas as camadas da população. Com isso, a reação podia agora angariar apoio junto a setores bem maiores das camadas médias. “Por isso, ‘o povo’ sempre parecerá dividido e com isso desaparece uma alavanca poderosa, que foi tão eficaz em 1848.” [43] No entanto, ele se recusou — mesmo no caso da Alemanha — a deixar de lado ideias de confronto armado e, com seu habitual e excessivo otimismo, previu uma revolução alemã no período 1898-1904. [44] Aliás, sua argumentação em 1895 quase se limitou a demonstrar que, na situação vigente, partidos como o Partido Social-Democrata da Alemanha [Sozialdemokratische Partei Deutchland — spd] ganhariam mais se utilizassem suas possibilidades legais. Assim, era provável que confrontos violentos e armados seriam iniciados não por insurretos, mas pela direita, contra os socialistas. Isso deu prosseguimento a uma linha de raciocínio já esboçada por Marx na década de 1870 [45] em relação a países onde não existiam obstáculos constitucionais à eleição de um governo socialista nacional. A hipótese aqui era que, nesse caso, a luta revolucionária assumiria a forma de um conflito entre um governo “legítimo” e “rebeldes” contrarrevolucionários (como na Revolução Francesa e na Guerra de Secessão americana). Não há nenhum motivo para supormos que Engels tenha jamais discordado do parecer de Marx, para quem “nenhum grande movimento nasceu sem derramamento de sangue”. [46] É evidente que Engels não achava que estivesse abandonando a revolução, mas simplesmente adaptando a estratégia e a tática revolucionárias a uma nova situação, como ele e Marx tinham feito durante toda a vida. O que lançou dúvida com relação a sua análise foi a descoberta de que o crescimento dos partidos social-democratas de massa não levava a alguma forma de confronto, e sim a alguma forma de integração do movimento no sistema. Se ele merece crítica, é por ter subestimado essa possibilidade.

 Por outro lado, ele tinha intensa consciência dos perigos do oportunismo — “sacrificar o futuro do movimento em prol de seu presente” [47] — e fez o quanto pôde para salvaguardar os partidos dessas tentações, recordando e sistematizando as principais doutrinas e experiências daquele corpus que começava a ser chamado de “marxismo”, ressaltando a necessidade de uma “ciência socialista”, [48] insistindo na base essencialmente proletária do avanço socialista, [49] e, sobretudo, fixando os limites além dos quais tornavam-se inaceitáveis alianças políticas, transigências e concessões programáticas com vistas à conquista de apoio eleitoral. [50] No entanto, na realidade — e contra a intenção de Engels — isso contribuiu, sobretudo no partido alemão, para o alargamento da brecha entre a teoria e a doutrina, por um lado, e a atuação política real, por outro. A tragédia dos últimos anos de Engels, como podemos ver agora, foi que seus comentários sobre a situação concreta dos movimentos — lúcidos, realistas e, não raramente, de imensa perspicácia — serviram não para influenciá-los em sua práxis, e sim para fortalecer uma doutrina geral cada vez mais distante do que ele dizia. Sua previsão mostrou-se mais do que acertada: “Qual poderá ser a consequência de tudo isso, a não ser que o partido, de repente, no momento da decisão, não saiba o que fazer, que exista falta de clareza e insegurança quanto aos pontos mais terminantes, porque esses pontos nunca foram discutidos?”. [51]

 Quaisquer que fossem as perspectivas do movimento da classe operária, as condições políticas para a tomada do poder foram complicadas pela inesperada transformação da política burguesa após a derrota de 1848. Nos países que haviam passado por uma revolução, o regime político “ideal” da burguesia — o Estado parlamentar constitucional — ou não foi alcançado ou (como na França) foi posto de lado em favor de um novo bonapartismo. Em suma, a revolução burguesa havia fracassado em 1848 ou levara a regimes imprevistos cuja natureza causava mais preocupação a Marx do que qualquer outro problema relativo ao Estado burguês: Estados que visivelmente serviam aos interesses da burguesia, mas que não a representavam diretamente como classe. [52] Isso suscitava uma questão mais ampla, cujo interesse está longe de esgotado: a questão das relações entre uma classe dominante e o aparelho de Estado centralizado, criado primeiro pelas monarquias absolutistas, fortalecido pela revolução burguesa a fim de alcançar “a unidade burguesa da nação”, que era a condição do desenvolvimento capitalista, mas que constantemente tendia a impor sua autonomia em relação a todas as classes, inclusive a burguesia. [53] (Esse é o ponto de partida da argumentação segundo a qual o proletariado, vitorioso, não pode meramente assumir a máquina do Estado, mas deve destruí-la.) Essa visão da convergência de classe e Estado, economia e “elite do poder”, antecipa de modo claro grande parte dos desdobramentos no século xx. O mesmo acontece com a tentativa de Marx de proporcionar ao bonapartismo francês uma base social específica, neste caso o campesinato pequeno-burguês pós-revolucionário, isto é, uma classe “incapaz de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome [...]. Não podem representar-se, têm de ser representados. Seu representante tem, ao mesmo tempo, de aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva”. [54] Aqui estão previstas várias formas posteriores de populismo demagógico, fascismo etc.

 Marx e Engels não analisaram claramente o motivo pelo qual prevaleceriam essas formas de governo. A argumentação de Marx, segundo a qual o governo democrata-burguês esgotara suas possibilidades e que um sistema bonapartista, o derradeiro reduto contra o proletariado, seria, portanto, também a última forma de governo antes da revolução proletária, [55] mostrou-se evidentemente equivocada. Mais tarde, numa forma mais geral, Engels formulou (especialmente em A origem da família) uma teoria de “equilíbrio de classes” para explicar esses regimes bonapartistas ou absolutistas, com base em várias formulações de Marx, derivadas da experiência francesa. Essas formulações iam desde a sofisticada análise, no 18 de brumário, de como os temores e as divisões internas do “partido da ordem”, em 1849-51, haviam “destruído todas as condições de seu próprio regime, do regime parlamentar, no decorrer de sua luta contra as outras classes da sociedade” até afirmativas simplistas de que a causa residia “na fadiga e na impotência das duas classes antagônicas da sociedade”. [56] Por outro lado, como muitas vezes ocorria, Engels, teoricamente mais modesto mas também mais empírico, insistiu na ideia de que o bonapartismo era aceitável para a burguesia porque ela não queria se aborrecer com governar diretamente — ou “não tem estofo” para isso. [57] A propósito de Bismarck, fazendo pilhéria ao dizer que o bonapartismo era “a religião da burguesia”, ele argumentou que essa classe podia, como ocorria na Grã-Bretanha, permitir que uma oligarquia aristocrática se encarregasse das tarefas de governo segundo seu interesse, ou, na falta de tal oligarquia, adotar uma “semiditadura bonapartista” como a forma “normal” de governo. Essa insinuação fecunda só seria elaborada mais tarde, com relação às peculiaridades da coexistência de aristocratas e burgueses na Grã-Bretanha, [58] mas como uma observação de passagem. Ao mesmo tempo, depois de 1870, Marx e Engels mantiveram a ênfase no caráter constitucional-parlamentar do típico regime burguês — ou voltaram a ela.

 Mas o que aconteceria à velha perspectiva de uma revolução burguesa, a ser radicalizada e transcendida por uma “revolução permanente”, nos Estados onde as rebeliões de 1848 tinham sido simplesmente derrotadas, e os antigos regimes, restabelecidos? Em certo sentido, o próprio fato de a revolução ter ocorrido provava que os problemas que ela levantava tinham de ser resolvidos: “as tarefas reais [isto é, históricas], em contraposição às tarefas ilusórias de uma revolução, são sempre solucionadas em resultado dela”. [59] Neste caso, elas foram resolvidas “por seus testamenteiros, Bonaparte, Cavour e Bismarck”. Marx e Engels admitiram isso e, com sentimentos contraditórios, até com prazer. Mas no caso da unificação alemã por Bismark, “historicamente progressista”, não elaboraram plenamente suas implicações. Assim, o apoio a um passo “historicamente progressista”, dado por uma força reacionária, poderia conflitar com o apoio a aliados políticos da esquerda que se opusessem a esse passo. De fato, isso ocorreu com relação à Guerra Franco-Prussiana, a que Liebknecht e Bebel se opunham por motivos antibismarckianos (com o apoio da maior parte da esquerda de 1848), enquanto Marx e Engels inclinavam-se, em privado, a apoiá-la até certo ponto. [60] Apoiar “realizações historicamente progressistas”, sem considerar quem as executa, encerra perigo, a não ser, é claro, ex post facto. (A antipatia e o desprezo de Marx por Napoleão iii pouparam-no de dilemas análogos quanto à unificação da Itália.)

 Mais seriamente, porém, havia a questão de como avaliar as indubitáveis concessões feitas à burguesia de cima para baixo (por exemplo, por Bismarck), às vezes descritas até como “revoluções de cima para baixo”. [61] Embora as visse como historicamente inevitáveis, Engels — Marx pouco escreveu sobre elas — demorou a abandonar a opinião de que não eram duradouras. Ou Bismarck seria obrigado a uma solução mais burguesa ou a burguesia alemã “mais uma vez se veria compelida a cumprir seu dever político, opor-se ao presente sistema, de modo que finalmente haja algum progresso de novo”. [62] Historicamente, Engels tinha razão, pois no decurso dos 75 anos seguintes a transigência bismarckiana e o poder dos junkers foram varridos, embora de maneiras que ele não previra. No entanto, no curto prazo — e na teoria geral do Estado que formularam —, Marx e Engels não se avieram de todo com o fato de que as soluções de compromisso de 1849-71 eram, para a maioria das classes burguesas, basicamente o equivalente a outro 1848 e não um sucedâneo medíocre. Elas exibiam poucos sinais de desejo ou necessidade de mais poder ou de um Estado mais completa e inequivocamente burguês — como o próprio Engels insinuara.

 Nessas circunstâncias, continuou a luta por “democracia burguesa”, mas sem seu anterior conteúdo de revolução burguesa. Embora essa luta, realizada cada vez mais sob a liderança da classe operária, conquistasse direitos que facilitaram enormemente a mobilização e a organização de partidos de massa da classe operária, não havia nenhuma comprovação da tese de Engels segundo a qual a república democrática, “a forma lógica [konsequente] do domínio burguês”, seria também a forma em que se polarizaria e seria enfim travado o conflito entre a burguesia e o proletariado. [63] Ficou obscuro o caráter da luta de classes e das relações entre burgueses e proletários na república democrática, ou em seu equivalente. Em suma, deve-se admitir que a questão da estrutura política e da função do Estado burguês num capitalismo desenvolvido e estável não foi objeto de uma análise sistemática nos textos de Marx e Engels, à luz da experiência histórica dos países desenvolvidos depois de 1849. Isso não diminui o brilho e, em muitos casos, a profundidade de suas percepções e observações.

 Contudo, apreciar a análise política de Marx e Engels sem sua dimensão internacional equivale a representar Otelo como se a ação não transcorresse em Veneza. A revolução era para eles um fenômeno essencialmente internacional, e não um mero agregado de transformações nacionais. A estratégia que imaginaram era essencialmente internacional. Não foi por acaso que o discurso de abertura que Marx proferiu na instalação da Primeira Internacional concluiu com um apelo às classes trabalhadoras para que dominassem os mistérios da política internacional e tomassem parte ativa nela.

 Uma política e uma estratégia internacionais eram essenciais não só porque existia um sistema internacional de Estados, que afetava as probabilidades de sobrevivência de qualquer revolução, mas também, de modo mais geral, porque o desenvolvimento do capitalismo mundial se fazia, necessariamente, através da formação de unidades sociopolíticas separadas, como fica implícito no uso, por Marx, dos termos “sociedade” e “nação” quase como sinônimos. [64] Embora cada vez mais unificado, o mundo criado pelo socialismo era “uma interdependência universal de nações” (Manifesto comunista). Além disso, a sorte da revolução dependia de um sistema de relações internacionais, pois a história, a geografia, as forças desiguais e o desenvolvimento desigual punham seu desenvolvimento em cada país à mercê do que acontecia em outros lugares ou lhe conferia ressonância internacional.

 O fato de Marx e Engels acreditarem no desenvolvimento capitalista por meio de várias unidades separadas (“nacionais”) não deve ser confundido com a crença no que na época era chamado de “o princípio da nacionalidade”, e hoje de “nacionalismo”. Embora de início se vissem ligados a uma esquerda republicana-democrática profundamente nacionalista, uma vez que essa era a única esquerda efetiva, no plano nacional ou internacional, antes e durante 1848, eles rechaçavam o nacionalismo e a autodeterminação das nações como um fim em si mesmo. [65] Muitos de seus seguidores viriam a ser menos cautelosos ao traçar a linha entre socialistas proletários e democratas pequeno-burgueses (nacionalistas). É sabido que Engels nunca perdeu alguma coisa do nacionalismo alemão de sua juventude, bem como dos preconceitos nacionais a ele associados, principalmente contra os eslavos. [66] (Marx era menos afetado por tais sentimentos.) No entanto, sua crença no caráter progressista da unidade alemã, ou seu apoio à Alemanha em guerras, não se baseava no nacionalismo, embora ele, como alemão, certamente se agradasse disso. Durante grande parte da vida, Marx e Engels consideraram que era a França, e não sua própria pátria, o país decisivo para a revolução. A atitude de ambos em relação à Rússia, durante muito tempo o principal alvo de seus ataques e de seu desdém, modificou-se assim que uma revolução naquele país se tornou possível.

 Assim, Marx e Engels podem ser criticados por subestimar a força política do nacionalismo em sua época ou por deixar de oferecer uma análise satisfatória desse fenômeno, mas não por incoerência política ou teórica. Eles não eram a favor de nações enquanto tais, e menos ainda a favor da autodeterminação para qualquer uma ou todas as nacionalidades enquanto tais. Como observou Engels, com seu habitual realismo, “não existe um único país na Europa em que nacionalidades diferentes não sejam submetidas ao mesmo governo [...]. E é quase certo que sempre será assim”. [67] Como analistas, eles compreendiam que a sociedade capitalista se desenvolvia mediante a subordinação de interesses locais e regionais a grandes unidades — e provavelmente terão desejado, a partir do Manifesto, a formação de uma verdadeira sociedade mundial. Compreendiam, e na perspectiva da história aprovavam, a formação de várias “nações” através das quais atuavam esse processo e o progresso histórico e, por isso, rejeitavam propostas federalistas de “substituir aquela unidade dos grandes povos que, se em suas origens foi instaurada pela violência, se transformou num poderoso fator da produção social”. [68] De início, compreenderam e aprovaram a conquista de áreas atrasadas, na Ásia e na América Latina, por nações burguesas avançadas, por motivos semelhantes. Da mesma forma, aceitaram que muitas nações pequenas não tinham justificativa para gozar de independência, e algumas poderiam até deixar de existir como nacionalidades, se bem que aqui estivessem claramente cegos a alguns processos contrários e visíveis na época, como ocorria entre os tchecos. Como Engels explicou a Bernstein, [69] sentimentos pessoais eram secundários, muito embora, quando coincidiam com uma avaliação política (como no caso de Engels em relação aos tchecos), deixassem um espaço indevido para a manifestação de preconceitos nacionais e, como se veria mais tarde, para o que Lênin haveria de chamar de “chauvinismo de grande nação”.

 Por outro lado, como políticos revolucionários, Marx e Engels defendiam aquelas nações e nacionalidades, grandes e pequenas, cujos movimentos apoiavam objetivamente a revolução e opunham-se àquelas que se achavam, objetivamente, do lado da reação. Em princípio, adotavam a mesma atitude para com as políticas dos Estados. Assim, o principal legado que deixaram a seus sucessores foi o firme princípio segundo o qual as nações e os movimentos de libertação nacional não deveriam ser encarados como fins em si mesmos, mas somente em relação ao processo, aos interesses e às estratégias da revolução mundial. Na maioria dos outros aspectos, o que deixaram foi uma herança de problemas, para não falar de vários comentários depreciativos que tinham de ser explicados habilmente por socialistas que tentavam organizar movimentos entre povos desdenhados pelos fundadores como anistóricos, atrasados ou condenados. Dispondo apenas do princípio básico, marxistas posteriores tiveram de construir uma teoria da “questão nacional” com pouca ajuda dos clássicos. Cumpre assinalar que isso se deveu não somente a uma grande mudança das circunstâncias históricas da era imperialista, como também ao fato de Marx e Engels não terem feito mais que uma análise muito parcial do fenômeno nacional.

 A história determinou as três fases principais da estratégia revolucionária internacional de Marx e Engels: até 1848, inclusive esse ano; 1848-71; e de 1871 até a morte de Engels.

 O palco decisivo da futura revolução proletária era a região de revoluções burguesas e de desenvolvimento capitalista avançado, ou seja, mais ou menos a área da França, da Grã- Bretanha, dos territórios alemães e, talvez, dos Estados Unidos. Marx e Engels mostraram pouco interesse, a não ser circunstancial, pelos países “avançados” menores e não decisivos do ponto de vista político, até que o surgimento de movimentos socialistas nesses países exigiu comentários por parte deles. Na década de 1840 podia-se esperar alguma revolução nessa zona, e isso realmente ocorreu, ainda que, como reconheceu Marx, [70] estivesse fadada ao fracasso pelo fato de a Grã-Bretanha não participar dela. Por outro lado, não existia ainda nenhum proletariado real ou movimento proletário de classe, a não ser na Grã-Bretanha.

 Depois de 1848, a rápida industrialização promoveu o crescimento tanto das classes trabalhadoras quanto dos movimentos proletários, mas a perspectiva de revolução social na zona “avançada” tornava-se cada vez mais improvável. O capitalismo se estabilizara. Durante esse período, Marx e Engels só podiam esperar que alguma combinação de tensão política interna e conflito internacional produzisse uma situação capaz de gerar revolução, como realmente ocorreu na França em 1870-1. Contudo, no período final, que mais uma vez foi de crise capitalista em escala global, a situação mudou. Primeiro, partidos de massa da classe operária, principalmente sob influência marxista, transformaram as perspectivas de desenvolvimento interno nos países “avançados”. Segundo, um novo elemento de revolução social surgiu nas margens da sociedade capitalista desenvolvida — na Irlanda e na Rússia. O próprio Marx tomou conhecimento dos dois casos mais ou menos ao mesmo tempo, em fins da década de 1860. (A primeira referência específica às possibilidades de uma revolução russa ocorre em 1870.) [71] A Irlanda deixou de estar muito presente nos cálculos de Marx depois da derrocada do fenianismo, [72] mas a Rússia se tornou cada vez mais importante: sua revolução poderia “constituir o sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra” (1882). [73] O principal significado de uma revolução russa seria, é claro, transformar a situação nos países desenvolvidos.



 Essas mudanças nas perspectivas de revolução levaram a uma importante transformação na atitude de Marx e Engels em relação à guerra. Em princípio, não eram mais pacifistas do que, também em princípio, democratas republicanos ou nacionalistas. E, como sabiam que a guerra era “a continuação da política por outros meios”, no dizer de Clausewitz, tampouco acreditavam numa exclusiva causa econômica para a guerra, ao menos na época. Não há em seus textos nada que indique isso. [74] Em poucas palavras, esperavam que nas duas primeiras fases a guerra promovesse sua causa diretamente, e a esperança de guerra desempenhou uma parte importante, às vezes decisiva, em seus cálculos. Do fim da década de 1870 em diante — o ponto de virada se deu em 1879-80 [75] —, passaram a ver uma guerra geral como um obstáculo, a curto prazo, para o avanço do movimento. Ademais, em seus últimos anos, Engels convenceu-se cada vez mais de que a nova guerra que havia previsto, provavelmente global, teria um caráter terrível. Como declarou profeticamente, ela teria “apenas um resultado garantido: uma carnificina em massa, em escala até então desconhecida, a exaustão da Europa num grau até então desconhecido e, por fim, o colapso de todo o velho sistema” (1886). [76] Previa que tal guerra acabasse com uma vitória do partido proletário, mas, como uma guerra “não era mais necessária” para se alcançar a revolução, ele esperava, é claro, que “evitaremos toda essa carnificina” (1885). [77]

 Havia duas razões principais para que, de início, a guerra fosse parte integral e necessária da estratégia revolucionária, inclusive a de Marx e Engels. Primeira: era necessário vencer a Rússia, o maior baluarte da reação na Europa, a fiadora e restauradora do status quo conservador. Na época a Rússia estava imune à subversão interna, salvo em seu flanco ocidental, na Polônia, cujo movimento revolucionário, por conseguinte, havia muito desempenhava um papel importante na estratégia internacional de Marx e Engels. A revolução estaria perdida, a menos que se transformasse numa guerra europeia de libertação contra a Rússia, e que essa guerra por sua vez ampliasse o âmbito da revolução, desintegrando os impérios da Europa Oriental. O ano de 1848 a estendera a Varsóvia, Debreczen e Bucareste, escreveu Engels em 1851; a próxima revolução deveria estendê-la a São Petersburgo e Constantinopla. [78] Tal guerra deveria forçosamente envolver a Inglaterra, a grande adversária da Rússia, e caberia a ela opor-se a um predomínio russo na Europa, o que teria a vantagem adicional e crucial de solapar outro esteio do statu quo, uma Grã-Bretanha estável e capitalista que dominava o mercado mundial — talvez até levando os cartistas ao poder. [79] A derrota da Rússia era a condição internacional essencial para progresso. É possível que a campanha um tanto obsessiva de Marx contra o ministro do Exterior britânico, Palmerston, fosse matizada por seu desapontamento com a recusa da Grã-Bretanha a arriscar-se a causar, com a guerra geral, uma grande perturbação no equilíbrio de poder na Europa. Isso porque, sem uma revolução europeia — e talvez até mesmo com ela —, era impossível uma grande guerra europeia contra a Rússia que não tivesse a participação da Inglaterra. Por outro lado, quando uma revolução russa se mostrou provável, essa guerra não era mais uma condição indispensável para a revolução em países adiantados, embora o fato de não ocorrer uma revolução na Rússia tenha levado Engels mais uma vez a ver esse país como o supremo baluarte da reação.

 Em segundo lugar, essa guerra seria o único meio de unificar e radicalizar as revoluções europeias — processo para o qual as guerras revolucionárias francesas da década de 1790 ofereciam um precedente. Uma França revolucionária, que voltasse às tradições internas e externas do jacobinismo, era a única líder óbvia de tal aliança bélica contra o tsarismo, tanto porque a França dera início às revoluções europeias quanto porque contava com o mais poderoso exército revolucionário. Essa esperança também se desfez em 1848, e, embora a França continuasse a desempenhar um papel crucial nos cálculos de Marx e Engels — e, aliás, ambos subestimaram de maneira bastante consistente a estabilidade e as realizações do Segundo Império e previam sua derrubada iminente —, a partir da década de 1860 a França tornou-se incapaz de representar o papel principal na revolução europeia que antes lhe era atribuído.

 Entretanto, se no período de 1848 uma guerra era vista como o resultado lógico e como a ampliação da revolução europeia, assim como a condição de seu êxito, nos vinte anos que se seguiram ela teve de ser vista como a maior esperança de desestabilizar o status quo e, assim, liberar as tensões internas nos países. A esperança de que isso fosse alcançado mediante uma crise econômica morreu em 1857. [80] Depois disso, nunca mais Marx e Engels nutriram seriamente esse tipo de esperança em relação a qualquer crise econômica, nem mesmo em 1891. [81] O cálculo deles estava correto: as guerras desse período tiveram o efeito previsto, embora não do modo que desejavam, pois não provocaram revolução em nenhum país europeu importante, salvo na França, cujo papel internacional, como vimos, havia mudado. Por isso, como já se disse, Marx e Engels viram-se cada vez mais compelidos à nova posição de decidir entre as políticas internacionais das potências existentes, todas burguesas ou reacionárias.

 Essas escolhas eram acadêmicas, naturalmente, uma vez que Marx e Engels não tinham como influenciar as políticas de Napoleão iii, Bismark ou qualquer outro estadista, nem havia movimentos socialistas e operários cuja atitude os governos tivessem de levar em conta. De mais a mais, embora às vezes a política “historicamente progressista” fosse bem clara — cumpria fazer oposição à Rússia, apoiar o Norte contra o Sul na Guerra de Secessão americana —, as complexidades da Europa criavam espaço ilimitado para especulações e debates inconclusivos. Não é em absoluto evidente que Marx e Engels estivessem mais certos do que Lassalle na atitude que tomaram em relação à guerra italiana de 1859, [82] se bem que na prática a atitude de nenhum dos dois lados importasse muito na época. Quando houvesse partidos socialistas de massa que se sentissem obrigados a prestar apoio a um Estado burguês em conflito com outro, as implicações políticas desses debates se tornariam maiores. Com certeza, uma razão que fez com que Engels (e até Marx) começasse a abandonar, em seus cálculos, a ideia de que a guerra internacional pudesse ser um instrumento de revolução foi a descoberta de que ela levaria ao “recrudescimento do chauvinismo em todos os países”, [83] o que beneficiaria as classes dominantes e debilitaria os movimentos que agora se fortaleciam.

 Se as perspectivas de revolução no período que se seguiu a 1848 não eram boas, isso aconteceu em grande parte porque a Grã-Bretanha era o principal baluarte da estabilidade capitalista, como a Rússia era a praça-forte da reação. “A Rússia e a Inglaterra são as duas grandes pedras angulares do atual sistema europeu.” [84] A longo prazo, os britânicos só começariam a se mexer quando o monopólio mundial do país se aproximasse do fim, e isso começou a acontecer na década de 1880, fato que em várias ocasiões foi analisado e bem acolhido por Engels. Enquanto a perspectiva de revolução na Rússia corroía uma das pedras angulares do sistema, o fim do monopólio mundial britânico corroía a outra, se bem que ainda na década de 1890 as expectativas de Engels em relação ao movimento britânico continuassem bastante modestas. [85] A curto prazo, Marx esperava “acelerar a revolução social na Inglaterra”, tarefa que ele reputava como a mais importante da Primeira Internacional — e não de forma inteiramente irrealista, porquanto “é o único país em que as condições materiais para a revolução (da classe operária) alcançaram um certo grau de maturidade” [86] —, através da Irlanda. A Irlanda dividia os trabalhadores britânicos segundo linhas raciais, dava-lhes um evidente interesse comum em explorar outro povo e proporcionava a base econômica para a oligarquia fundiária britânica, cuja derrubada teria de ser o primeiro passo no avanço da Grã- Bretanha. [87] A descoberta de que um movimento de libertação nacional numa colônia agrária podia tornar-se um elemento crucial para fazer a revolução num império avançado antecipou desdobramentos marxistas na era de Lênin. Tampouco foi por acaso que na mente de Marx essa descoberta estivesse associada a outra, a do potencial da revolução na Rússia agrária. [88]

 Na fase final da estratégia de Marx (ou, mais precisamente, de Engels), a situação internacional achava-se radicalmente transformada pela prolongada depressão capitalista mundial, pelo declínio do monopólio mundial da Grã-Bretanha, pelo contínuo avanço industrial da Alemanha e dos Estados Unidos e pela probabilidade de revolução na Rússia. Além disso, pela primeira vez desde 1815, era visível que se aproximava uma guerra mundial, observada e analisada com notável discernimento e conhecimento militar por Engels. Todavia, como vimos, a política internacional das potências agora desempenhava um papel muito menor, ou antes, mais negativo, em seus cálculos. Ela era levada em consideração sobretudo à luz de suas repercussões sobre a sorte dos partidos socialistas, que vinham crescendo, e como um obstáculo, não como possível ajuda ao avanço desses partidos.

 Em certo sentido, o interesse de Engels pela política internacional vinha se concentrando cada vez mais no movimento operário, que, em seus últimos anos de vida, organizou-se mais uma vez como uma Internacional. Isso porque os avanços de cada movimento podiam fortalecer, promover ou inibir os demais. Isso fica claro em seus textos, embora não precisemos atribuir significados excessivos em suas ocasionais comparações da situação na década de 1890 com a que existia antes de 1848. [89] Ademais, era natural supor que a sorte do socialismo seria determinada na Europa (na falta de um movimento forte nos Estados Unidos) e nos movimentos operários nas principais potências continentais, que agora incluíam também a Rússia (na ausência de um movimento forte na Grã-Bretanha). Apesar de bem-vindos, Engels não dedicou muita atenção aos movimentos na Escandinávia ou nos Países Baixos, praticamente nenhuma aos dos Bálcãs, e tendia a considerar quaisquer movimentos em países coloniais como irrelevantes ou como consequência de fatos ocorridos nas metrópoles. Além de reafirmar o firme princípio de que “o proletariado vitorioso não pode forçar nenhum tipo de ‘felicidade’ sobre nenhum povo estrangeiro sem diminuir sua própria vitória” (ibid., p. 358), ele pouco pensou no problema da libertação colonial. [90] Com efeito, é surpreendente a pouca atenção que ele dedicou a esses problemas, que, quase tão logo suas cinzas foram espalhadas, se impuseram à esquerda internacional na forma do amplo debate sobre o imperialismo. “Temos de trabalhar pela libertação do proletariado da Europa Ocidental”, disse ele a Bernstein em 1882, “e subordinar todas as outras metas a esse objetivo.” [91]

 Nessa área central de avanço proletário, o movimento internacional era agora de partidos nacionais, e tinha de ser assim, à diferença do período anterior a 1848. [92] Isso suscitava o problema de coordenar suas operações e do que fazer em relação a conflitos que surgiam de reivindicações e presunções nacionais nos vários movimentos. Alguns desses conflitos podiam ser diplomaticamente adiados para um futuro indefinido mediante fórmulas adequadas (por exemplo, alusão a uma eventual autodeterminação), [93] embora socialistas na Rússia e na Áustria-Hungria estivessem mais conscientes do que Engels de que no caso de certos conflitos isso não era possível. Pouco mais de um ano depois da morte de Engels, Kautsky admitiu francamente que a “velha posição de Marx quanto aos poloneses”, à Questão Oriental e aos tchecos não podia mais ser mantida. [94] Além disso, a força desigual e a importância estratégica de vários movimentos criavam dificuldades menores, porém incômodas. Por exemplo, os franceses haviam assumido tradicionalmente “uma missão como libertadores do mundo e, portanto, o direito de estar à testa” do movimento internacional. [95] Todavia, a França já não tinha condições de exercer esse papel, e o movimento francês, cindido, confuso e muito infiltrado pelo republicanismo radical pequeno-burguês e outros elementos perturbadores, mostrava-se desapontador — e pouco disposto a escutar Marx e Engels. [96] Em dado momento Engels chegou a sugerir que o movimento austríaco substituísse o francês como “vanguarda”.

 Por outro lado, o crescimento espetacular do movimento alemão, para não falar de sua estreita ligação com Marx e Engels, agora o tornava, claramente, a principal força no avanço socialista internacional. [97] Embora Engels não acreditasse na subordinação de outros movimentos a um partido condutor, exceto, talvez, num momento de ação imediata, [98] estava evidente que os interesses do socialismo mundial seriam mais bem atendidos pelo progresso do movimento alemão. Esse juízo não se limitava aos socialistas alemães. Ainda se fazia muito presente nos primeiros anos da Terceira Internacional. Já a ideia, também exposta por Engels no começo da década de 1890, de que, na eventualidade de uma guerra europeia, seria desejável [99] a vitória da Alemanha sobre uma aliança franco-russa não era aceita em outros países, ainda que a perspectiva de a revolução surgir da derrota, que ele expôs aos franceses e russos, certamente tenha agradado a Lênin. É ocioso especular sobre o que Engels teria pensado em 1914, se ainda estivesse vivo na época, e ilegítimo supor que teria mantido as mesmas posições que defendia na década de 1890. É provável também que os países socialistas, de modo geral, decidissem apoiar seus governos, mesmo que o partido alemão não apelasse para a autoridade de Engels. Entretanto, o legado que ele deixou para a Internacional no tocante a questões de relações internas e, sobretudo, quanto à guerra e à paz foi ambíguo.

 Como resumir o legado geral de ideias sobre política que Marx e Engels deixaram a seus sucessores? Em primeiro lugar, esse legado acentuava a subordinação da política ao desenvolvimento histórico. A vitória do socialismo era historicamente inevitável em virtude do processo sumarizado por Marx na famosa passagem sobre a tendência histórica da acumulação capitalista em O capital i, culminando na profecia sobre a “expropriação dos expropriadores”. [100] O esforço político socialista não criava “a revolta da classe operária, uma classe em constante aumento numérico e disciplinada, unida, organizada pelo próprio mecanismo do processo da produção capitalista”, mas se baseava nela. As perspectivas do esforço político socialista dependiam fundamentalmente da etapa alcançada pelo desenvolvimento capitalista, em todo o mundo e em cada país, e portanto uma análise marxista da situação, sob essa luz, constituía a base necessária para a estratégia política socialista. A política integrava-se à história, e a análise marxista mostrava quanto a política era impotente para atingir seus fins se não estivesse assim integrada; e, inversamente, como era invencível o movimento da classe operária, sempre integrado à história.

 Em segundo lugar, a política era crucial na medida em que a classe operária, inevitavelmente triunfante, se organizaria politicamente (isto é, como “partido”) e visaria à transferência do poder político, que seria exercido por um sistema transitório de autoridade do Estado submetida ao proletariado. A ação política era, assim, a essência do papel do proletariado na história. O proletariado atuava através da política, ou seja, dentro dos limites fixados pela história — escolha, decisão e ação consciente. É provável que durante a vida de Marx e Engels, bem como durante a Segunda Internacional, o principal critério que distinguia os marxistas da maioria dos demais socialistas, comunistas e anarquistas (exceto os anarquistas que seguiam a tradição jacobinista) e dos movimentos cooperativos e sindicalistas “puros” era a fé no papel essencial da política antes, durante e após a revolução. A ênfase na política pode ter sido exagerada por causa da controvérsia entre Marx e os anarquistas proudhonianos e bakuninianos, mas não resta nenhuma dúvida quanto à sua importância. Para o período pós-revolucionário, as implicações dessa atitude ainda eram acadêmicas. Para a etapa pré-revolucionária, elas envolviam o partido proletário, forçosamente, em todo tipo de atividades políticas sob o capitalismo.

 Em terceiro lugar, eles viam essa política essencialmente como uma luta de classes dentro de Estados que representavam a classe dominante (ou as classes), a não ser em certas conjunturas históricas especiais, como as de equilíbrio de classes. Do mesmo modo que Marx e Engels defendiam o materialismo contra o idealismo na filosofia, também criticavam constantemente a ideia de que o Estado se superpunha às classes, representava o interesse comum de toda a sociedade (exceto negativamente, como salvaguarda contra seu colapso) ou era neutro em relação às classes. O Estado era um fenômeno histórico da sociedade de classes, mas enquanto existisse representaria o domínio de classe — embora não necessariamente na forma simplificada, para fins de agitação, de um “comitê executivo da classe dominante”. Isso impunha limites tanto ao envolvimento dos partidos proletários na vida política do Estado burguês quanto sobre o que se podia esperar que esse Estado lhes concedesse. Assim, o movimento proletário operava tanto nos domínios da política burguesa quanto fora deles. Como o poder era definido como o principal conteúdo do Estado, seria fácil supor (apesar de Marx e Engels não o terem feito) que o poder era sempre a única questão significativa na política e na discussão do Estado.

 Em quarto lugar, quaisquer que fossem as atividades por ele exercidas, o Estado proletário transitório deveria eliminar a separação entre povo e governo, entendido este como um conjunto especial de governantes. Poderíamos dizer que o Estado tinha de ser “democrático”, se essa palavra não estivesse identificada no linguajar cotidiano com um tipo de governo institucional e específico, formado por assembleias de representantes parlamentares periodicamente eleitos, o que Marx rejeitava. No entanto, num sentido não identificado com instituições específicas e que lembravam certos aspectos de Rousseau, o Estado era uma “democracia”. Esta tem sido a parte mais difícil do legado de Marx para seus sucessores, uma vez que — por motivos que vão além do âmbito desta exposição — até agora todas as tentativas reais de construir o socialismo segundo princípios marxistas têm fortalecido um aparelho de Estado independente (tal como nos regimes não socialistas), ao passo que os marxistas têm se mostrado relutantes a abandonar a aspiração que Marx com tanta firmeza considerava um aspecto essencial do desenvolvimento da nova sociedade.

 Por fim, e até certo ponto deliberadamente, Marx e Engels deixaram para seus sucessores um pensamento político com vários espaços vazios ou preenchidos de modo ambíguo. Como as formas reais da estrutura política e constitucional antes da revolução só eram relevantes para eles na medida em que facilitavam ou inibiam o progresso do movimento, deram-lhes pouca atenção sistemática, embora tecessem livremente comentários sobre uma ampla variedade de casos e situações concretas. Como se recusassem a especular a respeito dos detalhes da sociedade socialista vindoura e de suas disposições, ou mesmo sobre os detalhes do período transitório depois da revolução, deixaram para seus sucessores pouco mais do que alguns princípios gerais dentro dos quais essa sociedade seria construída. Assim, não restou nenhuma orientação concreta, de aplicação prática, com relação a problemas como a natureza da socialização da economia ou os meios de planejá-la. Além disso, há algumas questões para as quais não ofereceram nenhuma orientação, fosse ela geral, ambígua ou até mesmo obsoleta, porque nunca tiveram necessidade de levá-las em consideração.

 No entanto, o que deve ser ressaltado não é o que os marxistas posteriores puderam ou não puderam extrair do legado de seus fundadores, ou o que tiveram de criar por conta própria, e sim sua extrema originalidade. O que Marx e Engels rejeitaram — persistente, militante e polemicamente — foi a abordagem tradicional da esquerda revolucionária de sua época, inclusive a de todos os socialistas anteriores, [101] uma abordagem que ainda não perdeu suas tentações. Eles rejeitaram as dicotomias simples daqueles que se dispunham a substituir a sociedade ruim pela boa, a desrazão pela razão, o preto pelo branco. Rejeitavam os modelos programáticos apriorísticos das diversas variantes da esquerda, não sem observar que, embora cada variante tivesse esse modelo, que chegava aos mais elaborados planos de utopia, e por vezes os incorporava, poucos desses modelos concordavam entre si. Rejeitavam também a tendência a criar modelos operacionais fixos — por exemplo, prescrever a forma exata da mudança revolucionária, declarando ilegítimas todas as demais, rejeitar ou confiar exclusivamente em ação política etc. Rejeitavam o voluntarismo anistórico.

 Em vez disso, inseriam firmemente a ação do movimento no contexto do desenvolvimento histórico. A forma do futuro e as tarefas de ação só podiam ser discernidas mediante a descoberta do processo de desenvolvimento social que levaria a elas, e essa descoberta só se tornava possível, ela própria, em certo estágio do desenvolvimento. Se isso limitava a visão do futuro a alguns poucos princípios estruturais aproximados, excluindo as previsões especulativas, dava às esperanças socialistas a certeza da inevitabilidade histórica. Em termos da ação política concreta, decidir o que era necessário e possível (tanto no plano global quanto em regiões e países específicos) requeria uma análise do desenvolvimento histórico e de situações concretas. Assim, a decisão política inseria-se num quadro de mudança histórica, o que não dependia de decisão política. Era inevitável que isso tornasse ambíguas e complexas as tarefas dos comunistas na política.

 Ambíguas porque os princípios gerais da análise marxista eram demasiado amplos para oferecer uma orientação política específica, se tal fosse necessário. Isso é particularmente válido para os problemas da revolução e da subsequente transição para o socialismo. Gerações de comentaristas esquadrinharam os textos em busca de uma afirmação clara de como seria a “ditadura do proletariado”, mas em vão, porque os fundadores estavam interessados basicamente em estabelecer a necessidade histórica desse período. E eram complexas porque a atitude de Marx e Engels em relação às formas da ação e da organização política, em contraposição a seu conteúdo, e às instituições formais entre as quais eles atuavam era tão determinada pela situação concreta em que eles se viam que não podia ser reduzida a nenhum conjunto de regras permanentes. Em qualquer momento dado e em qualquer país ou região, a análise política marxista podia ser formulada como um conjunto de recomendações de políticas (como, por exemplo, nos Discursos do Conselho Geral em 1850), mas não se aplicavam, por definição, a situações diferentes daquelas para as quais tinham sido compiladas — como Engels observou em suas reflexões posteriores sobre As lutas de classes na França, de Marx. As situações pós-marxianas, porém, eram inevitavelmente diferentes das que se verificaram durante a vida de Marx, e as semelhanças entre elas só podiam ser descobertas por uma análise histórica tanto da realidade enfrentada por Marx quanto daquela para as quais os marxistas posteriores buscavam orientação. Tudo isso tornava praticamente impossível extrair dos textos clássicos algo semelhante a um manual de instrução estratégica e tática, sendo até perigoso usar aqueles textos como um conjunto de precedentes, muito embora tenham sido utilizados assim. O que se podia aprender com Marx era o método com que enfrentava as tarefas de análise e ação; não havia como extrair dos textos clássicos lições prontas.

 E era isso, com certeza, que Marx desejaria que seus adeptos aprendessem. No entanto, a tradução de suas ideias em fórmulas para inspirar movimentos de massa, partidos e grupos políticos organizados trouxe consigo, inelutavelmente, o que E. Lederer uma vez chamou de “a conhecida estilização abreviada e simplificadora que brutaliza o pensamento e à qual toda grande ideia é e deve ser exposta, para que faça as massas se moverem”. [102] Continuamente, um guia de ação era tentado a deixar-se transformar em dogma. Em nenhuma parte da teoria marxista isso foi tão nocivo, tanto para a teoria quanto para o movimento, do que no campo do pensamento político de Marx e Engels. Mas isso representa o que o marxismo se tornou, o que talvez fosse inevitável, talvez não. Representa uma derivação de Marx e Engels, ainda mais depois que os textos dos fundadores adquiriram um status clássico ou até canônico. Isso não representa o que Marx e Engels pensaram e escreveram; representa apenas, às vezes, como eles agiam.

Referências

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O Brasil em transe histórico

Por Lindbergh Farias (Senador da república pelo PT-RJ) e Jaldes Meneses (Professor Associado no curso de História na UFPB); artigo originalmente publicado na revista virtual Esquerda Petista, n.º 4 (setembro de 2015), disponível aqui

Já se passaram oito meses do segundo governo da presidenta Dilma Rousseff e o programa que foi vitorioso nas urnas e nas ruas contra Aécio Neves e o PSDB, principalmente na economia, foi arquivado

I. Os erros e acertos na política  

 O Brasil vive um momento de transe histórico. Já se passaram oito meses do segundo governo da presidenta Dilma Rousseff e o programa que foi vitorioso nas urnas e nas ruas contra Aécio Neves e o PSDB, principalmente na economia, foi arquivado. O que era otimismo virou decepção e, como resultado, os sinais da correlação de forças se inverteram.

 Ao contrário de muitos otimistas panglossianos no PT e na esquerda, prevíamos que as eleições de 2014 seriam dificílimas. Desde as mobilizações de massas de junho de 2013, que reuniram circunstancialmente forças sociais heterogêneas e projetualmente conflitantes -- a exemplo da juventude do novo precariado e as classes médias tradicionais --, já estava claro, para quem se dispusesse a ver, que o período histórico iniciado com a vitória de Lula nas eleições de 2002, se quisesse continuar mudando o Brasil, teria, necessariamente, de dar novos passos à frente.

Até certo ponto, no auge das mobilizações de junho, a presidenta Dilma e o núcleo político do governo pressentiram a necessidade de reorientar à esquerda o nosso projeto, no pronunciamento público de rádio e televisão de 21 de junho, quando ela mencionou a urgência de uma reforma política “ampla, profunda” e que “amplie a participação popular”. Mas logo recuaram, pressionados pelo PMDB e consortes. 

 Já em plena campanha do ano passado, quando surgiram as bolhas de crescimento eleitoral de Marina Silva e depois de Aécio Neves, novamente o discurso popular de Dilma reapareceu em cena, neste caso desconstruindo as receitas “políticas de austeridade” produzidas por intelectuais como Armínio Fraga (Aécio) e Eduardo Giannetti (Marina) nos aparelhos privados de hegemonia da burguesia financeira. 

 Existe ainda alguma dúvida de que esse desmascaramento feito por nós, na campanha de televisão e nas ruas, das intenções subterrâneas de um hipotético governo de Aécio ou Marina (retorno das privatizações, independência do Banco Central, corte dos programas sociais etc.) foi decisivo para a nossa vitória?

 Não foi à toa que a oposição, sentindo a nossa ofensiva e sem poder responder com sinceridade os nossos questionamentos e denúncias dos objetivos programáticos antipopulares, partiu para o diversionismo, acusando-nos de “baixar o nível”. Desde quando falar a verdade é baixar o nível? 

 Tratar da campanha pela campanha, sem estabelecer as conexões e liames, significa pendurar a análise na epiderme dos fatos. Indo mais fundo na análise, muitas foram as transformações recentes, políticas e sociais, da sociedade brasileira no período de governos do PT no Executivo Nacional.

 Em primeiro lugar, no âmbito das classes sociais, os vários segmentos da burguesia brasileira -- principalmente a industrial e agrária -- beneficiaram-se momentaneamente da explosão de consumo das classes populares e do boom internacional das commodities. Mas não só. Mesmo as burguesias bancária, rentista e financeira, devido à alavancagem dos investimentos em bolsa, o aumento do número de correntistas, o empréstimo consignado, entre outras medidas, foram, no mínimo, neutralizadas. Por seu turno, as burguesias regionais, como a de Pernambuco, beneficiaram-se das oportunidades de investimento do Estado. 

 Lula e Dilma fortaleceram o mercado interno, ampliaram o peso do sistema financeiro público, promoveram o aumento real do salário mínimo, asseguraram o nível de emprego, sustentaram os programas sociais, reduziram as desigualdades sociais e, ainda, fortaleceram todas as iniciativas voltadas para a construção de uma nova ordem internacional. O banco e o fundo de compensação dos BRICS são exemplares nesse sentido.

 As classes populares também viveram um momento de emergência social. Até mesmo o surto grevista havido entre 2008 e 2012 e as negociações salariais entre trabalho e capital, que permitiram a massa salarial crescer, em típico conflito distributivo, devem ser vistos como sintomas de uma sociedade em processo contraditório de crescimento econômico. 

 Mas nem tudo eram flores. A afluência social dos pobres começou a incomodar setores da classe média tradicional, cuja renda cresceu, no período, em menor intensidade. Esse setor remediado começou a se descolar - já a partir de 2006, principalmente em São Paulo - da esquerda e do PT. Compensou a evasão de votos dos setores médios o fenômeno que André Singer, em Os sentidos do lulismo, chamou de “realinhamento eleitoral”, ocorrido nas eleições de 2006 e reiterado em 2010 e 2014 - os pobres votaram em massa em Lula e depois em Dilma.

 Contribuiu sobremaneira para o deslocamento das classes médias as campanhas sistemáticas de mídia, de combate político e ideológico sem trégua ao PT, aproveitando as seguidas denúncias de corrupção.

 Decerto, como quase sempre, as classes médias não se comportaram univocamente, além de serem regionalmente muito diferenciadas no Brasil. Uma parte, ainda expressiva, continuou com o PT e outra buscou abrigo em setores de crítica à esquerda aos governos de Lula e Dilma. Vale dizer: os setores médios da sociedade, embora as condições atuais sejam difíceis, estão ainda em disputa e constitui um erro político grasso assimilá-las em bloco ao lado dos adversários.

 A situação conjuntural na qual quase todas as classes, especialmente as do andar “de cima” e as do “de baixo”, ganham (fenômeno designado por Marco Aurélio Garcia de “ganha-ganha”) não poderia durar muitos anos nem render paz duradoura. Mesmo com os ganhos divididos desigualmente -- os de cima ganharam muito mais e os de baixo bem menos --, mesmo vantajoso para as classes dominantes, esse equilíbrio era instável. O capitalismo brasileiro é historicamente desigual e dependente, as fraturas de classes do arranjo social brasileiro persistiram e logo viriam cobrar a fatura. 

 Embora muito tenha sido feito, estivemos longe de afrontar os grandes dilemas históricos nacionais. Fizemos políticas sociais inclusivas de transferência de renda, de elevação do valor real do salário mínimo e expansão de vagas nas Universidades Federais e no ensino técnico, entre muitas outras. Entretanto, essas políticas sociais não vieram acompanhadas, como se dizia nos tempos do governo de João Goulart, de “reformas de base”, como a urbana, a agrária e do sistema financeiro. Construímos um processo de afluência social rico, complexo e contraditório, porém sem empenho para alterar as relações de força estruturais da sociedade.

 Do ponto de vista político, o compromisso de classes do período Lula-Dilma foi operado por dentro do perverso sistema político tradicional brasileiro. O governo inovou, convocando a sociedade civil para parcerias, abrindo o Estado à participação dos movimentos sociais nos conselhos e conferências. Mas esse movimento foi limitado. Na outra ponta -- a sociedade política --, o sistema político institucional continuou operando através do chamado “presidencialismo de coalizão”, funcionando como sempre, desde a assunção do “centrão” no governo Sarney, balcanizando e fatiando as estruturas do Estado. Ganhamos a Presidência da República por quatros vezes (e ainda estados e municípios importantes), aplicamos nos governos um programa socialmente inclusivo, ativamos o desenvolvimento econômico, mas não mexemos no sistema político, que continuou no essencial oligárquico, corrupto e conservador.

 Os “donos do poder” continuaram mandando, ocupando os postos-chave nos estados, nos municípios e até mesmo no governo federal, feito Cavalos de Tróia. Essa contradição política começou a explodir na campanha de 2014 -- uma das mais radicalizadas da histórica da República -- e definitivamente, nos dias de hoje, a corda se rompeu.

 Em suma, escolhemos, conscientemente, a política do compromisso e da menor resistência. No começo do segundo governo Dilma, somou-se a esses problemas e escolhas estratégicas, que já vinham de antes, o maior dos erros. Cedendo principalmente às chantagens do capital financeiro, adotou-se o programa econômico derrotado nas eleições, num pastiche mal feito e piorado da política econômica adotada por Antonio Palocci, logo no começo do primeiro governo Lula.

 Sucede que 2015 não é 2003. Em 2003, estávamos começando a jornada às voltas com a “herança maldita” do governo FHC, que deixou o salto de inflação elevada, reservas externas em baixa e juros estratosféricos. As condições políticas eram outras. Lula foi eleito, em segundo turno, com 62% dos votos, acachapando o candidato adversário, José Serra, e começou a governar rodeado de expectativa popular positiva, em torno de 80%. Já em 2015, por sua vez, a jornada já ancorava na décima terceira estação.

 Nesse sentido, era preciso ter percebido que as condições econômicas e políticas que permitiram a concretização da política adotada nos últimos 12 anos se esgotaram. No plano da economia internacional, para citar um elemento da maior importância, a realidade favorável passou a ser outra. A conjuntura internacional mudou para pior: o boom dos preços das commodities, verificado no período 2002-2011, puxado principalmente pela demanda da China, esgotou-se.

 Nesse ponto, é importante registrar que a estratégia careceu de uma perspectiva mais ampla. Havia se disseminado em nossos arraiais uma crença ingênua, um senso comum rasteiro de que a política do ganha-ganha seria infinita. Foi eterna enquanto durou. Assim, não construímos um plano de ação de médio/longo prazos, que considerasse o acirramento da disputa de interesses de classe antagônicos. 

 Resultado: a reserva de capital político do governo evaporou-se em pouquíssimo tempo. A partir dessa evidente fragilidade, começaram uma série brutal de golpes contra o governo, o PT e a perspectiva histórica que representamos de transformação do país, contra os diretos dos trabalhadores, dos jovens, das mulheres, dos homossexuais, contra a soberania nacional e o controle das nossas riquezas naturais. 

 Essa ofensiva possui dimensões objetivas, com o ataque aos direitos, mas tem também dimensões subjetivas, com a tentativa de reduzir os mandatos do PT a casos de corrupção. Assim, assistimos a uma operação de desmoralização política e ideológica do PT, como forma de desconstituição simbólica de toda a esquerda brasileira.

 De alguma maneira, essa investida é uma resposta aos êxitos, embora parciais, do nosso projeto, embora seja também fruto dos limites dos nossos governos.

 Nos últimos 12 anos, houve uma inversão na lógica do desenvolvimento brasileiro em comparação com os governos neoliberais do PSDB, que desregulamentaram os mercados e debilitaram o Estado. O nosso governo conferiu maior centralidade ao papel do Estado, com foco na consolidação de um mercado interno de massas. 

 O Diretório Nacional do PT assinalou corretamente, em dezembro de 2014, que “além da quarta vitória eleitoral consecutiva – um fato inédito na história brasileira – podemos considerar um quinto êxito do nosso projeto. Foi a maneira como enfrentamos a crise de 2008, que se prolonga até hoje. Em contraste com as medidas de austeridade impostas pelo neoliberalismo na Europa e EUA, nossos governos não transferiram o ônus da crise dos rentistas para os trabalhadores e a população em geral”.

 Lula e Dilma fortaleceram o mercado interno, ampliaram o peso do sistema financeiro público, promoveram o aumento real do salário mínimo, asseguraram o nível de emprego, sustentaram os programas sociais, reduziram as desigualdades sociais e, ainda, fortaleceram todas as iniciativas voltadas para a construção de uma nova ordem internacional.

 Para manter as condições de o nosso projeto disputar a sociedade, é preciso reconhecer que, ao não politizarmos a sociedade, não travamos a luta ideológica e cultural que superasse a lógica meramente consumista da afluência social que nós mesmos ajudamos a produzir. Ao não enfraquecermos o poder das elites com reformas estruturais, facilitamos a pavimentação de um bloco de classes reacionário e antipopular que hoje se vê em condições de “acabar com essa raça”, como explicitou um ex-famoso político da direita, hoje recolhido ao ostracismo. Esse reconhecimento é necessário, porque reforça a necessidade de uma reorientação de rumos do governo e do PT. 

 Mais do que nunca é verdadeira a ideia de que é possível derrotar a oposição de direita se tivermos ajuda do governo, e que é possível derrotar momentaneamente a oposição de direita sem a ajuda do governo. No entanto, é impossível impor uma derrota estratégica à direita se o governo dividir a esquerda e alimentar a direita.

II. O Ajuste Fiscal 

É urgente o governo abandonar o programa dos derrotados e retomar o programa vitorioso na campanha de 2014, marcada por intensa polarização em torno do debate sobre a política econômica, o embate sobre a participação social, a reforma política, a democratização dos oligopólios da mídia e temas como o combate à homofobia. 

 A composição do governo e as primeiras medidas da equipe econômica tiveram como centro a implementação de um ajuste fiscal. O governo lançou mão de uma política econômica de austeridade, com medidas provisórias que retiram direitos trabalhistas e previdenciários, aumento da taxa de juros e cortes no orçamento.

 Essas medidas desconsideram que o modelo de política econômica conformado nos anos de 2006/2010 deu certo, embora tenha demonstrado seus limites. Portanto, deveria ser mantido e, ao mesmo tempo, aperfeiçoado. Era um modelo de estímulo ao consumo, ao investimento e de orientação de expectativas dos empresários e trabalhadores. Foi um período em que o modelo econômico produziu excelentes resultados sociais e fiscais. 

 Havia uma política fiscal anticíclica. A equipe econômica e o presidente Lula estimulavam os empresários ao investimento e as famílias ao consumo. Era um modelo que visava o crescimento econômico. No caso da economia brasileira, há um resultado muito conhecido que vem do crescimento: é o aumento do emprego com carteira assinada. E, além disso, é conhecido historicamente que o crescimento reduz o desemprego e melhora a situação orçamentária do governo. 

 Em 2006, teve início a política de valorização do salário mínimo; em 2007, foi lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (o PAC). 2009 foi o ano da crise financeira americana. Ao final de 2008, o governo anunciou a redução do superávit primário e aumentou os investimentos da Petrobras (em 2009, eles foram 22% maiores que em 2008). Em seguida, lançou o programa Minha Casa Minha Vida. O Banco Central reduziu os juros e o Tesouro fez aporte de recursos ao BNDES ao longo de 2009. E o presidente foi para a televisão estimular os brasileiros a não desistirem dos sonhos de uma máquina de lavar ou da reforma da casa. O Brasil soube enfrentar a crise internacional e saiu com poucos arranhões.

 A economia entrou o ano de 2010 voando, com crescimento de 7,6%. O crescimento do investimento foi superior a 21%. A relação dívida pública/PIB foi reduzida de mais de 60% (em 2002) para 39,2%. Foram gerados mais 2,8 milhões de empregos formais. Em relação ao ano de 2002, o volume de vendas do comércio varejista cresceu 76%, a renda per capita cresceu 37,5% e o desemprego foi reduzido em quase 50%. O período que se encerra em 2010 gerou ganhos sociais advindos dos ganhos econômicos, ou seja, a geração de emprego e renda possibilitou a melhoria da vida de milhões de brasileiros.

 Houve distribuição de renda. A vida do trabalhador e de sua família melhorou. O indivíduo desempregado e excluí- do mudou de vida. Milhões entraram no mercado de consumo, de serviços e de trabalho. As exigências a partir de então passaram a ser outras. O trabalhador teve acesso ao consumo e passou a almejar ser um cidadão pleno, isto é, ser incluído num sistema de bem-estar. Renda e emprego deveriam ser mantidos, mas agora as exigências eram também de acesso a um sistema público de saúde com qualidade, de educação formal gratuita com qualidade, de transporte barato e eficiente, com iluminação nas ruas, com coleta de lixo, com saneamento, segurança pública e acesso à água potável.

 Esse era o grande desafio a partir de 2010. Portanto, mais investimentos públicos e mais políticas de articulação com governadores e prefeitos deveriam ter sido os objetivos do governo federal. Além disso, tal estratégia exigiria uma hábil política de enfrentamento aos interesses econômicos contrários. Diferentemente da etapa de crescimento com distribuição de renda (2006-2010), quando todos ganharam com a dinamização da economia, agora, mais saúde pública, estatal e de qualidade reduziria lucros dos empresários da área; mais educação pública de qualidade, em todos os níveis, diminuiria o lucro dos donos de escolas privadas; transportes mais eficientes e baratos comprimiriam lucros das chamadas máfias dos ônibus urbanos; e assim sucessivamente.

 O governo federal não fez essa opção. Não elaborou uma política de enfrentamento aos opositores de um sistema de bem-estar. Objetivou fazer mais do mesmo e apostar mais nas iniciativas do setor privado do que nas suas próprias políticas. Reduziu o investimento público e o investimento de estatais. Apostar no setor privado é correto. O equívoco foi não ter aperfeiçoado o modelo de 2009- 2010 - o que significaria aprofundar o modelo de desenvolvimento -, ofertando, de forma ampla, equipamentos e serviços públicos de qualidade.

 Todas as iniciativas, desde 2011, foram de reduzir custos empresariais. Foi reduzida a taxa de empréstimos do BNDES (a TJLP), houve redução de tarifas de energia elétrica, desoneração da folha de pagamentos e até a tentativa (positiva) de reduzir a taxa de juros Selic. Essa não vingou porque os empresários brasileiros também são rentistas e, em aliança com banqueiros, combateram tal medida que teve início em agosto de 2011. Até então, a política tinha sido de elevações sucessivas da taxa de juros Selic. Deve ser lembrado que o governo declarou no início de 2011 que reduziria o crescimento: elevou o superávit primário, fez contingenciamentos de recursos e elevou a taxa de juros Selic.

 Deve-se destacar que as medidas contracionistas têm início em janeiro de 2011 e que a crise das dívidas europeias que afeta o mundo somente ocorre no 4º trimestre daquele ano. Portanto, a freada brusca que a economia brasileira sofreu em 2011 decorreu das políticas econômicas adotadas. A partir de 2012, a economia estagnou. Era o resultado de um clima externo e interno negativo devido à perversa combinação do cenário internacional com as políticas internas paralisantes - que esperavam uma reação espontânea do setor privado. Era a velha e equivocada crença de que empresários investem quando seus custos são reduzidos. Mas, na verdade, eles investem quando esperam lucros maiores. Quando custos são menores e a economia não cresce, empresários simplesmente aumentam seus lucros. E esse foi o resumo do que ocorreu entre 2011-2014.

 Em 2015, o governo perdeu o rumo do projeto de desenvolvimento, que tem como base o crescimento, a geração de emprego e renda. Optou por colocar em prática um programa de austeridade, fazendo uma brusca contração fiscal conjugada com algumas reformas estruturais. Durante anos, as finanças públicas têm mostrado solidez. Exceto no ano passado, em que houve um problema fiscal.

 As causas do desequilíbrio fiscal de 2014 foram o baixo crescimento, as desonerações fiscais e as elevadas despesas com pagamento de juros. O déficit nominal (receitas menos despesas do governo) foi de 6,7% do PIB, mas só as despesas com juros alcançaram 6,1% do PIB -- ou mais de R$ 300 bilhões. É necessário reorganizar as finanças públicas. Precisamos delas para combater as ameaças de desemprego, realizando investimentos públicos, e para fazer políticas sociais cada dia mais eficazes. Baixo desemprego e políticas públicas que promovem o bem-estar social são as bases do desenvolvimento de que necessitamos.




 A questão é: qual o caminho que devemos adotar? Paramos o país cortando gastos e elevando juros ou promovemos o crescimento? O primeiro caminho busca atingir o objetivo cortando despesas (e, contraditoriamente, elevando despesas quando se aumentam os juros que remuneram a dívida pública). Já o segundo caminho deseja equilibrar as finanças públicas elevando as receitas resultantes da dinamização econômica. Além disso, sem crescimento não haverá desenvolvimento.

 Não é uma questão de livre escolha diante de duas opções. O caminho do aperto fiscal e monetário, além de não equilibrar o orçamento, está promovendo um retrocesso econômico e social. A arrecadação está mais fraca. Os investimentos públicos e privados despencaram (contração de 7,8% em relação ao primeiro trimestre de 2014). O desemprego está aumentando e a formalização do trabalho caindo.

 Os cortes anunciados de R$ 70 bilhões atingem todos os ministérios e todas as áreas. Isso significa que todas as políticas sociais sofrerão cortes ou ficarão estagnadas. E, por outro lado, somente a política de elevação dos juros já tem custo superior a R$ 150 bilhões. O resultado sobre o crescimento já está sendo previsto pelos mais diversos analistas: uma contração econômica em torno de 2% esse ano e recessão também em 2016. E o pior, apesar do ajuste ter sido feito para melhorar a situação fiscal, o déficit nominal acumulado nos últimos 12 meses subiu de 6,7 em dezembro para 7,9 em maio. Esse resultado é decorrente da queda da arrecadação devido à recessão e também do impacto fiscal da incompreensível política monetária. Isto leva as agências de rating a ameaçar rebaixar a nota do Brasil pela desaceleração econômica e pela piora do quadro fiscal. E há quem diga que Dilma escolheu Levy justamente para evitar essa decisão dessas agências -- desmoralizadas em todo o mundo -- de classificação de risco.

 Só há uma saída: o crescimento da economia e a retomada do desenvolvimento. Contudo, há outra questão: como financiar o crescimento se as finanças públicas estão combalidas? De onde viriam os recursos? Não é possível aumentar o déficit fiscal. Será preciso, então, reduzir a taxa de juros e arrecadar mais fazendo justiça tributária.

 O sistema tributário brasileiro é injusto porque impõe sacrifício elevado para aqueles que têm rendas baixa ou média e alivia aqueles que têm altas rendas e são ricos, milionários ou até bilioná- rios. Segundo estudo do IPEA (Instituto de Economia Aplicada, órgão do governo Federal), os 10% mais pobres destinam 32% das suas rendas para pagar impostos. Enquanto isso, os 10% mais ricos pagam somente 21%.

 A grande injustiça começa pelo fato de que a maior parte da arrecadação vem de impostos cobrados quando compramos alguma mercadoria, seja um eletrodoméstico, seja um pacote de macarrão. No ato da compra, o pobre e o rico pagam o mesmo imposto. Embora o valor do imposto cobrado seja o mesmo, para o pobre essa cobrança representa sacrifício, para o rico é uma cobrança nem percebida. 

 Apesar de percebermos a existência de grandes latifúndios, sítios com áreas enormes, apartamentos suntuosos, carros luxuosos, iates, helicópteros e jatinhos, a receita tributária advinda do patrimônio é de menos de 4% do total arrecadado. E os impostos sobre as rendas representam algo em torno de 18% da arrecadação tributária. Então, do total de impostos arrecadados, somente 22% vêm dos tributos cobrados sobre a renda e o patrimônio. E mais de 50% vêm dos impostos sobre o consumo e os serviços. Em países como o Canadá, o Reino Unido e os Estados Unidos, a soma dos impostos coletados sobre as rendas e o patrimônio é superior a 50% do total.

 Devem contribuir com o equilíbrio fiscal aqueles que têm maior capacidade contributiva. O governo acertou quando aumentou a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido dos bancos de 15 para 20%. Esse é o caminho – e não a retirada de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários (tais como fizeram as Medidas Provisórias 664 e 665). 

 No Brasil, lucros e dividendos não são tributados quando são transferidos aos donos das empresas. O empresário recebe seus ganhos e isso é considerado pela legislação atual como “rendimento não-tributável”. Jatinhos, iates e helicópteros não pagam IPVA. Multinacionais enviam lucros para o exterior e também não pagam nenhum imposto sobre essa movimentação. E a Constituição prevê a cobrança de imposto sobre grandes fortunas, mas até hoje não foi aprovada pelo Congresso Nacional. 

A justiça tributária poderia começar já, antes de uma reforma, com a cobrança daqueles que comprovadamente devem impostos e não pagaram. Segundo a Procuradoria da Fazenda, são devidos ao governo federal R$ 1 trilhão em impostos não pagos. Mas o governo federal consegue recuperar somente 1,3% desse montante ao ano.

 Há fontes de financiamento para promover o crescimento, o reequilíbrio fiscal e o desenvolvimento, sem fazer um ajuste fiscal que jogará nossa economia na recessão. Basta escolher o caminho certo. E a escolha desse caminho é uma decisão política do governo, que não pode continuar atacando a própria base.




III. O que fazer?

 Escrevemos este artigo depois da Convenção Nacional do PSDB e do espalhafatoso anúncio feito pelo deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara, de “rompimento” com o governo Dilma. Enfatizamos esses dois episódios para observar que, embora a crise seja econômica e se espraie pelo social, ela é essencialmente política e somente pela política encontraremos a porta de saída.

 Os pronunciamentos na convenção do PSDB e os bastidores políticos em Brasília desenterram, no novo século, o fantasma -- pelo visto insepulto -- da velha tradição golpista brasileira, chaga permanente na história do século XX. No passado, os golpistas se comportavam como “vivandeiras de quartéis”, clamando pela intervenção militar. Por enquanto, os quartéis estão serenados.

 Atualmente, trama-se um golpe de genealogia igualmente violenta, no entanto, aparentemente, mais “clean”. A natureza da tentativa de golpe em curso foi definida com precisão cirúrgica na importante Carta dos Governadores do Nordeste (Teresina, 17/07) como as três “vias tortuosas” da “judicialização da política [processo de impeachment com base na rejeição das contas do governo], da politização da justiça [cassação pelo TSE dos diplomas de Dilma e Temer] ou da parlamentarização forçada [adoção de um regime parlamentarista, à maneira da solução desastrosa que permitiu a posse de Jango, em 1961].

 É preciso dar nomes aos bois. Por trás das modalidades de golpe, estão equidistados os interesses, circunstancialmente distintos, de três lideranças da oposição: Aécio Neves (eleições já), José Serra (parlamentarismo) e Geraldo Alckmin (eleições em 2018). Esses tucanos são espécimes curiosos: de público, posam de Varões de Plutarco; nos bastidores, vendem a setores do PMDB e a outros partidos da “base” do governo a ideia de que Dilma foi omissa e leniente ao não controlar e dar “autonomia demais” à Polícia Federal e ao Ministério Público.

 Por enquanto, a circunstancial divisão de interesses dos adversários tem retardado a execução imediata do golpe. Porém, não podemos (nem devemos) nos fiar apenas na imobilidade circunstancial dos adversários, enquanto eles não se acertam nas tratativas sujas. É preciso agir! 
 Vale observar que esses interesses não são meramente pessoais das lideranças da oposição de direita. Golpe não é somente conspiração, pressupõe a adesão de um bloco orgânico de forças sociais e um programa para “o dia seguinte”. Nesse sentido, do ponto de vista do programa econômico, as forças golpistas irão adotar o mesmo programa de Joaquim Levy. No entanto, do ponto de vista das conquistas das políticas sociais, dos direitos, da liberdade e democracia, a vitória do golpe significará um retrocesso sem par na vida brasileira.
 Diante de tudo isso, o que fazer? Propomos três ações políticas combinadas, uma autêntica rota de navegação em mar revolto:

1. Reorientar a política econômica 

 A economia não está desvinculada da política. O governo precisa mudar na política econômica para sobreviver, criando as condições objetivas para reorganizar a nossa base social, que terá que se mobilizar para fazer o enfrentamento diante dos interesses do capital financeiro e das empresas multinacionais. O crescimento do desemprego, a queda da renda dos trabalhadores e o corte de programas sociais darão uma base de massas para as forças golpistas que articulam o impeachment da presidenta Dilma. Além disso, deixarão neutralizadas as centrais sindicais, os movimentos populares e entidades estudantis que apoiam o nosso projeto, mas terão dificuldades para sair às ruas para defender um governo que implementa medidas contra os seus interesses. 

 É triste ter que admitir isso, mas Dilma dificilmente concluirá seu mandato se essa política econômica colocar o país num longo período de recessão que poderá se estender até 2017. Não há como sobrevivermos neste contexto. O ajuste não é um movimento tático do ministro Levy. É estratégico. Dilma e o governo têm que reagir, defender seu governo lançando medidas de estímulo ao crescimento, mudando o rumo para defender os empregos, os investimentos e as políticas sociais.

 2. Apresentar um novo governo à nação e reconstruir a base de apoio no Congresso

 O sistema “Presidencialismo de Coalizão” vigente já se exauriu e, pior ainda, tenta sobreviver através do golpismo. Tendo em vista a gravidade da situação, Dilma precisa buscar forças na sociedade e apresentar um novo governo à Nação para enfrentar as várias crises. Este novo governo teria como epicentro a composição de um novo ministério de ampla respeitabilidade social e política, indo buscar personalidades representativas da sociedade civil, dos intelectuais, dos clérigos, dos movimentos sociais, dos trabalhadores e dos empresários. O novo ministério precisa, logo que empossado, de um programa claro e decidido de combate à crise. Ao mesmo tempo e no mesmo compasso, precisamos de uma base partidária coesa, menos dispersa e mais comprometida com o nosso programa e decidida no apoio ao governo. Nos duros embates que se avizinham no Parlamento, o objetivo central é aglutinar uma espécie de base defensiva, em torno de 200 deputados, convictos em impedir, em nome da democracia e contra o golpismo, um processo de impeachment, bem como a aprovação de Projetos de Emendas Constitucionais que retirem direitos.

3. Construir uma Frente Popular

 Os desafios postos pelo atual quadro da luta política impõem aos movimentos sociais, aos partidos políticos progressistas, às entidades estudantis, às denominações religiosas comprometidas com os diretos civis, aos coletivos de cultura e comunicação, aos intelectuais e artistas a construção de uma grande frente política, com a capacidade de galvanizar amplos segmentos da sociedade em torno de um programa de defesa da legalidade democrática e de enfrentamento ao golpe, mas, que seja também de aprofundamento das transformações e de reformas estruturais. 

 O segundo turno da eleição presidencial de 2014, antecedido das mobilizações sociais de 2013, mostrou, na prática, a necessidade da unidade do maior leque possível de forças progressistas, populares, nacionais e democráticas para evitar que a derrota do projeto em curso implique em retrocessos para o país. Diante das grandes chances de vitória de Aécio Neves, militantes dos partidos progressistas, das centrais sindicais, dos movimentos sociais e das entidades de estudantes, mulheres, negros e homossexuais, agentes de cultura e comunicadores arregaçaram as mangas para derrotar os tucanos e eleger Dilma. No final das contas, tiveram um papel decisivo, visto que o resultado final foi apertado.

 A lição que precisamos tirar daquela eleição é que nenhuma força política no Brasil de hoje, isoladamente, tem capacidade, autoridade e legitimidade de enfrentar sozinha a ofensiva das forças neoliberais e a onda conservadora. Assim, com um espírito de unidade, de generosidade e firmeza para derrotar a direita, temos que construir uma frente popular, pactuar um programa de transformações estruturais e reorganizar as forças progressistas para a luta política

 Uma frente com incidência na luta política na atual conjuntura, mas que nas lutas e através do debate político se consolide como portadora de um projeto de transformação que seja uma referência para as organizações da classe trabalhadora. Essa articulação não pode se pautar simplesmente na disputa eleitoral-partidária. Bem mais além das eleições, precisa reunir as mais diferentes formas de organizações populares. Nesse sentido, devem integrar a frente tanto setores que defendem o governo Dilma quanto setores situados no campo da oposição de esquerda. O pacto de ação comum de todos nós é a unidade contra o golpe da direita e uma aglutinação em torno de um programa de defesa das conquistas dos trabalhadores e de uma pauta de reformas. 

 Um programa que tenha entre seus principais eixos a defesa dos direitos dos trabalhadores; a defesa da democracia e da legalidade democrática; a reorientação NACIONAL da política econômica; a resistência frente a essa pauta conservadora que inclui temas como a redução da maioridade penal, Estatuto da Família, Estatuto do Desarmamento; a defesa da soberania nacional, ameaçada por vários projetos que atacam o modelo de partilha e a condição da Petrobras de operadora única do pré-sal; a defesa das grandes reformas estruturais, para democratizar a política, o Judiciário, o Estado e os meios de comunicação, a reforma tributária, a reforma educacional, a reforma do sistema de saúde, a reforma agrária e a reforma urbana.

 Os primeiros passos de construção da Frente Popular já foram dados. Várias reuniões têm acontecido, todas no clima de fraternidade que nossos valores comuns permitem. A mais importante decisão foi a de organizar uma grande Conferência Nacional, no dia 5 de setembro de 2015, em Belo Horizonte (MG), que vai definir um calendário de atividades, aprofundar as elaborações sobre a organização interna e o programa de resistência. 

 Nada disso é fácil de fazer. Mas precisamos fazer tudo isso.

OBS.: Este artigo foi escrito antes das manifestações de agosto e do lançamento da chamada “Agenda Brasil”.