O texto abaixo constitui um trecho do artigo ''A crise do socialismo e a alternativa comunista'', publicado no livro de bolso ''Crise do socialismo e a ofensiva neoliberal'' do professor José Paulo Netto para a coleção ''Questões de nossa época'', da editora Cortez.
Não seria exagerado falar em barbárie, no momento mesmo em que a massa crítica de que dispõe a humanidade lhe permitiria um controle da natureza capaz de, sem destruí-la (antes, preservando-a), prover otimamente as necessidades de reprodução da sociedade? Não seria uma retórica de mau gosto falar em barbárie, quando as condições técnicas da socialização dos bens culturais possibilitariam aos homens um desenvolvimento ideal sem precedentes? Não seria insensato falar em barbárie, quando a ordem burguesa aparece plenamente constituída, com todas as suas potencialidades em processo de explicitação?
É precisamente porque estamos confrontados com a ordem burguesa plenamente constituída que a barbárie revela sua face contemporânea. A fome não é um fenômeno a afetar somente massas de milhões de homens no ''Terceiro Mundo'':
''Nos Estados Unidos, fontes oficiais estimam que cerca de 10 a 20 milhões de habitantes são cronicamente subalimentados. O destino dos aposentados que vivem de pensões miseráveis causa pena em países como Grã-Bretanha, França, Itália, Espanha. Na Andaluzia, não longe do paraíso turístico de Costa del Sol, famílias de 300.000 trabalhadores agrícolas devem e contentar durante boa parte do ano com uma refeição ordinária composta de pão seco e tomates'' (Mandel, 1990: 116-117).
E esta fome, em todas as suas latitudes, é grandemente produzida
''(...) pela política deliberada de sustentação de preços através da redução artificial das áreas plantadas e da produção, ou seja, através da lógica infernal da economia de mercado'' (Idem, 115).
A ignorância e o analfabetismo são expressões da miséria do ''Terceiro Mundo'', mas a cretinização geral dos indivíduos envolve o capitalismo desenvolvido: em maio de 1990, a revista VEJA informava que, no sistema universitário norte-americano, ''um em cada quatro estudantes não sabe quando Colombo chegou à América, é capaz de confundir um discurso de Stálin com outro de Churchill e não sabe que Dante escreveu a Divina Comédia''. Um ano depois, a mesma publicação resumia dados de uma pesquisa, realizada no Oregon, com 2.000 alfabetizados entre 16 e 65 anos, mostrando que somente ''35% dos pesquisados conseguiram determinar a dose correta de um remédio infantil usando uma tabela de peso e idade e somente 18% conseguiram achar os horários de partida dos ônibus dispostos numa placa''; comentando a mesma pesquisa, o Jornal da Ciência Hoje, de maio de 1991, observava que apenas ''um em cada cem adultos... sabem interpretar um gráfico e só nove compreendem claramente o que leem''.
A verdade é que a ordem burguesa, no seu patamar de desenvolvimento contemporâneo, continua apresentado a necessária contradição que é uma das suas marcas mais peculiares: no seu processo, objetivam-se compulsoriamente possibilidades de libertação e realização dos homens e realidades regressivas, mutilantes e opressoras; o diferencial efetivo entre possibilidades e realidades manifesta o caráter da barbárie que lhe é própria. O assombroso, todavia, quando se considera a sua realidade atual, é que seus apologistas e arautos a situem como a forma adequada, modelar e desejável de organização societária, que estaria, em face da ''crise do socialismo'', comprovadamente destinada a assinalar o ''fim da História''; de fato, dada a evidente crise do ''socialismo real'', o que essa consideração patenteia é, mais uma vez, ''a sóbria verdade de que a supremacia econômica é capaz de produzir as fomas mais inesperadas de mistificação ideológica'' (Meszáros, 1989: 170).
Com efeito, a consequência mais visível da crise do ''socialismo real'', para a ordem burguesa, ''é que o capitalismo e os ricos pararam, por enquanto, de ter medo'', e precisamente porque, ''por enquanto, não há nenhuma parte do mundo que apresente com credibilidade um sistema alternativo ao capitalismo'' (Hobsbawm, in Blackburn, org.; 1992: 103-104). É assim que, neste quadro, pôde a ordem burguesa fazer-se passar -- por enquanto -- com a paragem final do milenar processo de construção da socialidade, como o ''fim da História''.
Mas a folha-corrida da ordem burguesa, ao longo deste século [lembro que o livro foi publicado em fins do século XX], não autoriza nenhum otimismo quanto à natureza desse ''fim da História'': duas guerras mundiais e dezenas de conflagrações localizadas, uma crise econômica catastrófica que pôs abaixo o sistema social e crises menores, mas reiterativas, o imperialismo, o fascismo etc. Um único dado é suficiente para indicar a barbárie ou, se se preferir, a ''eficiência'' da ordem burguesa madura na promoção do crescimento econômico e do bem-estar: a abrangência do ''mundo desenvolvido'' reduziu-se de cerca de 33% da população mundial, em 1900, para cerca de 15%, em 1989 (Hobsbawm, op. e loc. cit.). E se o capitalismo e a ordem burguesa ''funcionam'' hoje para 15% da humanidade, a situação dos qe não fazem parte desta minoria está mais longe ainda de depor favoravelmente para esta santa ordem social -- a pobreza é a generalizada dominante que ela vem produzindo, como o atestam fontes indesmentíveis [1].
Os apologistas da ordem burguesa, compreensivelmente, colocam entre parênteses estes dados factuais, que desprezam como acidentes de percurso, e se limitam, cínica ou ingenuamente, a propor, diante do que enunciam como a ''morte do comunismo'', o capitalismo do ''Estado mínimo'' e a ''insuperável'' dinâmica do mercado. A receita ideal foi aplicada na Inglaterra, sob a batuta da Sra. Thatcher, e o resultado é paradigmático: uma década de paralisia e empobrecimento [2]. E quando se trata de sugerir a eficácia do receituário para além do ''Primeiro Mundo'', os neoliberais (ou neo-conservadores) acenam com o ''milagre'' dos chamados ''Tigres Asiáticos'' (Hong-Kong, Coreia do Sul, Singapura e Taiwan), escamoteando as condições de exploração da força de trabalho nestas áreas -- onde, diga-se de passagem, o exemplo coreano demonstra bem que espécie de direitos sociais e liberdades políticas estão reservados aos que se dispõem a aceitar a terapia [3].
Um fato histórico central destas últimas décadas do século XX é que a ordem burguesa -- tanto no seu centro quanto na sua periferia -- vem experimentando uma curva decrescente na sua eficácia econômico-social. Isso não significa que uma espécie qualquer de colapso lhe seja iminente, mas significa que sua manutenção e evolução estão implicando sucessivos ônus sócio-humanos. Na consideração do seu processo nos países centrais, o que se tem verificado é uma nítida redução na taxa de crescimento econômico em termos de médio prazo (Mandel, 1976); em termos conjunturais, o panorama de transição dos anos oitenta aos noventa nada tem de alentador [4]. Inclusive nas áreas limitadas da ordem burguesa em que o crescimento pode ser avaliado como positivo, os seus custos para a masas dos trabalhadores são ascendentes e tendem a restringir antigos direitos e conquistas [5]. O que sobreleva, em qualquer análise séria da ordem burguesa contemporânea, é que sua realidade e perspectivas econômico-sociais, mesmo para aqueles (como é o meu caso) que não compartilham de qualquer ótica catastrofista [6], só oferecem projeções de crescentes instabilidade e insegurança. E parece legítimo jogar com a hipótese de que ''o conjunto do sistema esteja se aproximado de certos limites estruturais do capital'' [7].
É nesta decrescente eficácia econômico-social da ordem burguesa que reside o núcleo elementar da sua exponenciada problematicidade. Mas o que compromete a ordem burguesa como totalidade -- e manifesta especialmente a sua barbarização -- é muito mais abrangente e inclusivo do que se pode fazer crer numa pura análise econômico-social: centra-se nas peculiaridades sócio-culturais e políticas macroscópicas que vincam o conjunto das instâncias e expressões da vida social no mundo burguês. A descrição do ''sistema irracional'', feita por Baran e Sweezy (1966) há mais de um quarto de século, não resistiu apenas à prova do tempo: ganhou cores mais dramáticas e dimensões mais sombrias. O modo de vida burguês, nas suas áreas mais desenvolvidas -- e proclamadas exemplares pelos seus apologistas --, vem engendrando um ethos em que o consumismo compulsivo se inscreve numa constelação ideal de alienação e individualismo [8]; florescem o privatismo, o intimismo, a agressividade e o cinismo disfarçados de ''modernidade'' [9]. No terreno estritamente político, as liberdades democráticas, resultantes de lutas populares de largo curso [10] e por isto mesmo profundamente inseridas na ''cultura política'' da ordem burguesa, não foram golpeadas nos últimos cinquenta anos -- e no plano dos direitos civis, registraram-se mesmo desenvolvimentos progressistas; mas a possibilidade de fazer incidir tais liberdades no sistema de poder das sociedades típicas da ordem burguesa tem sido amplamente neutralizada pelos mecanismos que, nelas, conectam os aparatos das grandes corporações capitalistas com as instâncias estatais -- donde quer uma acentuada autonomia deste sistema em face de aspirações objetivadas pelos movimentos democráticos [11], quer uma prática corrupta recorrente [12], configurando as consequências de uma das características contraditórias da ordem burguesa: a sua compatibilidade com a socialização da política (cuja significação positiva não pode, em momento algum, ser menosprezada) é simultânea à sua incompatibilidade com a socialização do poder político [13].
Com estes traços, a ordem burguesa defronta-se, no limiar do século XXI, com três desafios fundamentais: ''o crescente alargamento da distância entre o mundo rico e o mundo pobre (e provavelmente dentro do mundo rico, entre seus ricos e seus pobres); a ascensão do racismo e da xenofobia; e a crise ecológica do globo, que nos afetará a todos'' (Hobsbawm, op. e loc. cit., p. 104). Em face destes desafios, acrescenta em seguida o historiador que estou citando: ''As formas de lidar [com eles] ainda não são claras, mas a privatização e o livre mercado não se incluem nelas'' (Idem). É pertinente a contundência desta conclusão, que aponta para a impossibilidade de a ordem burguesa reproduzir-se sem reproduzir a barbárie? A resposta é afirmativa: nenhum desses problemas pode ser resolvido sem modalidades de controle social cuja racionalidade transcenda aquelas que é inerente ao capital; esses problemas só podem ser equacionados e solucionados, sem a reiteração de vetores barbarizantes, mediante intervenções cuja estratégia supere compulsoriamente as requisições específicas da lógica de acumulação e valorização sem a qual o movimento do capital é impensável. Curta e grossamente: no marco da ordem burguesa, esses problemas tendem a cronificar-se, a receber pseudo-soluções ou soluções de altíssimo custo sócio-humano, porque ''o capitalismo e a racionalidade do planejamento social abrangente são radicalmente incompatíveis'' [14].
Com estas pontuações, estou longe de sugerir que a ordem burguesa se revela à análise como esgotada ou em vias de entrar em algo semelhante a um colapso -- a ideia de uma ''crise geral'' catastrófica, com o capitalismo e suas instituições sociais à beira da dêbacle, não me parece encontrar suportes sólidos --; enfim, não se trata de supor o capitalismo como agonizante, incapaz já de reproduzir-se como tal. Com tais pontuações, quero apenas ressaltar que a ordem burguesa contemporânea exauriu-se como padrão progressista, esgotou-se no que pode oferecer de ascensional aos homens. Superado o seu grandioso papel histórico-universal emancipador, ela só pode reproduzir-se agora com a (re)produção de complexos e contradições, antagonismos e problemas que, no seu marco, não podem ser ladeados senão com o aprofundamento de traços barbarizantes: mesmo os avanços e êxitos que possa lograr na exploração de novas alternativas geradoras de riquezas e de sequelas tais que não se trava o aviltamento de imensos contingentes populacionais [15].
Esta argumentação vem tematizando a ordem burguesa em bloco, como um todo. O procedimento não é infundado: o desenvolvimento histórico do capitalismo universalizou, há muito, os seus processos de matrização sócio-política -- globalizada, a lógica específica do capital opera independentemente de latitudes e longitudes. Isto, entretanto, não cancela formas e arranjos sócio-políticos diferenciais sobre o topus da dominação do capital. É sabido que a análise teórica, quando recusa a redução economicista e a ilusão politicista, verifica concretamente que uma determinada estrutura econômica pode imbricar-se congruentemente com ordenamentos sócio-políticos alternativos (cuja pluralidade, todavia, tem fronteiras). O estudo da ordem burguesa, na sua maturação histórica, mostra que estruturas econômicas substancialmente similares comportam configurações sócio-políticas muito diversas -- a estrutura do capitalismo monopolista suporta tanto o Welfare State quanto o modelo fascista --; ou, como já tive oportunidade de assinalar, ''o sistema capitalista tem produzido e articulado distintos regimes políticos, compatibilizando, é verdade que diferenciadamente, seus mecanismos estritamente econômicos com formas políticas muito variadas'' (Netto, 1990: 72 ). Esta determinação é necessária para permitir tangenciar o projeto sócio-político que veio disputando com os liberais e conservadores a direção de vários Estados burgueses e que, agora, com a ''crise do socialismo'', adquire um relevo curioso: o projeto social-democrata.
Quanto à sua prática política, onde se pôde realizar experiências duráveis, a social-democracia operou com uma ''gestão social'' do capitalismo: um Estado com forte iniciativa no campo de políticas socais redistributivas e com pronunciada intervenção nos serviços e equipamentos sociais, fiador de controles tributários sobre o capital e articulador institucional de parcerias entre capital e trabalho, sobre a base do jogo político democrático. Geralmente, a eficácia do modelo social-democrata é localizada em alguns países da Europa nórdica, a laterização dos seus pobres experimentos sul-europeus. Este modelo, como é notório, pouco tem a ver com a social-democracia ''clássica'', inspirada no movimento operário revolucionário do século XIX e marcada por influxos marxistas; de ato, o que se efetiva neste modelo é uma proposta política de controle, redução e reforma dos aspectos mais brutais da ordem burguesa, sem a vulnerabilização dos seus fundamentos. Tem-se, em realidade, uma configuração sócio-política que, de alguma forma limitando as sequelas próprias à ordem burguesa, é compatível com a dinâmica do capital. Não é um acidente, pois, que, em seus experimentos mais logrados, as propostas social-democratas jamais tenham afetado substantivamente as estruturas básicas da ordem burguesa -- antes as tenham consolidado e legitimado. Por outra parte, é significativo que estes experimentos só registrem êxito em conjunturas de expansão capitalista: não só não se creditam a eles processos de arranque no crescimento como, especialmente, mostraram-se sempre muito susceptíveis de reversão em tempos de crise. Em suma, a gestão social-democrata da ordem burguesa -- certamente contabilizando ganhos para setores sociais amplos, que não os obteriam nos quadros do ''liberalismo'' -- não contribuiu para superar o capitalismo e suas instituições básicas.
Vale lembrar, ainda, em se tratando da social-democracia, duas outras notas importantes para a sua apreciação. No que se refere ao seu desenvolvimento prático-político, ele se realizou em geral sob uma pressão a dois níveis internacionais: internacional, com a existência do ''campo socialista'', com seu apoio sobre ponderáveis segmentos de trabalhadores e intelectuais [17]; nacional, com a existência de núcleos comunistas disputando a direção do movimento operário. É pouco plausível que a social-democracia se modelasse tal como a conhecemos sem esta dupla pressão -- e é supérfluo aduzir de que seu arrefecimento afetará a evolução da social-democracia. Quanto à natureza sócio-política atual dos partidos social-democratas (independentemente de sua designação), eles não se distinguem da social-democracia ''clássica'' apenas no plano teórico-ideológico, mas sobretudo porque deixaram de ser partidos classistas: enquanto aquela tinha o seu centro de gravitação nas massas operárias, os partidos social-democratas contemporâneos, mesmo que suportes de base sindical lhes pareçam necessários, funcionam ''como organismos capazes de mobilizar um eleitorado socialmente heterogêneo, unido principalmente pelo descontentamento com os regimes conservadores existentes e pelo desejo de um conjunto de reformas no Estado, na economia e na sociedade'' [18].
Esta referência à social-democracia é imperativa para indicar o fracasso de um projeto cuja longínqua inspiração se direcionava para a superação da ordem burguesa -- afinal, antes de ser capturado pela lógica do capital, o projeto social-democrata fundava-se num ideário que apontava para uma ordem alternativa. O seu fracasso, expresso tanto pelos resultados práticos de suas experiências quanto pela conversão dos seus partidos em máquinas eleitorais muito pouco diversas das similares liberais e conservadoras, porém, não pode ser registrado isoladamente: também não apresentaram resultados efetivos, em termos da superação da ordem burguesa, os projetos condensados em torno dos partidos comunistas.
Obviamente, não pretendo equalizar os projetos e/ou práticas dos partidos social-democratas e dos partidos comunistas. Nem, por outo lado, inclino-me a considerar que, no último meio século, tenha sido inócua a experiência de partidos comunistas nos espaços da ordem burguesa; ao contrário: tanto mais se transformaram em partidos nacionais de massas, centralizados no proletariado, tanto mais contribuíram (direta e/ou indiretamente) para importantíssimas conquistas dos trabalhadores e da cidadania --basta pensar em países como Itália e França para que se desvaneçam quaisquer dúvidas a respeito. O fato incontestável, entretanto, é que, nas áreas desenvolvidas, o desempenho dos partidos comunistas não conduziu à superação da ordem burguesa; e mais: salvo casos pontuais, que não me parecem prefigurar um movimento consistente, de êxitos eleitorais, o que se verifica, a partir de fins dos anos setenta, é a decrescente gravitação político-social destas organizações [19].
Na verdade, o que todos os indícios minimamente seguros sugerem é que estas duas formas organizativas político-partidárias, a da social-democracia e a comunista, estão se esgotando como viabilizadoras de transformações profundas na ordem burguesa, pelo menos nas áreas onde sua estrutura societária revela-se mais complexa e madura. Extrair desses indícios a ideia de que os partidos políticos estão superados me parece algo precipitado; instâncias organizadoras da vontade política, capazes de universalizá-la no desdobramento de particularismos e de conduzi-la ao exercício do poder, afiguram-se-me indispensáveis na dinâmica das lutas sociais no marco da ordem burguesa. Parece-me, porém, indiscutível que, no caso dos partidos comunistas, a sua concepção e estruturas tradicionais (envolvendo não apenas a sua organização interna e as suas práticas instrumentais, mas ainda o seu estatuto no conjunto das instituições e agências cívico-políticas) não respondem mais seja aos seus ideários, seja às demandas sociais concretamente postas hoje. Para não me alongar quanto a este ponto: a famosa ''teoria da organização leninista'' -- exposta canonicamente em 1903 -- mostra-se atualmente absolutamente insatisfatória (e não creio que qualquer ''retorno a Lênin'' -- de 1903 -- possa ser produtivo).
O que se constata, neste andamento, é o que me parece ser o impasse: a reforma ao gosto social-democrata não vulnerabiliza a ordem burguesa, a revolução à moda bolchevique não se concretiza; os adeptos da primeira limitam-se, quando muito, à gestão razoável da ordem burguesa, enquanto aqueles que se esperava deviam implementar a segunda declararam sem ambiguidades que ela é inviável [20]. A impressão, pois, é de que a ordem burguesa se eterniza: no máximo, pode-se controlá-la -- mas não erradicá-la, superando-a. No imite, portanto, parece mesmo que a história chega ao fim.
Esta impressão, a meu juízo, falseia a realidade e não resiste à análise crítica. O fracasso da reforma social-democrata não resulta de uma pretensa intangibilidade da ordem burguesa, mas da natureza da concepção que funda aquele projeto politico -- o da reforma que põe como limite a aceitação das estruturas básicas do ordenamento capitalista; na medida em que não efetiva a crítica radical da ordem burguesa, a reforma social-democrata desloca necessariamente a sua ação dos níveis substantivos desta ordem; daí o caráter que a reforma adquire: independentemente dos seus ganhos, ela opera como mantenedora da ordem. Quanto à também pretensa inviabilidade da revolução, ela deriva da concepção que a identifica a processos insurrecionais, catastrofistas, num típico decalque das revoluções anteriores à consolidação da ordem burguesa [21] -- e, com esta plenamente desenvolvida, o padrão insurrecional parece remeter-se mais ao domínio do imaginário social. Estes ''paradigmas'' -- o reformista limitado e o revolucionário insurrecional -- estão desterrados do reino das possibilidades exitosas da ordem burguesa contemporânea: não porque esta tenha se imunizado á erosão das suas estruturas fundamentais, mas porque deixou para trás as condições que, noutro tempo, poderiam tornar eficazes aqueles ''paradigmas''. A ordem burguesa derruiu, há muito, as bases que confeririam chances de sucesso ao reformismo bem-pensante, ao estilo dos fabianos, E também socavou, há muito, os suportes da revolução proletária explosiva, tal como os militantes operários a pensaram a partir do modelo de 1848 e 1871 e como Lênin a empreendeu em 1917. Neste processo, porém, ela não eliminou ou reduziu as contradições e tensões que inscrevem a possibilidade da sua superação na imanência mesma do seu movimento: antes adensou-as, tornando-as mais complexas e profundas. O que a ordem burguesa madura deitou por terra foram duas projeções:uma, que supunha possível superá-la operando de forma evolucionista-gradual, contendo suas sequelas e limitando as suas implicações através do seus próprios mecanismos; outra, que pensava a sua superação como ''necessidade histórico-natural'', como desenlace disruptivo do acúmulo das suas contradições e antagonismos.
Parece claro, hoje, que a superação da ordem burguesa não se realizará por estas vias. Para que a superação venha a concretizar-se, serão precisas uma vontade e iniciativa políticas que, mediante novos padrões organizativos, possam mobilizar e (auto)direcionar massas de milhões de homens para empreender a construção de uma ordem societária que erradique as bases estruturais da ordem vigente -- a propriedade privada dos meios fundamentais de produção, a lógica do capital e as mediações societais centradas na dinâmica do mercado. Tais vontade/iniciativa e padrões organizativos deverão descartar o reformismo limitado, mas implementar reformas que abram caminho no sentido da socialização da economia e do poder político; deverão descartar os modelos de desenlaces explosivos e insurrecionais, mas sem iludir-se quanto (e preparando-se politicamente para) à inevitabilidade de momentos traumáticos num processo certamente pouco idílico -- e sem qualquer concessão a uma ''lógica dos tempos'' (um de ''reforma'', outro de ''revolução''): trata-se, aqui, de uma processualidade complexa que sintetiza, num só ''tempo'', todas as dimensões do que Marx chamou de ''uma época de revolução social'' [22].
O que é próprio deste fim de século é que aquelas vontade e iniciativa políticas não se mostram condensadas (e as formas organizativas existentes não dão indicações seguras de contribuir para a sua condensação) e que os novos padrões organizativos não emergem nítidos. Entretanto, esta é uma conjuntura -- e, se não podemos ainda ter clareza do seu curso, não temos nenhum motivo para deixar de tratá-la como tal. Imaginar a sua perdurabilidade infinita seria um grave equívoco. Supor que a massa dos trabalhadores, numa época em que os recursos de socialização das ideias e dos projetos e experiências sociais são imensos, será acometida de uma paralisia histórico-política de largo prazo -- eis aí uma suposição que parece desafiar tudo o que se conhece seguramente sobre a história e a sociedade. Mais plausível é outra projeção: a de que experimentamos uma transição histórico-universal onde as formas tradicionais dos programas e das organizações políticas voltadas para a superação da ordem burguesa mostram-se exaustas e na qual a gestação das suas futuras sucessoras ainda não se cumpriu. Fundando-se esta projeção em análises da realidade contemporânea, é possível avançar algumas ideas -- por exemplo:
- o topus privilegiado da superação da ordem burguesa recentra-se nas áreas urbano-industriais de ponta;
- os partidos revolucionários terão que redefinir substantivamente o seu estatuto social, os seus papeis e as suas relações com os movimentos cívicos, sociais e culturais;
- o protagonismo direto dos trabalhadores (com o proletariado amplamente redimensionado, em função das modificações ocorrentes nos processos e na organização do trabalho) haverá de saturar todas as articulações econômico-sociais e políticas etc.
Numa palavra, toda uma cultura política (mais largamente: uma cultura sociocêntrica) deverá ser substituída, configurando-se a prospecção de uma revolução processual cuja estratégia terá que ser resgatada, pela razão teórica, do movimento histórico-social real -- o movimento ao comunismo, uma vez que este ''não é um estado a implantar-se, um ideal que a realidade deve sujeitar-se. Chamamos comunismo ao movimento real que anula e supera o estado de coisas atual. As condições deste movimento arrancam das premissas hoje existentes'' (Marx e Engels, 1978: 37).
Estas premissas, de forma muito mais clara do que à época em que foram escritas tais palavras, estão dadas: é hoje possível erradicar a barbárie, substituindo a ordem burguesa pela ''livre associação de livres produtores'', transitando da ''pré-história'' à ''história humana''.
O fato de, nesta dramática conjuntura de final de século, esta possibilidade não aparecer, nítida, para os sujeitos sociais mais interessados nela, e de a ela não se imbricar já uma estratégia política que a potencie e a atualize -- este fato não depõe contra a sua efetividade. Não seria a primeira vez, aliás, que a consciência social tardaria a apreender (e intervir sobre) tendências históricas operando abaixo da epiderme da sociedade: a velha toupeira de que falava Marx prossegue o seu trabalho, ainda que os seus possíveis beneficiários não o visualizem.
Por tudo isto, a alternativa à barbárie -- o comunismo -- é uma possibilidade histórica concreta. E, por tudo isto, a conjuntura não deixa de recolocar, com mais força que antes, o dilema: o comunismo ou a barbárie.
A este breve escrito polêmico escapa a tematização da ultrapassagem da conjuntura. Mas lhe é indispensável a afirmação de que a aposta na superação da ordem burguesa não é um voto fideísta num futuro escatológico -- é uma projeção calcada em tendências reais. Os homens podem preferir a barbárie, mas é pouco provável que o façam, pela simples (ou muito complexa) razão de que, com esta escolha, ao contrário do poeta, prefeririam nenhum movimento.
Notas
[1] Cf. FGV/Banco Mundial (1990). O mesmo panorama é reiterado na segunda versão do ''Relatório de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/PNUD'' (cf. O Estado de São Paulo, ed. 23 de maio de 1991).
[2] Veja-se um comedido balanço da tão elogiada ''era Thatcher'': ''Nos dois primeiros anos do novo governo, os impostos aumentaram, os salários reais caíram e o PIB caiu em 3,5%. O que é pior, a produção manufatureira caiu em 14% no mesmo período e a taxa de emprego caiu na mesma proporção... Depois da queda inicial, a recuperação foi lenta, principalmente na indústria manufatureira. A produção não alcançou os níveis daquela de 1979 até 1987 e a taxa de empregou continuou a cair. A taxa de desemprego geral cresceu, de cerca de 4% para mais de 10% e continuou em tal nível até 1987-1988, quando começou a declinar lentamente'' (Humprey, in Soares, org., 1990: 216)[3] Uma síntese didática a acessível do que se passa nos Tigres Asiáticos é oferecida por Salinas (1986).
[4] Eis algumas verificações, registradas em publicação destinada ao grande público não-especialista e digna de crédito: ''Estimava-se que o crescimento do produto nacional bruto dos países desenvolvidos [em 1990] em 2,6%, contra 3,4% em 1989''; ''O PNB no hemisfério ocidental... caiu cerca de 0,5% [1990], contra um ganho de 1,6% no ano interior''; ''O crescimento dos investimentos do bloco desenvolvido [caiu] para apenas 3% [1990], contra 5% no ano interior''; ''Em meados de 1990, o índice de desemprego sofria uma elevação em diversos países'' [EUA, França e Grã-Bretanha] (Encyclopedia Britannica, 1991: 308-310).
[5] Considerando-se a antiga Alemanha do Oeste, sabe-se, por exemplo, que, em comparação com a Grã-Bretanha, as demissões e os acidentes de trabalho na indústria apresentam taxas significativamente mais altas (cf. a indicação feita por Humprey, op. e loc. cit., p. 218); agora, com a anexação da ex-Alemanha Democrática, a massa de desempregados alcança a cifra dos 4 milhões de trabalhadores (cf. O Estado de São Paulo, ed. de 11 de maio de 1991). No Japão, a exploração extensiva e intensiva da força de trabalho é de tal magnitude que as mortes por ela provocadas são objeto de uma designação especial -- Koraschi; neste país, cabe notar que ''o sistema dito de emprego vitalício e de antiguidade'' está hoje em crise, com as grandes empresas recorrendo ''cada vez mais a competências vindas do exterior, ao trabalho em tempo parcial'' e sem ''condições de 'garantir um emprego permanente aos seus antigos empregados' '' (Lojkine, 1990: 136).
[6] Catastrofismo de que enferma a brilhante análise de Kurz (1992), ela mesma portadora de sérios equívocos teóricos.
[7] A hipótese é de Mészáros (1989: 171) que, na sequência, agrega: ''...ainda que seja excessivamente otimista sugerir que o modo de produção capitalista já atingiu seu ponto de não-retorno a caminho do colapso''.
[8] Recorde-se: ''quanto menos indivíduo temos, tanto mais individualismo'' (Adorno e Horkheimer, 1969: 56).
[9] Traços que o colonialismo cultural difunde e que fascinam certa intelectualidade embevecida com seu próprio umbigo. A encarnação mais patética desse ethos degradado, na mídia brasileira, é o inveterado mistificador Paulo Francis -- quando eram ainda impactantes as imagens da catástrofe que ceifou a vida de quase 150000 bengalis, o encanecido enfant terrible pontificou: ''Verifico irritado que Les Tournebroches, meu lugar favorito para um almoço decente e a preços razoáveis, fechou. [...] A perda me entristece mais que o povo de Bangladesh vítima do último ciclone'' (O Estado de São Paulo, ed. de 12 de maio de 1991).
[10] É inteiramente supérfluo reiterar aqui que instituições políticas democráticas não são conaturais à ordem burguesa -- já e acacionismo notar que liberalismo não é sinônimo de democracia. A democracia política, expressando possibilidades da ordem burguesa, jamais foi seu resultado ''normal'' -- foi sempre o fruto de conquistas dos trabalhadores.
[11] Uma das formas imediatas da percepção deste fenômeno aparece no estereótipo de que nada é mais igual aos conservadores no governo que os oposicionistas que os substituem. Outro sinal é o preocupante absenteísmo que se registra nos processos eleitorais significativos.
[12] Pouco importa que os casos mais escandalosos dessas práticas corriqueiras -- que não são apanágio de uma ou outra ''cultura política'', posto que não atingem da impoluta realeza belga aos honoráveis dirigentes japoneses --, vindos a público, sejam eventualmente objeto de sanção.
[13] Contradição que Lênin agarrou com perspicácia: antes de anotar que ''o desenvolvimento do capitalismo cria as premissas para que todos possam realmente intervir na direção do Estado'', ele constatou que ''se todos intervêm realmente na direção do Estado, o capitalismo já não poderá sustentar-se'' (Lênin, 1987: 141)
[14] A determinação é de Meszáros (1987: 31), que, neste texto, desenvolve uma arguta reflexão em torno da ''crise estrutural geral das instituições capitalistas de controle social na sua totalidade social''.
[15] Parece-me esclarecedor, a título de exemplo, remeter aos novos métodos de organização do trabalho na ordem burguesa -- se já estão para trás, nas áreas desenvolvidas, os tempos da ''gerência científica'' taylorista, nem por isto os trabalhadores submetidos à gerência ''humanizada'' ou ''com preocupações sociais'', ''participativa'', têm reduzida a sua exploração integral. Cf. entre muitos estudos, os ensaios de C. Dejours, dos quais está vertido ao português A loucura do trabalho (1989).
[16] Esta macroavaliação, frise-se, não pode esbater a diferencialidade que existiu, historicamente, entre propostas e práticas social-democratas e propostas e práticas conservadoras e/ou liberais.
[17] Aqui está um claro exemplo de como a mera existência de um ''campo socialista'', enquanto ameaça factual à ordem burguesa, contribuiu para produzir, no interior do mundo capitalista, modificações tendentes a amenizar as constrições sobre a vida de amplos contingentes populacionais.
[18] A anotação é de Hobsbawm (1989: 39); ele se refere especificamente aos partidos socialistas que ressurgiram nos anos setenta (França, Espanha, Grécia), mas me parece que o apontamento tem validez bem mais ampla.
[19] Estou pensando no quadro das áreas capitalistas desenvolvidas; como já sugeri, o panorama e os cenários do ''Terceiro Mundo'' ainda podem reservar algumas condições de operacionalidade para estes projetos e organizações.
[20] Eis o que afirma Giorgio Napolitano, dirigente do ex-PCI, identificando claramente revolução com insurreição: ''Já pertence ao passado a disputa sobre a via a seguir que por décadas dividiu o movimento operário europeu. Faz tempo que a alternativa revolucionária tornou-se inapresentável'' (Napolitano, 1990: 5; os grifos não são do original).
[21] Não há dúvidas de que o privilégio do modelo insurrecional está inscrito nos textos dos fundadores da tradição marxista -- inscrição inteiramente legítima se se recorda o processo histórico que era a matéria de sua elaboração. Mas este privilégio nunca foi absoluto e sabe-se que o velho Engels o superou, conforme prova o seu célebre prefácio de 1895 à obra de Marx, As lutas de classe na França (1848-1850).
[22] A expressão aparece no prefácio, datado de janeiro de 1859, a Para a crítica da economia política. É interessante notar a utilização de época, que denota um largo decurso temporal; não foi por acaso, aliás, que Gramsci, em junho de 1920, anotou que ''a revolução proletária é um longuíssimo processo histórico'' (apud Coutinho, 1981: 147).
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