domingo, 13 de agosto de 2017

A austeridade fiscal é o melhor meio - ou mesmo chega a ser um meio eficiente - de garantir o equilíbrio fiscal e a estabilidade da dívida pública?


''Cuts'' = cortes, em inglês.


 Não é consensual entre economistas a tese de que o assim chamado ‘’equilíbrio fiscal’’ (o equilíbrio entre a arrecadação T e os gastos primários, não-financeiros G), bem como a estabilidade da dívida pública em níveis baixos como % do PIB, serem coisas boas em si mesmas [1]. Ainda mais controversa, entretanto, é a tese segundo a qual cortes ou o congelamento do gasto primário são meios eficientes de conseguir tais coisas.

 Primeiro, a maior parte dos economistas concorda que pelo menos no chamado ‘’curto prazo’’ (quando a quantidade de pelo menos um dos ‘’fatores de produção’’ não pode ser alterada -- portanto uma categoria de tempo lógico, não tempo histórico, concreto), é a demanda (isto é, os gastos) que determina(m) o nível de produção e emprego, e que os gastos determinam unilateralmente a renda (o que alguém ganha é o que outro alguém gasta). Assim, o gasto público G faz parte da renda nacional Y, o PIB, que também é composto pelo consumo das famílias C, o investimento (privado) I e as ‘’exportações líquidas’’/o saldo da balança comercial -- ou seja, exportações menos importações (X-M). Lembremos que o resultado, balanço ou saldo fiscal/primário é a equação T-G, e que T dependerá das alíquotas de tributação, da fiscalização sobre sonegação etc, e também -- fundamentalmente -- da renda agregada Y. Se Y cai, a receita tributária/arrecadação T tende a cair, de maneira que se pode dizer que os déficits primários (resultados negativos no saldo fiscal) são ‘’endógenos’’ ao ciclo econômico. 

 Outra questão importante é o chamado ‘’efeito (ou mecanismo) multiplicador’’ de gastos:

Cada real gasto pelo governo se transforma em renda para o agente privado que lhe fornece bens e serviços. Com sua renda aumentada pelo valor do gasto público, o agente privado amplia os seus próprios gastos de consumo, de acordo com sua propensão marginal a consumir* aumentando, deste modo, a renda daqueles que atendem à sua demanda de consumo. Também esses últimos consumirão parte da renda que receberam, poupando o restante, transmitindo o impulso de aumento de demanda para os seus próprios fornecedores. Este processo pelo qual a despesa inicial, no caso o gasto público, induz gastos de consumo adicionais é o que Keynes chamou na GT [Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda; ''General Theory...'', no original] de multiplicador.** [2]
  
*Isto é a proporção em que acréscimos de renda se convertem em acréscimos de gastos de consumo. Essa proporção é menor do que a unidade, dado que o consumidor reserva parte de seu acréscimo de renda para uso futuro, ou, em outras palavras, poupa parte de seu acréscimo de renda.
**O multiplicador é apenas o resultado do fato de que o gasto de um indivíduo em bens e serviços aumenta a renda do provedor desses mesmos bens e serviços, colocando este último em posição de reajustar seus próprios gastos de consumo, impactando, assim, a renda de um terceiro agente e assim sucessivamente. Note-se, porém, que o multiplicador não é infinito, porque a cada rodada o gasto passado à frente é menor que o recebido, já que cada agente poupa (isto é, deixa de demandar bens e serviços) parte da renda recebida.

 A depender do efeito multiplicador dos gastos cortados, que por sua vez dependerá do tipo de gasto cortado, da distribuição de renda no país (relacionada ao fato de que os mais pobres tendem a gastar tudo o que ganham e costumam comprar menos produtos importados que os mais ricos) e de outros fatores, o corte pode fazer a renda agregada Y e a arrecadação T caírem mais do que proporcionalmente à redução de G, fazendo o déficit primário (T-G<0) aumentar ainda mais…

...E eis que entramos em outro ponto relevante, a política monetária do governo, na forma da taxa básica de juros (no Brasil, a taxa SELiC). Ela é, ao mesmo tempo, um piso para as demais taxas de juros da economia, um custo de oportunidade para a aplicação de dinheiro e o custo de financiamento de boa parte dos títulos e obrigações a pagar dos quais é composta a dívida pública, definindo a carga de juros nominais J a ser paga por esses títulos (T-G-J é a equação que define o chamado ''saldo nominal'' das contas públicas). Uma taxa de juros relativamente alta desincentiva a tomada de crédito para consumo e investimento e se, mesmo descontada pela inflação (isto é, como ‘’taxa real de juros’’), for maior que a taxa de crescimento anual do PIB, implicará uma dinâmica de crescimento persistente da dívida pública como % do PIB [3].   

 O congelamento do gasto público, portanto (e ainda mais associado a uma taxa de juros injustificadamente alta [4, 5]), não garante nem o equilíbrio fiscal nem a estabilidade da dívida pública. Garante, isso sim, a precarização dos bens e serviços públicos [6, 7, 8] e a manutenção de uma alta e trágica (para os trabalhadores) taxa de desemprego. 

 O que podemos, então, propor como método para reerguer a arrecadação e pôr a economia nacional no caminho do equilíbrio fiscal e da estabilidade da dívida pública? Sem maiores detalhes, podemos afirmar com segurança o seguinte: retomar e intensificar os investimentos em infraestrutura (que além de aumentarem diretamente a renda e o emprego, trazem externalidades positivas para a produtividade do setor privado), reduzir a taxa básica de juros a níveis aceitáveis [9] e fazer mudanças na tributação para direcionar a carga tributária para os mais ricos, estabelecendo impostos sobre grandes fortunas e reestabelecendo o imposto sobre lucros e dividendos, extinto aqui em 1995 e presente na absoluta maioria dos países [10]. Um aumento do gasto público que tivesse como contrapartida estas últimas medidas teria efeito expansivo ‘’líquido’’ sobre o PIB, na medida em que as rendas tributadas ou não seriam gastas, ou seriam usadas na compra de produtos importados. 




REFERÊNCIAS

[1] Ver o capítulo 4, ‘’Dispêndio público, déficits e moeda’’, em WRAY, L. Randall. Trabalho e moeda hoje: a chave para o pleno emprego e a estabilidade dos preços. Editora UFRJ, 2003. Ver também https://goo.gl/YprtyW
[2] DE CARVALHO, Fernando JJ Cardim. Equilíbrio fiscal e política econômica keynesiana. Análise econômica, v. 26, n. 50, 2008. Disponível em https://goo.gl/XX8o4z
[3] Ver Item 1.1, seção 1: BASTOS, Carlos Pinkusfeld; RODRIGUES, Roberto; LARA, Fernando Maccari. As finanças públicas e o impacto fiscal entre 2003 e 2012: 10 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Ensaios FEE, v. 36, n. 3, p. 675, 2015. Disponível em https://goo.gl/o2j6ER
[4] https://goo.gl/P9AKGt
[5] https://goo.gl/3QLHAV
[6] Veja o artigo de Pedro Rossi e Esther Dweck, ‘’Impactos do Novo Regime Fiscal na saúde e educação’’, disponível em https://goo.gl/BWZvhM
[7] Para a relevância da provisão de bens e serviços públicos no processo de desenvolvimento de um país, veja o artigo de Carlos Pinkusfeld Monteiro Bastos e Bruno Oliveira, ‘’Desenvolvimento Econômico e Provisão de Bens e Serviços Públicos: Aspectos Teóricos deste Debate’’, disponível em https://goo.gl/Ce9WCL
[8] O congelamento dos gastos públicos já está afetando tragicamente a pesquisa científica no país: https://goo.gl/B6yYXQ
[9] https://goo.gl/bYmfST
[10] https://goo.gl/PJpsnQ