segunda-feira, 31 de julho de 2017

Nós podemos controlar as nossas vidas?





''[O] capital e sua autoexpansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da produção; a produção existe para o capital, ao invés de os meios de produção serem apenas meios de acelerar continuamente o desenvolvimento do processo vital para a sociedade dos produtores. (...) Não se produz meios de subsistência demais em relação à população existente. Pelo contrário, o que se produz é muito pouco para satisfazer, de maneira adequada e humana, a massa da população. (...) Não se produz riqueza demais. Mas a riqueza que se produz periodicamente é demais nas formas antagônicas do capitalismo.''
Karl Marx



 Segundo dados oficiais, o primeiro trimestre deste ano terminou com o desemprego aberto -- isto é, excluindo todos aqueles que desistiram de procurar empregos e/ou estão no ''desemprego disfarçado'', como atividades informais de todo tipo -- no triste número de 14,2 milhões de pessoas, com a taxa de 13,7% [1]. Entre os jovens, a taxa sobre para mais de 25% [2, 3]. No país todo, mas com mais destaque no Rio de Janeiro, servidores públicos sofrem com salários parcelados, aposentados têm seus benefícios atrasados e serviços públicos de importância tal como o da UERJ definham totalmente [4]. Tudo isso, se não nos deixa chocados, deveria. Pois trata-se de uma absurda subutilização de vastos recursos humanos e materiais disponíveis -- recursos que poderiam estar servindo às necessidades de várias pessoas. E no caso do desemprego, temos um fenômeno particularmente cruel, pois que, para a maioria das pessoas, desemprego involuntário é sinônimo de pobreza, bem como sentimento auto-depreciativo: o desempregado se vê como um fardo.

 Além disso, vejamos a questão do tempo. Quanto tempo livre nós temos, por dia? Por semana? Para a maioria de nós, a maior parte do dia é tempo gasto com estudos, com o trabalho, com ida e volta do trabalho ou da escola/faculdade, com arrumação da casa etc.; em suma, a maior parte do tempo é tempo gasto com necessidades. O tempo livre, tempo que pode ser dedicado ao ócio ou a uma atividade livremente escolhida, é escasso -- e não raro não pode ser usado naquilo que efetivamente se gostaria de fazer, porque não temos recursos (no geral, dinheiro -- ou algo que se poderia obter com dinheiro) para isso.

 E falando em trabalho, você está satisfeito com o seu emprego (caso você tenha um)? É o que realmente gostaria de fazer da sua vida? As condições são boas? Te permitem ter uma boa vida? Você acha que ele ocupa o tempo necessário da sua vida para as suas necessidades ou mais do que isso? Vou arriscar que a resposta para as 4 primeiras perguntas é não, e chutar a segunda opção para a última pergunta. Pois esse é provavelmente o caso da maior parte da população brasileira, senão mundial.

 E o que tudo isso revela -- ou pelo menos sugere? A mim me parece óbvio: nós simplesmente nos vemos sem controle sobre as nossas vidas. Não falo de ''nós'' somente no sentido de ''a soma de todos os indivíduos singulares e suas respectivas vidas'', mas mesmo enquanto sociedade; a nossa sociedade perdeu o controle sobre seus rumos. Por que isso acontece? Por que não usamos toda os recursos produtivos da sociedade para satisfazer as necessidades (em sentido amplo) de todos e ao mesmo tempo aplicar o máximo de tecnologia e dividir ao máximo o trabalho entre as pessoas, maximizando o tempo livre de todos?

 Karl Marx e Friedrich Engels, os pais do socialismo científico -- o marxismo --, tentaram dar uma resposta. Eles notaram que uma severa transformação social começou a acontecer alguns séculos atrás e a mudar radicalmente todo o mundo: tratava-se da irrupção do modo de produção capitalista. Marx e Engels perceberam -- aliás como outros -- que, a fim de realizar vendas lucrativas, nobres e comerciantes estavam provocando um processo de expropriação das terras e instrumentos de inúmeros camponeses e nativos de terras ''descobertas'', escravização de negros africanos e de alguns nativos de outras regiões etc; isto porque, com os (altos) lucros das vendas que realizavam podiam comprar mais mercadorias; mercadorias estas que só eram/são o que eram/são porque, na ausência de uma regulação social direta da produção, os produtores -- formalmente autônomos, independentes -- produzem para a troca, para o ''mercado'' (e não para satisfazer necessidades). E quanto mais lucravam, mais aqueles nobres e comerciantes desejavam fazer os homens e mulheres que  agora precisavam vender sua força de trabalho por um salário para sobreviver trabalhar e produzir para eles.

 Convertidos em propriedade privada, as terras, os instrumentos de trabalho e as matérias-primas converteram-se assim em meio de extrair trabalho excedente dos outros -- que se viam sem outros meios de vida que não a venda contínua, permanente, de sua própria capacidade de trabalhar, sua força de trabalho (não raro, seja em termos absolutos ou relativos, por um péssimo salário). Uma transformação que não aconteceu sem resistência, aliás: foram 300 anos de luta camponesa na Europa contra o absolutismo do Estado e contra a ''submissão'' destes camponeses ao ''mercado de trabalho'', isto é, sua transformação em proletários que gastam seus dias a produzir riqueza alheia.

 O próprio Estado moderno (burguês) revelou-se como sendo, fundamentalmente, o guardião da propriedade privada -- reprimindo brutalmente as ameaças a ela.

 Assim, como diz a citação que abre esse mini-artigo, ao invés de os meios de produção -- matérias-primas, máquinas e instrumentos -- servirem à satisfação das necessidades de bem-estar material e tempo livre da vasta maioria da humanidade, esses mesmos meios de produção, bem como a força de trabalho humana, estão submetidos a um objetivo que é uma espécie de movimento autotélico: a ininterrupta transformação de dinheiro em mais dinheiro, num processo que inclusive não garante nem a plena utilização da capacidade produtiva instalada nem o pleno emprego de toda a mão-de-obra disponível. Se possível sem que seja preciso ''se sujar'' com a produção, mas, nos casos em que isso não é possível, acumulando a partir da cristalização de parte do trabalho dos trabalhadores em produto que não fica com eles, mas sim com o patrão, e que é a fonte de seus lucros através da venda; o chamado produto excedente.

 Uma tal situação, diziam-nos Marx e Engels, significa concentração de renda e riqueza nas mãos de uns poucos, falta de tempo livre (e excesso de trabalho) para as maiorias, pobreza para uma boa parte da população e miséria em alguns casos, que podem ser muitos, incontáveis. Precisamente essa terrível realidade em que estamos vivendo. Uma realidade frente à qual nós nos sentimos impotentes, fracos, frustrados e inseguros.

 Mas os 2 não se dedicaram somente a descrever essa situação, essas tendências da vida das sociedades ''modernas'', sociedades burguesas. Ao invés disso, e até mesmo em conexão com o seu trabalho de analisar e descrever a realidade, os 2 propuseram uma solução: expropriar os expropriadores, ou seja: transformar as terras, máquinas, instrumentos de trabalho de propriedade privada em ''propriedade'' coletiva, social, de todo o povo (ou todos os povos). E, através do consequente controle social/coletivo dos meios de produção, realizar um planejamento social da produção, visando a satisfação das necessidades de saúde, alimentação, moradia, vestimenta, educação, lazer, ócio etc. de todas as pessoas, utilizando-se para isso de toda a ciência e a tecnologia disponíveis.

 Propuseram, pois, um mundo em que as pessoas não tivessem de se preocupar com fome, desemprego, falta de um teto ou não-capacidade de pagar por atendimento médico, cada uma delas contribuindo com seu próprio trabalho (a tornar-se cada vez mais desnecessário com a adoção de novas e mais produtivas tecnologias) para a produção social da riqueza, e apontaram o caminho para isso. O caminho para que nós, não apenas como indivíduos, mas como sociedade -- e sobretudo como classe social que vive entre a exploração e quase completa a ausência de meios e subsistência --, (re)tomarmos o controle de nossas vidas.

 Saibamos acolher as lições deles.



[1] http://g1.globo.com/economia/noticia/desemprego-fica-em-137-no-1-trimestre-de-2017.ghtml
[2] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/02/1861571-um-quarto-dos-jovens-de-18-a-24-anos-estao-desempregados.shtml
[3] http://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2017/06/desemprego-entre-jovens-e-de-287.html
[4] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/uerj-suspende-ano-letivo-de-2017-por-tempo-indeterminado.ghtml

domingo, 30 de julho de 2017

Saída da crise? É a economia do déficit, estúpido!


Por Roberto Requião


Lamartine, em frente ao Hotel de Ville, em Paris, rejeita a bandeira vermelha. Pintura de Henri Félix Emmanuel Philippoteaux.
A feitio de prólogo, cito Alexis de Tocqueville, comentando a Revolução de 1848, na França:

 “Os líderes de partidos parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, a maioria por falta de qualquer virtude”.

Quem discorda que se repita hoje, o que foi dito tanto tempo atrás? Será que nosso destino será tão feliz quanto a França de 1848?

AUSTERIDADE?

Falarei sobre semântica. Não sobre hermenêutica. Sobre semântica. Especificamente, a origem e o significado das palavras. Mais do significado do que propriamente da origem. Isso porque as palavras, como é bem sabido, podem ter mais de um significado, o que às vezes tem consequências políticas consideráveis, sobretudo quando marteladas continuamente pela mídia em sentido dúbio.

Falarei inicialmente sobre a palavra “austeridade”.

Não há quem não tenha uma noção clara do significado imediato dessa palavra. Ela está associada, por exemplo, à atitude de um pai ou de uma mãe de família de comportamento extremamente comedido, alheio a qualquer tipo de excessos ou de vícios na vida privada ou pública.

Alguém que seja classificado de “austero” merece imediatamente a confiança e o respeito da comunidade onde vive.

Na economia neoliberal, entretanto, a palavra “austeridade” tem um significado inteiramente diferente.

Significa, em geral, uma espécie de código para forçar os governos a cortar gastos públicos e atacar o Estado de Bem-estar Social.

Por exemplo, quando nos apresentaram a emenda do congelamento dos gastos públicos por 20 anos, ela nos foi justificada como uma medida de “austeridade” fiscal “necessária” para o equilíbrio das finanças públicas.

Sendo o equilíbrio das finanças públicas presumivelmente essencial para a retomada do crescimento.

Acho que, passado o debate acalorado que tivemos, ninguém realmente acredito nisso!

É em nome da “austeridade” que a maior parte da União Europeia está sendo estrangulada por uma política econômica suicida e impedida de retomar a expansão econômica.

Um estudo publicado pela VoxEu, a que já me referi aqui, mostra o fracasso da política dita de “austeridade” para a maioria dos países europeus. Este é também o nosso caso.

O famigerado Plano Levy, em má hora adotada no início do segundo mandato da presidente Dilma, foi justificado como uma necessária medida de “austeridade”. E assim também tem sido, de forma obsessiva, sob o comando de Temer e Henrique Meirelles.

“Austeridade” no dicionário neoliberal oculto significa, especificamente, cortar de forma drástica os gastos públicos independentemente das necessidades da economia e da sociedade, cortar salários, cortar empregos, cortar investimentos, quebrar negócios e fazendas, promover o desemprego ou admitir como natural o aumento do desemprego.

A pergunta óbvia é: uma política de “austeridade” nesses termos ajuda a recuperação da economia?

A resposta é um sonoro não, como podemos inferir da própria realidade.

DÉFICIT?

A palavra “austeridade” está associada à condenação radical do “déficit” público pelos neoliberais.

Aqui também a palavra “déficit” tem dois significados, um de origem latina, indicando “falta” de alguma coisa, e outra exprimindo excessos supostamente irresponsáveis de gastos públicos sobre as receitas correntes do Estado.

Nesse sentido, “déficit” é uma espécie de contrário de “austeridade”: um governo austero, nessa definição, não faz “déficit”.

E um governo que não faz déficit real, mesmo que faça grandes déficits financeiros como o atual governo Temer, seria um “bom governo” para o bancos e para a imprensa.

DÍVIDA PÚBLICA?

Uma terceira palavra, esta composta, “dívida pública”, se associa aos conceitos de duplo significado que são em geral manipulados pela mídia, ou que a mídia difunde a partir de outros manipuladores, sobretudo da área financeira.

Assim como “déficit”, “dívida pública” tem conotação negativa, a partir da falsa ideia de que sempre representa ameaça de calote aos seus detentores, ou significando um peso a ser suportado por gerações futuras.

É uma falácia.

Esquece-se que dívida pública é uma instituição que nasceu com o capitalismo e faz parte intrinsecamente da própria estrutura do capital.

Os capitalistas precisam de instrumentos financeiros para acumular seus lucros, antes de fazer novos investimentos, e o instrumento para isso é a dívida pública.

Uma vez que, a médio e longo prazo, os instrumentos financeiros privados não são suficientemente seguros e confiáveis.

Quando protestam contra o aumento da dívida púbica fora da órbita estrita do capital financeiro– isto é, quando o aumento da dívida decorre de investimentos e gastos reais em favor do povo – eles protestam contra o aumento da dívida através da mídia controlada.

O que lhes incomoda de fato não a dívida, que compram com entusiasmo, mas os gastos em favor do povo. Não se verá protesto dos capitalistas quando a dívida pública aumenta por conta de juros estratosféricos.

RESPONSABILIDADE?

Finalmente, temos um conceito tão poderoso em sua eficácia manipuladora que se tornou nome de lei. É a chamada “Lei de Responsabilidade Fiscal”.

Quem, em sã consciência, poderia ser contra a responsabilidade fiscal, entendida como adequação dos gastos públicos às necessidades objetivas da população e à capacidade de financiamento do Estado, incluindo um endividamento bem ancorado?

Mas, por trás desse conceito, o objetivo explícito é reduzir os gastos dos entes federativos, sobretudo os associados a serviços públicos, para ampliar o espaço de exploração para o setor privado.

A lei limita os gastos de pessoal e custeio dos Estados e municípios a 60% da receita corrente líquida, presumindo que seria uma irresponsabilidade fiscal ultrapassar esse limite.

Contudo, Estados e Municípios, diferentemente da União, são principalmente prestadores de serviços públicos nas áreas de educação, saúde e segurança.

Setores que necessariamente mobilizam grande contingente de funcionários, e não necessariamente pesados investimentos.

Além disso, a demanda de pessoal depende do próprio investimento: o custeio anual de um hospital, por exemplo, corresponde em geral ao custo de um hospital novo.

Se o município construir um hospital, com sua margem de investimento de 40%, não poderá colocá-lo em funcionamento porque a contratação de pessoal ultrapassaria o limite de 60%.

A chamada lei de responsabilidade fiscal leva a construir hospitais e escolas sem permitir que haja recursos para os médicos e professores.

A ineficácia da Lei de Responsabilidade Fiscal não se revela em seu descumprimento.

Revela-se no fato de que, anos depois de sua edição, ela não conseguiu dar qualquer contribuição ao equilíbrio fiscal de Estados e Municípios, que entraram numa crise fiscal sem paralelo por força sobretudo da recessão e de fatores como a crise da Petrobrás.

E por causa da irresponsabilidade fiscal do Governo federal em baixar e manter programas fiscais recessivos, através da contração de investimentos e das taxas de juros básicas extorsivas.

Examinado cada uma dessas palavras ou conceitos, podemos observar as razões mais profundas de sua manipulação pela mídia.

CICLOS ECONÔMICOS E POLÍTICA ANTI-CÍCLICA?

Vejamos a manipulação da palavra “déficit”.

A economia capitalista não segue um curso linear. Ora cresce, ora se estabiliza ou se contrai em ciclos sucessivos.

No caso de uma contração, a razão é geralmente uma queda da demanda, do investimento, do gasto público ou do superávit com o exterior, neste caso quando se trata de uma economia super-exportadora. O setor privado, com vendas deprimidas, não tem como reverter por si mesmo o curso da queda da demanda.

Nessa situação, a recuperação depende essencialmente do gasto público: o investimento privado, como disse, não cresce porque não há aumento de demanda, e o superávit externo, exceto, como também mencionado, em economias estruturalmente exportadoras, não pode dar conta da retomada.

É o gasto público deficitário, dito autônomo porque não depende de outras variáveis, e sim exclusivamente da vontade mandatória do governo, que pode desencadear um processo de aumento de demanda. E por consequência produzirá um aumento do investimento, do emprego e, num círculo virtuoso, novamente da demanda e assim por diante, levando à retomada do PIB e da própria receita tributária, que cancelará o déficit, que já não é mais necessário.

Insista-se que o investimento público só terá efeito no crescimento se for feito a partir de um aumento da dívida pública.

Na recessão, só o “déficit” público real gera crescimento. Caso se tente fazê-lo a partir de tributação adicional, o efeito sobre o crescimento será nulo, pois o que se retira da economia sob a forma de impostos lhe é devolvido, nas mesmas proporções, como gasto público não deficitário.

Ao longo da retomada da economia, com o crescimento do PIB, o déficit deve ser zerado ou mesmo transformado num pequeno superávit, já que terá ocorrido aumento da receita.

Não estou apresentando nenhum delírio: é o que se chama política anticíclica, usada no mundo inteiro.

OS INIMIGOS DA RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA

Foi a base para o programa do New Deal com que o presidente Roosevelt acabou com a Grande Depressão nos Estados Unidos nos anos 30. Também foi a âncora das economias de bem-estar social no pós-guerra na Europa, levando-a à fronteira da civilização, até a reversão atual, pós 2008, ditada pelas políticas de “austeridade”.

A economia dos tecnocratas e dos neoliberais não explica porque há tanta resistência das classes dominantes e das elites dirigentes aos déficits temporários para financiar o aumento da demanda.

Sim, porque uma política que não propõe aumento de tributos a curto prazo e ao mesmo tempo oferece ao setor privado a base de demanda para o crescimento de seus investimentos e lucros deveria ser aplaudida por todos.

Todavia, há uma questão ideológica por baixo também desse comportamento: um aumento dos gastos públicos deficitários significa reforçar ou ampliar pelo menos parte do Estado para atender necessidades básicas da população.

Isso não atende os interesses da banca, os maiores interessados em ganhar dinheiro com a política de “austeridade”, com a resistência ao “déficit” e ao aumento da dívida pública.

LULA REDUZIU A DÍVIDA PÚBLICA INOPORTUNAMENTE

Considero um dos grandes equívocos do Governo Lula a política de redução da dívida pública antes da consolidação de uma política de crescimento econômico sustentável.

Foi uma capitulação ao pensamento neoliberal, num momento em que não havia nenhuma necessidade disso por conta da confortável situação em reservas cambiais e do desemprego ainda elevado.

UM ANO DE TEMER

No atual Governo a situação é bem pior: abusa-se do endividamento e do aumento da dívida pública apenas para favorecer o capital financeiro através de taxas escorchantes de juros. Já não se financia nada com o déficit, em termos reais.

O aumento da dívida pública no governo Temer é dinheiro embolsado diretamente por financistas externos e internos, sem conexão com o financiamento das necessidades da população.

Disso nada fala a grande imprensa.

E quando fala, por pressão da realidade, dos juros altos, não estabelece relação com as decisões anti-nacionais e classistas do Banco Central ao fixa-los nas alturas.

Sequer fala que, em termos reais – isto é, descontada a inflação – estamos com juros básicos mais altos do que no Governo Dilma, para alegria dos banqueiros e financistas.

Dos juros para empréstimos ao povo só se fala em nota de pé de página, já que são simplesmente escandalosos, da ordem de 300 a 400% ao ano. Disso, porém, não vou falar agora. Hoje é o dia das palavras. Mais à frente falarei de números, sobretudo os números da economia Meirelles-Temer.

Como epígrafe, novamente Tocqueville:


Os líderes de partido parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, e a maioria por falta de qualquer virtude.



Originalmente publicado em Revista Opera

Dívida pública: mitos e realidade, por José Luís Fevereiro

Dívida pública como % do PIB ao redor do mundo. Dados de 2011




Dívida Pública: mitos e realidade


O problema da dívida não é a sua existência, mas a quem ela serve. Enquanto for remunerada a taxas de juros despropositadas ela serve à elite rentista

José Luis Fevereiro*, em 28/01/2016

Sobre a origem

A dívida pública brasileira é estimada em torno de R$3 trilhões (conforme a metodologia usada pode ser mais ou menos). Isso corresponde a cerca de 65% do PIB, no caso da dívida bruta, e a cerca de 49% do PIB na dívida líquida (descontadas as reservas). Em termos comparativos com outros países, não é uma dívida grande. O Japão deve mais de 230% do PIB, os EUA quase 100%. No entanto, desde 1994 até hoje, ela cresceu de cerca de R$50 bilhões para os valores atuais. No início dos anos 90, com o plano Collor, a dívida brasileira havia sido quase toda "esterilizada". O bloqueio dos ativos financeiros, a não incorporação da inflação de março de 90 (de quase 80%) e a posterior correção desses ativos em valores inferiores à inflação real corresponderam a um calote efetivo na dívida, que foi reduzida a valores muito baixos.

Reza a lenda, difundida pela mídia conservadora e pelos economistas liberais, que o crescimento da divida é resultado da "gastança" dos governos, culpa da Constituição de 88 que foi muito "generosa" com os direitos sociais, culpa dos aposentados - e por aí vai. Na verdade, com exceção de alguns anos do governo FHC e dos dois últimos anos do governo Dilma, em nenhum momento os gastos primários do governo (excluindo juros) foram maiores que a arrecadação de tributos e contribuições sociais. O chamado déficit primário foi exceção nos últimos 21 anos em relação aos superávits primários.

Na verdade, a história começa com o Plano Real e a sua concepção embutida de trocar inflação por dívida. Ao ancorar informalmente o real ao dólar e abrir o país às importações, com o objetivo de impedir remarcações de preço pelos produtores nacionais, o governo precisava de entrada de dólares para sustentar o câmbio e cobrir os déficits comerciais e de serviços nas contas externas. A forma de obtê-los foi o programa de privatizações e a subida alucinada da taxa de juros sobre a dívida pública, atraindo toda a sorte de capital especulativo. Taxas de juros reais (descontada a inflação) de mais de 10% ao ano eram normais nos anos 90.

Lula assume em 2003 com uma dívida pública já inflada para R$630 bilhões, decorrente exatamente dessas taxas de juros extravagantes. A política de juros elevados é mantida por Lula com Henrique Meirelles na presidência do Banco Central. A alegação era de que juros altos são essenciais numa economia com tendências inflacionárias crônicas. Dito assim, pode parecer que a inflação é algo no DNA do povo brasileiro ou decorrente da água que bebemos. Na verdade, duas são as razões estruturais para o Brasil ter uma taxa de inflação tão resiliente na faixa media dos 5 a 6%.

A primeira é que como economia em transição há um ajuste de preços relativos em curso que os países ricos já fizeram faz tempo. A elevação em termos reais do salário mínimo, bem como a melhoria dos padrões educacionais, encareceram o custo da mão de obra de baixa qualificação, elevando o preço dos serviços. A estabilidade da moeda e a abertura do crédito imobiliário (praticamente inexistente até então), mesmo que caro, encareceram o preço dos imóveis. Estes preços relativos os países ricos já corrigiram faz tempo. Por esta razão é impensável que possamos ter inflação Suíça, na faixa de 1 a 2% ao ano.

O segundo fator é a persistência de indexações indesejadas na economia brasileira. Diz-se entre economistas que uma das vertentes da luta de classes é o esforço em desindexar a renda do outro lado mantendo a sua perfeitamente indexada. Assim, o discurso conservador aponta a necessidade de desindexar o piso da previdência e agora até o próprio salário mínimo da inflação, possibilitando o "ajuste" em tempos de crise. Mas o Brasil é dos poucos países onde um contrato de aluguel de 30 meses vem com cláusula de reajuste anual, onde as concessões de serviços públicos têm cláusulas de reajuste anual indexadas a índices inflacionários, onde portanto a renda do patrimônio e do capital segue perfeitamente indexada sem contestações, reprogramando para a frente a inflação passada.

Neste cenário a política de juros altos, muito pouco eficaz no controle da inflação, nada mais é que um mecanismo de transferência de renda do conjunto da sociedade para os beneficiários do rentismo.

Dívida Pública: para que serve e para o que deveria servir

Na maior parte dos países a dívida pública é algo positivo. O Estado gastar mais do que arrecada para realizar investimentos em infraestrutura, educação, universalização da rede de saúde, benefícios que atingirão gerações, diluindo estes custos no tempo, sempre foi um instrumento positivo para acelerar o desenvolvimento. O maior desenvolvimento daí decorrente aumentará no momento seguinte a própria arrecadação tributária, aumentando a capacidade de gasto do estado. Obviamente que estamos falando de países que remuneram a sua divida com taxas próximas à inflação e em alguns casos até abaixo. Inacreditáveis taxas de 0,5% ao ano são frequentes no Japão, por exemplo. Não imagino que fosse possível taxas dessa natureza no Brasil porque nossa moeda não é considerada reserva de valor ao contrário do Dólar, do Yen e do Euro, mas taxas próximas à média da inflação (portanto taxa zero em termos reais) seriam perfeitamente possíveis.

Para além disso, dívida pública é fundamental como mecanismo de política econômica para regular a liquidez da economia induzindo maior ou menor crescimento. Se, por uma intervenção celestial, a dívida fosse extinta, teria que ser recriada.

O problema, portanto, da dívida brasileira não é o seu tamanho nem a sua existência. É a quem ela serve. Enquanto for remunerada a taxas de juros despropositadas, obrigando o estado a gerar superávits primários para a sustentar, ela serve à elite rentista. Retomar o controle público sobre a dívida, transformando-a em fator de financiamento do desenvolvimento econômico e social do Brasil, é o programa que a esquerda brasileira deve assumir como central.

Quanto dos nossos impostos vai anualmente para pagar a dívida

Em 2014 e 2015, zero. A União teve déficit primário e, portanto, não sobrou da arrecadação de impostos e contribuições nem um centavo para a dívida, fazendo com que toda ela fosse rolada com a emissão de novos títulos com vencimento a futuro. Mais do que isso, parte dos gastos primários do governo, o déficit primário, também foi financiado com emissão de dívida. Essa, aliás, é a razão da grita da mídia conservadora e dos defensores do rentismo, porque esta taxa de juros só é sustentável se a União obtiver robustos superávits primários, como aconteceu de 2003 a 2013.

Circula pelas redes sociais um gráfico em forma de pizza atribuído à Auditoria Cidadã da Divida (ACD) que mais confunde que explica. Essa "pizza" mostra a estrutura de gastos do Orçamento Geral da União e compara despropositadamente gastos com educação, saúde e investimentos, todos vinculados ao orçamento fiscal, com os gastos de amortizações e juros da dívida. Se tivesse, junto à mesma "pizza", algo que mostrasse a origem dos recursos do Orçamento Geral da União, veríamos que de 2003 a 2013 a maior parte dos recursos pagos na rubrica da dívida teriam vindo de captações de novos empréstimos com lançamento de novos títulos da dívida, restando uma parte menor paga com os superávits primários. Em 2014 e 2015, veríamos que os recursos captados com o lançamento de novos títulos da dívida superaram os valores pagos relativos à divida vincenda. A diferença é que de 2003 a 2013, o Brasil realizou superávits primários e, em 2014 e 2015, teve déficits cobertos com nova dívida.

Para os leigos em economia o tal gráfico passa a noção absurdamente errada de que, se não tivesse dívida, teríamos mais 45% do orçamento para gastar. No cenário de hoje, com déficit fiscal primário em 2014, 2015 e certamente em 2016, a decorrência de uma moratória ou suspensão de pagamentos da dívida seria a União ter que apertar mais ainda o orçamento por não ter como financiar o déficit. Paradoxalmente, significaria mais arroxo.

Dois apontamentos para uma política econômica de esquerda

Esclarecida a inviabilidade das soluções mitológicas como "suspenda-se o pagamento da dívida e a profecia Bíblica de que o mel jorrará para todos se cumprirá", é necessário pensar um programa de esquerda capaz de enfrentar a realidade.

O primeiro ponto obviamente será mudar o enfoque do enfrentamento da inflação. Este deverá passar pela desindexação de contratos, quebrando-se a reprogramação inercial da inflação passada para o futuro, preservando-se apenas a indexação do salário mínimo e da previdência, baixando a taxa de juros a patamares próximos à inflação, o que significa taxa real próxima a zero. Neste cenário torna-se sustentável ter déficits primários continuados (os EUA têm déficits primários ininterruptos desde 1960), aumentando significativamente a capacidade de gasto do Estado. Trata-se aqui de fazer da dívida uma aliada do desenvolvimento

O segundo ponto passa por uma reforma tributária efetiva que aumente a taxação do patrimônio e da renda, reduzindo os impostos indiretos que oneram o consumo e a produção. Aumentar a progressividade das alíquotas do Imposto de Renda, voltar a tributar distribuição de lucros, isento desde os anos 90, criar um imposto federal sobre heranças (a melhor e mais eficiente forma de tributar grandes fortunas).

Não pretendo nem tenho capacidade de esgotar este assunto, mas acho fundamental que a esquerda faça um debate sério sobre economia e aponte saídas reais fora da mitologia que com frequência a cerca - e que no máximo serve para fazer propaganda de má qualidade.

*Economista e dirigente nacional do PSOL

Os custos sociais da austeridade fiscal





 Embora muitos dos nossos colegas na esquerda (não menos na esquerda comunista) escrevam sobre ''austeridade'' -- e coisas intelectualmente rigorosas, inclusive --, é comum que se o faça sem oferecer uma definição precisa do termo, pois que este já é costumeiramente ligado ao corte de gastos, redução dos serviços públicos etc. 

 Pretendo trabalhar aqui com uma definição do termo e, a partir desta definição, determinar o que está no título deste post, isto é, o que seriam os custos sociais da austeridade fiscal. Além disso, como marxista, pretendo fazer uma análise que parta do ponto de vista da classe trabalhadora. Então, prossigamos: ''austeridade fiscal'', nos termos deste trabalho, deve ser entendida como as medidas que visam atingir o ''equilíbrio fiscal'' (igualdade entre despesas primárias e arrecadação tributária) ou mesmo a obtenção de superávits primários através da elevação da carga tributária -- seja pela criação de novos impostos, seja pelo aumento do valor cobrado a partir dos já existentes -- ou da redução dos gastos primários do governo, de maneira a reduzir a renda disponível (ou pelo menos o acesso real a bens e serviços) daqueles que necessitam dos serviços públicos graças ao seu nível de renda, o que engloba no mínimo a maior parte dos membros da classe trabalhadora (e, consequentemente, da população).  

 Da própria definição que estamos utilizando, já se revelam alguns dos problemas, mas vamos expô-los de maneira clara nas linhas abaixo.

1º) a austeridade fiscal tende a aumentar o desemprego ou, pelo menos, a impedir que o pleno emprego seja alcançado 

 A boa teoria econômica aponta a inexistência de um mecanismo automático que leve à plena utilização dos recursos produtivos numa economia capitalista. Isto já fora exposto por Marx no seu conceito de exército industrial de reserva [1], e, se é controverso se neste autor se acha (e/ou se se pode derivar) ou não uma teoria precisa do nível de utilização da capacidade instalada e emprego, uma tal teoria é-nos oferecida pelo princípio da demanda efetiva de Keynes e Kalecki [2, 3], ao qual pode-se juntar as reflexões de Ruy Mauro Marini [4]. Uma conclusão necessária dessas contribuições é que empresário algum contratará trabalhadores se não esperar que as mercadorias produzidas por estes sejam vendidas, ou seja, se não achar que haja demanda com capacidade de pagamento por essas mercadorias a preços que ofereçam pelo menos a taxa média de lucro (''preços de produção'') -- o que chamamos de demanda efetiva. (Note: é o gasto agregado, na forma de compras dos produtos, que vai determinar o nível de produção e emprego.) O corte de gastos primários pelo governo ou o aumento da cobrança de impostos num valor que seria gasto na compra de produtos nacionais e que não é revertido em aumento do gasto primário e nem compensado por aumento do gasto privado ocasiona na redução do nível de produção (e consequentemente do nível de utilização da capacidade instalada), com uma enorme tendência a causar aumento do desemprego. Caso compensado pelo aumento do gasto privado, pode ainda assim estar impedindo o ''atingimento'' do pleno emprego e/ou contribuindo para o aumento do endividamento das famílias e empresas e o comprometimento da renda das primeiras com o serviço de dívidas no futuro.

 É preciso destacar o fato de que, na medida em que o desemprego aumenta, pioram as condições de barganha dos trabalhadores e, consequentemente, mais fácil fica para os empregadores impor os salários e as condições de trabalho que quiserem para os trabalhadores -- e salários menores, bem como intensidade e jornada de trabalho maiores, além de não-pagamento de direitos trabalhistas, descaso com a segurança e a salubridade do local de trabalho etc são todos elementos que reduzem os custos médios de produção dos capitalistas, e consequentemente aumentam suas taxas de lucro.

2º) a austeridade fiscal pode impedir a realização de gastos de alta importância, relacionados ao desenvolvimento socioeconômico do país 

  O não-aumento ou mesmo corte dos gastos primários do governo pode impedir a realização de gastos necessários em saúde e educação públicas, infraestrutura, ciência e tecnologia, entre outras áreas. Os 2 primeiros são vitais à qualidade de vida de todos aqueles que não podem pagar pelos respectivos serviços privados sem passar por quaisquer privações mais consideráveis, condição na qual está a maioria da população brasileira: pobre e (ou ''porque'') pertencente à classe trabalhadora; os 3 últimos são fundamentais para o processo de sofisticação da estrutura produtiva do país, e mesmo para a determinação da capacidade de aumento da renda e riqueza no longo prazo, na medida em que países sem moeda conversível como o nosso necessitam substituir importações por produção nacional e/ou aumentar exportações a fim de fazer com que ''sobrem'' divisas (reservas de moedas) estrangeiras em quantidade suficiente para que possamos importar os bens e serviços vitais ao nosso desenvolvimento e vida e que não podemos (ou pelo menos ainda não podemos) produzir aqui, evitando crises no balanço de pagamentos -- tal como já esclareceram vários economistas [5].

3º) a austeridade fiscal pode nem mesmo funcionar para o objetivo para o qual os governos oficialmente a utilizam 

 Keynes e Kalecki -- o segundo mais que o primeiro -- enfatizaram o fato de que os gastos determinam unilateralmente a renda (não confundir com reservas de poder de compra, como o crédito) na sociedade capitalista [6]. Também notaram a existência de um ''efeito multiplicador'' de gastos, isto é: o fato de que um dado acréscimo de gastos num valor n na economia faz com que a renda de algum agente aumente em n; este agente, por sua vez, gastará uma parte maior ou menor de n (ao qual provavelmente serão descontados alguns impostos), a depender de sua ''propensão marginal a consumir'' (quanto ele irá gastar a mais a partir do aumento de sua renda em 1 unidade monetária -- R$1,00 em nosso caso); estes gastos converter-se-ão na renda de outros agentes e assim seguirá o processo.  Desta maneira, um acréscimo de gastos de algum agente econômico no valor n acaba por se converter num aumento da renda nacional em yn, sendo y um coeficiente maior que 0, que pode ser fracionário e menor que 1, inclusive [7]. Por outro lado, o multiplicador também pode funcionar para redução de gastos: se algum agente deixe de gastar n, isso pode gerar uma redução total de gastos maior ou menor que n. (Observe, em conexão com o que foi mencionado no item anterior, que na medida em que os gastos aumentam, aumenta a produção nacional e, consequentemente, o nível de emprego.)

 Assim, quando o governo corta gastos e/ou aumenta impostos, isso pode acabar gerando uma redução total de gastos que faz a renda agregada Y cair mais que proporcionalmente, fazendo a arrecadação tributária do governo cair e este ter um déficit primário ao invés de um (supostamente) desejado equilíbrio fiscal ou mesmo superávit; e se a taxa de juros reais (ou seja, a taxa de juros descontada pela inflação) dos títulos da dívida pública for maior que a taxa de crescimento do país, isto pode acabar gerando um aumento da dívida pública como % do Produto Interno Bruto. Aliás, o governo pode ser obrigado a emitir títulos da dívida pública mesmo se obtiver superávits primários, podendo ter aumentos da dívida pública em relação ao PIB; este será o caso sempre que os superávits forem menores que a carga de juros a ser paga pelo setor público [8]

 Esse aumento pode ser usado por um lobby de empresários e rentistas como argumento: haveria uma suposta necessidade de realização de ''reformas estruturais'' ou mesmo de novos cortes de gastos primários e aumento de impostos (evidentemente, impostos que incidam -- ao menos principalmente -- sobre a classe trabalhadora e os mais pobres, que não raro se verão forçados a trabalhar mais para aumentar sua renda e atingir de novo um nível básico necessário; o que aliás também pode acontecer com a redução da quantidade e qualidade dos serviços públicos) para que houvesse um aumento do crescimento econômico -- a despeito de ter sido esse ajuste fiscal, provavelmente em combinação com outros elementos (como o nível da taxa de juros), o causador da elevação da relação dívida/PIB e da queda deste último [9].

Observação 1: não defini austeridade fiscal como a mera tentativa de realizar ajustes fiscais que causassem equilíbrio fiscal ou superávits primários porque isto pode ser feito através de uma política indutora de crescimento econômico, que faz crescer a renda agregada Y e, tendencialmente, a arrecadação. O chamado teorema de Haavelmo [10] nos mostra inclusive que é possível realizar uma elevação contínua dos gastos que leve ao aumento de Y com equilíbrio fiscal; neste caso, observar-se-á uma elevação da carga tributária. Também não defini como meras políticas de cortes de gastos primários, porque essas podem ser (parte de) uma tentativa de frear o gasto agregado (consumo + investimento privado + gasto público + exportações) antes do nível que supere a capacidade produtiva instalada (causando inflação de demanda) e/ou seja compatível com o equilíbrio externo (ver [5]).

Observação 2: também espero que não se entenda que considero o ''equilíbrio fiscal'' ou a manutenção da dívida -- seja em números absolutos, seja como % do PIB -- em valores ''baixos'' com um fim em si mesmo; considero, tal como Abba Lerner, que as políticas fiscal e monetária do governo numa economia capitalista tem de estar subordinada à busca do pleno emprego, da estabilidade de preços e do equilíbrio externo -- no que devem ser ajudadas pela política cambial, industrial etc. Como Lerner, também, bem como outros, não acho que um governo que possua soberania monetária -- emita sua própria moeda -- possa tecnicamente ser obrigado a fazer moratória de uma dívida denominada nessa mesma moeda (sobre isso, ver o artigo linkado em [9]).


Notas/referências 

[1] https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap23/03.htm
[2] http://www.ie.ufrj.br/intranet/ie/userintranet/hpp/arquivos/090320170036_Keynes_TeoriaGeraldoempregodojuroedamoeda.pdf
[3] http://www.projetos.unijui.edu.br/economia/files/Kaleki.pdf
[4] http://www.marini-escritos.unam.mx/060_crisis_cambio_tecnico.html#1
[5] http://www.excedente.org/artigos/insercao-externa-exportacoes-e-crescimento-no-brasil/
[6] http://www.excedente.org/blog/macroeconomia-a-falacia-do-pai-de-familia-e-a-pec-241/
[7] Ver o item 3 em http://seer.ufrgs.br/index.php/AnaliseEconomica/article/view/10906/6484
[8] Aliás, várias análises têm concluído ser esta a causa da rápida elevação da dívida pública a partir do Plano Real, em 1994. Veja, por exemplo, aqui, aqui e aqui
[9] https://drive.google.com/file/d/0B_-AnAt-7778dGtNRXRWNlQyT2s/view?usp=sharing (Ver a seção 4, ou pelo menos o item 4.4)
[10] Ver item 3.1 do artigo acima linkado. 

domingo, 23 de julho de 2017

A teoria clássica do nível de salários





 Segue um trecho do texto ''Marxismo e teoria econômica hoje'', escrito por Pierangelo Garegnani e Fabio Petri, que trata da interpretação desses economistas -- da escola inspirada no trabalho de Piero Sraffa -- sobre a determinação do nível de salários naqueles teóricos que entendem como pertencentes à ''escola clássica'' e adeptos/contribuintes originais da ''abordagem do excedente''. 



<<Comecemos pelo salário real. À primeira vista, Quesnay, Smith, Ricardo, Marx parecem ter tido em comum a ideia de um salário que gravita em torno de um nível de subsistência. Mas, quando se examina a questão com maior atenção, observa-se que a “subsistência” dos trabalhadores era entendida como dependente de condições históricas e sociais não menos do que de condições fisiológicas; Ricardo, por exemplo, aí incluía “aqueles comodidades que o hábito transforma em necessidades absolutas”.  Aqui parece possível distinguir entre Quesnay e Ricardo, por uma parte, que aderiam à noção de um salário determinado pelo nível de subsistência (por efeito, em Ricardo, do princípio malthusiano da população),  e, por outra, Adam Smith e Marx, cuja posição a respeito era muito mais aberta.
Adam Smith, antecipando em vários aspectos a análise de Marx, reconheceu explicitamente que a principal razão que explicava a tendência dos salários no sentido do nível de subsistência era a maior força contratual dos masters (os capitalistas) em relação aos operários, derivada seja do apoio estatal, seja da maior facilidade dos masters (os capitalistas) em relação aos operários, derivada seja do apoio estatal, seja da maior facilidade dos masters para unirem-se (na maioria dos casos, tacitamente), seja de sua maior capacidade de resistir por longo tempo em caso de lutas, greves, etc. De acordo com este ponto de vista bastante mais flexível que o de Ricardo, ele afirmou que um rápido crescimento econômico podia levar a um aumento dos salários, criando uma escassez de trabalhadores que induziria os masters a romper seu tácito acordo de não aumentar os salários; ao passo que admitiu poderem os salários cair inclusive aquém do nível da subsistência num contexto de declínio da sociedade. 
Marx desenvolveu tais indicações de Smith numa teoria cíclica do nível dos salários, o qual termina por depender da interação entre salário efetivo e volume do “exército industrial de reserva” dos desempregados. Os aumentos de salário real acima da subsistência obtidos durante um período de rápida acumulação e desemprego diminuído seriam anulados em razão das inovações técnicas e da acumulação mais lenta, que, causadas pelo aumento do salário, reconstituiriam afinal o “exército industrial de reserva”.
“Demonstra-se assim que estes autores tiveram em comum não tanto a ideia de um salário determinado pelo nível de subsistência quanto a concepção mais geral de um salário regulado por forças econômicas e sociais, que permitiam determina-lo antes e independentemente das outras quotas de produção. Esta separação entre determinação dos salários e determinação das outras quotas do produto é evidente onde o salário se explica exclusivamente em termos de subsistência habitual, como em Quesnay ou Ricardo. Mas a mesma separação surge com clareza também em Marx e em Smith, que admitiram uma maior influência das condições econômicas sobre o salário. E é esta determinação separada do salário que explica o seu tratamento como uma grandeza que constitui um dado (uma variável independente) para a determinação das outras quotas do produto social.”>> 

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Desemprego, o perigo que ameaça nosso futuro (e como poderemos evitá-lo)


Foto de Joel Silva/Folhapress


 Segundo dados oficiais, o primeiro trimestre deste ano terminou com o desemprego aberto -- isto é, excluindo todos aqueles que desistiram de procurar empregos e/ou estão no ''desemprego disfarçado'', como atividades informais de todo tipo -- no triste número de 14,2 milhões de pessoas, com a taxa de 13,7% [1]. Entre os jovens, a taxa sobre para mais de 25% [2, 3]. 

 São, sem dúvidas, números lamentáveis para nós, estudantes. Mais que lamentáveis: perigosos. Porque significam que, quando nos graduarmos, teremos enorme dificuldade de encontrar emprego, dado que há tantos outros disputando as minguantes vagas (e precisando delas tanto quanto nós). E desemprego significa pobreza, ausência de renda, escassez. Situação que beneficia apenas os empregadores, que, frente à maior oferta de mão-de-obra, podem impor piores condições de trabalho e salários menores.

 Embora a questão da determinação do nível de emprego (e consequentemente de desemprego) seja um mistério para muitos, a ciência econômica -- ou, como a chamavam os autores clássicos, Economia Política -- já a esclareceu, bem como a crítica da economia política de Marx esclareceu a própria origem histórica do emprego: os violentos processos de expropriação de terras, instrumentos e direitos que garantiam a subsistência de camponeses, índios etc sem que estes precisassem vender sua força de trabalho por um salário [4, 5].

 Pois bem: o volume de emprego -- excluindo-se os empregos públicos -- depende especificamente de três variáveis: a) a massa ou volume de investimentos; b) a relação de proporção em que esse investimento se divide entre força de trabalho (mão de obra), de um lado, e maquinário e instrumentos, de outro (que definirá o nível de produtividade do trabalho); e c) a intensidade e o tamanho da jornada de trabalho. O volume de emprego varia diretamente com a massa/volume de investimento e negativamente com o aumento da participação das máquinas e instrumentos no investimento total e com a intensidade e a jornada de trabalho. O próprio volume de investimento dependerá de quantas mercadorias os empresários esperam vender pelo menos a preços que garantam o lucro médio, correspondente à taxa geral, média, de lucro.

 A Economia Política também nos diz que é o total de gastos numa economia que determina o nível efetivo de renda e ao redor do qual oscila a produção, sendo as decisões de gasto as únicas decisões autônomas que os agentes econômicos -- famílias, empresas e o Estado -- possuem, e que o gasto total equivale à renda total [6].

 Dado que:

1) esse gasto total é composto por [C + I + G + X], isto é, consumo (das famílias), investimento (privado), gasto público e exportações;
2) que o ''investimento'' (privado), como chamamos a ''formação bruta de capital fixo'' -- isto é, a compra de máquinas e equipamentos para a ampliação da capacidade produtiva --, é basicamente induzido pelo crescimento dos outros componentes (que gera nos empresários a expectativa de aumento persistente das vendas);
3) que boa parte do consumo é induzido pela renda salarial,

 podemos concluir que o nível de renda, de produção e de emprego será basicamente ''levado à frente'' pelo consumo autônomo (isto é, financiado a crédito ou alguma riqueza que sirva de poder de compra), o gasto público, as exportações e os gastos empresariais não-diretamente ligados ao crescimento da capacidade produtiva, como os destinados a pesquisas tecnológicas. Desta maneira, para que o país volte a crescer e gerar empregos, é preciso que esses elementos voltem a crescer.

 Para isso, entretanto, é preciso a) que a taxa básica de juros do país, a SELiC, caia [7], barateando o crédito e incentivando a tomada do mesmo para consumo e investimento, e b) que a Emenda Constitucional 95 -- que congela as despesas primárias do governo federal por 20 anos -- seja anulada.

 Mas, como comentamos anteriormente, a economia não é uma questão meramente técnica, mas -- sobretudo -- política, isto é, marcada por interesses e conflitos de interesses. No momento, diversos grupos poderosos estão se beneficiando da situação de alto desemprego, bem como se beneficiarão da reforma trabalhista que prioriza o negociado sobre o legislado [8] e se beneficiam de grandes jornadas e uma alta intensidade de trabalho em geral -- contra as quais os trabalhadores em geral só podem resistir se houver baixo desemprego.

 O próprio governo, agora, continua piorando as coisas, subindo impostos (que reduzem a renda privada disponível para as famílias gastarem) e reduzindo seus gastos [9]. Combinação que só levará à piora da recessão e da situação do emprego.

 Não podemos, portanto, nos iludirmos quanto a isso: se não quisermos que nós, e/ou tantos outros, enfrentemos ou continuemos enfrentando a terrível situação do desemprego, é preciso lutar para mudar a política econômica (tornando-a pró-crescimento) e para reduzir a jornada e a intensidade de trabalho. E isso significa que precisaremos nos somar às pessoas e organizações que estão lutando contra o atual governo brasileiro, que, lei após lei, reforma após reforma, não para de tornar obscuro e cruel o futuro que a vasta maioria dos brasileiros -- que dependem da venda de suas forças de trabalho para sobreviverem -- terá se não o impedirmos.

Referências

[1] http://g1.globo.com/economia/noticia/desemprego-fica-em-137-no-1-trimestre-de-2017.ghtml
[2] http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/02/1861571-um-quarto-dos-jovens-de-18-a-24-anos-estao-desempregados.shtml
[3] http://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2017/06/desemprego-entre-jovens-e-de-287.html
[4] https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/cap24/index.htm
[5] Para uma análise de como essas expropriações continuam ocorrendo ao longo da história do capitalismo, criando mão de obra disponível para a acumulação de capital, ver o texto a seguir: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo145artigo1.pdf
[6] http://www.excedente.org/blog/macroeconomia-a-falacia-do-pai-de-familia-e-a-pec-241/
[7] https://bianchini.blog/2016/12/21/a-selic-pode-e-deve-cair/
[8] Cf. https://drive.google.com/file/d/0B43bL8QlMzZCNkxNLUZTTDBYOW8/view
[9] http://g1.globo.com/economia/noticia/governo-sobe-tributo-sobre-combustiveis.ghtml

Mises, Marx, produtores e consumidores


Não vou sujar meu blog com outra foto do Mises, desculpa aí


 Meu amigo Ciro Domingos teve, durante a nada prazerosa tarefa de ler ''As Seis Lições'' do panfletista do liberalismo austríaco Ludwig von Mises, a divertida surpresa de achar lá a seguinte pérola, que trata da suposta identidade entre produtores e consumidores, a qual faria com que os próprios trabalhadores determinassem o nível de seus salários, através de seus hábitos de consumo:

"No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas diferentes das que ganham os salários: são essas MESMAS pessoas que os manipulam. Não é a companhia cinematográfica de Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga é o público que compra o ingresso nas bilheterias dos cinemas. E NÃO é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para a luta. A partir da distinção entre empregado e empregador, traça-se, no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na vida real. Nesta, empregador e empregado são, em última análise, a mesma pessoa." 

 Trago, para fins de comparação, o seguinte ''trechinho'' de Marx, retirado do capítulo XVII, item 12, de suas Teorias da Mais-Valia:
''Enquanto o fabricante de tecido (morim) reproduz e acumula, seus trabalhadores compram parte de seu produto, nele despendem parte de seu salário. Já que ele produz, têm os trabalhadores meios de comprar porção do produto do fabricante, dão-lhe em parte os meios de vendê-lo. O trabalhador só pode comprar -- constituir demanda -- quando se trata de mercadorias que entram no consumo individual; é que não é ele mesmo quem explora seu trabalho, e assim não possui as condições de efetuá-lo -- os meios e os materiais de trabalho. Isso já bloqueia portanto a maior parte dos produtores (os próprios trabalhadores, onde se implanta a produção capitalista), na função de consumidores, de compradores: não adquirem matérias-primas nem meios de trabalho; comprar apenas meios de subsistência (mercadorias que entram de imediato no consumo individual). Por isso, nada mais ridículo que falar de identidade entre produtores e consumidores, uma vez que, para grande número de ramos -- os que participam da produção estão, em regra, absolutamente excluídos da compra de seus próprios produtos. Nunca são de imediato consumidores ou compradores dessa grande parte de seus próprios produtos, embora paguem parte do valor deles nos artigos de consumo que compram. Aí se evidencia também a ambiguidade da palavra consumidor e a falsidade de identificá-la com a palavra comprador. Industrialmente são a rigor os trabalhadores que consomem a maquinaria e a matéria-prima, gastam-na no processo de trabalho. Mas não a gastam para si. Por isso não são compradores delas. Para eles não são valores de uso, mercadorias, e sim condições objetivas de um processo do qual eles mesmos são as condições subjetivas.
 Pode-se, porém, dizer que seu empregador os representa no ato de comprar meios e materiais de trabalho. Contudo, no mercado, representa-os em condições diferentes daquela em que se representariam a si mesmos. Tem de vender um volume de mercadorias que configura a mais-valia, trabalho não-pago. Os trabalhadores só teriam de vender volume de mercadorias que reproduzisse o valor adiantado à produção -- o valor dos meios de trabalho, do material de trabalho e do salário. Por isso, o empregador precisa de um mercado maior que o admissível para eles. Além disso, depende dele -- e não deles -- avaliar se as condições de mercado são bastante favoráveis para começar a reprodução.
 Assim, mesmo quando não se estorva o processo de reprodução, são eles os produtores sem ser consumidores de todos os artigos que não têm de ser objeto de consumo individual e sim industrial.
 Para negar as crises, nada portanto mais absurdo que afirmar que consumidores (compradores) e produtores (vendedores) são idênticos na produção capitalista. Estão por completo separados. Só no decurso do processo de reprodução pode patentear-se essa identidade no tocante a 3000 produtores, isto é, no tocante ao capitalista. Ao revés. Também é falso afirmar que os consumidores são produtores. O dono da terra (a renda fundiária) não produz, contudo consome. O mesmo se dá com todos os intermediários financeiros.
(...) Se portanto se reduz a relação apenas àquela entre consumidores e produtores, esquece-se que o assalariado que produz e o capitalista que produz se distinguem por serem duas espécies bem distintas de produtores, e estamos excluindo os consumidores que nada absolutamente produzem. De novo se nega a oposição, abstraindo-se de uma contradição realmente existente na produção. A mera relação entre assalariado e capitalista compreende:
(1) que a maioria dos produtores (os trabalhadores) não são consumidores (compradores) de parte bem grande de seu produto, a saber, os meios de trabalho e os materiais de trabalho; (2) que a maioria dos produtores, os trabalhadores, só podem consumir equivalente a seu produto enquanto produzam mais que esse equivalente -- o valor excedente ou o produto excedente. Têm de ser sempre produtores excedentes, de produzir acima de suas necessidades, para poderem ser consumidores ou compradores dentro dos limites delas. 
Para essa classe de produtores, portanto, a unidade entre produção e consumo se revela falsa logo à primeira vista.'' 

 E olha que nem falamos de determinação do nível de salários!

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Marx e a categoria de ''capital humano''




''A capacidade de trabalho foi denominada capital do trabalhador na medida em que ela é o fundo que o trabalhador não exaure em uma troca isolada, mas pode repeti-la continuamente durante sua vida como trabalhador. De acordo com essa concepção, seria capital tudo que fosse um fundo de processos reiterados de um mesmo sujeito; assim, p. ex.: a substância dos olhos seria o capital da visão etc. Semelhantes lugares-comuns beletristas, que classificam tudo sob tudo por meio de qualquer analogia, podem até parecer inteligentes ao serem ditos pela primeira vez, e tanto mais quanto mais identificam as coisas mais disparatadas. Repetidos, sobretudo com autocomplacência, como máximas de valor científico, são pura e simplesmente tolos. Bons apenas para paroleiros letrados e charlatães, que lambuzam todas as ciências com suas imundícies meladas. Que o trabalho é sempre nova fonte da troca para o trabalhador enquanto ele está capacitado para o trabalho – mais precisamente, não da troca pura e simples, mas da troca com o capital – está implícito na própria determinação conceitual de que o trabalhador só vende a disposição temporária sobre sua capacidade de trabalho, que ele sempre pode, portanto, reiniciar a troca tão logo tenha ingerido a quantidade suficiente de matéria para poder reproduzir de novo sua expressão vital. Em lugar de dirigir seu assombro para tal ponto – e debitar ao trabalhador, como um grande mérito do capital, o fato de que ele enfim vive, que pode, portanto, repetir diariamente determinados processos vitais tão logo tenha descansado e se alimentado –, os sicofantas da economia burguesa, que douram as coisas, deveriam antes ter dirigido sua atenção para o fato de que o trabalhador, após o trabalho repetido de forma contínua, somente dispõe de seu trabalho vivo, imediato, para trocar. A própria repetição é, de fato, só aparente. O que ele troca com o capital é toda a sua capacidade de trabalho, que ele despende, digamos, em vinte anos. Em lugar de pagá-la de uma só vez, o capital a paga em doses, digamos, semanalmente, à medida que o trabalhador a coloca à sua disposição. Portanto, isso não altera em absoluto a natureza da coisa e menos ainda autoriza a conclusão de que, porque o trabalhador precisa dormir entre 10 e 12 horas para ser capaz de repetir seu trabalho e sua troca com o capital, o trabalho constitui seu capital. Por conseguinte, o que é assim compreendido como capital é, de fato, o limite, a interrupção de seu trabalho, o fato de que ele não é um perpetuum mobile. A luta pela Lei das Dez Horas etc. é a prova de que o capitalista nada mais deseja senão que o trabalhador dilapide suas doses de força vital tanto quanto possível sem interrupção.''

- Karl Marx, Esboços da crítica da economia política: III. Capítulo do capital: Primeira seção: o processo de produção do capital. Capítulo do dinheiro como capital: 2) O valor de troca emergindo da circulação, pressupondo-se à circulação, conservando-se e multiplicando-se nela pela mediação do trabalho