Por Roberto Requião
Lamartine, em frente ao Hotel de Ville, em Paris, rejeita a bandeira vermelha. Pintura de Henri Félix Emmanuel Philippoteaux. |
A feitio de prólogo, cito Alexis de Tocqueville, comentando a Revolução de 1848, na França:
“Os líderes de partidos parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, a maioria por falta de qualquer virtude”.
Quem discorda que se repita hoje, o que foi dito tanto tempo atrás? Será que nosso destino será tão feliz quanto a França de 1848?
AUSTERIDADE?
Falarei sobre semântica. Não sobre hermenêutica. Sobre semântica. Especificamente, a origem e o significado das palavras. Mais do significado do que propriamente da origem. Isso porque as palavras, como é bem sabido, podem ter mais de um significado, o que às vezes tem consequências políticas consideráveis, sobretudo quando marteladas continuamente pela mídia em sentido dúbio.
Falarei inicialmente sobre a palavra “austeridade”.
Não há quem não tenha uma noção clara do significado imediato dessa palavra. Ela está associada, por exemplo, à atitude de um pai ou de uma mãe de família de comportamento extremamente comedido, alheio a qualquer tipo de excessos ou de vícios na vida privada ou pública.
Alguém que seja classificado de “austero” merece imediatamente a confiança e o respeito da comunidade onde vive.
Na economia neoliberal, entretanto, a palavra “austeridade” tem um significado inteiramente diferente.
Significa, em geral, uma espécie de código para forçar os governos a cortar gastos públicos e atacar o Estado de Bem-estar Social.
Por exemplo, quando nos apresentaram a emenda do congelamento dos gastos públicos por 20 anos, ela nos foi justificada como uma medida de “austeridade” fiscal “necessária” para o equilíbrio das finanças públicas.
Sendo o equilíbrio das finanças públicas presumivelmente essencial para a retomada do crescimento.
Acho que, passado o debate acalorado que tivemos, ninguém realmente acredito nisso!
É em nome da “austeridade” que a maior parte da União Europeia está sendo estrangulada por uma política econômica suicida e impedida de retomar a expansão econômica.
Um estudo publicado pela VoxEu, a que já me referi aqui, mostra o fracasso da política dita de “austeridade” para a maioria dos países europeus. Este é também o nosso caso.
O famigerado Plano Levy, em má hora adotada no início do segundo mandato da presidente Dilma, foi justificado como uma necessária medida de “austeridade”. E assim também tem sido, de forma obsessiva, sob o comando de Temer e Henrique Meirelles.
“Austeridade” no dicionário neoliberal oculto significa, especificamente, cortar de forma drástica os gastos públicos independentemente das necessidades da economia e da sociedade, cortar salários, cortar empregos, cortar investimentos, quebrar negócios e fazendas, promover o desemprego ou admitir como natural o aumento do desemprego.
A pergunta óbvia é: uma política de “austeridade” nesses termos ajuda a recuperação da economia?
A resposta é um sonoro não, como podemos inferir da própria realidade.
DÉFICIT?
A palavra “austeridade” está associada à condenação radical do “déficit” público pelos neoliberais.
Aqui também a palavra “déficit” tem dois significados, um de origem latina, indicando “falta” de alguma coisa, e outra exprimindo excessos supostamente irresponsáveis de gastos públicos sobre as receitas correntes do Estado.
Nesse sentido, “déficit” é uma espécie de contrário de “austeridade”: um governo austero, nessa definição, não faz “déficit”.
E um governo que não faz déficit real, mesmo que faça grandes déficits financeiros como o atual governo Temer, seria um “bom governo” para o bancos e para a imprensa.
DÍVIDA PÚBLICA?
Uma terceira palavra, esta composta, “dívida pública”, se associa aos conceitos de duplo significado que são em geral manipulados pela mídia, ou que a mídia difunde a partir de outros manipuladores, sobretudo da área financeira.
Assim como “déficit”, “dívida pública” tem conotação negativa, a partir da falsa ideia de que sempre representa ameaça de calote aos seus detentores, ou significando um peso a ser suportado por gerações futuras.
É uma falácia.
Esquece-se que dívida pública é uma instituição que nasceu com o capitalismo e faz parte intrinsecamente da própria estrutura do capital.
Os capitalistas precisam de instrumentos financeiros para acumular seus lucros, antes de fazer novos investimentos, e o instrumento para isso é a dívida pública.
Uma vez que, a médio e longo prazo, os instrumentos financeiros privados não são suficientemente seguros e confiáveis.
Quando protestam contra o aumento da dívida púbica fora da órbita estrita do capital financeiro– isto é, quando o aumento da dívida decorre de investimentos e gastos reais em favor do povo – eles protestam contra o aumento da dívida através da mídia controlada.
O que lhes incomoda de fato não a dívida, que compram com entusiasmo, mas os gastos em favor do povo. Não se verá protesto dos capitalistas quando a dívida pública aumenta por conta de juros estratosféricos.
RESPONSABILIDADE?
Finalmente, temos um conceito tão poderoso em sua eficácia manipuladora que se tornou nome de lei. É a chamada “Lei de Responsabilidade Fiscal”.
Quem, em sã consciência, poderia ser contra a responsabilidade fiscal, entendida como adequação dos gastos públicos às necessidades objetivas da população e à capacidade de financiamento do Estado, incluindo um endividamento bem ancorado?
Mas, por trás desse conceito, o objetivo explícito é reduzir os gastos dos entes federativos, sobretudo os associados a serviços públicos, para ampliar o espaço de exploração para o setor privado.
A lei limita os gastos de pessoal e custeio dos Estados e municípios a 60% da receita corrente líquida, presumindo que seria uma irresponsabilidade fiscal ultrapassar esse limite.
Contudo, Estados e Municípios, diferentemente da União, são principalmente prestadores de serviços públicos nas áreas de educação, saúde e segurança.
Setores que necessariamente mobilizam grande contingente de funcionários, e não necessariamente pesados investimentos.
Além disso, a demanda de pessoal depende do próprio investimento: o custeio anual de um hospital, por exemplo, corresponde em geral ao custo de um hospital novo.
Se o município construir um hospital, com sua margem de investimento de 40%, não poderá colocá-lo em funcionamento porque a contratação de pessoal ultrapassaria o limite de 60%.
A chamada lei de responsabilidade fiscal leva a construir hospitais e escolas sem permitir que haja recursos para os médicos e professores.
A ineficácia da Lei de Responsabilidade Fiscal não se revela em seu descumprimento.
Revela-se no fato de que, anos depois de sua edição, ela não conseguiu dar qualquer contribuição ao equilíbrio fiscal de Estados e Municípios, que entraram numa crise fiscal sem paralelo por força sobretudo da recessão e de fatores como a crise da Petrobrás.
E por causa da irresponsabilidade fiscal do Governo federal em baixar e manter programas fiscais recessivos, através da contração de investimentos e das taxas de juros básicas extorsivas.
Examinado cada uma dessas palavras ou conceitos, podemos observar as razões mais profundas de sua manipulação pela mídia.
CICLOS ECONÔMICOS E POLÍTICA ANTI-CÍCLICA?
Vejamos a manipulação da palavra “déficit”.
A economia capitalista não segue um curso linear. Ora cresce, ora se estabiliza ou se contrai em ciclos sucessivos.
No caso de uma contração, a razão é geralmente uma queda da demanda, do investimento, do gasto público ou do superávit com o exterior, neste caso quando se trata de uma economia super-exportadora. O setor privado, com vendas deprimidas, não tem como reverter por si mesmo o curso da queda da demanda.
Nessa situação, a recuperação depende essencialmente do gasto público: o investimento privado, como disse, não cresce porque não há aumento de demanda, e o superávit externo, exceto, como também mencionado, em economias estruturalmente exportadoras, não pode dar conta da retomada.
É o gasto público deficitário, dito autônomo porque não depende de outras variáveis, e sim exclusivamente da vontade mandatória do governo, que pode desencadear um processo de aumento de demanda. E por consequência produzirá um aumento do investimento, do emprego e, num círculo virtuoso, novamente da demanda e assim por diante, levando à retomada do PIB e da própria receita tributária, que cancelará o déficit, que já não é mais necessário.
Insista-se que o investimento público só terá efeito no crescimento se for feito a partir de um aumento da dívida pública.
Na recessão, só o “déficit” público real gera crescimento. Caso se tente fazê-lo a partir de tributação adicional, o efeito sobre o crescimento será nulo, pois o que se retira da economia sob a forma de impostos lhe é devolvido, nas mesmas proporções, como gasto público não deficitário.
Ao longo da retomada da economia, com o crescimento do PIB, o déficit deve ser zerado ou mesmo transformado num pequeno superávit, já que terá ocorrido aumento da receita.
Não estou apresentando nenhum delírio: é o que se chama política anticíclica, usada no mundo inteiro.
OS INIMIGOS DA RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA
Foi a base para o programa do New Deal com que o presidente Roosevelt acabou com a Grande Depressão nos Estados Unidos nos anos 30. Também foi a âncora das economias de bem-estar social no pós-guerra na Europa, levando-a à fronteira da civilização, até a reversão atual, pós 2008, ditada pelas políticas de “austeridade”.
A economia dos tecnocratas e dos neoliberais não explica porque há tanta resistência das classes dominantes e das elites dirigentes aos déficits temporários para financiar o aumento da demanda.
Sim, porque uma política que não propõe aumento de tributos a curto prazo e ao mesmo tempo oferece ao setor privado a base de demanda para o crescimento de seus investimentos e lucros deveria ser aplaudida por todos.
Todavia, há uma questão ideológica por baixo também desse comportamento: um aumento dos gastos públicos deficitários significa reforçar ou ampliar pelo menos parte do Estado para atender necessidades básicas da população.
Isso não atende os interesses da banca, os maiores interessados em ganhar dinheiro com a política de “austeridade”, com a resistência ao “déficit” e ao aumento da dívida pública.
LULA REDUZIU A DÍVIDA PÚBLICA INOPORTUNAMENTE
Considero um dos grandes equívocos do Governo Lula a política de redução da dívida pública antes da consolidação de uma política de crescimento econômico sustentável.
Foi uma capitulação ao pensamento neoliberal, num momento em que não havia nenhuma necessidade disso por conta da confortável situação em reservas cambiais e do desemprego ainda elevado.
UM ANO DE TEMER
No atual Governo a situação é bem pior: abusa-se do endividamento e do aumento da dívida pública apenas para favorecer o capital financeiro através de taxas escorchantes de juros. Já não se financia nada com o déficit, em termos reais.
O aumento da dívida pública no governo Temer é dinheiro embolsado diretamente por financistas externos e internos, sem conexão com o financiamento das necessidades da população.
Disso nada fala a grande imprensa.
E quando fala, por pressão da realidade, dos juros altos, não estabelece relação com as decisões anti-nacionais e classistas do Banco Central ao fixa-los nas alturas.
Sequer fala que, em termos reais – isto é, descontada a inflação – estamos com juros básicos mais altos do que no Governo Dilma, para alegria dos banqueiros e financistas.
Dos juros para empréstimos ao povo só se fala em nota de pé de página, já que são simplesmente escandalosos, da ordem de 300 a 400% ao ano. Disso, porém, não vou falar agora. Hoje é o dia das palavras. Mais à frente falarei de números, sobretudo os números da economia Meirelles-Temer.
Como epígrafe, novamente Tocqueville:
Os líderes de partido parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, e a maioria por falta de qualquer virtude.
Originalmente publicado em Revista Opera
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