sexta-feira, 21 de julho de 2017

Mises, Marx, produtores e consumidores


Não vou sujar meu blog com outra foto do Mises, desculpa aí


 Meu amigo Ciro Domingos teve, durante a nada prazerosa tarefa de ler ''As Seis Lições'' do panfletista do liberalismo austríaco Ludwig von Mises, a divertida surpresa de achar lá a seguinte pérola, que trata da suposta identidade entre produtores e consumidores, a qual faria com que os próprios trabalhadores determinassem o nível de seus salários, através de seus hábitos de consumo:

"No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas diferentes das que ganham os salários: são essas MESMAS pessoas que os manipulam. Não é a companhia cinematográfica de Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga é o público que compra o ingresso nas bilheterias dos cinemas. E NÃO é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para a luta. A partir da distinção entre empregado e empregador, traça-se, no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na vida real. Nesta, empregador e empregado são, em última análise, a mesma pessoa." 

 Trago, para fins de comparação, o seguinte ''trechinho'' de Marx, retirado do capítulo XVII, item 12, de suas Teorias da Mais-Valia:
''Enquanto o fabricante de tecido (morim) reproduz e acumula, seus trabalhadores compram parte de seu produto, nele despendem parte de seu salário. Já que ele produz, têm os trabalhadores meios de comprar porção do produto do fabricante, dão-lhe em parte os meios de vendê-lo. O trabalhador só pode comprar -- constituir demanda -- quando se trata de mercadorias que entram no consumo individual; é que não é ele mesmo quem explora seu trabalho, e assim não possui as condições de efetuá-lo -- os meios e os materiais de trabalho. Isso já bloqueia portanto a maior parte dos produtores (os próprios trabalhadores, onde se implanta a produção capitalista), na função de consumidores, de compradores: não adquirem matérias-primas nem meios de trabalho; comprar apenas meios de subsistência (mercadorias que entram de imediato no consumo individual). Por isso, nada mais ridículo que falar de identidade entre produtores e consumidores, uma vez que, para grande número de ramos -- os que participam da produção estão, em regra, absolutamente excluídos da compra de seus próprios produtos. Nunca são de imediato consumidores ou compradores dessa grande parte de seus próprios produtos, embora paguem parte do valor deles nos artigos de consumo que compram. Aí se evidencia também a ambiguidade da palavra consumidor e a falsidade de identificá-la com a palavra comprador. Industrialmente são a rigor os trabalhadores que consomem a maquinaria e a matéria-prima, gastam-na no processo de trabalho. Mas não a gastam para si. Por isso não são compradores delas. Para eles não são valores de uso, mercadorias, e sim condições objetivas de um processo do qual eles mesmos são as condições subjetivas.
 Pode-se, porém, dizer que seu empregador os representa no ato de comprar meios e materiais de trabalho. Contudo, no mercado, representa-os em condições diferentes daquela em que se representariam a si mesmos. Tem de vender um volume de mercadorias que configura a mais-valia, trabalho não-pago. Os trabalhadores só teriam de vender volume de mercadorias que reproduzisse o valor adiantado à produção -- o valor dos meios de trabalho, do material de trabalho e do salário. Por isso, o empregador precisa de um mercado maior que o admissível para eles. Além disso, depende dele -- e não deles -- avaliar se as condições de mercado são bastante favoráveis para começar a reprodução.
 Assim, mesmo quando não se estorva o processo de reprodução, são eles os produtores sem ser consumidores de todos os artigos que não têm de ser objeto de consumo individual e sim industrial.
 Para negar as crises, nada portanto mais absurdo que afirmar que consumidores (compradores) e produtores (vendedores) são idênticos na produção capitalista. Estão por completo separados. Só no decurso do processo de reprodução pode patentear-se essa identidade no tocante a 3000 produtores, isto é, no tocante ao capitalista. Ao revés. Também é falso afirmar que os consumidores são produtores. O dono da terra (a renda fundiária) não produz, contudo consome. O mesmo se dá com todos os intermediários financeiros.
(...) Se portanto se reduz a relação apenas àquela entre consumidores e produtores, esquece-se que o assalariado que produz e o capitalista que produz se distinguem por serem duas espécies bem distintas de produtores, e estamos excluindo os consumidores que nada absolutamente produzem. De novo se nega a oposição, abstraindo-se de uma contradição realmente existente na produção. A mera relação entre assalariado e capitalista compreende:
(1) que a maioria dos produtores (os trabalhadores) não são consumidores (compradores) de parte bem grande de seu produto, a saber, os meios de trabalho e os materiais de trabalho; (2) que a maioria dos produtores, os trabalhadores, só podem consumir equivalente a seu produto enquanto produzam mais que esse equivalente -- o valor excedente ou o produto excedente. Têm de ser sempre produtores excedentes, de produzir acima de suas necessidades, para poderem ser consumidores ou compradores dentro dos limites delas. 
Para essa classe de produtores, portanto, a unidade entre produção e consumo se revela falsa logo à primeira vista.'' 

 E olha que nem falamos de determinação do nível de salários!

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