''Desde Marx (1986), o sentido outorgado ao termo ideologia o tornou sinônimo de uma inversão na imagem que a realidade social oferece de si mesma quanto aos seus fundamentos, assim como correspondente às representações (crenças, idéias etc.) que a classe econômica e politicamente dominante na sociedade capitalista produziria e procuraria impor a todas as demais classes, através do Estado, com o objetivo de garantir sua posição de classe dominante. A ideologia seria capaz de tornar a dominação (dessa classe particular) algo natural ou mesmo invisível, concorrendo igualmente para tornar invisível a dominação da ordem social capitalista sobre todos. Esse sentido para o termo ideologia não mais abandonaremos e conserva sua importância até hoje.
À reflexão pioneira de Marx novas
considerações sobre o fenômeno da ideologia se seguiram. Contribuições como a
de Louis Althusser (1974; 1985), Maurice Godelier (1980; 1996), John Thompson (1995), Claude
Lefort (1979), Slavoj Zizek (1996), Terry Eagleton (1997) e, no Brasil,
Marilena Chauí (1980; 1981) trouxeram elementos novos para o estudo da ideologia,
embora contribuições que permaneçam nos marcos da análise marxista.
Hoje, o conceito de ideologia
permite pensar mais aspectos do fenômeno que apenas o ponto de vista de uma
classe particular no interesse de sua dominação. Pelos próprios estudos antropológicos e
sociológicos, torna-se possível pensar a ideologia como fenômeno ligado aos efeitos
de sentido de toda estruturação social, ao cada uma delas ratificarem-se no simbólico
como Ordens de caráter natural, divino, universal, necessário. Portanto, um fenômeno
que não é exclusivo da sociedade fundada na divisão de classes e na separação entre
sociedade e poder do Estado, sociedades capitalistas ou outras. Nem fenômeno cuja
natureza se restrinja à justificação das relações de produção e para a reprodução do modo de
produção.
Anterior a toda outra coisa, a
ideologia assegura, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e
certas idéias sociais, que todos os sistemas de sociedade funcionem e durem como realidades
que existiriam por si próprias, sem o concurso da ação humana. Resultado que a
ideologia procura obter invertendo e ocultando o caráter de coisa construída, arbitrária e
convencional de toda ordem social-cultural e suas instituições, e cujo efeito é a
eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida sem o recurso da
força. Nesses termos, a ideologia constitui o modo de operar de toda cultura (enquanto
sistema de sociedade), ao procurar naturalizar-se, universalizar-se e eternizar-se,
e atua por meio dos discursos sociais (variando do mito ao chamado discurso científico)
que oferecem os sentidos e as significações legitimadoras do que em cada
cultura está instituído e aceito.
A ideologia, em primeiro lugar,
preserva as crenças, idéias e representações que asseguram a consagração simbólica
de normas, padrões, instituições, costumes, convenções de cada ordem social,
dando-lhes legitimidade, permitindo sua assimilação, incorporação – o que não
constitui um fenômeno específico desta ou daquela expressão social, mas é inerente a todo
sistema de sociedade, e só secundariamente (por extensão de seus efeitos) podemos pensar
que concorre para a reprodução das relações de produção. Enquanto um fenômeno de
cultura, a ideologia – da ordem de um acontecer anônimo, involuntário, impessoal,
coletivo – é propriamente o trabalho de toda ordem social na procura de se sancionar
no simbólico.
Nesses termos, a ideologia
constitui a imagem que a realidade oferece de si própria, negando a existência do
que com ela rivaliza (o real), e este como eixo ilimitado de possibilidades
sociais, ameaçadoras da ordem existente, que a ideologia visa assegurar. Por meio da
ideologia, a realidade engendra um discurso de naturalização, universalização e
eternização de suas formas, de modo que sanciona, consagra, a dominação
cultural-social-moral na qual ela própria se constitui enquanto experiência do viver social e
coletivo. É a ideologia um discurso da realidade que procura torná-la natural ou
divina, ocultando seu caráter de coisa construída. A ideologia não é um duplo ilusório
da realidade, mas um discurso de naturalização ou divinização da realidade que
procura apresentá-la como toda. Não é uma duplicação que exigiria do conhecimento chegar
até uma “essência verdadeira”, mas realizar a crítica do discurso ideológico. A
ideologia oferece uma imagem da realidade que não corresponde aquilo que ela é:
arbitrária, convencional, contingente. A ideologia realiza aquilo que Bourdieu denominou a
“eternização do arbitrário” (BOURDIEU, 1999). É a ideologia o que transforma as
manifestações do real em algo ameaçador à ordem, em patologia, em anormalidade, em
violência.
Torna-se importante ressaltar
ainda, a ideologia torna-se o canal de ingresso do indivíduo na cultura. Aquilo que
as ciências humanas chamam de socialização e endoculturação somente são
compreensíveis, em seus efeitos duráveis, se entendemos por esses mecanismos o trabalho
de inculcação de “disposições duradouras” de agir, pensar, maneiras de ser
(que, numa longa tradição, de Aristóteles a Pierre Bourdieu, passando por Thomas de Aquino,
David Hume, Marcel Mauss, entre outros, chamou-se de héxis ou habitus),
desconhecidas, pelos sujeitos que as incorporam, como padrões sociais, culturais, instituídos
por um “arbitrário cultural” (BOURDIEU, 1989; 1998), e ao mesmo tempo vividas como
coisas naturais e universais: coisas de natureza social com propriedades de “natureza
natural” (ibid.). A socialização é um processo que, em última instância, significa a
interiorização das convenções culturais, sociais, morais, através de diversos ritos e
instituições, constituindo a via pela qual se tornar membro da sociedade é não apenas a
efetivação de uma destinação forçada a que o ser humano está obrigado (para se constituir como
humano), mas igualmente a via de sua constituição na alienação e na sujeição, sem que
o indivíduo disso se dê conta.
Uma teoria adequada da
socialização se obriga a pensar o trabalho de interiorização dos padrões
culturais como o próprio trabalho pelo qual a ideologia é internalizada, mas sem que nem
esse trabalho nem a ideologia apareçam como existindo. Podemos apontar que a
eficácia da ideologia decorre, dentre outros mecanismos, de sua ancoragem
invisível nas esferas psíquica, emocional e cognitiva do indivíduo – a “subjetividade” de cada
um, produzida nos processos de subjetivação nos diversos dispositivos de saber e
poder, para cuja compreensão são esclarecedoras as
análises de Michel Foucault, embora suas análises não se refiram à ideologia como
existindo e voltem-se apenas para práticas nas sociedades modernas. Ancoragem que
produz o indivíduo submetido à sua cultura, e produz a alienação do indivíduo que se
crê uma natureza também fixa, uma substância inata, ignorando-se como uma
construção social-cultural: o sujeito particular como efeito do sujeito ideológico
universal. Evidente, nem a socialização nem a experiência na cultura se restringem
apenas à sujeição ideológica e à dominação. Resistências, transgressões, subversões,
criações atestam o fracasso da ideologia em sua tentativa de domesticar e homogeneizar
a vida individual e coletiva nas diversas experiências culturais – fatos que interessam ao
construcionismo crítico (...)''.
SOUSA FILHO, Alípio de. Por uma teoria construcionista crítica. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 1, p. 27-59, 2007. Disponível em: http://docente.ifrn.edu.br/isabeldantas/gestao-desportiva-e-lazer/artigos/por-uma-teoria-construcionista-critica
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