Gastou-se muita tinta (ou muitos bits de informação, na verdade) sobre a questão do protagonismo – ou, sendo mais materialista, de algo que se chama de ‘protagonismo’ – nos movimentos das minorias, mais notavelmente os feminista, negro e LGBT; esse debate gira em torno de questões tais quais a cognoscibilidade da situação vivida pelas pessoas pertencentes às minorias, como se deve dar a direção desses movimentos etc. Sem supor que eu seja o portador de qualquer revelação não acessível aos muitos que já discutiram o tema, gostaria de tentar fazer minha própria contribuição (e desde já peço desculpas pela prosa fraca, repetitiva e quiçá irritante, bem diferente da escrita elegante de outros pessoas que já comentaram o tema).
A primeira questão altamente discutida quando se fala em ‘protagonismo’ é sobre se pode haver qualquer contribuição, ainda mais relevante, de pessoas não pertencentes aos movimentos de minorias para as causas destas. Oras, penso que, ao menos do ponto de vista político, chega a ser ridículo ainda levantar essa questão: qualquer um de nós pode duvidar da importância e da efetividade que há no ato do pai que ensina seus filhos a respeitarem as meninas, ou de uma pessoa heterossexual que repreende colegas, parentes ou outros conhecidos por ter agido de forma homofóbica, ou mesmo um(a) professor(a) heterossexual que ensina seus alunos a respeitarem a diversidade de gênero e orientação sexual? De uma pessoa branca que explica a outra como as forças socioeconômicas de nossa sociedade levaram a população negra a uma tal situação que acabou-se associando pessoas negras a criminosos?
Caminhamos então para outra questão, que eu diria que se segue naturalmente ao último exemplo de contribuição de pessoas não-pertencentes aos ‘’grupos oprimidos’’ para a causa destes: a da compreensão das ‘’opressões’’, isto é, da capacidade de entender as causas dos estigmas de que são vítimas as minorias.* Bem, supondo-se que tais ‘’opressões’’ sejam fenômenos objetivos (como um raio ou a exploração da força de trabalho, para citar exemplos das ciências naturais e das ciências humanas) – e não um sentimento ou algo assim –, o bizarro seria se elas não fossem racionalmente cognoscíveis, e portanto de compreensão acessível a qualquer ser humano dotado de racionalidade. Isso traz, claro, consequências desagradáveis para certos militantes dos movimentos de minorias: o mantra de que um membro dos ‘’grupos opressores’’ não deve/pode contestar um dos ‘’oprimidos’’ quando este diz que determinado comportamento é ‘’opressor’’ depende exatamente da premissa de um ‘’privilégio epistemológico’’ dos últimos; sendo a razão universal plenamente capaz de prover o entendimento das situações estigmáticas vividas por mulheres, negros, LGBTs etc, desfaz-se em ruínas tal mantra (que eu não pude deixar de associar com uma espécie de abolição do princípio de ‘’in dubio, pro reu’’ do nosso Direito).
Vamos então para a terceira e última questão: a da direção (talvez seja melhor dizer ‘’gestão’’) dos movimentos das minorias. Bem, se a condição de LGBTs, mulheres e negros é racionalmente cognoscível, até o mais branco, heterossexual, cisgênero e másculo dos homens brancos, heterossexuais e cisgêneros pode realizar contribuições teóricas e, daí, propostas táticas e estratégicas eficientes para a emancipação daquelas. Deveríamos então deixar a liderança dos movimentos feministas com homens, das organizações LGBT com heterossexuais cisgêneros, dos coletivos negros com pessoas brancas? Eu creio que não. Como se trata das nossas vidas, e como somos dotados dos mesmos potenciais de racionalidade daqueles que pertencem aos tais ‘’grupos opressores’’, cabe a nós mesmos decidir como agiremos para eliminar os males de que somos vítimas, podendo ouvir ou não (e daí acatar ou não) as sugestões advindas de pessoas fora do grupo.
Em resumo: apliquemos nosso direito de permanecer soberanos em nossa luta, saibamos absorver as contribuições teóricas, táticas e estratégicas de aliados ‘’outsiders’’ e evoquemos a ajuda daqueles que estiverem dispostos a nos ajudar, de forma que nos tornemos cada vez mais fortes, a caminho de uma sociedade mais livre e justa!
*Que, como disse em outro texto, não exatamente são de natureza semelhante. A ‘’opressão’’ da população negra aqui no Brasil, p. ex., parece ser uma coisa bem diferente do caso das pessoas LGBTs, estes identificados por suas práticas (modos de gesticular, vestir e falar; relacionamentos, etc) -- possíveis de ocultamento --, enquanto aqueles são identificados por uma característica de imediato perceptível. Para uma argumentação mais completa, ver Revendo privilégios teóricos).
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