''E aos pobres do mundo, nós dizemos isso -- lembre -- ''nós estamos contando com vocês para nos manter ricos''. |
Toda mistificação, a não ser que seja pura verborragia,
costuma ter uma base real concreta. Se isso for verdadeiro, qual seria o sentido
para um pensamento convencional que se apresenta como a única resposta possível
para o enfrentamento dos impactos da atual crise econômica mundial? Por que o
ajuste ortodoxo se apresenta como o único tecnicamente correto e, portanto,
imprescindível e inexorável?
Se ele fosse puro embuste tratar-se-ia
apenas de elucidá-lo como tal. No entanto, ele faz sentido (ainda que o mero
sentido comum) e, o que é mais importante, suas hipóteses implícitas, e não com
surpresa deliberadamente escondidas, é que devem ser elucidadas para, por um
lado, entender suas incongruências enquanto argumento/proposta e, por outro, a
quais interesses atende.
O primeiro ponto a elucidar, se o
objetivo é desmistificar a inexorabilidade do ajuste ortodoxo, diz respeito à
relação entre a estratégia neoliberal de desenvolvimento e o caráter (ortodoxo
ou heterodoxo) da política econômica. Não são poucos os que confundem uma
política econômica ortodoxa com o neoliberalismo, o que é falso. Este último,
segundo seus defensores, se define por duas características.
Em primeiro lugar, é pré-condição obter e
manter a estabilização macroeconômica, isto é, o controle inflacionário e das
contas públicas. O objetivo aqui é, segundo o pensamento convencional, manter a
estabilidade dos principais indicadores (fundamentos) macroeconômicos, para que
os capitais possam formular melhor expectativas de médio e longo prazo e,
portanto, investir em prazos mais longos. Com que tipo de política econômica se
obtém a estabilização? Para o neoliberalismo, não importa, desde que se
consiga. Na verdade, o caráter da política econômica, se ortodoxo ou não, é
definido pela conjuntura específica que se atravesse.
Em segundo lugar, obtida a pré-condição da estabilização macroeconômica, o
neoliberalismo – e é isto que o define de forma característica – defende a
implementação de reformas estruturais de privatização, liberalização,
desregulamentação e abertura dos mercados, em especial os mais importantes para
uma economia capitalista, o de trabalho e o financeiro.
Portanto, o neoliberalismo não pode, em
hipótese alguma, ser reduzido à aplicação de políticas econômicas ortodoxas,
podendo perfeitamente, dependendo da conjuntura, ser impulsionado com políticas
econômicas heterodoxas.
Mas, a atual conjuntura da economia mundial,
de profunda e duradoura recessão, de fato, colocaria o ajuste ortodoxo como a
única forma de combate aos efeitos dessa crise, tanto em economias centrais
como em países em desenvolvimento. O argumento convencional defende que a causa
da crise é o excesso de gastos/demanda na economia, especialmente o gasto
público, sem o respaldo de capacidade produtiva para ofertar. Os efeitos disso
seriam o crescimento do nível geral de preços, o aumento do déficit público
que, quando financiado com venda de títulos públicos, impacta na maior dívida
pública, e a elevação dos déficits externos, que redundam em endividamento
externo.
Com esse diagnóstico, a terapia
ortodoxa, portanto, se resume à restrição da oferta monetária/creditícia e ao
ajuste fiscal. A política monetária, operacionalizada pelo Banco Central, pode
ser impulsionada por restrições de quantidade de moeda e/ou por elevação das
taxas de juros. No atual regime de metas inflacionárias, que caracteriza a
economia brasileira, a lógica se dá pela segunda opção, isto é, o Banco Central
eleva as taxas básicas de juros, sinalizando para os mercados monetário e
financeiro a restrição monetária, no intuito de controlar a inflação. O ajuste
fiscal, por sua vez, ganha uma notoriedade ainda maior dentro desse pacote econômico.
Ele pode ser obtido por uma combinação de maior arrecadação, com elevação de
impostos, e/ou diminuição dos gastos públicos. A ortodoxia sempre prefere esta
última, e o argumento é que o maior peso dos impostos reduz os gastos privados,
restringindo a recuperação da economia.
O arrocho fiscal, baseado na redução dos
gastos públicos, levaria a uma redução do déficit público, mas o objetivo é
que, descontadas as despesas financeiras, o Estado passe a apresentar um
superávit – o conhecido superávit primário. Isto significa, por um lado, que a
arrecadação estatal supera os gastos convencionais com, por exemplo, educação,
saúde, habitação, funcionalismo, etc. Esta sobra de recursos permitiria o
pagamento do serviço da dívida pública que, dado o esforço fiscal, poderia
representar a redução do estoque da dívida pública em relação ao PIB, um dos
principais fundamentos macroeconômicos para este tipo de visão.
Faz todo o sentido, e é algo perfeitamente inteligível para qualquer um que não tenha preconceitos ideológicos. Evidente que os seus formuladores/operadores devem ser técnicos (economistas) especializados, imunes aos apelos populistas, para que a política tenha sustentabilidade e crie confiança nos mercados. Este é o argumento convencional, incluindo aí a suave forma de nos dizer que a técnica econômica implementada deve ser imune a interferências políticas.
Em primeiro lugar, o arrocho fiscal
recessivo, como conclusão, requer uma hipótese de partida que raramente é
explicitada no argumento: as despesas do Estado são compostas por gastos
correntes (não financeiros) e por despesas financeiras. Dessa forma, o déficit
público que por ventura se estabeleça se define pelo excesso de gastos
(financeiros e não-financeiros) em relação às receitas. Desconsiderando a
hipótese de maior arrecadação para fazer frente às despesas, a pergunta é
óbvia: por que a variável de ajuste são as despesas não-financeiras? Por que o
ajuste fiscal não pode ser feito nas despesas financeiras, isto é, nos gastos
públicos com juros e amortizações da dívida pública? Isto nos leva a dois
pontos.
Por um lado, a
explícita defesa de superávits primários para pagamento do serviço da dívida
demonstra o compromisso com a manutenção do valor desses títulos públicos que
constituem o estoque da dívida pública. O argumento oficial é que isto é
necessário para a confiança e melhor rolagem da dívida. O que não se explicita
é a real causa do aumento da dívida nos últimos tempos, saindo de R$ 1,01
trilhão em 2004 para cerca de R$ 2,5 trilhão em meados de 2015. Na verdade, o
crescimento da dívida pública brasileira, e este é o segundo ponto, ocorre por
várias razões, todas elas relacionadas aos reais interesses econômicos e
políticos que sustentam o bloco de poder atualmente governando o país.
A primeira delas é a elevada taxa de
juros, que corrige, em grande parte, o estoque da dívida pública. Se
considerarmos que o crescimento da economia é um bom indicador do crescimento
da arrecadação, e compararmos com o crescimento das taxas de juros domésticas, percebe-se
que estas últimas superam em muito as primeiras, o que obriga, na lógica
convencional, a elevar os superávits primários apenas para manter estável a
relação estoque da dívida sobre o PIB. Logo, exatamente ao contrário da
ortodoxia, as taxas de juros não são altas porque a dívida é elevada, mas
exatamente o contrário. Trata-se, portanto, de reduzir as taxas de juros.
A segunda faz parte da forma como todos os governos procuraram responder à crise econômica desde 2007. A pressão por desvalorização dos títulos no contexto da crise foi respondida pelos Estados com maior atuação destes nos mercados, procurando manter o nível da demanda por esses papéis de forma a não os desvalorizar em demasia. Como se obteve isto? Novamente, a redução dos gastos não-financeiros (ajuste fiscal recessivo) cumpriu um papel. Mas, o mais importante é que o Estado financiou esta intervenção recorrendo à tomada de empréstimos no mercado privado, oferecendo em troca títulos públicos. O curioso, para dizer o mínimo, é que boa parte do crescimento da dívida pública ocorreu simplesmente para fazer com que o setor privado trocasse papéis com tendência de desvalorização por títulos públicos com alta liquidez e rentabilidade.
Além disso, a dívida pública está
intimamente ligada ao fluxo internacional de capitais. Em um contexto de
elevadas taxas domésticas de juros, ocorre uma forte atração de recursos
externos que, convertidos para a moeda doméstica, levariam a uma expansão da
oferta monetária, justamente na contramão da política monetária contracionista
que se aplica no momento. Assim, o Banco Central se vê na obrigação de
esterilizar esses recursos, ou seja, compensar esse acréscimo monetário com
retirada de moeda por outros canais. Essa compra de moeda no mercado monetário
só pode ser feita oferecendo algo em troca, para vender, justamente títulos da
dívida pública federal, ampliando o estoque dessa dívida.
Tratar-se-ia, portanto, de reduzir as
taxas de juros para inverter essa ciranda. Mas isso não se obtém apenas por
vontade política. Há pelo menos dois requisitos complexos para que isso seja
possível. Uma redução das taxas de juros tende a expandir a demanda agregada – o
que pode, de fato, levar a uma pressão
inflacionária. Esta verdade, no entanto, não ocorre pela razão propagandeada
pelo oficialismo, o excesso de demanda. O que ocorre é que desde os anos 1980 a
economia brasileira tem convivido com taxas de investimento (acréscimo de
capacidade produtiva) pífias, o que leva a um potencial de oferta restrito.
Qualquer pequeno crescimento da demanda esbarra em uma limitação estrutural da
oferta, o que pressiona os preços. O problema não é de demanda, mas de
oferta/custos. Como se amplia a capacidade produtiva em um contexto de altas taxas
de juros? Certamente não contando com a boa vontade dos capitais privados,
burguesia nacional/transnacionalizada, o termo que se queira. O Estado,
historicamente, em economias capitalistas é o responsável por isso.
A redução das taxas de juros ainda pode
provocar uma fuga de capitais, ainda mais em um cenário de instabilidade
mundial, que, no limite, pode levar a uma crise 5 cambial. A condição
necessária para que isso não ocorra é simples: restringir a saída de capitais,
através de um sério e radical controle de capitais.
Isto nos leva à questão de fundo, uma
vez que, para que isso ocorra, é preciso que a estratégia neoliberal de
desenvolvimento seja rompida/revertida. Mas isso requer outra conformação do
bloco de poder, uma vez que os interesses que atualmente são privilegiados
teriam que ser contrariados. Na atual conformação, o ajuste à crise econômica
será - e já está sendo - pago pela classe trabalhadora. Não poderia ser
diferente na atual estratégia de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Para
que a conta do ajuste seja paga pelo capital, ou por algumas de suas
modalidades de acumulação, requer-se outra estratégia de desenvolvimento, e não
apenas “outra” política econômica.
E nem falamos de socialismo!
*Professor Associado da Faculdade de Economia da UFF, membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP-UFF), Presidente da Sociedade Latino-americana de Economia Política e Pensamento Crítico e Professor colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF-MST).
[Este texto está disponível no site Marxismo 21]
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