terça-feira, 3 de junho de 2014

A função social da religião em Durkheim, por Bertone Sousa

''[...] a verdadeira função da religião não é nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento, [...] mas sim nos fazer agir, nos ajudar a viver.'' - Durkheim

Grande parte das discussões entre ateus e religiosos na internet tem como plano de fundo a ignorância e mútua incompreensão. Da parte dos ateus, isso começa com a convicção de muitos deles de que as religiões são “irracionais”. As ciências sociais não trabalham com essa perspectiva. Elas são compreensivas. E as religiões, já reconhecia Durkheim, somente podem ser compreendidas historicamente. Desde o século 19, entendemos que fazer história é reconstituir contextos, épocas culturais, mentalidades. A história então monta o modelo do conhecimento das coisas humanas, que vai ser usado pela antropologia, economia, sociologia. Qualquer dimensão da ação humana deve ser entendida historicamente.

Foi o que Durkheim tentou fazer em “As formas elementares da vida religiosa”, onde extraí a epígrafe deste texto.  A obra clássica publicada originalmente em 1912, é uma proposta de estudar o totemismo como sistema de culto em algumas tribos australianas. Embora fosse positivista, Durkheim divergia da teoria de Auguste Comte acerca do progresso da humanidade. Embora também acreditasse na objetividade da ciência social, também rompeu com a ideia de linearidade, tão presente na cultura ocidental, para argumentar que a história não é como  uma linha geométrica nem a humanidade caminha em direção aos mesmos valores ou ao mesmo modelo de desenvolvimento tecnológico. Essa concepção foi bastante profícua para sua formulação de um conceito de religião e da função social da religião.

Sua famosa frase logo no início de que não existem religiões falsas porque todas correspondem a determinada condição da existência humana já sintetiza o olhar das ciências sociais sobre os fenômenos religiosos. A primeira parte, onde ele tenta chegar a uma definição de religião, também é particularmente importante. Uma das maiores dificuldade pra quem quer compreender ou estudar determinado sistema religioso é definir religião.

Sabemos que o sentido etimológico vem do latim re-ligare. Mas a questão é: a religião é um religar de quê? Inicialmente do homem com seus mortos. A religião não começa como uma crença em divindades, mas a partir do sentimento de continuidade da vida, a partir do momento em que o homem começa a sepultar seus mortos, com a realização de enterros e ritos fúnebres. Dessa forma, o sentimento religioso nasce de uma consciência da insuficiência humana e admissão da fragilidade e efemeridade da condição humana. No sistema totêmico, diz ele, a ideia de divindade é completamente estranha. Ele diz que a religião não se originou de cultos a divindades pessoais, mas de cultos a forças anônimas e poderes indefinidos.

Se a religião não se define por uma crença em uma divindade, Durkheim busca um ponto de convergência entre elas. E, pra ele, esse ponto consiste nos dois domínios em que as religiões dividem o mundo: o sagrado e o profano. Essas duas esferas definem determinado pensamento como religioso. Os templos teriam a função de separar os dois mundos. Para ele, a ideia de sagrado evoca a superioridade da coletividade sobre o indivíduo, sua autoridade moral e sua proteção. O sagrado e o profano também são dois temas sobre os quais Mircea Eliade discutiu amplamente em suas obras.  Eliade considera que a necessidade da religião está ligada a um desejo ontológico, isto é, o desejo do ser, oriundo do temor do caos, do espaço desconhecido, não consagrado, que caracteriza, para o homem religioso, o não-ser absoluto.

O sagrado é composto de crenças e ritos, ou pensamento (no casos das crenças) e movimento (no caso dos ritos). Os ritos tem a função de prescrever comportamentos. A pluralidade de crenças religiosas evidenciam o impulso criador da sociedade e também a permanente tentativa do homem de elevar-se a uma vida superior à realidade cotidiana. As crenças, enquanto representações coletivas, atribuem significados a essa outra vida, enquanto os ritos estabelecem os regulamentos que garantem o funcionamento do culto religioso. Os ritos são formas de reafirmação periódica do grupo.

Por este motivo, para Durkheim, a vida religiosa é voltada para ação. E Weber iria adiante ao dizer que toda ação é racional, portanto as religiões não podem ser irracionais. Mas em Durkheim o simbolismo religioso também atua com a função de reproduzir as hierarquias sociais.

A caracterização das religiões como sistemas de crenças irracionais, embora seja um equívoco, evidencia a tensão entre esses sistemas e nosso pensamento científico. A ciência nos ensinou a contemplar a natureza de outra forma, afastou a necessidade de um criador e da crença em mundos espirituais e tornou os ritos inúteis para aplacar as forças da natureza, que aprendemos a controlar a manipular a nosso favor. Contudo, não possuímos a totalidade do conhecimento, o que nos impede, por exemplo, de termos certeza se estamos ou não sozinhos no universo ou se existe algo parecido com um criador escondido em algum canto ou dimensão que não conhecemos.

Hoje, podemos viver confortavelmente sem nenhuma crença religiosa e com o direito de não sermos molestados por quem segue qualquer sistema de crença. Podemos ter espiritualidade sem precisarmos frequentar um templo ou acreditar em um Deus, podemos explicar o mundo sem o recurso a forças invisíveis e sobrenaturais. Isso também não suprimiu a religião como força cultural criadora. O fato de a religião ter sido legitimadora de diversas formas de poder arbitrários ao longo de milênios não anula seu potencial criador, seu impulso para a ação coletiva. Por isso Durkheim compreendia que, em última instância, a religião ensina as pessoas a viver melhor e fornece (especialmente para sociedades não modernas) o chão para a estabilidade das relações sociais.''

Bertone Sousa é professor do curso de História da UFT.

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