quarta-feira, 9 de março de 2016

Lutas políticas e reificações perigosas: sucumbindo à ilusão essencialista



''Nascido assim'' (?)

No âmbito da discussão sobre gênero e sexualidade, a biologização ou a substancialização da orientação sexual não são assimiladas, tampouco produzidas, apenas pelo discurso cientificista. A aceitação de muitos LGBT (incluindo importantes lideranças do movimento) da ideia segundo a qual a homossexualidade, travestilidade e transexualidade são “orientações sexuais” fixas, fincadas em cada um antes do nascimento, correspondendo a realidades biológicas, ou que seriam substâncias psicológicas absolutas e estáveis, não deixa dúvida do quanto o essencialismo tem sido abraçado.

 Para muitos LGBT, militantes ou não, a legitimação de suas reivindicações passaria por demonstrar que as orientações sexuais seriam inatas, definidas biologicamente, “naturais” ou sorte de essência psicológica, ignorada como tal por cada um que a abriga: assim como alguns “nasceriam heterossexuais”, outros “nasceriam homossexuais, travestis, transexuais”. O bordão “nasce-se gay” é repetido como argumento (pretensamente estratégico) na luta por reconhecimento. “Nascer” gay, lésbica ou trans seria fenômeno com dois sentidos: “desde criança, era gay”, “na infância, já me via como 'mulher' ou 'homem' ”, o que é representado como algo anterior ao nascimento (seria inato) ou algo muito cedo instalado (mas definitivo e invariável) – espécie de teorias hereditaristas.

 A ideia de cérebros sexuados (hétero, homo, trans ou outro) ou outras naturalizações equivalentes são vistas por muitos LGBT como argumentos favoráveis às lutas de afirmação identitária e por direitos. Em certo discurso militante, aparece uma conceituação, menos ou mais consciente, explícita ou implícita, sobre o que seria a orientação sexual homossexual (ou qualquer outra) que a destitui de todos os seus traços de uma construção do desejo e de uma expressão da diversidade das escolhas sexuais, ao torná-la uma essência, uma substância, que a pessoa representada por “homossexual” seria portadora (e do que não poderia escapar). Entendimento que é tomado como válido, em termos estratégicos, para uma “legitimação da homossexualidade” e para as lutas por reconhecimento. Acredita-se que, de algum modo, essa conceituação serviria para combater o preconceito em torno da homossexualidade.

 Aqueles que pensam assim acreditam que é politicamente contraproducente, e torna-se mesmo proibido!, compreender as chamadas orientações sexuais como escolhas do erotismo, da sensualidade, do desejo, sempre subjetivas e singulares, nem estáveis nem absolutas, e, portanto, que podem ser traduzidas como eleições, opções, preferências do desejo individual. A orientação sexual é uma prática no sentido também que cada um, exercitando-se, experienciando, constrói, menos ou mais conscientemente, sua vida erótica, seu regime de prazeres.

 Um exemplo marcante da confiança de militantes da causa LGBT de que uma orientação sexual não é uma construção do desejo foram as reações de diversos participantes da I Conferência Nacional LGBT, ocorrida em abril de 2008, em Brasília, que, a cada vez que palestrantes – referindo-se à homossexualidade – usavam o termo “opção”, incluindo o presidente da República e ministros de Estado, estes eram interrompidos por vozes que soavam em coro: “opção não, orientação!”. Nessa correção linguístico-política, “orientação” é substantivo que pretende exprimir a essência, a qualidade, a propriedade que, existindo por si mesmas, sem ação do sujeito-homossexual, exprimiriam a sua verdade profunda e o fundamento da sua identidade sexual, substância determinada e determinante. Estamos aqui sob os efeitos daquilo que Michel Foucault denunciou como os “dispositivos” de controle das sociedades modernas: neles, a sexualidade se tornou a realidade mais secreta e profunda do indivíduo que abrigaria uma verdade que permitiria descobrir quem o indivíduo é e permitiria revelar o “sexo verdadeiro” que lhe determina (FOUCAULT, 2006). A “orientação sexual” seria o sexo verdadeiro, determinado e determinando a identidade de cada um.

 O discurso militante (ou mesmo um discurso espontâneo de lésbicas, gays e trans) adota(m) o conceito de orientação sexual como algo da ordem de uma realidade dada, que não requer discussão, e mesmo sugere se tratar de assunto sem interesse. E como é hegemônica em nossas sociedades a opinião segundo a qual a realidade do indivíduo “é a soma do biológico e do cultural” – ideia reproduzida por certas correntes teóricas no campo acadêmico, numa espécie de “ciência do meio a meio” (pretendidamente mais “tolerante”, sem “radicalismo”, “mais exata”) –, também no âmbito da discussão sobre a orientação sexual, pretende-se que esta seja em parte “determinada pelo biológico” e, em parte, “pelo cultural” (ou “pelo ambiente”). Essa compreensão é o fundamento para a posição política segundo a qual o que importa é o que “se é”, assim como igualmente importante é a afirmação político-pública das identidades assumidas por cada um, não importando definições conceituais. É a política pragmática contra a política do conceito.

 Ora, trata-se de um engano: abandonar as definições sobre o que seja a “orientação sexual” aos discursos substancialistas (do biologismo, psicologismo ou outro) é esvaziá-la do que pode lhe render maior significado político: seu caráter de uma prática construída na pluralidade do desejo e na diversidade das experiências do prazer. Isso é válido para todas as “orientações sexuais”, e definição que serve ainda para a retirada da heterossexualidade do reino do inato, do natural, inserindo-a também no reino das práticas construídas na diversidade do desejo, situando-a na cultura e na história. O que é politicamente insuportável nas práticas sexuais que não seguem os padrões heteronormativos é sua dissidência na escolha, a transgressão na construção de si por parte daqueles que, com outras preferências, subvertem os ditames da [1] “heterossexualidade obrigatória” – razão pela qual se pretende domesticá-las como “orientações” naturalizadas.

 Todavia, suspeitando da “ fragilidade” do argumento (des)construcionista, que é o nosso, opiniões há que se manifestam assim: “a afirmação político-pública que as orientações sexuais são realidades do campo das práticas, escolhas, construções, preferências, e variáveis e coexistentes, tornará possível que homossexuais, travestis e transexuais sejam questionados quanto a poderem escolher uma outra orientação sexual que não aquela que praticam e com a qual se identificam”. E não poderiam? Efetivamente podem e são muitos os sujeitos que variam suas práticas/orientações sexuais. Por exemplo, homens e mulheres tidos como “heterossexuais” por bom tempo de suas vidas transportam-se, em alguma circunstância, a vivências da homossexualidade, assim como homens e mulheres com experiências duradouras da homossexualidade transportam-se, em algum momento, para práticas heterossexuais. Igualmente como tantos outros praticam alternada ou concomitantemente os diversos prazeres sexuais, sem buscarem qualquer identidade fixa.

 Desse modo, por que gays, lésbicas e trans receiam falar de mudança de “orientação sexual” ou desta como manifestações de desejos e práticas que podem conhecer variações? A questão não é sem importância: acossados pela homofobia e pelo monoteísmo sexual de nossa sociedade, que procura fazer crer que a heterossexualidade (e o que lhe é solidário: casamento, monogamia, sexo reprodutivo etc.) é a via única da existência, gays, lésbicas e trans sabem que, quando se fala de “mudança de orientação sexual”, o que se propala é o “abandono” ou “interrupção” das práticas eróticas, sexuais e afetivas que não seguem os padrões heteronormativos. Isto é, apela-se a gays, lésbicas e trans que abandonem suas práticas, estigmatizadas como “anormais”. Torna-se, pois, compreensível que se tenha produzido no segmento LGBT uma espécie de temor e dificuldade em justificar as escolhas eróticas e de prazer sexual em termos da liberdade de cada um em fazer valer seus desejos e opções. Há ainda aqueles que se sentem ameaçados pelas propaladas “terapias de reorientação sexual”. Teme-se que os homofóbicos e conservadores ganhem o debate porque terão a seu favor o argumento segundo o qual, se a “orientação sexual” é, no âmbito das prática sexuais, escolha, opção, desejo, aqueles que escolhem “desvios” e “perversões” não podem querer institucionalizá-los em forma de direitos, pois “podem escolher orientação sexual natural, normal”.

 Não negligencio o anseio de segurança ontológica de sujeitos marginalizados, discriminados e violentados pelo preconceito e pelo discurso ideológico, que veem no argumento essencialista (do inato, do biológico, do psicológico) um “porto seguro” de suas identidades. Todavia, temos aqui duas questões teórico-políticas importantes: não se torna possível reivindicar o reconhecimento da diversidade sexual em bases conceituais, éticas, filosóficas e políticas sem o recurso ao argumento essencialista do biológico ou do psicológico? Ao dizermos que as orientações sexuais constituem práticas do desejo, construídas nos exercícios do sexo e dos afetos, estamos de fato oferecendo munição aos conservadores e homofóbicos que, contrariados com a diversidade do desejo, divulgam e incentivam pseudoterapias de “mudança de orientação sexual” (sempre da homossexualidade para a heterossexualidade e nunca o contrário), supostamente com o mesmo argumento “construcionista”?

 À primeira questão darei uma resposta positiva e a segunda responderei negativamente. Insistirei com uma tese: o argumento segundo o qual a descoberta de “aspectos biológicos” da homossexualidade favorece a gays e lésbicas contra o preconceito é simplesmente equivocado. Não se torna necessário lançar mão de qualquer forma de essencialismo para o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero.

 A ideia essencialista e naturalizadora da orientação sexual é ela própria prisioneira dos discursos heteronormativo e homofóbico. Para estes, não se pode legitimar o que é da ordem do desejo, da escolha, da eleição livre, tratando-se do que foge ao regime da normalidade aceita. A ideia de orientação sexual como essência biológica ou psicológica termina barrando a afirmação das diversas possibilidades do sexual (incluindo a heterossexualidade) como expressão da pluralidade das práticas do desejo, do erotismo, do prazer, ao mesmo título iguais entre si, nenhuma delas sendo natural, inata, biologicamente configurada.

 Aqueles que flertam com as teses de um essencialismo naturalista em matéria de sexualidade não têm consciência da despolitização que a posição representa. O argumento da natureza despolitiza a reflexão sobre gênero e sexualidade e atrela direitos a serem conquistados pela mudança de mentalidade da sociedade ao obscurantismo do apelo ao biológico ou ao psicológico. O que fundamenta a crença essencialista é, no fundo, o temor da ideia de liberdade, o temor do desejo como fator de produção da diversidade, da pluralidade. O temor do próprio desejo como potência criadora.

 Ainda, a corrupção da concepção construcionista sobre sexualidade e gênero pelos conservadores e homofóbicos, como tem sido possível atestar nas atuações de certos setores políticos ou religiosos, não pode ser entendida como uma fragilidade dessa concepção. Não se pode dizer que o (des)construcionismo socioantropológico e filosófico que tem sido praticado nas análises críticas de gênero e sexualidade possa servir aos interesses daqueles que – religiosos, médicos, psicólogos, pedagogos etc. – pretendem submeter todos ao monoteísmo heteronormativo, pela simples razão que são perspectivas radicalmente opostas. Enquanto os diversos agentes desse monoteísmo objetivam o controle do prazer e a normalização do desejo, os estudos e práticas de uma concepção desconstrucionista visam promover a liberdade e a pluralidade do desejo e do prazer.


Notas
[1]  Cf. Adrienne Rich (1980), Judith Butler (2003), Didider Eribon (1999), entre outros autores.


SOUSA FILHO, A.. A política do conceito: subversiva ou conservadora? Crítica à essencialização do conceito de orientação sexual. Bagoas : Revista de Estudos Gays, v. 3, p. 59-77, 2009.

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