quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sobre as pessoas trans



Bandeira do orgulho trans. 


 As normas de gênero -- i. e., as regras de comportamento (estético, erótico etc.) impostas sobre os indivíduos a partir do seu sexo -- marginalizam e punem os que a ela não se adequem ou desobedeçam (sem falar dos prejuízos que afetam aqueles que a ela submetem-se ''com sucesso''). Isso certamente não ocorre de forma semelhante entre todos os ''desviantes'': rapazes com brinco e/ou moças com cabelo curto, estilo ''garoto'', p. ex., cá e acolá recebem uns olhares repreensivos e ouvem sermões sobre o uso de brinco e o cabelo curto não serem coisa ''de homem'' e ''de mulher'', respectivamente e às vezes com a continuação 'de verdade'; nada muito grave. A coisa muda radicalmente em se tratando, p. ex., de homossexuais: se você, como eu, é do sexo masculino, muito provavelmente gastou boa parte do ensino fundamental, do médio, talvez do superior e quem sabe até hoje zoando os amigos ou outro fulano de ''viado'', ''bichinha'' etc., e talvez não consiga aceitar a ideia de que um homem que faz sexo anal na posição de passivo seja um ''homem de verdade''. Para os bissexuais, além de piadas, insinuações e até dúvidas sinceras de que eles são ''indecisos'' -- como se só se pudesse ou devesse sentir atração por um sexo... --, não é incomum a pressão para que se afastem o máximo possível das identidades homossexuais, devido à masculinidade hegemônica (e à doxa de que 'todo gay é afeminado', tão verdadeira quanto a preposição segundo a qual 2 + 2 = 5 -- e não que ser feminino seja algo mau ou condenável). 


 Há, porém, um grupo que, ao menos na visão deste que vos escreve, é objetivamente o que mais sofre com as normas de gênero: as pessoas trans, i. e., as pessoas que, para além de desejo sexual,  simplesmente não se identificam com os padrões de comportamento impostas a ela devido a seus sexos biológicos. Uma mulher trans, p. ex., é biologicamente do sexo masculino (e aqui eu relembro que a categoria de sexo biológico não é um negócio tão simples, existindo pessoas com ''par'' cromossômico sexual X0, XXX, XXY etc., além de outras formas de mosaico genético), mas identifica-se com as características atribuídas ao gênero feminino -- coisas como vestimenta, ''modo de agir'', sexo objeto de desejo etc. Por romperem de forma radical com aquilo que é tido como 'normal' e 'natural', as formas exclusivas de ser humano, a população trans (chuto aqui que mais as mulheres trans do que os homens trans, porque não chegam a mim notícias de violência simbólica ou física contra homens trans -- embora com certeza hajam --, na verdade quaisquer dados, e já excluindo os chamados 'trans não binários', pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros) é desumanizada, posta ainda mais abaixo das pessoas cis-hétero do que já o são as pessoas homo/bissexuais -- e isso sem fazer o recorte de raça, classe social, idade etc.

 Sabemos, a motivos de ilustração, que a maior parte da população feminina trans emprega-se, em nosso país e em sociedades culturalmente parecidas (como a Argentina), na prostituição. Somos idiotas o suficiente para achar que isso é porque essa é uma profissão especialmente agradável ou atrativa para elas? Que estaria envolvida com hipotéticas ''causas'' da transgeneridade (biológicas ou de socialização -- na medida em que essa dicotomia é válida [1])? Uma análise verdadeiramente rigorosa, científica e crítica só pode concluir que isso tem relação com a profunda transfobia enraizada em nossa cultura, que impede o acesso das pessoas trans aos empregos formais: por preconceito pessoal ou por temor que os clientes não se agradem com isso, os patrões não dão oportunidades de emprego a elas. Uma consequência disso é a baixíssima expectativa média de vida dessa parcela da população: 35 a 40 anos, segunda uma pesquisa [2].

 Mas a coisa é terrivelmente mais profunda: em muitos casos, as travestis -- que a grande maioria de nós persiste em chamar pelo nojento e desumanizante termo ''travecos'' -- saem do ambiente doméstico tragicamente cedo. Segundo uma pesquisa realizada na Argentina com 498 pessoas trans, ''a maioria de nós fomos expulsas de nossas casas ou fugimos com 11 ou 12 anos porque não aceitavam que nos vestíssemos de mulher'' [3]. O horror também existe no ambiente escolar:
Foram mencionadas várias situações de exclusão e discriminação no âmbito educacional. As ridicularizações, o maltrato, o desamparo e a burocracia administrativa vinham tanto dos colegas quando do pessoal docente e diretores. (...) "Uma professora me deu um tapa porque queria que eu fosse jogar bola". Assim, são vários os testemunhos que relatam situações de abuso sexual e agressão física nos banheiros e da falta de ação por parte do pessoal docente para impedir essa situação. Essas experiências tiveram como consequência o abandono do sistema escolar majoritariamente no momento em que as pessoas trans começam o processo de construção de sua identidade. (...)

"Se você era mariquita, os colegas roubavam suas coisas, rasgavam suas roupas, lhe pegavam no recreio... Mijavam em cima de você... E nos banheiros... Os colegas lhe obrigavam a ter relações com eles e você fazia isso por medo".


Discriminação contra as meninas trans na escola (p. 28)


Discriminação contra os meninos trans na escola (p. 47)




21% das mulheres trans (p. 29) e 38% dos homens trans (p. 48) afirmaram que foram ridicularizados ou agredidos pelos professores. 21% das mulheres e 25% dos homens trans foram proibidos de usaram o banheiro. 34% das mulheres e 26% dos homens não tiveram seu nome social respeitado. Como consequência de toda essa discriminação, 49% das mulheres e 47% dos homens abandonaram o sistema educacional. Entre as mulheres trans menores de 18 anos, metade delas não estava estudando [4].


  Sabemos também que o Brasil é o país que mais mata travestis em todo o mundo [5], e não é de se duvidar que dados referentes à discriminação sofrida pela população T em nossa nação sejam similares aos do supracitada vizinho latino (para uma análise da condição dessa população no Brasil, com uma análise mais focada no ambiente escolar, ver o artigo ''Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transsexuais, transgêneros e a escola brasileira'' nesse livro). Segundo o GGB, dos assassinatos documentados de LGBTs em 2013, 35% eram travestis. A estimativa do GGB de 2011 é que existem 50 mil travestis e 2 mil transexuais no Brasil. Ou seja, ano passado, cerca de uma travesti a cada 460 foi assassinada em 2013. Comparando os dados do GGB de forma relativa à população (considerando que 7,8% dos homens se declararam homossexuais num estudo do Instituto de Psiquiatria do HC da USP em 2009), concluímos que a probabilidade de uma travesti ser vítima fatal de um crime de ódio é cerca de 90 vezes maior que a de um homem gay. 

 Nós, que desejamos uma humanidade emancipada, livre de toda exploração e opressão, declaramos guerra à transfobia, e também à homofobia e bifobia. Ou ainda: nós declaramos guerra às normas de gênero e a outras formas de regular os corpos e impor-lhes comportamentos específicos mediante ''marcadores'', como raça, idade e classe social, denominando 'anormais' e desumanizando os que desses estereótipos fugirem. 




Páginas e blogs indicados sobre o tema:

T de revolução 
Travesti reflexiva
Travesti marxista 

Posts anteriores relacionados ao tema aqui no blog:

Racismo, misoginia e LGBTfobia no capitalismo
Notas sobre transsexualidade 
Esboços dos rudimentos de uma crítica ao gênero
Sobre a ideologia de gênero 
Heteronormatividade e homofobia 

Notas

[1] http://www.academia.edu/3025322/Diferen%C3%A7as_entre_homens_e_mulheres_biologia_ou_cultura
[2] http://www.brasildefato.com.br/node/28082
[3] http://travestimarxista.blogspot.com.br/2015/07/a-violencia-policial-e-criminalizacao.html
[4] Idem.
[5] http://super.abril.com.br/comportamento/o-recorde-que-nao-queremos-ter-somos-o-pais-que-mais-mata-transexuais


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