terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Racismo, misoginia e homobitransfobia no capitalismo


Morto em 1883, o pai do socialismo científico ainda tem muito a dizer aos filhos do século XXI.

 Karl Marx, em O Capital, elaborou o conceito de ''exército industrial de reserva'': uma massa de trabalhadores desempregados que estão à disposição da exploração capitalista sempre que os custos com a parcela empregada da classe trabalhadora excederem os níveis desejados pelos empregadores burgueses. Especialmente em um regime de livre-mercado, quanto maior for essa superpopulação relativa de trabalhadores desempregados, mais pressão para baixo ela exercerá sobre os salários.

 Ao final da decisão do capitalista sobre quem empregar (o trabalhador antigo cujas despesas estão desagradando-lhe ou o membro daquele exército de trabalhadores de reserva), uma coisa é certa: o escolhido ganhará menos do que o mesmo posto rendia anteriormente, e trabalhará na mesma magnitude. Uma vez que a jornada de trabalho é constituída por tempo de trabalho necessário (no qual o trabalhador reproduz o valor correspondente ao seu salário) e tempo de trabalho excedente (no qual o trabalhador trabalha gratuitamente para seu patrão, gerando mais-valia¹), o grau de exploração da força de trabalho² daquele trabalhador, que é a razão entre a mais-valia por ele produzida e o preço de sua força de trabalho, aumentará em relação ao caso anterior.

''E o que isso tem a ver com racismo, misoginia ou 'LGBTfobia'?'', pode estar pensando se perguntando o leitor. É simples, até: preconceitos como esses servem para moldar no imaginário popular categorias de sub-humanos, pessoas marginalizadas cujas forças de trabalho são, por isso, mais baratas no mercado. Os exemplos pululam pela História: ainda na Inglaterra do século XIX de Marx e Engels, por exemplo, as mulheres operárias ganhavam menos que seus colegas do sexo masculino, mesmo sendo igualmente produtivas; na Alemanha de Hitler, o antissemitismo propalado pelo governo permitiu a transformação dos judeus em escravos que trabalhavam gratuitamente nas indústrias, o que atraiu a ganância vampiresca de empresas como Faber-Castell, Wolkswagen e a ancestral da Bayer. Nos EUA de hoje, trabalhadores latinos ainda vendem suas forças de trabalho por salários vergonhosos a fim de não morrer de fome. Não deve ser difícil para o leitor imaginar uma pessoa transsexual no Brasil se submeter a um emprego com péssimas condições de trabalho e baixa remuneração por não achar outras oportunidades. Desnecessário comentar que, em todos esses casos, os trabalhadores que exigiam salários mais justos -- não pertencentes às assim chamadas ''minorias'' -- fica(va)m sem emprego.

 Isso significa que esses preconceitos sejam conscientemente propagados pelo capital, e com esse objetivo? Não. Em nosso país, aliás, creio que ao menos a misoginia e a ''LGBTfobia'' sejam muito mais uma questão ideológica -- conservadorismo religioso, mais especificamente -- que algo vinculado à base econômica da sociedade, ao pragmatismo burguês. Mas é preciso estar alerta: em tempos onde Eduardo Cunha (o ultraconservador religioso que defende nossos corruptos meios de comunicação contra a regulação social da mídia) é eleito presidente da câmara legislativa, não se pode baixar a guarda, e, parafraseando Marx, o trabalhador branco-hétero-cis-cristão não pode se emancipar onde se ferreteia o trabalhador pertencente a qualquer minoria.³




Notas:

1 - ''Observemos mais de perto. O valor diário da força de trabalho ascendeu a 3 sh., porque nela própria está objectivado meio dia de trabalho, i. e., porque os meios de vida diariamente precisos para a produção da força de trabalho custam meio dia de trabalho. Mas o trabalho passado, que está metido na força de trabalho, e o trabalho vivo, que ela pode prestar, os seus custos diários de manutenção e o seu dispêndio diário, são duas magnitudes totalmente diversas. A primeira determina o seu valor de troca, a outra forma o seu valor de uso. Que meio dia de trabalho seja preciso para o conservar em vida durante 24 horas, não impede, de modo algum, o operário de trabalhar um dia inteiro. O valor da força de trabalho e a sua valorização no processo de trabalho são, pois, duas magnitudes diversas. Esta diferença de valor, tinha-a o capitalista em vista quando comprou a força de trabalho. A sua propriedade útil, fazer fio ou botas, era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho, para formar valor, tem de ser despendido em forma útil. O que, porém, decidiu foi o valor de uso específico desta mercadoria: ser fonte de valor, e de mais valor do que ela própria tem. Este é o serviço específico que o capitalista espera dela. E aí procede segundo as leis eternas da troca de mercadorias. De facto, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza o seu valor de troca e aliena o seu valor de uso. Não pode conservar um sem desistir do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence não mais ao seu vendedor do que o valor de uso do óleo vendido ao comerciante de óleo. O possuidor de dinheiro pagou o valor diário da força de trabalho; a ele pertence, portanto, o seu uso durante o dia, o trabalho do dia todo. A circunstância de a conservação diária da força de trabalho custar apenas meio dia de trabalho — embora a força de trabalho possa actuar, trabalhar durante um dia inteiro —, a circunstância de, portanto, o valor que o seu uso cria durante um dia ser duas vezes maior do que o seu próprio valor diário é uma particular felicidade para o comprador, mas de modo algum uma injustiça contra o vendedor.

O nosso capitalista previu o caso, que o faz rir. O operário encontra, pois, na oficina os meios de produção precisos não apenas para um processo de trabalho de seis horas, mas para um de doze horas. Se 10 libras de algodão sugavam 6 horas de trabalho e se transformavam em 10 libras de fio, então 20 libras de algodão sugarão 12 horas de trabalho e serão transformadas em 20 libras de fio. Consideremos o produto do processo de trabalho prolongado. Nas 20 libras de fio estão agora objectivados 5 dias de trabalho, 4 na massa de algodão e de fusos consumida, 1 sugado pelo algodão durante o processo de fiação. A expressão em ouro de 5 dias de trabalho é, porém, 30 sh. ou 1 lib. esterl. e 10 sh. Este é, pois, o preço das 20 libras de fio. A libra de fio continua a custar 1 sh. e 6 d. Mas a soma de valor das mercadorias lançadas no processo elevou-se a 27 sh. O valor do fio ascende a 30 sh. O valor do produto cresceu cerca de 1/9 acima do valor adiantado para a sua produção. Portanto, 27 sh. transformaram-se em 30 sh. Eles pariram uma mais-valia de 3 sh. O truque foi, por fim, conseguido. Dinheiro é transformado em capital.'' (O capital, tomo I)

*Sh = xelim, lib. esterl. = libra esterlina, d. = pence.

2 - ''Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das capacidades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação cada vez que produz valores de uso de qualquer espécie.'' (Idem)

3 - ''O trabalhador branco não pode se emancipar onde se ferreteia o trabalhador negro.'' (Ibid.)

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