sábado, 28 de novembro de 2015

A ciência econômica num mundo repleto

O autor do texto abaixo, Herman E. Daily*, não é marxista, mas tem uma obra relevante no campo da economia ecológica e sustentável.


A economia global é hoje tão vasta que a sociedade certamente já não pode pretender que ela opera dentro de um ecossistema ilimitado. Desenvolver uma economia que possa ser sustentável dentro da biosfera finita exige novos modos de pensar. 

O crescimento é encarado de um modo geral como a panaceia para todos os grandes males econômicos do mundo moderno. Pobreza? Basta fazer com que a economia cresça (isto é, aumente a produção de bens e serviço e estimule os gastos do consumidor) e observe a riqueza a gotejar. Não tente redistribuir a riqueza dos ricos para os pobres, porque isto arrefece o crescimento. Desemprego? Aumente a procura por bens e serviços através do rebaixamento das taxas de juro sobre empréstimos e do estímulo ao investimento, o qual conduz a mais empregos e a mais crescimento. Super população? Basta promover o crescimento econômico e confiar na resultante transição demográfica para reduzir as taxas de nascimento, tal como o fizeram os países industriais durante o século XX. Degradação ambiental? Confie na curva ambiental de Kuznets, uma relação empírica tendo em vista mostra que, prosseguindo o crescimento do produto interno bruto (PIB), a poluição a princípio aumenta mas a seguir atinge um máximo e declina. 

Confiar no crescimento desta maneira poderia ser ótimo se a economia global existisse num vazio, mas isto não acontece. Ela é, antes, um subsistema da biosfera finita que a suporta. Quando a expansão da economia ultrapassa demasiado os limites do ecossistema que a rodeia, começaremos a sacrificar o capital natural (tais como a pesca, os minerais e os combustíveis fósseis) que é mais valioso do que o capital fabricado pelo homem (tais como estradas, fábricas e aparelhos) acrescentado pelo crescimento. Teremos então aquilo a que chamo crescimento deseconômico, a produzir "males" mais rapidamente do que bens — tornando-nos mais pobres e não mais ricos. Uma vez ultrapassada a escala ótima, o crescimento torna-se estúpido no curto prazo e de manutenção impossível no longo prazo. A evidência sugere que os EUA podem já ter entrado na fase do crescimento deseconômico 

Não é fácil reconhecer e evitar o crescimento deseconômico. Um dos problemas é que há beneficiários dele e estes não querem mudar. Além disso, as contabilidades nacionais não registam explicitamente os custos de crescimento, por isso não os vemos claramente. A humanidade precisa fazer a transição para uma economia sustentável — que respeite os limites físicos inerentes ao ecossistema mundial e garanta que este continue a funcionar no futuro. Se não fizermos tal transição, poderemos ser punidos não apenas com crescimento deseconômico, mas com uma catástrofe ecológica que reduziria sensivelmente nosso padrão de vida. 

A maioria dos economistas contemporâneos discorda de que alguns países caminhem rumo à deseconomia. Muitos ignoram a questão da sustentabilidade e confiam que, como já fomos tão longe com crescimento, poderemos continuar assim para todo o sempre. A preocupação com a sustentabilidade, porém, tem longa história, remontando a textos de John Stuart Mill na década de 1840. A abordagem contemporânea baseia-se em estudos realizados nas décadas de 1960 e 1970 por Kenneth Boulding, Ernst Schumacher e Nicholas Georgescu-Roegen . Essa tradição é continuada pelos denominados economistas ecológicos, como eu, e em certa medida por subdivisões da corrente econômica principal chamada economia de recursos e ambiental. De um modo geral, contudo, a tendência dominante, os economistas neoclássicos, considera a sustentabilidade um modismo e defende o crescimento. 

Mas há factos evidentes e incontestáveis: a biosfera é finita, não cresce, é fechada (com excepção do constante afluxo de energia solar) e obrigada a funcionar de acordo com as leis da termodinâmica. Qualquer subsistema, como a economia, em algum momento deverá necessariamente cessar de crescer e adaptar-se a um equilíbrio dinâmico, algo semelhante a um estado estacionário. As taxas de nascimento devem ser iguais às de mortalidade, e as de produção de mercadorias devem igualar as de obsolescência. 

Durante a minha vida (67 anos), a população humana triplicou, e o número de objetos fabricados cresceu muito mais. O total de energia e material necessário para manter e substituir os artefatos humanos na Terra também aumentou enormemente. À medida que o mundo torna-se repleto com seres humanos e com os seus objetos, esvazia-se daquilo que continha antes. Para enfrentar esse novo padrão de escassez os cientistas precisaram desenvolver uma economia de "mundo cheio" para substituir a tradicional, de "mundo vazio". 

Na microeconomia, as pessoas e as empresas percebem claramente quando devem cessar a expansão de uma atividade. Quando se expande atinge um ponto em que ocupa o lugar de outros empreendimentos, e essa substituição é contabilizada como custo. As pessoas param no ponto em que o custo marginal é igualado pelo benefício marginal. Ou seja, não vale a pena gastar um dólar a mais num gelado quando esse dá menos satisfação do que o equivalente a um dólar de outra coisa. A macroeconomia, porém, não dispõe de uma regra análoga que avise "a hora de parar". 

Como a manutenção de uma economia sustentável repousa numa enorme mudança racional e emocional por parte de técnicos, políticos e eleitores, poderíamos ser tentados a afirmar que tal projeto é impossível. Mas a alternativa a uma economia sustentável, que mantenha permanente crescimento, é biofisicamente impossível. Ao escolher entre enfrentar uma impossibilidade política e uma impossibilidade biofísica, eu escolheria a primeira opção. 

SUSTENTAR O QUÊ? 

Até agora descrevi a "economia sustentável", apenas em termos gerais, como aquela capaz de ser mantida indefinidamente em face de limites biofísicos. Para por em prática esse tipo de economia precisamos especificar exatamente o que deve ser sustentado de um ano para o outro. Os economistas têm discutido cinco grandezas possíveis: PIB, "utilidade", rendimento, capital natural e capital total (a soma de capital natural e capital produzido pelo homem). 

Algumas pessoas julgam que uma economia sustentável deveria manter a taxa de crescimento do PIB. Segundo essa visão, a economia sustentável é equivalente à de crescimento, e isso torna a colocar a questão de o crescimento sustentado ser biofisicamente possível. 

Tentar definir sustentabilidade em termos de taxa constante de PIB é até mesmo problemático. Isso acontece porque o PIB confunde melhoria qualitativa (desenvolvimento) com incremento quantitativo (crescimento). A economia sustentável deve, em algum ponto, parar de crescer, embora isso não signifique, necessariamente, parar de se desenvolver. Não há razão para limitar a melhoria qualitativa no que se refere ao projeto de produtos, o que pode fazer crescer o PIB sem incrementar a quantidade de recursos utilizados. A principal ideia por trás da sustentabilidade é mudar a trajetória de progresso — de crescimento não sustentável para desenvolvimento, presumivelmente sustentável. 

A possibilidade seguinte a ser sustentada é a "utilidade". Ela refere-se ao nível de "satisfação de necessidades", ou nível de bem-estar da população. Teóricos neoclássicos defendem a definição de sustentabilidade como a manutenção (ou incremento) de utilidade no decurso de gerações. Mas essa definição é inútil na prática. A utilidade é uma experiência e não uma coisa. Não há unidade de medida para utilidade, e ela não pode ser legada de uma geração a outra. 

Recursos naturais, em contraste, são coisas: podem ser medidos e transferidos. Em especial, pode-se medir seu rendimento, ou seja, a taxa na qual a economia os utiliza, retirando-os de fontes de baixa entropia no ecossistema, transformando-os em produtos úteis e, por fim, descartando-os de volta ao ambiente como resíduos de alta entropia. Sustentabilidade pode ser definida em termos de rendimento pela capacidade de o meio ambiente suprir cada recurso natural e absorver os produtos finais descartados. 

Para os economistas, recursos são uma forma de capital, ou riqueza, abrangendo desde stocks de matérias-primas a produtos acabados e fábricas. Existem dois grandes tipos de capital: natural e artificial. A maioria dos economistas neoclássicos acredita que o capital criado pelo homem é um bom substituto do natural e, portanto, defendem a manutenção da soma dos dois, abordagem denominada sustentabilidade fraca. 

A maioria dos economistas ecológicos, eu inclusive, acredita que capital natural e artificial são, frequentemente, mais complementos do que substitutos, e que o natural deveria ser mantido separado, porque tornou-se fator limitante. Essa abordagem é denominada sustentabilidade forte. 

Por exemplo, a quantidade anual de peixe capturado é atualmente limitada pelo capital natural das populações do mar, e não mais pelo capital artificial representado pelos barcos pesqueiros. A sustentabilidade fraca sugeriria que a escassez de peixes poderia ser enfrentada com a construção de mais barcos. A sustentabilidade forte conclui pela inutilidade de mais pesqueiros, se há escassez de peixes, e insiste que a pesca deve ser limitada para garantir a manutenção de populações adequadas para as gerações futuras. 

A política mais adequada à manutenção do capital natural é o sistema do limitar-e-negociar (cap-and-trade): define-se um limite para o total de rendimento permitido, conforme a capacidade do meio ambiente de regenerar recursos ou absorver poluição. O direito de esgotar fontes como os oceanos ou de poluir "dissipadores", como a atmosfera, deixa de ser um bem gratuito, passando a ser um ativo escasso que pode ser negociado — comprado e vendido em um mercado livre —, após decidir a quem pertencem inicialmente. Entre os sistemas cap-and-trade já implementados está o criado pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) que institui o comércio do direito de poluir com dióxido de enxofre (que causa chuva ácida). Outro, na Nova Zelândia, estabelece a redução da pesca excessiva mediante a definição de cotas transferíveis. 

O sistema "limitar-e-negociar" é um exemplo dos papéis distintos de livres mercados e de políticas governamentais. Tradicionalmente, a teoria econômica tratou mais da distribuição (de recursos escassos entre usos concorrentes). Não tratou da questão da escala (a dimensão física da economia em relação ao ecossistema). Mercados que funcionam de forma adequada distribuem recursos eficientemente, mas não podem determinar a escala sustentável. Isso pode ser feito apenas mediante políticas governamentais. 

AJUSTES NECESSÁRIOS 

A transição para uma economia sustentável exigirá muitos ajustes na política econômica. Algumas dessas mudanças já são evidentes. O sistema de segurança social americano, por exemplo, encontra dificuldades com a transição demográfica para uma média populacional mais idosa. O ajuste exige impostos mais altos, aumento na idade de aposentadoria ou pensões menores. O sistema não está propriamente em crise, mas são necessários uns poucos ajustes para que se sustente. 

Vida útil de produtos. Uma economia sustentável requer uma "transição demográfica" não apenas de pessoas, mas também de bens — as taxas de produção deveriam ser iguais às taxas de depreciação, em níveis elevados ou baixos. Taxas mais baixas são melhores, tanto em termos de durabilidade dos bens quanto para ter sustentabilidade. Produtos de vida mais longa podem ser substituídos mais lentamente, com uso menor de recursos. A transição é análoga a um evento de sucessão ecológica. 

Ecossistemas jovens, em crescimento, têm tendência a maximizar a manutenção da eficiência do crescimento, medida em produção por unidade de biomassa existente. Nos maduros, a ênfase desloca-se para a maximização da eficiência da manutenção, ou por quanto da biomassa existente é mantida por unidade de nova produção — o inverso de eficiência produtiva. Precisamos de um ajuste similar para viabilizar a sustentabilidade. Uma adaptação nessa direção são os contratos de serviços de bens alugados — desde fotocopiadoras a tapetes. Nesse cenário, o fabricante permanece como proprietário, presta manutenção, recolhe e recicla o produto no fim de sua vida útil. 

Crescimento do PIB. Devido a melhoras qualitativas e ao aumento de eficiência, o PIB pode continuar a crescer, mesmo com rendimento constante. Os ambientalistas ficariam satisfeitos porque a quantidade processada não aumentaria; os economistas ficariam felizes porque o PIB aumentaria. Essa forma de "crescimento" — na realidade, desenvolvimento —, conforme definido anteriormente, deveria ser incrementada ao máximo, mas há vários limites. Sectores considerados mais qualitativos, como o de tecnologia da informação, quando examinados mais de perto, revelam uma substancial base física. Por outro lado, para beneficiar os pobres, a expansão deve consistir em bens que lhes sejam necessários — vestuário, abrigo, comida, e não 10 mil receitas na Internet. Mesmo os ricos gastam a maior parte do seu rendimento em automóveis, casas e viagens, mais do que em bens intangíveis. 

Sector financeiro. Em uma economia sustentável, a ausência de crescimento muito provavelmente faria os juros caírem. É possível que o sector financeiro encolhesse, porque juros e taxas de crescimento baixos não poderiam sustentar a enorme superestrutura de transações financeiras — baseada sobretudo em endividamento e expectativas de crescimento econômico futuro — apoiada precariamente sobre a economia física. Numa economia sustentável, investimentos seriam feitos principalmente para substituição e melhoria qualitativa (não para especulação sobre a expansão quantitativa) e ocorreriam com menos frequência. 

Comércio. O livre comércio não seria viável em um mundo contendo simultaneamente economias sustentáveis e insustentáveis, porque as primeiras com certeza contabilizariam muitos custos relativos ao meio ambiente e ao futuro, que seriam ignorados naquelas em crescimento. Economias insustentáveis, nesse caso, poderiam praticar preços inferiores aos das suas rivais sustentáveis, não por serem mais eficientes, mas apenas por não pagarem o custo da sustentabilidade. 

Poderia existir um comércio regulamentado para compensar essas diferenças, assim como um comércio livre entre países igualmente comprometidos com a sustentabilidade. Considera-se que tais restrições são onerosas ao comércio, mas na verdade ele já é bastante regulamentado de maneira prejudicial ao meio. 

Impostos. Que tipo de sistema tributário seria o mais adequado? Um governo preocupado com o uso mais eficiente dos recursos naturais mudaria o alvo de seus impostos. Em vez de taxar o rendimento auferido por trabalhadores e empresas (o valor acrescentado), tributaria o fluxo produtivo (aquele ao qual é adicionado valor), de preferência no ponto em que os recursos são apropriados da biosfera, o ponto de "extração" da Natureza. 

Muitos países aplicam impostos de "extração". Esse tipo induz um uso mais eficiente dos recursos, tanto na produção como no consumo, e tem monitoração e cobrança relativamente fáceis. Parece razoável aplicar impostos ao que queremos evitar (esgotamento de recursos e poluição) e deixar de aplicar ao que mais desejamos (rendimento). 

A regressividade desse imposto sobre o consumo (os pobres pagariam uma porcentagem maior do seu rendimento do que os ricos) poderia ser compensada como gasto progressivo do imposto recolhido (isto é, para ajudar os pobres), instituindo um imposto sobre artigos de luxo ou cobrando mais impostos sobre rendimentos elevadas. 

Emprego. É possível manter o pleno emprego? Essa é uma pergunta difícil, e a resposta, provavelmente será não. Entretanto, por uma questão de justiça, também devemos questionar se o pleno emprego é possível numa economia de crescimento movida pela livre comércio, exportação de serviços, imigração facilitada de mão-de-obra barata e adoção de tecnologias que eliminam empregos. Em uma economia sustentável, manutenção e consertos tornam-se mais importantes. Como exigem trabalho mais intenso e são relativamente protegidos de terceirização estrangeira, esses serviços poderão criar mais empregos. 

Entretanto, será necessário repensar a maneira como as pessoas obtêm rendimento. Se a automação e a exportação de postos de trabalho resultar numa maior parte do produto total agregado ao capital (ou seja, empresas e seus donos a lucrarem mais com o produto), e portanto menor para os trabalhadores, então o princípio da distribuição do rendimento através do emprego torna-se menos justificável. Uma alternativa prática poderia ser a participação mais ampla na propriedade das empresas, para que os indivíduos obtivessem rendimento através da participação proprietária nas empresas, em vez de obtê-la mediante empregos a tempo inteiro. 

Felicidade. Uma das forças motrizes do crescimento insustentável tem sido o axioma da insaciabilidade: as pessoas serão sempre mais felizes consumindo mais. Entretanto, pesquisas de economistas experimentais e psicólogos levam à rejeição desse axioma. Cada vez mais evidências, como o trabalho de 1990 de Richard A. Easterlin, da Universidade do Sul da Califórnia, sugerem que o crescimento nem sempre incrementa a felicidade (nem a utilidade ou o bem-estar). Ao invés disso, a correlação entre o rendimento absoluto e a felicidade é válida apenas até um limiar de "suficiência"; além desse ponto, apenas o status relativo influencia a auto-percepção de felicidade. 

O crescimento não é capaz de incrementar o rendimento relativo de todos. As pessoas que conseguirem isso em consequência de crescimento adicional seriam compensadas por outras cujo rendimento relativo cairia. Além disso, se o rendimento de todos aumentasse proporcionalmente, não haveria modificação do rendimento relativo e ninguém se sentiria mais feliz. O crescimento torna-se como uma corrida armamentista em que os dois lados vêem os seus ganhos cancelarem-se mutuamente. 

É muito provável que os países ricos tenham atingido o "limite de futilidade", ponto além do qual o crescimento não incrementa a felicidade. Isso não significa que a sociedade de consumo tenha morrido — apenas que o aumento do consumo além do limiar de suficiência, seja ele fomentado pela publicidade agressiva ou por uma compulsão inata por compras, simplesmente não está a tornar as pessoas mais felizes, segundo a sua própria avaliação. 

Um corolário acidental é que a sustentabilidade poderá custar pouco em termos de felicidade para as sociedades que atingiram a suficiência. A "impossibilidade política" de uma economia sustentável pode ser menos impossível do que parecia. 

Se não fizermos os ajustes necessários para atingir uma economia sustentável, condenaremos nossos descendentes a uma situação infeliz em 2050. O mundo tornar-se-á cada vez mais poluído e mais despojado de peixes, combustíveis fósseis e de outros recursos naturais. Durante algum tempo, essas perdas poderão continuar a ser mascaradas pela enganosa contabilidade baseada no PIB, que mede o consumo de recursos como se fosse rendimento. Mas, em determinado momento, o desastre manifestar-se-á. Será difícil evitar essa calamidade. Quanto mais cedo começarmos a agir, melhor. 

ENCRUZILHADA ECONÔMICA 

O problema: O status quo econômico não poderá ser mantido por muito tempo. Se não forem efetuadas mudanças radicais, correremos o risco de perda de bem-estar e de possível catástrofe ecológica. 

O plano: A economia precisa ser sustentada no longo prazo e obedecer a três regras: 
1. Limitar o uso de todos os recursos a fim de que os resíduos possam ser absorvidos pelo ecossistema. 
2. Explorar recursos renováveis de um modo que não exceda a capacidade do ecossistema para regenerá-los. 
3. Exaurir recursos não-renováveis a um ritmo que não exceda a taxa de desenvolvimento dos seus substitutos renováveis. 

QUANDO CRESCER É MAU 

Crescimento deseconômico ocorre quando aumentos na produção se dão à custa do uso de recursos e sacrifícios do bem-estar que valem mais do que os bens produzidos. Isso decorre de um equilíbrio indesejável de grandezas denominadas utilidade e desutilidade. Utilidade é o nível de satisfação das necessidades e demandas da população; grosso modo, é o nível de seu bem-estar. Desutilidade refere-se aos sacrifícios impostos pelo aumento de produção e consumo. Podem incluir o uso de força de trabalho, perda de lazer, esgotamento de recursos, exposição à poluição e concentração populacional. 

Uma maneira de conceptualizar o equilíbrio entre utilidade e desutilidade é com um gráfico mostrando utilidade marginal  e desutilidade marginal. Utilidade marginal é a quantidade de necessidades que são satisfeitas quando se incrementa em uma unidade o consumo de determinada quantidade de bens e serviços. Ela diminui com o aumento do consumo, porque inicialmente satisfazemos nossas necessidades mais prementes. A desutilidade marginal é a quantidade de sacrifício adicional necessária para realizar cada unidade adicional de consumo. A desutilidade marginal cresce com o consumo porque as pessoas, em princípio, fazem antes os sacrifícios mais fáceis. Por exemplo, para comprar mais coisas, podemos trabalhar dez horas a mais por semana, uma opção que vale, digamos, dez pontos de desutilidade. Para consumir ainda mais, podemos abrir mão de outras dez horas, e não dedicar tempo algum a nossos filhos. Isso poderia representar 20 pontos de desutilidade, além dos dez de que já abrimos mão. 

A escala ótima de consumo é o ponto no qual a utilidade marginal e a desutilidade marginal se igualam. Nesse ponto, uma sociedade desfruta da utilidade líquida máxima . Incrementar o consumo além desse ponto faz com que a sociedade perca mais do que ganhe, por causa do crescimento das desutilidades, conforme representado pela área de desutilidade líquida. O crescimento torna-se deseconômico. 

Em determinado momento, uma população em crescimento deseconômico atinge o limite de futilidade, o ponto no qual deixa de acumular qualquer utilidade com o aumento de consumo. O limiar de futilidade pode já estar próximo para os países ricos. Além disso, uma sociedade pode ser levada ao colapso por uma catástrofe ecológica, resultando em enorme aumento de desutilidade. Essa devastação poderá acontecer tanto antes como depois de atingido o limiar de desutilidade.


[*] Professor na Escola de Políticas Públicas da Universidade de Maryland. De 1988 a 1994 foi economista sénior do departamento de meio ambiente do Banco Mundial, onde colaborou na formulação de políticas relativas ao desenvolvimento sustentável.   Autor de numerosos livros e editor associado da revista Ecological Economics. 


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A construção de uma estratégia de desenvolvimento


Por João Sicsú* no livro ''Sociedade e economia: estratégias de crescimento e desenvolvimento'' (organizadores: João Sicsú e Armando Castelar - Brasília: IPEA, 2009)



 Uma estratégia de desenvolvimento econômico e social para o Brasil deve ser composta de duas partes. A primeira é o ponto final, ou seja, para onde se quer levar a sociedade. E a segunda é a trajetória econômica que deve facilitar a chegada ao ponto final -- um país com a máxima qualidade de vida para todos. Uma estratégia de desenvolvimento para ser factível deve, acima de tudo, emular o imaginário da sociedade, ser transformada em sonho, utopia e orgulho. Políticas públicas, instrumentos, objetivos, metas, mecanismos de avaliação devem, de forma inescapável, compor uma estratégia de desenvolvimento, mas se ela não for transformada em sonho da maioria dos cidadãos permanecerá como mais um documento na gaveta.


 Indivíduos têm percepções diferenciadas da realidade presente, do passado e do futuro. Muitos aspectos podem explicar essas percepções diferenciadas: grau de formação, de informação, acesso à cultura, ao lazer, inserção social, infortúnios, histórico familiar, processos psicológicos etc. A forma mais conhecida de de aglomeração de indivíduos (que são e devem continuar sendo) heterogêneos, com diferentes interpretações em torno de uma estratégia de desenvolvimento, tem sido através de símbolos. Símbolos são imagens, slogans ou coisas assemelhadas. Símbolos são sínteses de ideias, de projetos -- símbolos são também necessários porque são formas de substituição de líderes únicos. Uma estratégia de desenvolvimento deve prescindir da ação de um líder (com suas idiossincrasias e desejos particulares), o que torna ideias e ideais em movimento sintetizados por símbolos algo imprescindível.

 O slogan ''O petróleo é nosso'', que movimentou grande parte da sociedade brasileira em defesa da criação da Petrobrás, é um exemplo de símbolo que representou uma utopia que envolvia soberania e nacionalismo. A Petrobrás foi criada para ser monopolista de alguma coisa que à época inexistia: era puro sonho que se tornou uma realidade. O movimento pelas ''Diretas já'' (em 1984) sumariou sonhos de milhões de brasileiros por um país democrático. Os estudantes ''caras pintadas'' que tomaram as ruas, em 1992, exigindo o impeachment do presidente Fernando Collor, representaram um movimento contra a corrupção e pelo aprofundamento da democracia. ''O petróleo é nosso'', as ''Diretas já'' e os ''caras pintadas'' foram símbolos construídos pelo movimento dos movimentos da sociedade. 

 Há, portanto, outro elemento importante de uma estratégia de desenvolvimento: símbolos não são criados em laboratórios ou gabinetes. Quem saberia dizer quem disseminou o slogan ''Diretas já''? Quem imaginou que ''caras pintadas'' poderiam representar a indignação de milhares de jovens? Símbolos resultam da mobilização em torno do debate amplo e organizado sobre a rejeição ao que seja antiquado e a construção do novo.

 Portanto, uma estratégia de desenvolvimento  não é um plano de governo detalhado, assim como não deve conter respostas para a lista infindável de questões que afligem a todos os cidadãos brasileiros. Uma estratégia de desenvolvimento deve ser construída no debate com a sociedade a partir de linhas gerais que descrevam: I) o objetivo final -- um país em que questões materiais não sejam barreiras intransponíveis à felicidade; II) a trajetória -- políticas públicas, procedimentos e regras para se formatar e reformatar continuamente um novo país.

 O objetivo final de uma estratégia de desenvolvimento deve ser a construção de uma sociedade democrática, tecnologicamente avançada, como emprego e moradia dignos para todos, ambientalmente planejada, com uma justa distribuição da renda e da riqueza, com igualdade plena de oportunidades e com um sistema de seguridade social de máxima qualidade e universal -- cujas partes imprescindíveis devam ser sistemas gratuitos de saúde e educação para todos os níveis e necessidades. O Estado de Bem-Estar Social é o conceito que resume esse conjunto de objetivos. O Estado de Bem-Estar Social é a maior conquista da civilização ocidental ao longo do século XX.  Foi a conjugação única de fatores sociais, políticos e econômicos que conformou um ambiente institucional que valoriza a liberdade, a individualidade, o trabalho, a atividade empresarial, a gestão republicana do Estado, a justiça e o bem-estar social. Sua construção teve início principalmente ao final da década de 1940 na Europa ocidental, o palco da sua realização Hoje há um Estado de Bem-Estar Social em diversos países europeus, com destaque para Suécia, Noruega, Finlândia, França, entre outros.

 O funcionário do governo inglês William Beveridge foi um dos mais importantes idealizadores da utopia europeia do Ocidente. Ele foi além, muito além, do chanceler Bismark, que havia construído na Alemanha, ao final do século XIX, um sistema de proteção social baseado na atividade do trabalho que relacionava benefícios pagos ao sistema às contribuições efetuadas. Beveridge desconstruiu o modelo de Bismark ao propor um sistema social que não estava baseado exclusivamente na atividade do trabalho, mas, sim, na existência do cidadão. Portanto, um sistema de segurança de vida de todos e para todos -- que ofertaria benefícios a todos. Entretanto, o Estado de Bem-Estar Social é muito mais que o sistema de seguridade social universal beveridgeano. As ideias de universalização do direito ao emprego, de harmonia e complementaridade entre capital e trabalho, de valorização da concorrência e  de uma justa distribuição de renda e da riqueza podem ser atribuídas ao economista inglês John Maynard Keynes. O republicanismo e a democracia foram conquistas de origens diversas, mas seu símbolo maior é sem dúvida a Revolução Francesa de 1789 (e diversos fatos que a sucederam), baseada no trinômio liberdade-igualdade-fraternidade.

 A implantação de um Estado de Bem-Estar Social no Brasil está longe de ser apenas a tentativa de realização de uma cópia do modelo europeu. O Estado de Bem-Estar Social europeu deve ser visto como uma ''obra aberta'', sua construção no Brasil deve ser uma ''improvisação criadora'' para utilizar os termo de Umberto Eco em seu livro Opera Aperta. É o equilíbrio entre a observação, a interpretação e a criação que devem balizar os limites do que está definido e do que está aberto na obra de arte social europeia. Portanto, ''definitude'' e ''abertura'' de um modelo econômico e social são importantes conceitos de limite que devem ser considerados em um processo de desenvolvimento para o Brasil. Há de singular, de definido, no Estado de Bem-Estar Social implementado na Europa um conjunto específico de pilares que não podem ser reinterpretados ou recriados, tal como o sistema universalista bevedridgeano de seguridade social. A seguridade social universal é o que garante o exercício da individualidade do cidadão sem discriminação, Reinterpretar a seguridade social universal ou recriá-la, neste caso particular, significa transformá-la, e corre-se o risco assim, por exemplo, da criação de um modelo contábil e atuarial de seguridade social que se torna ''foquista'' (somente atendem aos que contribuíram, a la Bismark).

 Apesar de se ter clareza dos limites, ou seja, da ''definitude'' e também da ''abertura'' interpretativa e criadora do Estado de Bem-Estar Social europeu, não é possível fora de um movimento concreto de construção de uma estratégia de desenvolvimento do país estabelecer com maior exatidão o desenho de sociedade que se deseja. Ainda numa abordagem inicial, é melhor deixar essa pergunta (que incomoda) despercebida e reproduzir as palavras daquele que soube definir a felicidade em diversas passagens de sua obra. Enfim, o que deseja para o Brasil é um país, como disse Vinícius de Moraes, em que se tenha ''tempo para a peteca e tempo para o soneto. Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo. Tempo para envelhecer e ficar obsoleto...''

Por mais definida que seja uma estratégia de desenvolvimento, ela estará sempre em construção, seja para aqueles que ainda estão fazendo o vestibular para entrar na rota do desenvolvimento, tal como o Brasil, seja para aqueles que já são desenvolvidos. Uma estratégia de desenvolvimento está sempre em construção, inclusive, nos países mais desenvolvidos do planeta. Verdadeiros gestores de estratégias de desenvolvimento sentem de forma permanente aquilo que Camille Claudel sentia da distância imposta por Auguste Rodin: “há sempre algo de ausente que me atormenta”.

 O Estado de bem-estar social foi construído na Europa em um momento histórico muito particular e favorável. Havia uma pressão externa: a ameaça socialista que teve início com a Revolução Russa de 1917 e que se consolidava sobre parte da Europa pelas mãos do exército soviético. Havia pressão interna: as idéias socialistas avançavam na Europa ocidental, através de organizações e partidos com bases populares e operárias. E havia um estado geral de decepção com a qualidade de vida: lamentos e reclamações emanavam de todos os lares. Afinal, o sistema institucional baseado na ideia de que as forças de mercado, com Estado mínimo e/ou ausente, iriam reduzir o desemprego foi derrotado pela realidade: a Europa vivia uma crise de desemprego, desde os anos 1920. Este é um ponto muito importante: saber se existem condições históricas que favorecem a implementação de um novo modelo em um determinado país.

 As políticas macroeconômicas formam o pavimento necessário, mais básico, de uma estratégia de desenvolvimento. Políticas macroeconômicas adequadas podem promover o crescimento e a industrialização (tecnologicamente sofisticada), que são os itens mais essenciais da cesta do futuro de bem-estar social. O crescimento e a industrialização estão muito longe de ser tudo, mas sem eles nada haverá. Políticas são ações conscientes e planejadas. No caso de políticas macroeconômicas, são ações planejadas por governantes de Estado, que utilizam os três caminhos clássicos disponíveis: a política cambial, a política monetária e a administração fiscal. Pode-se argumentar que a intervenção estatal foi correta apenas no passado, porque os investimentos exigiam montantes que a iniciativa privada era incapaz de mobilizar, dada a atrofia dos mercados de capitais ou ainda porque faltava informação correta para que os empresários soubessem onde investir, com maior certeza de lucratividade. Está é uma visão incorreta da relação entre Estado e mercado, tanto do ponto vista teórico quanto histórico.

 A necessidade de o Estado participar ativamente da vida econômica de uma sociedade não está relacionada às especificidades de certo período histórico ou a alguma falha do sistema capitalista, que pode ser corrigida. Uma abordagem teórica simples é capaz de mostrar a necessidade do Estado ativo para que a economia possa prover um ambiente de bem-estar social e dinamismo nos mercados. O ponto central é que as ações (que são racionais) da iniciativa privada são pró-cíclicas – tendem a agravar situações.Turbulências econômicas são da natureza do sistema, surgem no seu interior e de forma repentina, mesmo em tempos de céu de brigadeiro. E tais turbulências tendem a se transformar em crises, quando não há a intervenção anticíclica do Estado. Situações de crise ou de semi-estagnação podem permanecer por tempos indefinidos, porque não existem mecanismos de correção automática. Não se trata de ter paciência para esperar. Ainda que este fosse o caso, o custo social do tempo de espera seria alto demais.

 Uma abordagem da realidade é capaz de provar esta inseparabilidade entre Estado e mercado, para que se possa promover uma vida em sociedade com felicidade. A chamada “época de ouro” do crescimento econômico e do desenvolvimento social, principalmente na Europa, foi no período de maior interação entre a sociedade organizada, os empresários e os governos – o que ocorreu no final dos anos 1940 até o final dos anos 1960. A alta inflação no Brasil permaneceu por décadas, até que houvesse um Plano de Governo anti-inflacionário, no ano de 1994. Embora sujeitas a controvérsias, as intervenções do Fundo Monetário Internacional (FMI) são feitas por um agente externo à economia quando o Estado, através de seus governantes, já esgotou as suas forças; as intervenções do FMI são a maior prova de que sem Estado, ou quando ele é impotente, é preciso se realizar uma super-intervenção que vem de fora para recolocar preços macroeconômicos de volta em determinada posição.

 É também parte constituinte de uma estratégia de desenvolvimento a ideia de que o governo deve implementar políticas macroeconômicas capazes de gerar a sensação de segurança para que empresários se sintam estimulados a empreender grandes investimentos, que sejam lucrativos e geradores de renda e empregos. O governo deve também fazer aquilo que a iniciativa privada não faz. Em essência, os preços estratégicos macroeconômicos de uma economia devem favorecer o investimento, a geração de renda e de empregos. Sob estas condições favoráveis, se as forças de mercados não realizarem os investimentos necessários, deve entrar em campo a mão visível do Estado realizando o investimento. Em princípio, o Estado não faz melhor ou pior que a iniciativa privada, ele é necessário para fazer o que ela não faz, e deve fazê-lo bem.

 É mera falácia que a iniciativa privada é mais capaz por definição que o setor público para gerenciar grandes atividades econômicas. Muitos concordam com esta afirmação, afinal são inúmeros os impérios econômicos empresarias e financeiros que já ruíram, assim como existem grandes e sólidos negócios gerenciados pelo setor público, mundo afora. Mas alguns têm argumentos mais sofisticados. Argumentam que a preferência pelos negócios privados se sustenta porque quando uma empresa privada é improdutiva ou quebra quem paga a conta é o empresário. E que impropriedades no setor público são pagas pelo contribuinte. Ledo engano: sempre é o cidadão quem paga a conta. No caso do setor público, pagam-se os “problemas” com mais impostos e, no caso do setor privado, os “problemas” são pagos com preços mais elevados.

 As políticas macroeconômicas devem favorecer o investimento visando à geração de empregos, renda e à industrialização. Deve-se buscar, através de diversos mecanismos, a industrialização em segmentos densos de tecnologia. A busca incessante por um modelo de industrialização sofisticada (eletrodomésticos, automóveis etc.) possui um aspecto essencial. A especialização na produção de commodities e a industrialização que gera baixo valor agregado (um modelo de economia primarizada) constituem um modelo bastante propício para a consolidação de um esquema concentrador de renda e de riqueza. O modelo primarizado gera altos lucros, empregos com baixa remuneração e ocupações não formalizadas, de acordo com a legislação trabalhista. O modelo de economia industrializada gera muitos empregos, de remuneração mais elevada e favorece o estabelecimento de relações formais de trabalho. Esta é uma opção crucial: primarização ou industrialização sofisticada?

 A política cambial que favorece o investimento e a industrialização mais sofisticada é aquela capaz de estabelecer um taxa de câmbio competitiva para a produção e a exportação de bens manufaturados. Uma taxa cambial neste patamar, por um lado, favorece a realização de mega-superávits comerciais e, portanto, o acúmulo de reservas não-voláteis e, por outro, é uma proteção contra crises cambiais de desvalorização abrupta, pelo simples fato de que uma taxa desvalorizada tem uma chance menor de se desvalorizar (ainda mais) do que uma taxa valorizada. Uma política de administração cambial – de uma taxa que deve ser flutuante – em que o Banco Central compra e vende reservas, realizando um verdadeiro processo de sintonia fi na, é capaz não só de manter a taxa de câmbio em patamar competitivo para as exportações de manufaturados, mas também é capaz de reduzir a sua volatilidade – reduzindo, em decorrência, a atividade especulativa no mercado de moeda estrangeira.

 A defesa do equilíbrio externo requer atenção não somente com a balança comercial, mas também com a conta de investimentos financeiros internacionais. Capitais financeiros que têm por finalidade financiar o investimento e a produção são bem-vindos, sejam eles domésticos ou estrangeiros. Capitais financeiros que tem o mero objetivo de sua capitalização, sem que este processo traga benefícios à produção ou ao investimento, não são bem-vindos. Estes capitais somente provocam pressão valorizativa sobre o câmbio, no momento da sua entrada, e pressão desvalorizativa, no momento da sua saída: nada mais. O movimento dos capitais financeiros que busca apenas a sua capitalização através de movimentos especulativos e de arbitragem deve ser desestimulado. A primeira e principal medida neste campo é o estabelecimento de uma taxa de juros básica da economia, em patamar semelhante aos juros americanos. Uma taxa de juros muito elevada em relação à taxa de juros americana é maléfica para a economia, em pelo menos três aspectos: i) atrai capitais financeiros especulativos para o país; ii) eleva demasiadamente o custo de carregamento de reservas por parte do Banco Central; e iii) desestimula o investimento produtivo. Se uma taxa de juros relativamente baixa não for capaz de evitar os males dos movimentos especulativos dos capitais, outras medidas devem ser adotadas. Por exemplo, a cobrança de impostos sobre a movimentação financeira internacional ou outras medidas administrativas a serem definidas.

 A política monetária que favorece o investimento e a industrialização mais sofisticada é aquela que é totalmente consistente com a política cambial descrita. Não se pode determinar uma política monetária independentemente da política cambial (e vice-versa), ainda que o regime de câmbio seja flutuante, porque um regime de altas taxas de juros está necessariamente associado a um regime de câmbio valorizado. Esta é uma conhecida gangorra da macroeconomia. Uma política monetária de taxas de juros baixos é consistente, portanto, com uma política cambial de taxa competitiva. Como dito, uma política de taxas de juros elevadas determina uma taxa de câmbio valorizada e impõe custos elevadíssimos de carregamento de reservas ao setor público, que recebe a taxa de juros americana e paga a taxa de juros doméstica por cada dólar retido no Banco Central.

 A taxa de juros é fundamental para manter o equilíbrio externo: transações com o exterior financiadas e blindagem contra movimentos de capitais financeiros que são maléficos. Mas é também fundamental para manter o equilíbrio interno: alto crescimento com infl ação baixa. Nesse sentido, uma nova concepção deveria governar a determinação da taxa de juros. Todo poupador cujos recursos não fi nanciam algum tipo de gasto doméstico (consumo ou investimento) é um gerador de desemprego. Quanto maior a taxa de juros maior é o estímulo para a poupança e, portanto, maior é o desemprego causado pelo poupador. Logo, a taxa de juros deveria ser pensada como um instrumento capaz de punir aqueles que não querem gastar, ou seja, como um instrumento que pune o gerador de desemprego. Portanto, a taxa de juros deveria ser sempre baixa, muito baixa.

 A taxa de juros, por ser um instrumento capaz de controlar a demanda agregada, já se mostrou plenamente eficaz para o controle da inflação. Contudo, é preciso entender que sua funcionalidade depende de sua perversidade, isto é, gerar desemprego – para que haja uma redução de demanda relativamente à oferta, o que inibe o reajuste de preços. Mas como a economia de bem-estar que se deseja construir é uma economia de emprego para todos, estabelece-se aqui um trade-off: de um lado, um instrumento anti-inflacionário funcional que gera desemprego; e, de outro, a obrigação estratégica permanente de gerar mais empregos. A alternativa não pode ser abandonar a taxa de juros, um instrumento anti-inflacionário funcional, mas sim reduzir ao máximo possível a utilização anti-infl acionária da taxa de juros, sem que o objetivo da estabilidade de preços seja relegado a um segundo plano.

 Para tanto, o objetivo da estabilidade de preços deveria ser um objetivo de todos os órgãos públicos. Logo, mais instrumentos estariam disponíveis para este fi m. Se a inflação estivesse sendo causada pelo aumento do feijão ou da soja, seria o Ministério da Agricultura que deveria apresentar um diagnóstico do problema e apontar soluções. Se a inflação estivesse sendo causada pelo aumento de margem de lucro de forma excessiva por parte da indústria automobilística, seria o Ministério da Indústria e Comércio que deveria apresentar um diagnóstico do problema e apresentar soluções. O Banco Central deveria ser o controlador de última instância da inflação, e não o primeiro e único órgão do Governo preocupado com um problema que é amplo, complexo e com muitas especificidades. Deixar somente o Banco Central responsável por tratar da estabilidade de preços é o mesmo que solicitar a um médico clínico geral para solucionar ora um problema do coração, ora um problema de pele, ora um problema do estômago. Manter a inflação sob controle é algo tão importante que deveria haver uma câmara formada por diversos organismos do Governo – inclusive o Banco Central – e dirigida pelo Presidente da República para deliberar sobre o assunto.

 A administração fiscal que favorece o investimento e a industrialização mais sofisticada é aquela que busca: i) manter a economia em estado de semiboom permanente, através de uma política de gastos rumo ao pleno emprego; ii) promover justiça social ao estabelecer um sistema tributário progressivo, onde a renda e o patrimônio sejam a base da arrecadação – e o consumo, a produção e o investimento sejam desonerados; iii) equilibrar o orçamento para que o governo tenha nas suas mãos uma política de gastos que possa ser utilizada na sua plenitude, sem restrições orçamentárias importantes; iv) desenvolver mecanismos democráticos de decisão de gastos, assim como desburocratizar os processos de gastos do governo para que o gasto público possa ser feito com melhor qualidade, sem desperdício e com preços menores; e v) desenvolver mecanismos mais simples de arrecadação e fiscalização da arrecadação – que são procedimentos necessários para que a carga tributária tenha o tamanho compatível com a sociedade de bem-estar que se pretende construir.

 Essas são linhas gerais de uma estratégia de desenvolvimento para o Brasil. São linhas que rompem com o Consenso de Washington, que já revelou o seu fracasso histórico. As evidências do fracasso são nítidas. Em primeiro lugar, os países que mais se desenvolveram nas últimas cinco décadas, entre eles Japão, Coréia do Sul e Israel, jamais adotaram políticas macroeconômicas ou reformas estruturais assemelhadas àquelas sugeridas pelos “de cima”, no Consenso de Washington. Em segundo lugar, os 10 países que mais cresceram nos últimos 20 anos sempre mantiveram a devida distância em relação às recomendações vindas dos “de cima”.

 Em ordem de média de taxa crescimento, são eles: China, Cingapura, Coréia do Sul, Taiwan, Vietnã, Malásia, Tailândia, Índia, Hong-Kong e Paquistão. São todos da Ásia, onde as idéias elaboradas em Washington nunca tiveram qualquer penetração. Em terceiro lugar, a Argentina, que foi a melhor “aluna” dos professores de Washington durante os anos 1990 – seguindo os mínimos detalhes das sugestões de políticas públicas, reformas, liberalizações e privatizações – obteve como resultado uma profunda recessão, elevadíssimas taxas de desemprego e jogou mais da metade da sua população na condição de miséria.

 Por fim, o Consenso de Washington, segundo seus defensores, expressa a ideia de que existem “fundamentos” econômicos básicos que devem ser perseguidos, sejam em países desenvolvidos, sejam em países em desenvolvimento. Entretanto, os próprios países desenvolvidos para manter o seu estado de desenvolvimento avançado não seguem as recomendações que nos fazem.


*João Sicsú é Doutor em Economia (Instituto de Economia, UFRJ). Diretor de Estudos Macroeconômicos do IPEA e professor licenciado do IE-UFRJ.

A súbita guinada neoliberal do Brasil

Por Franklin Serrano*



 A rápida desaceleração da economia brasileira apresenta um duro desafio para o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) liderado por Dilma Rousseff. Entre 2011 e 2014, o crescimento econômico médio foi de apenas 2,1% ao ano, comparado com 4,4% no período 2004-2010.

 A recente queda pode ser diretamente atribuída à política econômica implementada por Dilma no primeiro mandato (2011-14) . Esta mudança na orientação da política econômica procurou reduzir o papel direto do Estado na promoção da expansão da demanda agregada por meio de estímulos fiscais e a promoção da mudança estrutural pelo lado da oferta por intermédio do investimento público, uma estratégia que havia sido bastante exitosa até 2010. Por seu turno, as políticas sociais inclusivas preocupadas com a redução da desigualdade continuaram em curso.

 A presidenta Dilma e seu partido (incluindo o ex-presidente Lula) avaliaram – em uma tentativa de reduzir as críticas dos empresários, bancos, parte do Congresso e da mídia – que o governo estava intervindo “demais” na economia. Houve uma mudança na concepção do papel do Estado na economia na direção de prover incentivos (isenções fiscais generosas e incondicionais) para o investimento privado, de forma que este setor lideraria (ao invés de seguir) o crescimento econômico.

Esta política falhou completamente. Isto foi agravado quando uma rara estiagem em conjunto com a má condução da política energética pela Eletrobrás, a principal empresa estatal do setor elétrico, levaram o país à beira de uma séria crise de oferta energética e racionamento de energia em 2014, mesmo com a demanda em baixa devido à queda do crescimento econômico.

 Ao invés de retornar às políticas bem-sucedidas anteriores de 2005-2010, e melhorar o planejamento de longo prazo (por meio de melhores políticas tecnológicas e de infraestrutura), o segundo mandato de Dilma está completamente comprometido com políticas propostas pela oposição neoliberal. O propósito subjacente deste regime é gerar desemprego suficiente para enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores.

 Este poder, talvez de maneira não intencional, aumentou substancialmente devido a um mercado de trabalho mais aquecido entre 2006 e 2014 e às políticas sociais do governo PT. O desemprego caiu acentuadamente e os salários reais médios no setor formal cresceram a uma taxa média de 3% ao ano, a partir de 2006 [2]. Em 2015, o governo do PT passou a tomar ações decisivas contra isso. A geração de desemprego via políticas de austeridade e mudanças na distribuição em detrimento dos salários criaram um clima político em que é possível reverter o tamanho e a importância do Estado brasileiro na economia. 

Esta traição súbita e drástica contra a própria base do partido formada pela classe trabalhadora foi uma reação ao aumento das críticas à política econômica do primeiro mandato de Dilma feita pelo poderoso e conservador setor privado. Os conflitos distributivos e um novo Congresso hostil confrontaram uma presidenta e um partido que ao mesmo tempo parecem querer sinceramente mudanças sociais ao passo que abominam o conflito com as classes proprietárias conservadoras. Esta quadratura do círculo parecia possível até 2011 quando havia uma bonança de divisas, mas agora a moderação do PT e a pesada dependência do financiamento eleitoral de grandes empresas e bancos estão cobrando seu preço.

 Estas novas mudanças políticas têm sido muito mais significativas do que as mudanças nas condições externas, tais como a situação do comércio internacional e a disponibilidade de financiamento externo. Estes se deterioram desde 2011, mas não a ponto de desencadear uma crise na medida em que o Brasil é uma economia relativamente fechada. As exportações não são uma grande fonte de demanda e o país ainda tem níveis confortáveis de reservas cambiais e níveis relativamente baixos de dívida externa.

 O ministro da Fazenda Joaquim Levy disse ao jornal Correio Brasiliense na edição do dia 13 de Junho que ele estava a caminho de “sair da retórica e enfrentar algumas realidades”. Segundo Levy, existem pessoas que não queriam ingressar no mercado de trabalho, que agora terão que procurar emprego, e que é por esta razão que a oferta de trabalho deve crescer. Ainda de acordo com ele, “Não existe crescimento sem aumento da oferta de trabalho”. O ministro cometeu um erro óbvio: na teoria neoclássica do crescimento, a qual aludiu, é o pleno emprego que geraria o crescimento e não o desemprego, que, por definição, nada produz. 

 Ironicamente, a situação externa relativamente positiva, como recentemente assinalado por Matias Vernego [3], tem sido confirmada pelas agências que rebaixaram o Brasil no começo de setembro. A Standard & Poors justificou a classificação do Brasil abaixo do grau de investimento devido às dificuldades fiscais e a dívida interna do governo, não aos problemas de financiamento externo.

 É logicamente impossível para o mercado forçar um governo a dar calote na dívida interna denominada em sua própria moeda. Em qualquer país onde o Banco Central compra e vende qualquer quantidade de títulos governamentais de curto prazo no mercado secundário para estabelecer a taxa de juros básica da economia, quaisquer títulos não comprados pelo setor privado são comprados pelo Banco Central à taxa de juros estabelecida. Isto é ignorado pela S&P. Mas para ser justo, a S&P também rebaixou os títulos do governo japonês como também o fez com os títulos do governo dos Estados Unidos, então a insensatez da S&P não é restrita ao Brasil. Tal como as agências de classificação de risco disseram quando elas foram convocadas à Corte por seu papel na crise financeira de 2008, suas classificações são “apenas uma opinião” [4]. Infelizmente, a presidenta Dilma levou estas opiniões a sério.

 Os escândalos em andamento também estão tendo efeitos negativos sobre a economia. O governo teve uma reação desastrosa aos escândalos relacionados à companhia estatal Petrobras (com implicações sobre diversos quadros do PT no governo). Ao invés de tentar preservar a companhia enquanto a lei se encarrega dos acusados, a Petrobras foi tratada como um fio desencapado e o governo tentou distanciar-se dela. O governo aceitou quase todos os violentos ataques especulativos de curto prazo no valor das ações da empresa como refletindo verdadeiramente o valor real dos ativos da Petrobras. Isto agravou (e inclusive criou) sérios constrangimentos de crédito para a empresa.

 Assim, o governo paralisou os planos de investimento da Petrobras. Para piorar a situação, algumas grandes empresas que atendiam a Petrobras e estavam sob suspeita de corrupção foram impedidas de fazer qualquer negócio com o governo. A administração de Dilma não fez o suficiente para impedir isso. Como resultado, não apenas a Petrobras cortou investimentos como reduziu drasticamente suas encomendas de um grande número de grandes empresas privadas e de sua própria cadeia de fornecedores, e isto foi um desastre para vários setores, tais como o de construção naval.

 O impacto político dos próprios escândalos foi demasiadamente amplificado pela manipulação de magistrados com ambições políticas, atuando em concerto com os grandes meios de comunicação aliados à oposição. A resultante queda da popularidade colocou a administração de Dilma em uma posição política muito frágil. Isto tem ajudado o deslocamento da política na direção da austeridade na medida em que tem acentuado uma tendência, já dominante entre os líderes do PT imediatamente após as eleições de outubro de 2014, de fazer o que o “mercado” – isto é, grandes empresas privadas, a oposição e a mídia – quer. Estas políticas de austeridade, ao lado da reação desastrosa do governo ao escândalo na Petrobras – mais do que qualquer mudança nas condições econômicas internacionais – estão causando a profunda recessão atual. Se nós considerarmos a eficácia das medidas de austeridade buscadas pelo ministro da Fazenda Levy no controle do tamanho da dívida pública bruta para restaurar algum misterioso “nível de confiança”, esta terá sido um fracasso completo. Os gastos governamentais foram cortados da maneira mais arbitrária possível, e a recessão provocada pelas políticas fiscal, monetária, cambial e de rendas (aumento dos preços monitorados e de serviços de utilidade pública), ao lado da queda no valor das exportações, têm reduzido drasticamente as receitas fiscais, como era de se esperar. Desta forma, dentro de poucos meses, toda a meta de superávit primário teve de ser revisada para baixo.

 Além disso, a taxa de juros definida pelo Banco Central amplia os custos de gerenciamento e o estoque da dívida pública. Porém, se a eficácia for medida em termos dos objetivos reais da nova política, o sucesso é retumbante. A taxa de desemprego aumentou muito rapidamente. A inflação subiu e terminará o ano muito acima do limite superior da meta oficial de 6,5% [5]. O Banco Central simplesmente “suspendeu” a meta de inflação para este ano, depois de não exceder o limite superior por quase uma década e meia.

 Mas, na medida em que o propósito dessa inflação acelerada é reduzir os salários reais, algo que o governo eufemisticamente chama de “corrigir o desequilíbrio dos preços relativos”, o governo não evitou – e, na verdade, colaborou – para uma maior desvalorização cambial e aumento dos preços de serviços de utilidade pública. Por outro lado, o investimento público desabou.

 A eficiência dos serviços públicos tem sido comprometida por muitos cortes de gastos arbitrários e francamente ridículos. A UFRJ, universidade na qual leciono, recebeu menos do que 30% do seu orçamento aprovado para o calendário deste ano até Setembro. Histórias de horror como esta são abundantes no setor público brasileiro. Tais políticas ajudam a criar um consenso de que o Estado é ineficiente (e corrupto), provocando o coro em favor da redução, de forma mais permanente, dos gastos públicos e mesmo das transferências sociais.

 O governo já está planejando enviar ao Congresso amplas reformas do sistema público de seguridade social. No começo da década de 1990, Lula e o PT lideraram com parcial sucesso a oposição tanto à austeridade macroeconômica como às reformas neoliberais, e isto ajudou o Brasil a escapar de alguns dos piores impactos do neoliberalismo. Agora, eles estão liderando o movimento para as reformas neoliberais. Até o momento, estas novas políticas têm encontrado pouca resistência política na medida em que elas correspondem precisamente ao que as forças políticas conservadoras, que controlam o Congresso, querem, e porque agora não há nenhum grande partido de esquerda que se oponha a elas, uma vez que elas estão sendo implementadas (muito disciplinadamente) pelo próprio PT.

 Para os estudiosos da história brasileira, a eclosão da atual onda de escândalos e de pressões para a austeridade econômica não surpreende. Embora, historicamente, o presidente e o Executivo tenham sido muito poderosos relativamente ao Congresso e ao Judiciário, sempre que houve um presidente mais ou menos de esquerda, não importando o quanto moderado fosse, o Congresso e o Judiciário incitaram uma crise política para gerar um parlamentarismo informal. Isto aconteceu quando o ex-ditador Getúlio Vargas retornou como presidente eleito democraticamente na década de 1950 e com o presidente João Goulart antes do golpe militar na década de 1960. Houve uma tentativa fracassada de repetir esta estratégia durante o mandato de Lula, com a assim chamada crise do mensalão (referente às contribuições ilegais de campanha comprovadas e alegados subornos para membros do congresso). Isso está acontecendo novamente com a presidenta Dilma.

 O caso do presidente Fernando Collor foi completamente diferente. Sua candidatura foi um ato de desespero, uma vez que ninguém melhor foi encontrado que tivesse apelo popular e foi necessário para prevenir Lula e a esquerda de vencerem a eleição de 1989. Historicamente, existem duas formas fáceis para se livrar da esquerda na América Latina. A primeira é por meio de uma séria crise do balanço de pagamentos. A segunda, durante a Guerra Fria e especialmente depois da crise dos mísseis em Cuba, era um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos (o Chile teve os dois). Depois da década de 2000, a situação do balanço de pagamentos nos países em desenvolvimento em geral, e no Brasil em particular, melhorou significativamente. Com o fim da Guerra Fria, o Exército brasileiro não tem interesse em um golpe.

 A atual crise política é mais parecida com a situação de Vargas na década de 1950, na medida em que tanto naquela época como agora o Brasil não enfrenta nem uma crise no balanço de pagamentos nem a ameaça de um golpe militar. Mas é improvável que acabe tão tragicamente para a presidenta Dilma (o presidente Vargas cometeu suicídio) porque ela, o ex-presidente Lula e o resto do seu partido já se renderam sem muita luta.

Referências

[1] Ver SERRANO, F.; SUMMA, R. “Demanda agregada e a desaceleração econômica brasileira de 2011 a 2014”. In: Center for Economic and Policy Research, agosto de 2015. Disponível em: http://www.cepr.net/documents/publications/Brazil-2015-08-PORTUGUESE.pdf.
[2] Ver SUMMA, R.; SERRANO, F. “Distribution and cost-push inflation in Brazilian Economy under inflation targeting, 1999-2014”. In: Working Paper 13, Centro Sraffa, 2015.
[3] Ver http://nakedkeynesianism.blogspot.com.br/2015/09/from-bbb-razil-to-bbrazil-or-meaning-of.html. Acessado em 19/10/2015.
[4] Ver http://www.publicintegrity.org/2009/10/28/6995/under-attack-credit-raters-turn-first-amendment. Acessado em 19/10/2015.
[5] Ver http://www.bloomberg.com/news/articles/2015-06-25/brazil-changes-inflation-target-for-thefirsttime-since-2006. Acessado em 19/10/2015.

*Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisador Associado Sênior do Center for Economic and Policy Research (www.cepr.net).

O original encontra-se em www.excedente.org

domingo, 1 de novembro de 2015

Sobre o livre comércio (e vantagens comparativas)


Traduzo logo abaixo um texto de Matias Vernengo, professor titular da Bucknell University e coeditor da Review of Keynesian Economics, sobre o tema do comércio externo e sua liberalização ou regulamentação, retirado do blog Naked Keynesianism



Sobre comércio ''livre'' e comércio gerido (modelo ricardiano) 

 Em um de meus últimos posts eu prometi falar sobre ''livre comércio''. Como eu disse, o próprio nome está equivocado, assim como ''livre mercado''. Não apenas porque sugere que aqueles que se opõem a ele são de alguma forma adversários da liberdade, mas principalmente porque ele vagamente sugere que comércio e mercado são como fenômenos naturais, que floresciam somente se as restrições governamentais fossem eliminadas. 

 Na verdade, é bem sabido que, ao menos desde o clássico de Polanyi, que os mercados essenciais numa economia capitalista (os de terra, trabalho e dinheiro) foram lentamente criados por meio da interação de conflitos sociais articulados através de processos políticos e que sua própria existência resulta, em parte, do poder do  Estado. Logo, visões simplistas e maniqueístas acerca da relação entre o Estado e o ''livre'' mercado ignoram o fato de como Estados e mercados co-evoluíram historicamente.

 Por exemplo, o Banco da Inglaterra, criado em 1694, obteve o monopólio da criação de dinheiro apenas após Bank Charter Act de 1844, algo que resultou da vitória do City of London (interesses financeiros) sobre os bancos do país (mais próximos aos interesses comerciais). O monopólio da emissão de dinheiro seria impossível sem o suporte do governo (e seu monopólio da violência). O mesmo pode ser dito sobre transações comerciais internacionais. Por exemplo: é bem conhecido que o período chamado ''primeira globalização'' (1870-1914) viu um significante acréscimo no volume de comércio global. Entretanto, várias regiões na verdade se tornaram mais ''protecionistas'', i. e., aumentaram as tarifas sobre importações (veja Paul Bairoch para um boa discussão sobre o tópico). 

 Na América Latina as tarifas mais altas permitiram aos governos incrementar sua receita, o que, por sua vez, criou as condições para os exércitos nacionais reduzirem conflitos domésticos -- e centralizar a administração, fornecer garantias para os credores estrangeiros e financiar a construção de ferrovias e portos.

 Isso não significa que todo mundo na América Latina (ou em outras regiões para as quais o tema importa) se beneficiaram do acréscimo no comércio global durante o período [vale a pena lembrar que no México, no final do período, os camponeses fizeram revolta contra o Porfiriato na chamada Revolução Mexicana de 1910]. Não foi o ''livre'' comércio que produziu crescimento, mas a gestão do comércio para produzir mercadorias para os países centrais (um projeto particular apoiado por elites locais e grupos comerciais e financeiros internacionais) que levou ao crescimento (com altos níveis de desigualdade).

 Uma discussão mais lógica, por todos esses motivos, deveria ser não sobre ''livre'' comércio vs protecionismo, mas sobre que tipo de comércio gerido uma determinada sociedade deseja, e quem se beneficia dos diferentes arranjos comerciais. Por exemplo: em discussões correntes sobre acordos comerciais bi ou multilaterais os temas do investimento e cláusulas de propriedade são fundamentais. A disputa é principalmente sobre aqueles que querem proteger os interesses das corporações [e. g. (''a título de exemplificação'') direitos de propriedade, acesso às cortes estrangeiras, eliminação de regulações financeiras proibindo remessas de lucro ao exterior, etc.] e aqueles que podem ter interesses alternativos (e. g. a proteção dos empregos domésticos, criação de capacidade nacional para inovação industrial, o meio-ambiente, etc). De fato, para casos específicos, como defesa ou regras sanitárias e fitosanitárias, está bem estabelecido que o comércio deve ser regulado, ou seja, não ''livre'' mas sim gerido (para discussões sobre alguns problemas correntes envolvendo a agenda do ''livre'' comércio, olhe aqui e aqui).

 Mas os problemas para os defensores do ''livre'' comércio não estão limitados às inconsistências de suas posições políticas. Na verdade, apesar do consenso geral de economistas acadêmicos (convencionais) em favor do ''livre'' comércio, os fundamentais teóricos para a posição dos mesmos são bastante trêmulos. O argumento remonta aos Princípios de David Ricardo (veja também o trabalho paralelo de Robert Torrens). Ricardo argumentou que se Inglaterra e Portugal comercializassem sem a imposição de tarifas isso seria mutuamente benéfico, mesmo que Portugal fosse melhor em produzir ambos os produtos comercializados, vinho e algodão. A razão é simples: mesmo que os trabalhadores portugueses fossem mais produtivos do que suas contrapartes inglesas na produção de ambos os bens, eles poderiam ser melhores na produção de um deles (digamos, vinho) e ainda se beneficiariam de colocar todos os seus esforços na atividade em que se destacam.

 Em outras palavras, o argumento para o comércio sem tarifas e outras restrições estava baseado na ideia de que o comércio é equivalente a acesso a melhores tecnologias. Os portugueses poderiam se especializar no que eles são tecnologicamente melhores, e obter através do comércio as coisas que eles não produzissem. Os ingleses poderiam ter acesso a melhor vinho. Ambos teriam acesso a algodão mesmo que os ingleses fossem menos eficientes em produzi-lo. A mensagem é que especialização é a chave para a riqueza das nações.

 Entretanto, o que é frequentemente ignorado na discussão é que o argumento ricardiano da vantagem comparativa, como é o caso para todos os modelos econômicos, depende de certas premissas especiais, e que aquelas premissas correspondiam às próprias visões políticas de Ricardo. Primeiramente, Ricardo assumiu que todos os trabalhadores que estavam empregados na produção de vinho na Inglaterra encontrariam emprego na produção de algodão, e que todos os trabalhadores empregados na produção de algodão em Portugal poderiam achar trabalho na produção de vinho. A Lei dos Mercados de Say, que sugere que a crise geral de demanda não ocorre no mercado interno, foi estendida para os mercados externos também. Trabalhadores estão sempre empregados por definição (não necessariamente pleno emprego para Ricardo). Além disso, Ricardo assumiu que o capital era imóvel, isto é, mesmo que fosse mais barato de produzir em Portugal (dada a sua maior produtividade e menores custos) e exportar para a Inglaterra, capitalistas ingleses prefeririam manter o seu capital na Inglaterra e produzir em seu país natal.

 Note que se qualquer uma dessas premissas for violada, o argumento de Ricardo desaba. Em outras palavras, se os trabalhadores na Inglaterra e/ou em Portugal no setor ''deslocado'' não puderem achar empregos no outro setor, não é claro que todos se beneficiam do ''livre'' comércio. Além disso, se os capitalistas puderem e de fato se moverem de país para país (Interessantemente, Ricardo descendia de uma família de banqueiros que emigrou de Portugal para a Itália, desta para a Holanda e por fim para a Inglaterra), isso determinaria que ambos o algodão e o vinho seriam produzidos em Portugal. A Inglaterra estaria em uma difícil situação, importando ambos os bens e condenada a crescer num ritmo mais lento, o que é exatamente o oposto da situação histórica (para uma análise do comércio Anglo-Português depois do Tratado de Methuen de 1703 que permitiu ao vinho português ser exportado para a Inglaterra livre de tributações e o mesmo para os têxteis ingleses em Portugal, ver Trade and Power de Sandro Sideri).

 As razões das premissas especiais de Ricardo são bastante conhecidas. Ricardo representou os interesses financeiros e industriais, e era um severo crítico das Corn Laws, as tarifas sobre grãos importados impostas após as Guerras Napoleônicas, que beneficiava as classes dos aristocratas e latifundiários -- defendidas por seu amigo Robert Malthus. Ricardo assumiu que os salários estavam no nível da subsistência, e que as tarifas na importação de grãos levaria ao uso de mais (e menos produtivas) terras na Inglaterra para sua produção, incrementando a renda auferida pelos donos de terras. Para uma produção dada, e com salários constantes, a renda maior iria necessariamente reduzir lucros e a acumulação de capital. Em outras palavras, as premissas especiais (que Ricardo pensou relevantes para o caso particular da Inglaterra naquele contexto histórico particular) foram instrumentais em sua argumentação para a eliminação das tarifas sobre grãos importados. Isto era um argumento progressista pela industrialização e contra a aristocracia agrária (para uma discussão sobre as posições políticas de Ricardo, veja Ricardian Politics, de Milgate e Stimson).

 Generalizações do argumento ricardiano somente podem ser defendidas se seus pressupostos (incluindo que trabalhadores desalocados acham novos empregos e que não há mobilidade de capital) também são tido como geralmente válidos. Outros argumentos modernos em favor do ''livre'' comércio se apoiam no assim chamado modelo Heckscher-Ohlin-Samuleson (HOS), que está repleto de problemas lógicos, e é ainda menos defensável do que a generalização de pontos de vista ricardianos, mas eu vou lidar com aqueles em outro post.

Ps. Meu artigo ''O que os graduandos realmente precisam aprender sobre comércio e finanças'' pode prover uma discussão mais detalhadas sobre os assuntos abordados acima. Robert Vinneau postou aqui elementos da crítica sraffiana ao modelo HOS.

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Para outras críticas à teoria das vantagens comparativas, ver este artigo do site da World Economics Association e este texto do blog Critique of Crisis Theory.