quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Conhecimento imperfeito, desenvolvimento econômico e teoria


 O texto abaixo é um trecho do livro A ascensão do ''resto'': os desafios ao Ocidente de economias com industrialização tardia (2009), de Alice Amsden - professora de Economia política no Departamento de estudos urbanos e planejamento do M.I.T. 





 As implicações para a teoria do desenvolvimento econômico da renúncia à premissa do conhecimento perfeito são radicais, mas mal começaram a ser exploradas.

 Se o conhecimento não é perfeito, então a produtividade e a qualidade podem variar entre empresas de uma mesma indústria em diferentes países. Por conseguinte, simplesmente permitir que o mecanismo de mercado determine o nível dos preços ('''acertar' os preços'') pode não bastar para permitir que os países concorram internacionalmente em indústrias em que precisem desfrutar de uma vantagem competitiva (indústrias que utilizem mão-de-obra, no caso de países com mão-de-obra abundante, indústrias que utilizem matéria-prima, no caso de países com matéria-prima abundante, e assim por diante). O preço da mão-de-obra, por exemplo, pode ter de ficar negativo antes que um país com mão-de-obra abundante se torne internacionalmente competitivo na indústria que mais utiliza mão-de-obra (mantendo-se constantes a produtividade e a qualidade), já que os ativos exclusivos baseados no conhecimento de um concorrente com salários maiores pode proporcionar a este último custos unitários mais baixos -- como vimos no caso da indústria têxtil japonesa em comparação com as indústrias têxteis indiana e chinesa no pré-guerra e com as indústrias têxteis taiwanesa e coreana no pós-guerra.

 Além disso, sob condições de conhecimento imperfeito, mesmo que '''acertar' os preços positivos'' gere competitividade internacional (mediante, digamos, a desvalorização da taxa de câmbio ou, o que dá no mesmo, a redução dos salários), esta não é uma solução ''ótima segundo Pareto'', definida como a melhor de todas as políticas, em que nenhum ator econômico pode melhorar a própria situação sem piorar a de um outro ator econômico. Nem a abordagem mercadológica nem a institucional ocupam uma posição moral ou teórica mais elevada. Como vimos no ''resto'' [1], pode ser mais proveitoso para o crescimento (e mais rápido -- e sobre isso a teria não nos pode dizer nada) elevar a produtividade por meio da engenharia institucional do que reduzir custos cortando salários.

 Portanto, na ausência do conhecimento perfeito, a resolução do problema dos altos custos de produção torna-se uma questão antes empírica do que teórica.

 Renunciar à premissa do conhecimento perfeito também significa abrir ainda mais as portas à possibilidade de elaborar teorias indutivas de desenvolvimento econômico. Modelos indutivos utilizam casos concretos de expansão industrial, em vez de hipóteses abstratas, para explicar o crescimento e orientar a formulação de políticas. Duas inferências da experiência do ''resto'' podem são relevantes nesse sentido.

 Primeiro, os modelos indutivos podem influenciar a formulação de políticas econômicas mais do que (ou tanto quanto) teorias abstratas dedutivas. A influência de um modelo foi notável no caso das políticas tão bem-sucedidas de promoção às exportações no Leste Asiático, que extraíram exportações das indústrias de substituição de importações, tendo como base o antigo regime comercial (políticas e instituições) do Japão. Com um número maior de industrializadores tardios bem-sucedidos (e mal-sucedidos), os modelos indutivos proporcionam um recurso de aprendizado tão rico para o ''resquício'' [2] como as teorias dedutivas.

 Segundo, as ''falhas de governo'' já não poderão ser tidas como certas se os governos utilizarem mecanismos institucionais para elevar a produtividade e ligar no tranco o crescimento industrial. A falhas do governo podem ser inevitáveis na ausência de um maquinário sistemático que as impeça, mas não necessariamente na presença de tal maquinário, como vimos no caso do ''resto''. O mecanismo de controle recíproco do ''resto'' dificilmente era perfeito. Mas ele ilustra as possibilidades de minimizar as ''falhas'' do governo mesmo em economias assoladas pelo ''risco moral'' [3] e a corrupção (mas com experiência manufatureira).

 Até o momento não houve grande reconhecimento do maquinário sistemático que os países do ''resto'' instalaram, implementaram e monitoraram para evitar as falhas de governo e seguir metas desenvolvimentistas. Todavia, '''acertar' o mecanismo de controle'' a despeito de os preços prevalecentes estarem ou não ''certos'', foi fundamental para o processo de retomada no pós-guerra. 

Observações
[1] Grupo de países composto por Brasil, Argentina, Chile, México, Turquia, China, Coreia do Sul, Índia, Taiwan, Malásia, Tailândia e Indonésia. 
[2] O ''resquício'' são países que estiveram menos expostos a vida fabril moderna no pré-guerra, não possuindo posteriormente nada que se aproximasse da diversificação industrial do ''resto''.
[3] Situação em que um ator econômico portador de informação privada pode fazer uso desta em benefício próprio após a celebração de um contrato, eventualmente impondo prejuízos ao principal (ator econômico cujo retorno depende da ação daquele agente ou da informação que é propriedade do mesmo). 

sábado, 20 de janeiro de 2018

Mais complexo do que pode parecer


 Nota sobre o 'rentismo', parasitismo social e as formas e condições de valorização capitalista no Brasil




  O fenômeno das taxas de juros acima da média internacional no Brasil, com consequente elevação acelerada da dívida pública, tem provocado uma acalourado debate dentro da esquerda nacional e de certos grupos de economistas e analistas econômicos acerca da temática do ''rentismo''. Neste debate, diversas formas de entendimento conflitam-se, cada uma trazendo certas consequências normativas. 

 Nesta nota, meu objetivo é apresentar meu próprio entendimento sobre a temática, relacionando às temáticas da valorização capitalista, da concorrência e da determinação dos preços de mercado e distribuição da renda em sociedades capitalistas. 

I. Produção e distribuição do mais-valor

 Embora considere que, na aurora do modo de produção capitalista, o capital comercial era a forma dominante de capital, para a Marx a forma dominante da acumulação nos tempos modernos seria o capital produtivo. A forma de valorização deste é o desembolso de uma certa quantidade de dinheiro na compra de força de trabalho e meios de produção, com a geração de uma riqueza adicional -- mais-valor ou mais-valia -- durante o processo de trabalho dessa força de trabalho sobre os meios de produção; riqueza adicional esta que é a fonte dos lucros dos capitalistas na venda dos produtos (vide livro 2 de O Capital). [1]

 Como consequência da natureza do dinheiro como forma de equivalente geral das mercadorias, os capitalistas buscam as aplicações mais lucrativas para seus capitais [2], transferindo-os de ramos com determinadas taxas de lucro para outros com taxas de lucro mais elevadas. Este movimento intersetorial dos capitais faz surgir, para Marx, uma tendência à formação de uma taxa geral do lucro, a qual nada mais é do que uma média das taxas de lucro setoriais, sendo definida portanto pela razão entre a massa de mais-valia socialmente produzida pelo total do capital desempenhado.

 Como expressão deste movimento, os preços de mercado -- ao menos das mercadorias com possibilidade de produção em massa -- gravitariam em torno dos chamados ''preços de produção'', isto é, pelo preço de custo (custo unitário de produção) k + o lucro médio l, este o produto da multiplicação da taxa geral de lucro l' por k.

 Neste preço de custo -- atenção aqui, pois isto é fundamental para o prosseguimento desta discussão teórica -- entram os juros nominais que o capitalista tem de pagar por possíveis empréstimos, que são definidos pelo produto da quantia emprestada pela taxa de juros posta no contrato e pelo prazo de maturação do contrato (quantidade de períodos entre a data de tomada do empréstimo e a de pagamento). Supondo que o empréstimo ocorre no valor de $1000, a uma taxa de juros de 5% ao ano, com um prazo de 3 anos, tem-se que o custo total do capital para o tomador será de $(1000 + 1000x0,05x3) [3], ou seja: $1150.

 Supondo que a taxa geral de lucro da economia em questão seja de 20%, e que o capital emprestado em questão tenha sido necessário e suficiente para a produção de 100 unidades da mercadoria em questão, temos que o preço de produção delas será de (($1150+0,2x$1150)/100), isto é: $13,80.

[Sobre o preço de produção e o lucro médio, Marx nos diz que

''O lucro médio constitui... uma condição do fornecimento [condition of supply] da própria criação da mercadoria. (...) [O] lucro médio se defronta com ele [o capitalista] na qualidade de condição da produção, dando-se a contração ou interrupção da produção por causa de uma queda do preço que o engole ou notadamente o contrai.''
E que
''A baixa da taxa de lucro num determinado ramo a nível interior à média ideal basta, se prolongada, para afastar o capital dessa esfera, ou para excluir dela o advento de novo capital numa escala média.'' 
 Através da transformação dos valores em preços de produção e da formação da taxa geral de lucro, cada capital passa a participar da repartição da mais-valia global (total) numa cota proporcional à sua própria magnitude. 

II. Sobre Estados e moedas, ou o poder do poder 

 Segundos os teóricos adeptos do cartalismo, a moeda dos Estados modernos é produto do poder destes, isto é, do poder dos mesmos em impor à população uma tributação, que deve ser paga utilizando-se a moeda emitida de maneira soberana por esses Estados, sob risco de sofrer penalidades em caso de inadimplência. Isto tem algumas implicações; uma delas é a de que esses Estados, como emissores soberanos de suas próprias moedas, são tecnicamente incapazes de ficarem insolventes em dívidas denominadas em suas próprias moedas.

 Como desdobramento daquilo que uma das diversas políticas que o Estado moderno com soberania monetária pode realizar, isto é, a emissão de títulos de dívida a uma dada taxa nominal de juros determinada pela autoridade monetária [no Brasil, taxa SELiC - Sistema Especial de Liquidação e Custódia, determinada pelo Comitê de Política Monetária - COPOM], acaba determinando o custo de oportunidade do capital na economia, na medida em que, sendo a compra de títulos uma aplicação de dinheiro com total segurança de retorno, outras aplicações de dinheiro (inclusive o investimento produtivo) só se tornam atrativas na medida em que ofereçam uma rentabilidade moderna.

  Agora elevemos o nível de análise: saiamos dos Estados nacionais para o mercado mundial, isto é, a economia capitalista mundial. Nesta, como se sabe, a libra inglesa desempenhou a função de dinheiro mundial, e após a 2ª guerra mundial foi devidamente sucedida pelo dólar. Antes mesmo da libra, algumas moedas que desempenharam a função de moedas hegemônicas do ''sistema'' (que então estava longe de ser propriamente uma economia capitalista mundial). Podemos creditar estas relações de hegemonia monetária ao poderio econômico e militar dos países que foram ou são responsáveis por sua emissão. Em outras palavras, esses Estados, pelo fato de serem os produtores (exclusivos ou principais) de certos produtos de alta relevância para outros Estados-nações, podiam fazer compras  quitar dívidas pagando com sua própria moeda -- e/ou impor o uso de sua moeda em outros países através de sua força bélica, ou ameaça de uso desta. No caso dos EUA e o do uso do dólar como dinheiro mundial, p. ex., observemos os 2 fenômenos.

III. O universal e o particular: concorrência no mercado mundial e condições nacionais de produção (e exploração)

  À medida em que são eliminadas tarifas protecionistas e outras barreiras não-tarifárias, e em que a natureza das mercadorias, dos insumos utilizados na produção destas e da organização empresarial permite, a concorrência capitalista ganha uma escala cada vez maior, e se estabelece a nível de mercado mundial. Assim, a produção chinesa tem de competir com a brasileira, a alemã, a sueca, a estadunidense etc.  Para produtos de um mesmo ramo (ou seja, que a atendam a um mesmo mercado potencial), em especial, emerge com importância central o preço de venda das mercadorias como instrumento de concorrência entre elas, e, conectado àquele, o preço de custo. Entretanto, se as condições de concorrência entre os capitais se impõem a nível de mercado mundial, os fatores que determinam o preço de custo das mercadorias são, em maioria, condições fortemente nacionais de produção.  

 Assim, por exemplo, o custo unitário do trabalho -- ou seja, o custo total com os trabalhadores (incluindo salários nominais, direitos trabalhistas etc.) dividido pela quantidade de mercadorias produzida -- é fortemente determinado pela legislação trabalhista nacional, o grau de sindicalização (e o perfil do ativismo sindical), o nível de desemprego etc. Também as taxas de juros nominais que representam o custo de captação de recursos para a produção de mercadorias -- todas no mínimo acima das taxas básicas de suas autoridades monetárias -- também são condições fortemente nacionais, havendo inclusive necessidade de permissão e política de Estado para que as empresas possam captar recursos em moeda estrangeira. A produtividade do trabalho de intensidade e destreza normais, determinada basicamente por fatores tecnológicos, também é fortemente ''nacional'', dependendo de todo um conjunto de instituições sociais (científicas etc.) e estruturas de organização social e produtiva.

 Saíamos de um grau mais abstrato de análise e observemos um caso concreto; precisamente o da situação enfrentada pela indústria brasileira no período contemporâneo. Como se sabe, o Brasil é o país que (ainda) apresenta uma das mais altas taxas básicas de juros reais do mundo, e até bem recentemente também era um campeão dos juros (básicos) nominais. Isto num momento da história da economia mundial em que as taxas básicas de juros (nominais e reais) dos países centrais, como forma de enfrentamento (fraco que seja) da estagnação econômica que tem se seguido à Grande Recessão. Acrescente-se as altíssimas taxas de juros dos bancos comerciais e o fato de que a produtividade social do trabalho aqui é muito mais baixa que a dos países centrais e outros concorrentes [4], as taxas de câmbio praticadas nos últimos 10 a 20 anos -- as quais, consideradas em média ''supervalorizadas'', tornavam os produtos nacionais transacionáveis [tradables] menos competitivos frente aos produtos estrangeiros, seja no mercado interno, seja no exterior [5] -- e outros fatores, e tem-se uma economia capitalista com preços de custo que tornam suas exportações cronicamente incapazes de concorrer competitivamente com as dos países centrais nos ramos que apresentam maior 'valor agregado' (como as manufaturas).

IV. O rentismo

a) brevíssima digressão histórica: a usura

 
Mas o que é o ''rentismo'', afinal? Em linguagem popular, é o ''viver de rendas''; no debate que se tem crescido nos últimos anos no Brasil, trata-se da prática de certas pessoas e grupos sociais (cujas rendas ultrapassam em muito o nível médio brasileiro) em multiplicar suas riquezas aproveitando-se das altíssimas taxas de juros pagas pelos títulos da dívida pública. Historicamente, ao menos no Ocidente o fenômeno do ''rentismo'' (no sentido popular) aparece de forma destacada em fins da idade média, sob a forma do que ficou conhecido como ''usura'', que nada mais era do que o empréstimo de dinheiro a taxas de juros consideradas abusivas, e que tinham como consequência a ruína de camponeses, cavaleiros, nobres etc. Este processo permitiu a centralização de dinheiro e meios de produção em mãos particulares, permitindo a ascensão do modo de produção capitalista (embora, para a origem deste, o capital industrial tenha de domar a usura.   

b) choque Volcker e a crise da dívida na América Latina

 
Os anos que vão mais ou menos desde o fim da 2ª guerra mundial foram atípicos na história do capitalismo mundial. Ao menos nos países centrais, constituíram-se vastos Estados de Bem-Estar Social (mais na Europa que nos EUA), uma alta taxa média de crescimento anual do PIB e políticas de emprego público permitiram baixíssimas taxas de desemprego etc., ao passo que alguns países (como o Brasil) apresentaram altas e contínuas taxas de crescimento e também uma relevante transformação estrutural da produção. Esta conjuntura internacional estava fortemente baseada numa estratégia de precaução frente à ''ameaça vermelha'' oriental, isto é, ao risco de os trabalhadores ocidentais, enxergando melhores condições de vida no socialismo, realizarem revoluções socialistas no Ocidente. Uma das peças centrais deste sistema era a regulação do sistema financeiro internacional, sob a forma do regime de Bretton Woods, e a política de baixas taxas básicas de juros (ademais ligada também a Bretton Woods).

 Como se sabe, em 1971 os EUA romperam unilateralmente a conversibilidade do dólar americano em ouro, acabando com o regime de Bretton Woods; em 1979, por sua vez, o então presidente do banco central ianque (o FED), Paul Volcker, elevou altamente sua taxa básica de juros, causando a elevação das mais diversas taxas de juros no  próprio país e em todo o mundo, e causando uma explosão de endividamento, inclusive (e talvez especialmente) o das 3 maiores economias latino-americanas: México, Argentina e Brasil. Quando a primeira declarou moratória unilateral, em 1982, os canais de liquidez mundial fecharam-se para a América Latina. Começa aí, no Brasil, um gigantesco esforço exportador, na tentativa de criar os fluxos de divisas necessários para não ser expulso do comércio mundial. Com a ocorrência de maxidesvalorizações cambiais, instrumentos de indexação de rendas e grande resistência salarial, estes fenômenos estão na raiz do gigantesco processo inflacionário que afetou a economia brasileira dos anos 80 até meados dos anos 90.

 Antes de nos aprofundarmos no processo brasileiro, entretanto, vale mencionar os efeitos de longo prazo do ''choque monetário'' nos EUA e na Europa. Após uma onda recessiva, em que as taxas de desemprego elevaram-se consideravelmente, não houve retomadas de crescimento que as fizesse retornar aos níveis característicos daquele período de mais ou menos 30 anos após a 2ª guerra mundial, que ficou conhecido como a ''Era de Ouro''; por outro lado, como consequência da dinâmica de aplicação de dinheiro e de formação dos preços nas economias capitalistas, a elevação da taxa básica de juros naqueles países -- ao contrário do previsto pelo pensamento econômico ortodoxo -- causou a elevação dos preços dos bens e serviços finais, o que, sem a ocorrência de resistência salarial significativa (compreensível, dada o nível de desemprego e a atuação militante de governos neoliberais), causou uma redução dos salários reais, aumentando a fração do produto social (e portanto da renda) apropriadas pelas classes proprietárias.

c) a emergência de um novo padrão de acumulação capitalista no Brasil

 
Com o Plano Real, que segundo analistas era um plano de estabilização monetária muito similar a planos heterodoxos aplicados antes sem sucesso (tendo o sucesso do Plano Real basicamente origem na mudança nas condições de liquidez mundial no começo dos anos 90), tem-se um novo momento na história brasileira. A maior bandeira do governo de F.H.C., e que o levou à vitória em 1994, era a vitória contra a inflação. Assim, sua política econômica esteve todo o tempo subordinada ao objetivo da estabilidade monetária, para a qual trabalhavam uma alta taxa média de desemprego (que garantia tímidos aumentos dos salários nominais, quando não sua redução em muitos casos) e, sobretudo, a âncora cambial (isto é, o Real sobrevalorizado) -- que acaba desabando em fins da década de 90. Esta, aliás, caracterizou-se por uma crescente redução da participação da indústria no PIB, e não como nos países centrais onde a indústria deu lugar aos serviços sofisticados, mas cedendo lugar ao setor primário e a serviços pouco sofisticados. Outros elementos fortemente presentes desta época foram o grande ingresso do capital estrangeiro, inclusive e talvez especialmente visando o mercado interno (caso em que não ajudavam na obtenção de divisas estrangeiras; pelo contrário) e a atuação da burguesia interna como ''burguesia compradora'', revendendo no mercado interno mercadorias importadas (o que de certa maneira é expressão e consequência da perda de competitividade da indústria brasileira frente à indústria das economias centrais, e manifestação e causa da perda relativa de participação da indústria no PIB tupiniquim para o setor terciário). Para não falar da elevação aceleradíssima da dívida pública como estoque nominal e como % do PIB, que aliás anda lado a lado com a destinação anual de boa parte do orçamento anual (e da renda nacional) para o pagamento de juros nominais, em certa medida impossibilitando o governo de realizar outros tipos de gastos certamente muito mais interessantes desde o ponto de vista da maioria da população, da classe trabalhadora (como uma ampliação das políticas de bem-estar social). 

V. Conclusões: o crepúsculo do progressismo burguês na terra das jabuticabas 

 O que podemos e/ou devemos concluir disso tudo, particularmente frente a acontecimentos recentíssimos no Brasil (como uma queda sensível da taxa básica de juros nominais, da qual economistas liberais e ortodoxos se valem para dizer que é uma piada dizer que o rentismo sobre a dívida pública é um problema em nossas terras)? Bem, eu tentarei falar na forma de ''pontos'':

 a) em primeiro lugar, e em especial haja visto os fatos pós-choque Volcker, é necessário concluir que embora as taxas de juros comerciais contratadas por capitais produtivos atuem de maneira mais ou menos similar àquela descrita no tomo 3 de O Capital (isto é, como determinantes de um desconto -- o pagamento de juros nominais -- da receita desses capitais), a política monetária, sob a forma de taxa básica de juros nominais, pode, através da dinâmica da formação de preços e da resistência salarial (ou melhor, da ausência ou fraqueza dessa resistência), causar a redistribuição do produto social -- das mãos dos trabalhadores para as classes proprietárias em geral. E, assim, não se percebe exatamente um conflito fundamental de interesses entre os rentistas da dívida pública e a burguesia industrial. Aliás, esta nestes dias realiza diversas aplicações de dinheiro que incluem, no portfólio de ativos das empresas -- os capitais produtivos --, títulos de dívida pública e outros ativos financeiros, de maneira que parte de seus lucros (talvez uma parte crescente) são lucros financeiros, sem relação direta com a atividade produtiva.

 b)  representando uma fonte mui interessante e relativamente fácil de acumulação de riqueza para as elites endinheiradas, a taxa básica de juros do Brasil, em sua dimensão de taxa-piso de juros da economia nacional (isto é, de piso dos custos de captação de recursos financeiros sob a forma de empréstimos), contribui para tornar os produtos transacionáveis nacionais menos competitivos em relação aos importados, como já se disse, e torna a massa de lucros da indústria nacional menor do que poderia ser caso o câmbio fosse mais alto (isto é, caso a taxa de câmbio se desvalorizasse, e consequentemente o dólar e as mercadorias importadas encarecessem), ao mesmo tempo em que torna o poder de compra dos salários nominais maior do que seria também caso o câmbio fosse mais alto.

 Além de certos burgueses industriais solicitarem a desvalorização cambial e a redução da taxa básica (nominal e real) de juros -- certos, porque para outros os lucros financeiros já compensam mais que a atividade produtiva e, portanto, a desvalorização cambial (com consequente inflação) e a redução da SELiC não lhes são de interesse --, praticamente todos reclamam pela 'flexibilização' das condições de trabalho (isto é, pela ampliação das possibilidades de extração de trabalho não-pago sobre a força de trabalho), e poucos ou nenhum deles fez qualquer campanha notável contra o congelamento dos gastos públicos federais reais com a Emenda Constitucional 95, nem tampouco tem agido contra o descuido e sucateamento da ciência, tecnologia e P&D nacionais, que acontece há tempos mas tomou dimensão nova com o governo de Michel Temer (que chegou a cortar praticamente metade da verba do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) e a EC 95. Ou seja: nossa burguesia industrial, muito longe de representar qualquer ''progressismo produtivo'' está razoavelmente bem acomodada com o rentismo predatório sobre a dívida pública e pouco ou nada interessada em aumentar sua competitividade via aumento da produtividade do trabalho, mas muito interessada em afundar salários reais e aumentar o grau de exploração da força de trabalho brasileira através da boa, velha e bruta mais-valia absoluta -- com a possibilidade, talvez, de vir a apoiar uma criatura grotesca como Jair Bolsonaro para garantir a não-resistência da classe trabalhadora a esse aumento da taxa de exploração.

 Penso que tudo mostra que podemos concluir que o capitalismo brasileiro é uma formação socioeconômica monstruosa, na qual rentismo financeiro e produção  (e acumulação produtiva) capitalista atuam de maneira combinada para a reprodução de uma situação em que grande parte da população vive numa inaceitável situação de pobreza, basicamente sobrevivendo, e uma parcela muito maior mal tem tempo livre, e também está longe de ter, em condições materiais, o que as forças produtivas modernas poderiam proporcionar (o que também vale para os antes mencionados). Contra este configuração de coisas, que é somente uma entre muitas realidades possíveis, nós devemos nos mobilizar enquanto classe trabalhadora para, num processo que pode tomar diversas formas (como a realização de certas políticas econômicas, que são ações reformistas, que combatam o rentismo e tenham outros efeitos até que de repente haja uma ruptura revolucionária; ou mesmo uma intentona revolucionária repentina, que ponha em causa de imediato a bandeira da socialização dos meios de produção), dar fim a este vale de lágrimas e substituí-lo por uma sociedade que atenda aos interesses e aspirações de liberdade e desenvolvimento social e humano da maioria de seus membros.

Observações 

[1] A geração dessa riqueza adicional, vale acrescentar, é possibilitada pelo fato de a produtividade social do trabalho ser maior do que aquela estritamente necessária para que a jornada de trabalho possa cobrir as necessidades de subsistência dos trabalhadores (vide livro 3 de O Capital, capítulo 37; e Teorias da Mais-Valia, capítulo 15, seção B, item 3). 

[2] Esta busca pelas melhoras formas de valorização de seus capitais é o eixo de trabalho que pretendo apresentar em breve sobre as possibilidades de uma interação entre as noções de concorrência capitalista em Marx e Schumpeter (o qual considerava, conforme as palavras do professor Mario Luiz Possas, que a concorrência capitalista ''caracteriza-se pela busca permanente de diferenciação por parte dos agentes, por meio de estratégias deliberadas, tendo em vista a obtenção de vantagens competitivas que proporcionem lucros de monopólios, ainda que temporários (...) [ assim,] a concorrência é um processo (ativo) de criação de espaços e oportunidades econômicas, e não apenas, ou principalmente, um processo (passivo) de ajustamento em direção a um suposto equilíbrio, nem supõe qualquer estado tendencial 'normal' ou de equilíbrio.''

[3] A fórmula geral é C + C(1.i.n), em que C = valor do empréstimo, i = taxa de juros por período e n = quantidade de períodos. 

[4] José Antônio Martins, principal membro do boletim Crítica Semanal da Economia e articulista no site www.criticadaeconomia.com.br, utiliza-se do termo ''economias dominadas'' para referir-se a Brasil, China, Índia, Rússia e outras economias capitalistas nas quais, segundo ele, o modo principal de produção de mais-valia é a mais-valia absoluta, ao passo que nas ''economias dominantes'' (como Japão, EUA e Alemanha) o aumento da produtividade do trabalho (que ele chama de mais-valia relativa) predomina como forma de aumentar os lucros.

[5] Embora certos economistas critiquem a ideia de que a taxa de câmbio é capaz de alterar a demanda por nossas exportações no nível em que, por exemplo, os economistas novo-desenvolvimentistas defendem. Vide o trabalho de Carlos Pinkusfeld Bastos, do Instituto de Economia da UFRJ, sobre o novo-desenvolvimentismo e seus representantes (como Luiz Carlos Bresser-Pereira).

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O que é o livre mercado?


Um bom e nobre defensor do livre mercado e da livre-concorrência: Miltinho



''A livre concorrência, como farejou corretamente o sr. Wakefield em seu comentário a Smith, jamais foi elaborada pelos economistas, por mais que tagarelem sobre ela e que seja a base de toda a produção burguesa, da produção fundada no capital. Ela só foi compreendida negativamente, i.e., como negação dos monopólios, das corporações, das regulações legais etc. Como negação da produção feudal. No entanto, ela também tem de ser algo por si mesma, porque um mero 0 é uma negação vazia, a abstração de um obstáculo que imediatamente emerge de novo sob a forma, por exemplo, de monopólio, monopólios naturais etc. Conceitualmente, a concorrência nada mais é do que a natureza interna do capital, sua determinação essencial, que se manifesta e se realiza como ação recíproca dos vários capitais uns sobre os outros, a tendência interna como necessidade externa.) (O capital existe e só pode existir como muitos capitais e, consequentemente, a sua autodeterminação aparece como ação recíproca desses capitais uns sobre os outros.)''

''A concorrência, porque aparece historicamente como dissolução de obrigação corporativa, regulamentação governamental, alfândegas internas e similares no interior de um país, e no mercado mundial como supressão de  barreiras, proibição ou proteção – em suma, porque aparece historicamente como negação dos limites e barreiras peculiares às fases de produção que precederam o capital; porque historicamente foi qualificada e saudada pelos fisiocratas, de modo totalmente correto, como laissez faire, laissez passer; por essas razões, ela passou a ser considerada por esse aspecto puramente negativo, por esse seu aspecto puramente histórico, o que levou, por outro lado, à bobagem ainda maior de considerá-la como o conflito dos indivíduos libertados de suas cadeias e determinados exclusivamente por seus próprios interesses – como repulsão e atração dos indivíduos livres em relação uns com os outros e, desse modo, como a forma absoluta de existência da individualidade livre na esfera da produção e da troca. Nada pode ser mais falso. 1) Se a livre concorrência dissolveu as barreiras de relações e modos de produção anteriores, é preciso considerar,  em primeiro lugar, que aquilo que para ela é barreira, para os modos de produção anteriores era limite imanente, dentro do qual eles se desenvolviam e movimentavam em conformidade com sua natureza. Tais limites só se convertem em barreiras depois que as forças produtivas e as relações comerciais evoluíram suficientemente para que o capital enquanto tal pudesse começar a atuar como o princípio regulador da produção. Os limites que ele derrubou eram barreiras para o seu movimento, desenvolvimento, realização. Com isso, de modo algum ele aboliu todos os limites nem todas as barreiras, mas só os limites que não lhe correspondiam, que para ele eram barreiras. No interior de seus próprios limites – por mais que, de uma perspectiva mais elevada, eles se apresentem como barreiras da produção e, enquanto tais, são postos por seu próprio desenvolvimento histórico –, ele se sente livre, sem barreiras, i.e., limitado unicamente por si mesmo, unicamente por suas próprias condições de vida. Exatamente como a indústria corporativa, em seu apogeu, encontrou na organização corporativa a liberdade plena de que precisava, i.e., encontrou nela as relações de produção que lhe correspondiam. Pois foi ela própria que as pôs a partir de si mesma e as desenvolveu como suas condições imanentes e, por isso, de forma alguma como barreiras exteriores e restritivas. O aspecto histórico da negação, por parte do capital, do sistema corporativo etc. por meio da livre concorrência, nada mais significa que o capital, suficientemente fortalecido pelos modos de comércio adequados a ele, derrubou as barreiras históricas que perturbavam e tolhiam o movimento adequado a ele. No entanto, a concorrência está muito distante de ter simplesmente esse significado histórico ou de ser simplesmente essa coisa negativa. A livre concorrência é a relação do capital consigo mesmo como outro capital, i.e., o comportamento real do capital como capital. As leis internas do capital – que só aparecem como tendências nos estágios históricos preliminares do seu desenvolvimento – são postas pela primeira vez como leis; a produção fundada no capital só se põe em suas formas adequadas na medida em que e à proporção que a livre concorrência se desenvolve, pois ela constitui o livre desenvolvimento do modo de produção fundado no capital; o livre desenvolvimento de suas condições e de si mesmo como processo que reproduz continuamente essas condições. Na livre concorrência, não são os indivíduos que são liberados, mas o capital. Enquanto a produção baseada no capital constituir a forma necessária e, em consequência, a mais apropriada para o desenvolvimento da força produtiva da sociedade, o movimento dos indivíduos dentro das puras condições do capital aparece como sua liberdade; liberdade que, então, também é dogmaticamente garantida enquanto tal pela contínua reflexão sobre as barreiras derrubadas pela livre concorrência. A livre concorrência é o desenvolvimento real do capital. Por ela é posto para o capital singular, como necessidade exterior, o que corresponde à natureza do capital [, ao] modo de produção fundado no capital, o que corresponde ao conceito do capital. A coerção recíproca que os capitais exercem dentro dela uns sobre os outros, sobre o trabalho etc. (a concorrência dos trabalhadores entre si é apenas outra forma da concorrência dos capitais), é o desenvolvimento livre e simultaneamente real da riqueza como capital. Tanto é assim que os mais profundos pensadores econômicos, como Ricardo, p.ex., pressupõem o domínio absoluto da livre concorrência para poderem estudar e formular as leis adequadas do capital – que aparecem ao mesmo tempo como as tendências vitais que o governam. Mas a livre concorrência é a forma adequada do processo produtivo do capital. Quanto mais desenvolvida ela for, tanto mais puras se manifestam as formas do movimento do capital. O que Ricardo, p. ex., admitiu com isso, apesar da sua própria opinião, é a natureza histórica do capital e o caráter estreito da livre concorrência, que não é senão o livre movimento dos capitais, i.e., seu movimento dentro das condições que não pertencem a nenhuma condição preliminar dissolvida, mas são suas próprias condições. O domínio do capital é o pressuposto da livre concorrência, exatamente como o despotismo romano dos césares era o pressuposto do livre “direito privado” romano. Enquanto o capital é fraco, ele próprio procura ainda apoiar-se nas muletas dos modos de produção do passado ou que estão desaparecendo com o seu surgimento. Tão logo ele se sente forte, joga as muletas fora e se movimenta de acordo com as suas próprias leis. Tão logo ele começa a sentir a si próprio como obstáculo do desenvolvimento e a tomar consciência disso, ele busca refúgio em formas que, parecendo aperfeiçoar o domínio do capital pela contenção da livre concorrência, são ao mesmo tempo os prenúncios da sua dissolução e da dissolução do modo de produção baseado nele. O que reside na natureza do capital só é realmente posto para fora dele, como necessidade exterior, pela concorrência, que nada mais significa que os muitos capitais impõem uns aos outros e a si próprios as determinações imanentes do capital. Por isso, nenhuma categoria da economia burguesa, [nem] mesmo a primeira, como, p. ex., a determinação do valor, devém efetiva, [a não ser] pela livre concorrência; i.e., pelo processo efetivo do capital, que aparece como interação recíproca dos capitais e de todas as outras relações de produção e comércio determinadas pelo capital. Daí, por outro lado, a sandice que significa considerar a livre concorrência como o desenvolvimento último da liberdade humana; e [de considerar] a negação da livre concorrência = a negação da liberdade individual e da produção social fundada na liberdade individual. Trata-se de fato somente do desenvolvimento livre sobre um fundamento estreito – o fundamento do domínio do capital. Em consequência, esse tipo de liberdade individual é ao mesmo tempo a mais completa supressão de toda liberdade individual e a total subjugação da individualidade sob condições sociais que assumem a forma de poderes coisais, na verdade, de coisas superpoderosas – de coisas independentes dos próprios indivíduos que se relacionam entre si. O desenvolvimento daquilo que constitui a livre concorrência é a única resposta racional à sua divinização pelos profetas de classe média ou à sua demonização pelos socialistas. Quando se diz que, no âmbito da livre concorrência, os indivíduos, ao perseguirem exclusivamente o seu interesse privado, realizam o interesse comum ou, melhor dizendo, o interesse geral, isso nada mais significa que, sob as condições da produção capitalista, eles se pressionam mutuamente e, em consequência, o seu próprio entrechoque é somente a reprodução das condições sob as quais acontece tal interação. Aliás, a ilusão acerca da concorrência como a pretensa forma absoluta da individualidade livre, assim que desaparece, é uma prova de que as condições da concorrência, i.e., da produção fundada sobre o capital, já são sentidas e pensadas como barreiras e, em consequência, já são e se tornam barreiras cada vez mais. A afirmação de que a livre concorrência = forma última do desenvolvimento das forças produtivas e, em consequência, da liberdade humana, nada mais significa que o domínio da classe média é o fim da história mundial – certamente uma ideia agradável para os parvenus fora de moda.''

- Karl Marx, Fundamentos da Crítica da Economia Política ('Grundrisse')



Tempo, trabalho e desenvolvimento das capacidades humanas




''Quando existe uma sociedade em que alguns vivem sem trabalhar (sem diretamente tomar parte na produção de valores de uso), é claro que a superestrutura inteira da sociedade tem como condição o trabalho excedente do trabalhador. São duas coisas o que eles recebem desse trabalho excedente. Primeiro: As condições materiais de vida, já que participam do produto e subsistem por ele e daquilo que o trabalhador fornece, além do produto que é requerido para a reprodução de sua própria capacidade de trabalho. Segundo: o tempo livre que eles têm à disposição, seja para o ócio, seja para o exercício das atividades não imediatamente produtivas (como, por exemplo, guerra, serviço público), seja para o desenvolvimento das aptidões humanas e potências sociais (arte, etc., ciência) que não perseguem qualquer finalidade prática imediata, esse tempo pressupõe o trabalho excedente do lado da massa trabalhadora, isto é, que ela tenha de empregar mais tempo na produção do que aquele requerido na produção de sua própria vida material. O tempo livre do lado das partes da sociedade que não trabalham se baseia no trabalho excedente ou trabalho extraordinário, no tempo de trabalho excedente das partes que trabalham, o livre desenvolvimento de um lado se baseia no fato de que os trabalhadores têm de utilizar todo seu tempo, portanto o espaço de seu desenvolvimento na mera produção de determinados valores de uso; o desenvolvimento das aptidões humanas de um lado baseia-se nos limites nos quais é mantido o desenvolvimento do outro lado. Nesse antagonismo se baseia toda civilização e desenvolvimento social até aqui. Por um lado, portanto, ao tempo livre de alguns corresponde o tempo de trabalho extraordinário do tempo subjugado ao trabalho de outros -- tempo de sua existência e atuação como mera capacidade de trabalho. Por outro lado, o trabalho excedente se materializa no produto excedente -- excedente da produção além da massa que a classe trabalhadora necessita e utiliza para sua própria subsistência. (...) A produção de tempo de trabalho excedente, de um lado, é simultaneamente a produção de tempo livre do outro lado. O desenvolvimento humano inteiro, na medida em que vai além do desenvolvimento imediatamente necessário à existência natural humana, consiste meramente na apropriação desse tempo livre e o pressupõe como base necessária. O tempo livre da sociedade é assim produzido por meio da produção de tempo não-livre que é prolongado, do tempo de trabalho do trabalhador prolongado além do tempo de trabalho exigido para sua própria subsistência. O tempo livre de alguns corresponde ao tempo de servidão de outros.''

- Karl Marx, Para a Crítica da Economia Política (Manuscrito de 1851-1853, cadernos I a IV), ''O caráter do trabalho excedente''.

"O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia."

- ___, Salário, Preço e Lucro

''A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, i.e., o pôr do trabalho social na forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O seu pressuposto é e continua sendo a massa do tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como o fator decisivo da produção da riqueza. No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que – sua |poderosa efetividadei –, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia [...]. A riqueza efetiva se manifesta antes [...] na tremenda desproporção entre o tempo de trabalho empregado e seu produto, bem como na desproporção qualitativa entre o trabalho reduzido à pura abstração e o poder do processo de produção que ele supervisiona. O trabalho não aparece mais tão envolvido no processo de produção quando o ser humano se relaciona ao processo de produção muito mais como supervisor e regulador. [...] Não é mais o trabalhador que interpõe um objeto natural modificado como elo mediador entre o objeto e si mesmo [...]. Ele se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser o seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como a grande coluna de sustentação da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza por sua existência como corpo social – em suma, o desenvolvimento do indivíduo social. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria. Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não trabalho dos poucos deixa de ser condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano. Com isso, desmorona a produção baseada no valor de troca, e o próprio processo de produção material imediato é despido da forma da precariedade e contradição. [Dá-se] o livre desenvolvimento das individualidades e, em consequência, a redução do tempo de trabalho necessário não para pôr trabalho excedente, mas para a redução do trabalho necessário da sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à formação artística, científica etc. dos indivíduos por meio do tempo liberado e dos meios criados para todos eles. O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Por essa razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para aumentá-lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente o trabalho supérfluo como condição – questão de vida e morte – do necessário. Por um lado, portanto, ele traz à vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos para conservar o valor já criado como valor. As forças produtivas e as relações sociais – ambas aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem somente como meios para o capital, e para ele são exclusivamente meios para poder produzir a partir de seu fundamento acanhado. De fato, porém, elas constituem as condições materiais para fazê-lo voar pelos ares.''

- ___, Fundamentos da Crítica da Economia Política ('Grundrisse')

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O 'lugar' da luta de classes na crítica da economia política



Nota: o objetivo deste breve texto é apresentar uma crítica a certas compreensões marxistas e não-marxistas sobre o fenômeno que os sujeitos de conhecimento reconhecem como 'luta de classes' e apresentar minha própria concepção sobre a temática, dispondo-a à avaliação do leitor.

 ''A luta de classes não é uma processo que age em um marco estrutural: a luta de classes é a síntese das condições em que os homens produzem sua existência e se acha, por isso mesmo, regida por leis que determinam seu desenvolvimento.'' (Ruy Mauro Marini) 
 "Uma palavra para evitar possíveis equívocos. Não foi róseo o colorido que dei às figuras do capitalista e do proprietário de terras. Mas, aqui, as pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e interesse de classe. Minha concepção do desenvolvimento da formação econômico-social como um processo histórico-natural exclui, mais do que qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações das quais ele continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se ache acima delas." (Karl Marx, prefácio da primeira edição de O Capital, 1867)
 ''[O] capitalista é o capital personificado, exercendo no processo de produção apenas a função de representante do capital.'' (Idem, O Capital, livro III, capítulo 48) 
''A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade nesta alienação; encontra nela uma confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada nesta alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana.'' (Idem, A Sagrada Família)   

 Quando eu estava no 2º ou 3º período da graduação em Economia, um dos professores gostava de zombar dos adeptos do marxismo falando de maneira jocosa em ''capitalistas malvadões'' quando tratava dos ''supostos'' problemas de uma ''economia de mercado''. Esta atitude, que reflete a seriedade intelectual com que os economistas do mainstream lidam com o marxismo e outras correntes teóricas heterodoxas, tem entretanto um ''lastro'' no discurso e no entendimento de certos militantes marxistas e/ou socialistas (bem como num certo senso comum), os quais sobre-enfatizam a índole moral dos indivíduos da classe burguesa, dando a entender que os problemas que afligem a classe trabalhadora na sociedade capitalista advém da particular maldade, avareza, crueldade etc. dos capitalistas/burgueses, ou empresários (proposição que, obviamente, muita gente rejeita, chegando ainda a crer que não existe luta de classes). A esta concepção, conecta-se outra segundo a qual a luta de classes é um ''deus ex machina'' e/ou praticamente se explica por si mesma.

 Em crítica a essas concepções, buscarei demonstrar aqui que a) existe ''luta de classes'', ou melhor, um antagonismo fundamental entre os interesses da classe capitalista e da classe trabalhadora; b) este antagonismo fundamental de interesses tem um sólido fundamento na própria natureza do capital; e c) por isto, ele dispensa considerações sobre a moralidade individual dos indivíduos da classe proprietária, embora isto não implique que os burgueses não possam ser bastante filhos da puta. 

 Pois bem, comecemos do começo. Se há luta de classes, ou ''antagonismo fundamental de interesses'' entre a classe capitalista e a classe trabalhadora, o que é isto? Como funciona? Trata-se do fato, que é até bastante compreensível e 'aceitável' para o senso comum, de que nenhuma classe social pode se apropriar de uma parte da produção social sem que esta parte deixe de estar disponível para outra classe social; numa linguagem técnica: para um dado nível de produto, há uma relação inversa entre salário real (isto é, o poder de compra do salário monetário, em quantidades de mercadorias) e a taxa normal de lucro. (Alguns consideram essa relação como o conflito distributivo capitalista básico).

 OK, mas (se ainda não ficou claro) qual é o ''sólido fundamento na própria natureza do capital'', então? Bem, o capital (ou valor-capital), se se o entende desde o ponto de vista da teoria desenvolvida por Marx, é um valor em forma desenvolvida que busca se reproduzir, ampliar-se, usando para isso, em sua forma geral (D-M-D'), a produção de mercadorias prenhes de mais-valia. E valor, deste mesmo ponto de vista, é a forma social especificamente capitalista da riqueza -- isto é, a forma social da riqueza nas sociedades em que predominam as relações capitalistas de produção; é riqueza abstrata, poder de compra. Assim, na ''dinâmica capitalista em geral'', poder de compra em determinada magnitude converte-se em poder de compra numa magnitude ainda maior.

 Obviamente, para converter-se numa quantidade ainda maior de ''poder de compra'', quanto maiores forem a massa e a taxa de lucro, tanto melhor convém aos capitais. Aliás, tanto maiores tenderão a ser aqueles dois para os capitais individuais quanto maior for a parcela da mais-valia globalmente produzida de que esses capitais consigam se apropriar e quanto menores forem seus custos; mais-valia, aliás, que é justamente a fração do produto social (isto é, da riqueza socialmente produzida) que os trabalhadores assalariados produzem e da qual não se apropriam sob a forma de salário real, materializando-se em produto excedente que, quando vendido a preços normais, proporciona lucro aos capitais. E bem, (para um dado nível de produtividade) quanto mais os trabalhadores trabalharem  -- portanto, quanto maiores forem as suas jornadas de trabalho e a intensidade deste trabalho --, mais produtos e mais valor eles produzirão, portanto (para um dado salário real) mais mais-valia. Ou seja: entre capitalistas e trabalhadores assalariados não há apenas um conflito distributivo, mas um ''conflito produtivo'', que está relacionado à própria ''lógica de funcionamento'' do capital.

  Ah, como sabemos, os capitais relacionam-se entre si basicamente através da concorrência. Principalmente a concorrência por mercados (demanda, vendas), mas também por insumos, etc. Pois bem: a forma básica da concorrência por mercados é a concorrência através dos preços de venda, e o instrumento básico para isso é a redução dos custos de produção. A concorrência, portanto, coage os capitalistas -- que, como disse o Marx numa citação feita mais acima, personificam o capital e exercem na produção a função de seus representantes -- a reduzirem os custos de produção relacionados à força de trabalho; em outras palavras, reduzir os salários e demais 'custos laborais' tanto quanto possível e ao mesmo tempo aumentar tanto quanto possível a produção, a fim de reduzir o custo total médio da produção, o custo unitário das mercadorias. Um caminho que se mostra particularmente atraente aos capitais que dispõem de tecnologias inferiores e, portanto, são incapazes de alcançar o nível de produtividade dos concorrentes. E que se mostra tanto mais fácil quanto mais necessitados de empregos estiverem os trabalhadores. 

[Pausa para alguns comentários: 1) vê, aí, a importância da legislação trabalhista (incluindo jornada normal de trabalho), do salário mínimo etc.?; 2) precisamente destas informações, certos economistas liberais ''ou'' empresariais dizem que é preciso flexibilizar a legislação trabalhista, reduzir os salários reais etc., pois do contrário a ''indústria nacional'' não terá competitividade internacional e aí sumirão os empregos, etc. A isso, respondemos que se o capital é incapaz de garantir um mínimo de condições ''civilizadas'' de trabalho e vida às maiorias, ele que saia de cena, juntamente com o patronato. O capital não é a forma ''natural'' da produção social de riqueza, nem é eterno; é só uma forma histórica, e portanto transitória. A classe trabalhadora pode (e deve) assumir o controle dos meios de produção, aliás exatamente rompendo com a sua condição de classe no processo; desproletarizando-se e vindo a se tornar uma coletividade de seres humanos livremente associados.]

 Chegamos às conclusões: como personificações do capital, agindo pelos ''interesses'' deste e de acordo com a lógica de funcionamento do mesmo, os capitalistas são coagidos, pela 'concorrência universal', a impor aos trabalhadores condições de trabalho e produção que contrastam com os interesses destes. Neste processo, entretanto, eles não são 'coitadinhos': lucro é fonte de poder de compra que serve ao deleite de consumo dos capitalistas, por exemplo. Tampouco estão isentos de agência moral e possibilidade de escolhas. Podem, enquanto indivíduos, darem total apoio à imposição de legislações que estabeleçam padrões minimamente 'civilizados' de vida para os trabalhadores e/ou fazer muito mais, como ninguém mais, ninguém menos que o camarada Friedrich Engels. Como também pode fazer exatamente o contrário, lutando com afinco em nome de seus lucros pela condenação da classe trabalhadora a condições trágicas, como a maioria da burguesia brasileira recentemente, em apoio à reforma trabalhista.

 Por fim: se o nosso ''inimigo final'', ou ''absoluto'', é o capital(ismo) -- o que, aqui e agora, inclui o imperialismo --, isto significa enfrentar os interesses da burguesia, pois que o interesse de classe da mesma é beneficiado pela lógica do capital, e que os privilégios desta classe nascem juntamente com o pressuposto central do capital: a propriedade privada dos meios de produção e, devido a esta, a proletarização da imensa maioria da humanidade.