segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Capitalismo versus socialismo: voltando ao velho debate

Artigo de James Petras, tradução de Matheus Boni Bittencourt





 O debate entre socialismo e capitalismo está longe do fim. De fato, a batalha de ideias está se intensificando. Agências internacionais, incluindo as Nações Unidas, a Organização Internacional do trabalho, a Organização para Alimentação e Agricultura, a Organização Mundial da Saúde e relatórios da NGO, UNESCO e especialistas independentes especialistas econômicos nacionais e regionais nos proveem com forte evidência para a discussão dos méritos do capitalismo e do socialismo.

 Comparações entre países e regiões antes e depois do advento do capitalismo no Leste Europeu, Rússia e Europa Central assim como a comparação entre Cuba e países ex-comunistas fornecem para nós uma base adequada para esboças conclusões definitivas. Quinze anos de “transição para o capitalismo” é um tempo mais que suficiente para julgar a performance e impacto de políticas capitalistas de privatizações e livre mercado, entre outras medidas de restauração na economia, sociedade e bem-estar geral da população.


Performance econômica: crescimento, emprego e pobreza

 Sob o comunismo as decisões e propriedades econômicas eram nacionais e públicas. Nos últimos 15 anos de transição para o capitalismo praticamente todas as indústrias básicas, energia, mineração, comunicações, infraestrutura e indústrias de comércio inteiras foram tomadas por multinacionais europeias e estadunidenses e mafiosos bilionários, ou foram fechadas. Isso levou ao desemprego massivo e emprego temporário, relativa estagnação, vasta emigração e descapitalização da economia via transferências ilegais, lavagem de dinheiro e pilhagem de recursos.

 Na Polônia, o antigo estaleiro Gdansk, local de origem do sindicato Solidariedade, está fechado e virou uma peça de museu. Cerca de 20% da força de trabalho está oficialmente desempregada (Financial Times, Feb. 21/22, 2004) e assim esteve por boa parte do decênio. Outros 30% estão “empregados” em trabalhos marginais e mal pagos (prostituição, contrabando, drogas, comércio informal e de rua e economia subterrânea). Na Bulgária, Romênia, Lituânia e Alemanha Oriental prevalecem condições similares ou piores. A melhor taxa de crescimento real per capita nos últimos 15 anos está muito aquém dos 15 anos anteriores sob o comunismo (especialmente se você incluir os benefícios de saúde, educação, moradia e previdência social). Além disso, as desigualdades econômicas cresceram geometricamente, com o 1% mais rico controlando 80% dos patrimônios privados e mais que 50% da renda, enquanto índice de pobreza atinge mais da metade da população.

 Na ex-União Soviética, especialmente nas repúblicas do centro-sul soviético como Armênia, Georgia e Uzbequistão, os níveis de vida caíram em 80% e pelo menos um quarto da população emigrou ou tornou-se destituída e indústrias, erários e fontes de energia foram pilhadas. Os sistemas de educação, saúde e ciências foram quase completamente destruídos. Na Armênia, o número de pesquisadores científicos declinou de 20 mil em 1990 para 5 mil em 1995, e continua a diminuir (National Geographic, March 2004). De centro da alta tecnologia soviética, a Armênia tornou-se um país comandado por gangues criminosas e onde boa parte da população vive sem aquecimento e eletricidade.

 Na Rússia a pilhagem foi ainda pior e o declínio econômico foi mais severo. À metade dos anos 1990 cerca de metade da população (e proporção ainda maior fora de Moscou e São Petersburgo – antiga Leningrado) viviam na pobreza extrema, a população de rua cresceu e os serviços públicos de educação e saúde entraram em colapso. Nunca em tempos de paz na história moderna um país decaiu tão rápido e profundamente como a Rússia capitalista. A economia foi “privatizada” – isto é, foi tomada por mafiosos russos liderados por oito oligarcas bilionários, que enviaram cerca de 200 bilhões de dólares para fora do países, principalmente para bancos em Nova York, Tel Aviv, Londres e Suíça. Assassinato e terror foram as armas escolhidas para promover a “competitividade econômica”, enquanto todo e qualquer setor da economia e ciência eram dizimados e muitos cientistas altamente especializados ficavam sem recursos e rendas básicos. Os principais beneficiários foram antigos burocratas soviéticos, chefes mafiosos, banqueiros estadunidenses e israelenses, especuladores fundiários europeus, construtores de impérios estadunidenses, militaristas e empresas multinacionais. Os presidentes Bush (pai) e Clinton forneceram o apoio político e econômico para os regimes de Gorbachov e Yeltsin, que comandaram a pilhagem da Rússia, ajudados e encorajados pela União Europeia e Israel. O resultado da pilhagem massiva, desemprego e subsequentes pobreza e desespero foram o grande aumento dos suicídios, doenças mentais, alcoolismo, dependência química e doenças raramente vistas no período soviético. A expectativa de vida entre homens russos caiu de 64 anos no ultimo ano do socialismo para 58 anos em 2003 ( Wall Street Journal, 2/4/2004), abaixo do nível de Bangladesh e 16 abaixo dos 74 anos de Cuba (Cuban National Statistics 2002). A transição para o capitalismo na Rússia levou a 15 milhões de mortes prematuras (mortes que não ocorreriam caso a expectativa de vida ficasse no mesmo nível que sob o socialismo). Estas mortes socialmente induzidas sob o capitalismo emergente são comparáveis ao pior período dos expurgos dos anos 1930. Especialistas em demografia predizem que a população da Rússia vai declinar em 30% nas próximas décadas (WSJ Feb 4, 2004).

 As piores consequências da “transição” ao capitalismo apoiada pelo Ocidente ainda estão para vir nos próximos anos. A introdução do capitalismo arruinou totalmente o sistema de saúde pública, levando a uma explosão de mortes por doenças previamente bem controladas. O Programa das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) publicou um estudou empírico no qual foi descoberto que na Europa Oriental e Ásia Central … “níveis de infecção estão crescendo mais rápido que em qualquer outro lugar, e mais de 1,5 milhão estão infectados nessa região (2004) comparado com 30 mil em 1995 (e menos que 10 mil no período socialista). A taxa de infecção é ainda maior na Federação Russa, onde a taxa de crescimento da infecção por HIV entre pessoas jovens que cresceram sob os regimes capitalistas apoiados pelo Ocidente entre 1998-2004 é o mais alto no mundo.

 Grandes promotoras da epidemia de AIDS são as gangues criminosas da Rússia, Europa Oriental, Bálcãs e países bálticos que traficam heroína e a cada ano entregam mais de 200 mil escravas sexuais para bordéis ao redor do mundo. A violenta máfia albanesa, operando na nova Kosovo “liberada”, controla uma parte significativa do tráfico de heroína e de escravas sexuais na Europa Ocidental e América do Norte. Grandes carregamentos de heroína produzidos pelos senhores da guerra aliados dos Estados Unidos no Afeganistão “liberado” passam pelos mini-Estados da antiga Iugoslávia, dali fluindo para as nações europeias ocidentais. Os novos oligarcas “emancipados” da máfia judaica russa tem grande participação no tráfico de drogas, armas ilegais, mulheres e meninas para a indústria do sexo e lavagem de dinheiro pelos Estados Unidos, Europa Ocidental e Canadá (Robert Friedman, Red Mafiya ,2000). Mafiosos bilionários compravam e venderam praticamente todos os principais partidos e políticos nas autoproclamadas “Democracias Orientais”, sempre em aliança formal ou informal com os serviços de inteligência dos Estados Unidos e das nações europeias ocidentais.

 Indicadores econômicos e sociais documentam conclusivamente que o “capitalismo realmente existente” é significativamente pior que o pleno emprego, crescimento moderado e bem-estar social que existiram durante o período socialista anterior. Em nossos parâmetros pessoais – em termos de segurança pública e privada da vida, emprego, aposentadoria e poupança – o sistema socialista representava um lugar muito mais seguro para viver que as sociedades capitalistas controladas por máfias que o substituíram. Politicamente, os Estados comunistas eram muito mais responsivos para as demandas sociais dos trabalhadores, promovendo limites para as desigualdades e, apesar da acomodação aos interesses russos, diversificaram, industrializaram e nacionalizaram de todos os principais setores da economia. Sob o capitalismo, os políticos eleitorais dos Estados ex-comunistas venderam a preços baixos todas as principais indústrias para estrangeiros ou monopólios locais, fomentando uma monstruosa desigualdade e ignorando a saúde e interesses dos trabalhadores e funcionários. De olho na propriedade das mídias de massa, o monopólio estatal foi substituído por monopólios estrangeiros ou domésticos com os mesmos efeitos. É indubitável que numa análise objetiva de dados comparativos dos últimos 15 anos de “transição” capitalista e dos 15 anos anteriores de socialismo, o período socialista é superior em praticamente todos os indicadores de qualidade de vida.

 Comparemos agora o socialismo cubano com os novos países capitalistas da Rússia, Europa Oriental e Centro-Sul asiático.

 O socialismo cubano foi dramaticamente atingido para a guinada ao capitalismo na URSS e Europa Oriental. Produção industrial e comércio caíram em 60% e o consumo individual médio de calorias caiu pela metade. Não obstante a mortalidade infantil em Cuba continuou a declinar de 11 por 1000 nascidos vivos em 1989 para 6 em 2003 (comparativamente melhor que os Estados Unidos). Enquanto a Rússia gastava apenas 3,8% da renda per capita em saúde pública e 1,5% em saúde privada, os cubanos gastavam 16,7%. Enquanto a expectativa de vida entre homens caiu para 58 anos na Rússia capitalista, ascendia a 74 anos na Cuba socialista. Enquanto o desemprego subiu para 21% na Polônia capitalista, declinou para 3% em Cuba. Enquanto drogas e gangues criminosas se espalhavam nas nações capitalistas emergentes, Cuba iniciou programas educacionais e de treinamento para jovens desempregados, pagando a eles salários para aprender habilidades profissionais e encontrar trabalho. Os contínuos avanços científicos de Cuba em biotecnologia e medicina são de importância mundial, enquanto a infraestrutura científica dos países anteriormente comunistas entrou em colapso e os seus cientistas emigraram ou ficam sem recursos. Cuba mantém a sua independência política e econômica, enquanto os novos países capitalistas se tornaram clientes militares dos EUA, fornecendo mercenários à servido do Império estadunidense nos Bálcãs, Afeganistão e Iraque. Em contraste com os europeus orientais trabalhando como soldados mercenários para os Estados Unidos no Terceiro Mundo, 14 mil trabalhadores médicos servem a algumas das mais pobres regiões na América Latina e África, em cooperação com vários governos nacionais que requisitaram as suas habilidades. Há mais de 500 trabalhadores médicos cubanos no Haiti. Em Cuba, muitas indústrias são nacionais e públicas com enclaves de mercados privados e parcerias com o capital estrangeiro.

 Nos países ex-socialistas, quase todas as indústrias básicas são de propriedade estrangeiras, assim como grande parte da mídia de massas a “indústrias culturais”. Enquanto Cuba mantém uma rede de proteção social para a alimentação, moradia, saúde, educação e esportes, nas novas nações capitalistas o “mercado” exclui amplos setores dos desempregos e mal remunerados do acesso a muitos daqueles bens e serviços.

 A comparação de estatísticas sobre a economia e sociedade demonstra que o “socialismo reformado” em Cuba em grande parte superou a performance dos novos países capitalistas da Europa Oriental e Rússia, para não falar da Ásia Central. Mesmo com o impacto negativo da crise do início dos anos 1990 e o crescimento do setor turístico, o clima moral e cultural de Cuba é muito mais saudável que qualquer das corruptos regimes eleitorais comandados por máfias, com a sua cumplicidade com as drogas, escravidão sexual e subordinação à construção imperial dos Estados Unidos. Igualmente importante é que enquanto a AIDS infecta milhões na Europa Oriental e Rússia, Cuba tem o melhor programa preventivo e os locais mais humanos no mundo para lidar com o HIV. Remédios antivirais livres, tratamento gratuito, humano e bem organizado, amplos programas de saúde pública e educação sanitária explicam porque Cuba tem a menor taxa de incidência do HIV no mundo em desenvolvimento, apesar da presença de prostituição em baixa escala relacionada ao turismo e baixas rendas.

 O debate acerca da superioridade do socialismo ou do capitalismo continua porque o que substituiu o socialismo após o colapso da URSS é muito pior em qualquer indicador significativo. O debate continua porque as conquistas de Cuba em muito ultrapassam as dos novos países capitalistas e porque na América Latina os novos movimentos social tem realizado mudanças no autogoverno (Zapatistas), democratizando a propriedade da terra (MST brasileiro) e o controle dos recursos naturais (Bolívia), o que é muito superior a qualquer coisa que o imperialismo estadunidense e o capitalismo local tem a oferecer.

 O socialismo emergente é uma nova configuração que combina o Estado de Bem-Estar do passado, os programas sociais humanos e medidas de seguridade de Cuba e os experimentos de autogoverno do EZLN e MST. Assim o desejamos!

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Sugestão de leitura:

http://omarxistaleninista.blogspot.com.br/2014/08/queda-do-socialismo-no-leste-europeu.html
http://omarxistaleninista.blogspot.com.br/2013/03/a-festa-dos-saqueadores-pilhagem-da-urss.html




Marx, os direitistas e a falsificação da História


 ''A verdade é sempre revolucionária.'' - Vladimir Itilich Ulianov, mais conhecido como Lênin.


 Os estudos teóricos e a observação de sua realidade prática proporcionam àqueles oprimidos no modo de produção capitalista uma compreensão cada vez maior dos mecanismos que causam (e mantém) suas condições de subjugação e reforçam em suas mentes a necessidade de substituir esse sistema pelo socialismo, a fim de que possam libertar a si próprios; nesse processo de evolução da consciência, é normal que criem afeição e respeito por aqueles que dedicaram suas vidas, com todas as dificuldades possíveis, pela causa dos mesmos. Isso é especialmente verdade em se tratando de um daqueles que mais contribuiu para os movimentos de libertação da era moderna: Karl Marx.

 A direita como um todo – de fascistas a conservadores mais moderados, passando pelos liberais (desde aqueles que apoiam o liberalismo político, econômico e moral àqueles que só se importam com o segundo, como os economistas que auxiliaram o ditador Pinochet no Chile)* – esforça-se constantemente para jogar sua monumental figura na lata de lixo da História, seja jactando-se de ter refutado a teoria econômica deste e desenvolvido algo muito melhor (enquanto a realidade mostra o contrário)[1], seja tentando convencer a população de que o mesmo era moralmente nojento, totalitário, sanguinário, escravista ou algo similar. Tratarei aqui de alguns dos ataques do segundo tipo.




 Em 1846, um pensador francês chamado Pierre-Joseph Proudhon publicou o livro ''Filosofia da Miséria'', na qual expunha suas ideias econômicas e políticas. Marx irritou-se com tal livro, que além de utilizar uma dialética esdrúxula e muito abaixo daquela de Hegel, ao mesmo tempo em que mantinha o idealismo filosófico (isto é, a ideia de que os fenômenos materiais, históricos, são só encarnações de categorias filosóficas), tentava convencer os trabalhadores a não promover ação política para melhoramento das próprias condições de vida e, como consequência de sua própria dialética (baseada na noção simplória de oposição entre ''bem'' e ''mal'', onde os fenômenos deveriam ter seu lado bom mantido e o mau eliminado), pregava uma espécie de ''capitalismo equilibrado''. O alemão escreveu então, às pressas e em francês, o livro ''Miséria da Filosofia'', no qual criticava e buscava refutar as ideias de Proudhon.

 Um escritor russo que Marx encontrara em Paris chamado Pavel Vassilievitch Annenkov (e que a pedido do primeiro participara do comitê de correspondência comunista de Bruxelas) pediu ao primeiro que lhe falasse sobre o livro de Proudhon. Numa carta de 1846 (que pode ser lida aqui), Marx disse-lhe, entre outras coisas, que

''(...) assim o sr. Proudhon, principalmente por falta de conhecimentos históricos, não viu: que os homens, ao desenvolverem as suas faculdades produtivas, isto é, ao viverem, desenvolvem certas relações entre eles, e que o modo dessas relações muda necessariamente com a modificação e o crescimento dessas faculdades produtivas. Ele não viu que as categorias econômicas são apenas abstrações dessas relações reais, que só são verdades na medida em que subsistam essas relações. Assim, ele cai no erro dos economistas burgueses que vêem nessas categorias econômicas leis eternas e não leis históricas, as quais só são leis para um certo desenvolvimento histórico, para um desenvolvimento determinado das forças produtivas. Assim, em vez de considerar as categorias político-econômicas como abstrações feitas [a partir] das relações sociais reais, transitórias, históricas, o sr. Proudhon, por uma inversão mística, não vê nas relações reais senão encarnações [incorporations] dessas abstrações. Estas mesmas abstrações são fórmulas que dormitaram no seio de Deus-pai desde o começo do mundo.


Mas, aqui, o bom do sr. Proudhon cai em grandes convulsões intelectuais. Se todas estas categorias são emanações do coração de Deus, se são a vida oculta e eterna dos homens, como é que então, em primeiro lugar, há desenvolvimento e, em segundo lugar, como é que o sr. Proudhon não é conservador? Explica-nos estas contradições evidentes por todo um sistema do antagonismo.

Para esclarecer esse sistema de antagonismo, tomemos um exemplo.

O monopólio é bom porque é uma categoria econômica. Mas o que não é bom é a realidade do monopólio e a realidade da concorrência. O que é ainda pior, é que o monopólio e a concorrência se devoram mutuamente. Que se deve fazer neste caso? Como estes dois pensamentos eternos de Deus se contradizem, parece-lhe evidente que há no seio de Deus igualmente uma síntese entre esses dois pensamentos, na qual os males do monopólio são equilibrados pela concorrência, e vice-versa. A luta entre as duas ideias terá por efeito deixar-lhes aparecer só o lado bom. Há que arrancar a Deus esse pensamento secreto e depois aplicá-lo, e tudo correrá pelo melhor; há que revelar a fórmula sintética escondida na noite da razão impessoal da humanidade. O sr. Proudhon não hesita um só momento em fazer-se o revelador.

Mas lancemos por um momento o olhar sobre a vida real. Na vida econômica atual, não apenas encontramos a concorrência e o monopólio, mas também a sua síntese, que não é uma fórmula, mas um movimento. O monopólio produz a concorrência; a concorrência produz o monopólio. No entanto, esta equação, longe de remover as dificuldades da situação atual, como imaginam os economistas burgueses, tem por resultado uma situação mais difícil e mais baralhada. Assim, mudando a base sobre a qual se fundam as relações econômicas atuais, destruindo o modo atual de produção, destrói-se não só a concorrência, o monopólio e o seu antagonismo, mas também a sua unidade, a sua síntese, o movimento que é a equilibração real da concorrência e do monopólio.

Agora vou dar-lhe um exemplo da dialética do sr. Proudhon.

A liberdade e a escravatura formam um antagonismo. Não preciso falar dos lados bons nem dos lados maus da liberdade.

Quanto à escravatura, não preciso falar dos seus lados maus. A única coisa que é preciso explicar é o lado belo da escravatura. Não se trata da escravatura indireta, da escravatura do proletário, trata-se da escravatura direta, da escravatura dos Negros no Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte.

A escravatura directa é o eixo do nosso industrialismo actual, tal como as máquinas, o crédito, etc. Sem escravatura, não temos algodão; sem algodão, não temos indústria moderna. Foi a escravatura que deu valor às colônias, foram as colônias que criaram o comércio mundial, o comércio mundial é que é a condição necessária da grande indústria mecânica. Por isso, antes do tráfico dos negros, as colônias só davam ao velho mundo muito poucos produtos e não alteravam visivelmente a face do mundo. Assim, a escravatura é uma categoria econômica da mais alta importância. Sem a escravatura, a América do Norte, o povo mais progressivo, transformar-se-ia num país patriarcal. Risque-se apenas a América do Norte do mapa dos povos e ter-se-á a anarquia, a decadência completa do comércio e da civilização modernos. Mas fazer desaparecer a escravatura seria riscar a América do mapa dos povos. Por isso a escravatura, sendo uma categoria econômica, se encontra desde o começo do mundo em todos os povos. Os povos modernos só souberam disfarçar a escravatura no seu próprio seio e importá-la abertamente no Novo Mundo. Como abordará isto o bom do sr. Proudhon depois destas reflexões sobre a escravatura? Procurará a síntese da liberdade e da escravatura, o verdadeiro meio termo; por outras palavras: o equilíbrio da escravatura e da liberdade.

O sr. Proudhon compreendeu muito bem que os homens fazem o pano, a tela, os tecidos de seda; que grande mérito ter compreendido tão pouca coisa! O que o sr. Proudhon não compreendeu é que os homens, segundo as suas faculdades, produzem também as relações sociais em que produzem o pano e a tela. Menos ainda compreendeu o sr. Proudhon que os homens, que produzem as relações sociais em conformidade com a sua produtividade material, produzem também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstratas ideais dessas mesmas relações sociais. Assim, as categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios. Para o sr. Proudhon, muito pelo contrário, a causa primitiva são as abstrações, as categorias. Segundo ele, são elas e não os homens que produzem a História. A abstração, a categoria tomada como tal, isto é, separada dos homens e da sua ação material, é naturalmente imortal, inalterável, impassível; é apenas um ser da razão pura, o que só quer dizer que a abstração tomada como tal é abstrata. Tautologia admirável!'' (MARX, 2011, p.53-56)

 Fica óbvio aqui que Marx não estava em sentindo algum fazendo um julgamento elogioso da escravidão. O que ele fez foi aplicar a dialética torpe de Proudhon, que implicava em não buscar a liberdade absoluta, mas sim um equilíbrio entre liberdade e escravidão, uma vez que a última proporcionou grande progresso à indústria dos Estados Unidos da América. A opinião do próprio Marx quanto à escravidão direta (em oposição à escravidão assalariada) pode ser vista em trechos como esses:

“A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras que caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva.
[...] na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal.” (MARX, 2013, p. 820)

 Completa ele, com relação aos povos nativos americanos:

 “O tratamento dispensado aos nativos era, naturalmente, o mais terrível nas plantações destinadas exclusivamente à exportação, como nas Índias Ocidentais e nos países ricos e densamente povoados, entregues à matança e ao saqueio, como o México e as Índias Orientais” (MARX, 2013, p. 823)

 E continua ironizando a ética cristã e puritana que discursava sobre o amor a Deus ao mesmo tempo que, na sua contribuição ao processo de dominação colonial, matava índios – homens, mulheres e crianças, indiscriminadamente.


 Mais à frente, diz:

“Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o período manufatureiro, a opinião pública europeia perdeu o que ainda lhe restava de pudor e consciência. As nações se jactavam cinicamente de toda a infâmia que constituísse um meio para a acumulação de capital.” (MARX, 2013, p. 824)

  Marx reforça na continuação do texto – denunciando o cinismo europeu – o fato dos europeus terem seu crescimento baseado na exploração do tráfico negreiro e na destruição da África, ao mesmo tempo em que associavam isso à sua suposta sabedoria política. E diz ainda:

“Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como pedestal, da escravidão sem rebuços do Novo Mundo.” (MARX, 2013, p.829)

 Percebam os adjetivos e expressões que Marx usa em toda essa parte que se encontra no capítulo 24 do livro I d'O Capital: ''o extermínio, a escravização e o soterramento''; ''a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras que caracterizam a aurora da era da produção capitalista''; ''violência mais brutal''; ''perdeu o que ainda lhe restava de pudor e consciência''; ''as nações se jactavam cinicamente de toda a infâmia''.

Ele faz isso pra demonstrar toda a brutalidade e violência com que nasce o capital, expropriando os camponeses na Europa, exterminando os indígenas na América, escravizando e matando os africanos na África. Para dar conta desse fenômeno extremamente violento, Marx não poupa adjetivos depreciativos para caracterizar os atos europeus e as formas de consciência e discurso que os europeus ainda buscavam justificar tais atos. Usa de intensa ironia, como é característico em toda a usa obra, para analisar o processo de acumulação de capital e as justificativas infames dos europeus. Por acaso seria tal coisa do feitio de alguém que apoia a escravidão?


                  


 O caso acima não se trata sequer de uma citação retirada de contexto e editada, como a anterior; trata-se pura e simplesmente de forja, e você, por mais que se esforce e leia TODA a obra de Marx e Engels, incluindo cartas e artigos escritos a jornais e revistas, jamais a achará. Se, porém, adquirir O Manifesto do Partido Comunista, edição da coleção ''A obra-prima de cada autor'', da editora Martin Claret, encontrará entre os textos anexos aquele conhecido como ''Manifesto de lançamento da Associação Internacional de Trabalhadores'' – de 1864 – , no qual lerá o seguinte:

''Se a emancipação do proletariado requer sua união fraternal, como poderão realizar essa grande missão com uma política exterior voltada para propósitos criminosos, tirando partido dos preconceitos nacionais e malbarateando o sangue e a riqueza do povo em guerras de pirataria? Não foi a prudência das classes dominantes, e sim a resistência histórica à sua loucura por parte do operariado da Inglaterra o que salvou a Europa ocidental de ser lançada em uma cruzada infame pela perpetuação e propagação da escravidão do outro lado do Atlântico.[2] A aprovação descarada, a compaixão fingida ou a indiferença idiota com que as classes dominantes da Europa têm presenciado a fortaleza montanhosa do Cáucaso ser subjugada e a heroica Polônia ser assassinada pela Rússia [3]; as imensas invasões, perpetradas sem resistência, por aquela potência bárbara, cuja cabeça está em São Petersburgo e cujas mãos se encontram em todos os gabinetes da Europa, ensinaram ao operariado o dever de dominarem eles próprios os mistérios da política internacional; de observarem a atuação diplomática de seus respectivos governos; de combaterem esta atuação, quando necessário, por todos os meios ao seu alcance; e quando impossibilitados de impedi-la, de se unirem em denúncias simultâneas, e afirmarem as leis simples da moral e da justiça. que devem governar as relações dos indivíduos, como as regras principais do intercâmbio entre as nações. A luta por uma tal política externa faz parte da luta geral pela emancipação do proletariado.

 Proletários de todo o mundo, uni-vos!'' (É possível ler o texto na íntegra aqui)



 Somado aos trechos destacados d'O Capital na seção anterior, fica óbvio que Marx jamais acreditou que ''para o advento do verdadeiro socialismo será necessário exterminar povos e nações inteiras'', ao contrário: o socialismo necessitaria (e necessita!) do respeito à autodeterminação dos povos.




 A figura coloca “na boca” do teórico comunista uma frase que ele nunca falou. Segundo a forjada citação, ele teria determinado que as lutas dos comunistas promovessem um “holocausto revolucionário” e, com ele, iniciassem o extermínio de determinadas classes e raças. Induz-se aqueles que leem tal ditado a crer que ele foi um inspirador dos nazistas.

 Na verdade, a frase em questão é uma adulteração maliciosa de um trecho de um texto escrito por Marx em março de 1853 e publicado no New York Daily Tribune e no People’s Paper algumas semanas depois – ele pode ser acessado no site marxists.org. O artigo, intitulado Forced Emigration (Emigração forçada), descreve como o avanço do capitalismo industrial nas Ilhas Britânicas forçou a migração de milhares de ingleses, escoceses e irlandeses para outras partes do mundo em meados do século 19.

 No texto, Marx faz a seguinte declaração:

''Society is undergoing a silent revolution, which must be submitted to, and which takes no more notice of the human existences it breaks down than an earthquake regards the houses it subverts. The classes and the races, too weak to master the new conditions of life, must give way. But can there be anything more puerile, more short-sighted, than the views of those Economists who believe in all earnest that this woeful transitory state means nothing but adapting society to the acquisitive propensities of capitalists, both landlords and money-lords?''

Eis a tradução:

 ''A sociedade está passando por uma revolução silenciosa, à qual é obrigada a se submeter e que leva em conta as existências humanas que ela fragmenta tanto quanto um terremoto se importa com as casas que subverte. As classes e as raças, fracas demais para dominar as novas condições de vida, são obrigadas a ceder. Mas pode haver alguma coisa mais pueril, mais visão estreita, do que as visões daqueles economistas que acreditam com toda sinceridade que esse lastimável estado transitório não significa nada além de adaptar a sociedade às propensões aquisitivas dos capitalistas, tanto senhores de terra como senhores de dinheiro?''

 A “revolução silenciosa” que ele menciona não era comunista ou socialista, mas sim a altamente capitalista Revolução Industrial, que estava promovendo na Europa e nos Estados Unidos uma configuração social, econômica e tecnológica muito diferente da que existia até o século 18. Era “silenciosa” porque, ao contrário das revoluções burguesas do século 18, não consistia em promover guerras contra o poder vigente. Nenhuma revolução socialista ou comunista vitoriosa havia acontecido até então, apesar dos levantes de 1848.

 E o trecho adulterado e transformado na falsa frase “protonazista” diz: “As classes e as raças, fracas demais para dominar as novas condições de vida, são obrigadas a ceder [must give way].” As “classes e raças” citadas não estavam sendo exterminadas, nem sendo vitimadas por nenhum “holocausto revolucionário”. O que acontecia é que elas estavam sendo tolhidas de seu modo original de vida e forçadas ou a se adaptar à nova tradição econômica, social e cultural, geralmente de maneira sofrível, ou a emigrar para outros países, nos casos em que a vida no seu país de origem havia se tornado insuportável.

 Ou seja, a suposta menção de Marx a “raças fracas” e “holocausto revolucionário” é falsa. É uma distorção, feita com fins escusos de manipulação política, de um trecho de um artigo dele sobre o que o capitalismo estava fazendo com pessoas de diversas classes e culturas nos países britânicos de sua época.


 Curioso é que os conservadores, em sua maracutaia, ainda tentam misturar a citação falsa com um suposto racismo de Marx contra os povos eslavos [Veja o url da imagem abaixo e descobrirá um ''judeo-bolchevism discovered'' (''o bolchevismo judaico descoberto''), uma forte sugestão de que a direita nunca perdeu seu antissemitismo, cuja expressão máxima foi o nazismo de Hitler. Aqui vai uma coleção de citações sobre o marxismo na famosa obra de Hitler, ''Minha Luta'']:





 Como vimos, não há nenhuma menção sequer a um ''holocausto revolucionário'' no artigo de Marx para o People's Paper, e ainda menos contra eslavos; trata-se de outra forja mal-feita da direita, que foi explicada aqui. Não nos esqueçamos, aliás, que Marx, a propósito da aprovação pelos liberais do ''Règlement Organique'' – o código legislativo proclamado pelo general Kisselew em 1831 para regular o trabalho dos camponeses russos (eslavos) nas terras dos boiardos (antes pertencentes aos próprios camponeses), que praticamente legalizava a servidão –, não teve dúvidas em tratá-los pela carinhosa alcunha de ''cretinos''. [4] Lembremos ainda que, no final de sua vida, Marx depositava suas esperanças numa revolução na Rússia, país onde suas ideias haviam conseguido mais adeptos.

Conclusão

 A direita, na intenção de manter o poderoso escopo teórico de Marx longe das massas, não faz a mínima cerimônia em forjar ou manipular citações do pensador alemão, de forma que este apareça àquelas como algum tipo de psicopata totalitário e/ou racista; a verdade é que estão simplesmente acusando-o do que eles próprios são.





Notas

[1] Para ver as deficiências da economia burguesa -- aquela que enxerga o modo capitalista de produção como a melhor formação socioeconômica possível, dedicando-se portanto a defendê-lo --, veja os artigos do blog Critique of Crisis Theory, Austrian economics vs Marxism, The ideas of John Maynard Keynes1234, 5 e 6) e Are Marx and Keynes compatible? ( 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9).

[2] Referência à campanha enérgica desenvolvida pelos operários ingleses durante a Guerra Civil Americana, campanha essa dirigida contra as tentativas da burguesia inglesa e francesa de organizar uma intervenção a favor dos estados sulistas que sustentavam a escravidão. Mais tarde, no livro I d'O Capital, ele se refere à G.C.A. desta forma:

''Nos Estados Unidos, todo o impulso de independência dos trabalhadores ficou paralisado enquanto a escravatura desfigurava uma parte da república. O trabalhador branco não pode se emancipar onde se ferreteia o trabalhador negro.'' (MARX, 2014, p. 346)

[3] Marx se refere à conquista do Cáucaso pela Rússia czarista, que resultou na submissão e no empobrecimento das nacionalidades, bem como à repressão, pelo governo czarista, do levante revolucionário ocorrido na Polônia em 1863-1864. Engels dirá, no prefácio à edição de 1892 d'O Manifesto, que

 ''A criação de uma Polônia forte e independente não interessa apenas aos poloneses, mas a todos nós. Uma sincera colaboração internacional entre as nações europeias é possível somente se cada uma delas for plenamente autônoma em sua própria casa. (...) A nobreza não foi capaz nem de conservar nem de reconquistar  a independência polonesa; à burguesia ela é hoje pelo menos indiferente.  No entanto, tal independência é uma necessidade para a colaboração entre as nações europeias. Ela só poderá ser reconquistada pelo jovem proletariado polonês, e em suas mãos estará bem garantida. Os operários de toda a Europa têm tanta necessidade da independência da Polônia quanto os próprios operários poloneses (disponível na íntegra aqui)''.


[4] Trecho da seção 2ª do capítulo VII do livro I d'O Capital:

''No caso do capitalista, a avidez por sobretrabalho aparece no ímpeto de prolongar sem medida o dia de trabalho; no caso do boiardo, mais simplesmente na caça imediata a dias de trabalho servil


Nos principados do Danúbio, o trabalho servil estava ligado a rendas em géneros e outros pertences da servidão; constituía porém o tributo decisivo [pago] à classe dominante. Onde isto aconteceu, o trabalho servil raramente brotou da servidão; inversamente, foi sim a servidão que na maioria dos casos brotou do trabalho servil. Aconteceu assim nas províncias romenas. O seu modo de produção originário estava fundado na propriedade comum, mas não na propriedade comum em forma eslava ou mesmo indiana. Uma parte das terras era autonomamente administrada pelos membros da comuna como propriedade privada livre, uma outra parte — o ager publicus — era lavrada por eles em comum. Os produtos deste trabalho comum serviam em parte como fundo de reserva para más colheitas e outras casualidades, em parte como tesouro de Estado para cobertura dos custos de guerra, religião e outras despesas da comuna. No decurso do tempo, dignitários guerreiros e eclesiásticos usurparam, com a propriedade comum, as prestações à mesma. O trabalho dos camponeses livres na sua terra comunal transformou-se em trabalho servil a favor dos ladrões da terra comunal. Com isso, desenvolveram-se simultaneamente relações de servidão, porém apenas de facto, não de direito, até que a Rússia, libertadora do mundo, sob o pretexto de abolir a servidão, a elevou a lei. O código do trabalho servil, que o general russo Kisselev proclamou em 1831, foi naturalmente ditado pelos próprios boiardos. A Rússia conquistou assim de uma assentada os magnatas dos principados do Danúbio e o aplauso dos cretinos liberais de toda a Europa.

Segundo o Règlement organique — assim se chama aquele código de trabalho servil — cada camponês valáquio deve ao chamado proprietário fundiário, para além de uma massa de pormenorizadas contribuições em géneros: 1. doze dias de trabalho, em geral; 2. um dia de trabalho no campo; 3. um dia de carregamento de lenha. Summa summarum), 14 dias no ano. Com profunda inteligência da economia política, o dia de trabalho não é contudo tomado no seu sentido ordinário, mas sim no de dia de trabalho necessário para a fabricação de um produto médio diário, e o produto médio diário está tão manhosamente determinado que nenhum ciclope em 24 horas o teria concluído. Nas palavras secas de autêntica ironia russa, o próprio Règlement explica assim que por 12 dias de trabalho se deve entender o produto de um trabalho manual de 36 dias; por um dia de trabalho no campo, três dias, e por um dia de carregamento de lenha, igualmente o triplo. Summa: 42 dias de trabalho servil. Acrescenta-se porém a chamada Jobagie, prestações de serviço devidas ao senhor fundiário para necessidades extraordinárias da produção. Na proporção da magnitude da sua população, cada aldeia tem de fornecer anualmente um determinado contingente para a Jobagie. Este trabalho servil suplementar é avaliado em 14 dias para cada camponês valáquio. Assim, o trabalho servil prescrito ascende anualmente a 56 dias de trabalho. O ano agrícola na Valáquia só conta porém 210 dias, devido ao mau clima, dos quais 40 para domingos e feriados, 30 em média para mau tempo, em conjunto não entram 70 dias. Ficam 140 dias de trabalho. A relação entre trabalho servil e trabalho necessário, 56/84 ou 66 2/3 por cento, exprime uma taxa muito mais pequena de mais-valia do que a que regula o trabalho do operário agrícola ou fabril inglês. Isto é, porém, apenas o trabalho servil legalmente prescrito. E num espírito ainda «mais liberal» do que a legislação fabril inglesa, o Règlement organique soube facilitar o seu próprio torneamento. Depois de, a partir de 12 dias, fazer 56, o trabalho diário nominal de cada um dos 56 dias de trabalho servil é novamente determinado de tal modo que um suplemento tem de passar para os dias seguintes. Em um dia, p. ex., deve ser mondada uma extensão de terreno que para esta operação, nomeadamente nas plantações de milho, requer o dobro do tempo. O trabalho diário legal para trabalhos agrícolas singulares é interpretável de tal modo que o dia começa no mês de Maio e acaba no mês de Outubro. Para a Moldávia, as determinações são ainda mais duras.

'Os doze dias de trabalho forçado do Règlement organique', exclamou um boiardo enebriado pela vitória, 'elevam-se a 365 dias no ano!' ''

* Sobre a aplicação do neoliberalismo na América Latina durante o século passado, que ocorreu no contexto de ditaduras civis-militares, veja o vídeo abaixo (atenção especial para o trecho entre 8:25 e 9:21):




 Bibliografia:

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I – o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MARX, Karl. Miséria da filosofia. São Paulo: Martin Claret, 2011.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret, 2011.


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O Estado de Bem-Estar ocidental: ascensão e queda do bloco soviético

Artigo de James Petras publicado no site do PCB.


''Os intelectuais da esquerda “anti-stalinista” nunca entraram em qualquer reflexão séria a respeito de seu próprio papel na derrubada do Estado de bem-estar coletivo, bem como não assumiram qualquer responsabilidade pelas devastadoras consequências socioeconômicas, tanto no Leste quanto no Ocidente. Além disso, os mesmos intelectuais não tiveram reservas nesta “Era pós-soviética” para apoiar (“criticamente”, é claro) o Partido Trabalhista Inglês, o Partido Socialista Francês, o Partido Democrata de Clinton-Obama e outros “males menores” que praticavam o neoliberalismo. Eles apoiaram a total destruição da Iugoslávia e as guerras coloniais no Oriente Médio, Norte da África e Sul da Ásia, lideradas pelos EUA. Não foram poucos os intelectuais “anti-stalinistas” na Inglaterra e na França que brindaram em copos de champagne com os generais, banqueiros e elites do petróleo quando da invasão sangrenta e devastação da OTAN na Líbia – o único Estado de bem-estar na África.''



 Introdução



Uma das mais marcantes questões socioeconômicas das duas décadas passadas é a reversão do meio século anterior no que se refere à legislação do bem-estar social na Europa e América do Norte. Cortes sem precedentes nos serviços sociais, nas indenizações trabalhistas, nos empregos públicos, nas pensões, nos programas de saúde, nos gastos em educação,no tempo de férias e na segurança do trabalho são acompanhadas de taxações, de regressão de impostos, de aumento da idade de aposentadoria, bem como do aumento das desigualdades, da insegurança trabalhista e da aceleração do ritmo nos locais de trabalho.

A queda do “Estado de bem-estar social” [Welfare State] põe por terra a ideia veiculada pelos economistas ortodoxos, que argumentam que o “amadurecimento” do capitalismo, seu “estado avançado”, com alta tecnologia e serviços sofisticados, seriam acompanhados por um maior bem-estar e mais altos padrões de vida e de renda. Enquanto é verdade que “serviços e tecnologia” têm se multiplicado, o setor econômico tornou-se mais polarizado, entre funcionários mal pagos do comércio varejista e os super ricos negociadores de ações e investidores financeiros. A informatização da economia levou à contabilidade eletrônica, controles de custos e rápidos movimentos de fundos especulativos em busca do lucro máximo, enquanto, ao mesmo tempo, provoca brutais reduções orçamentárias para programas sociais.

Esta “Grande Reversão” parece ser de longo prazo, um processo de larga escala centrado nos grandes países capitalistas dominantes da Europa Ocidental e da América do Norte e nos antigos países comunistas da Europa Oriental. Cabe-nos examinar as causas sistêmicas que transcendem as idiossincrasias de cada nação.

As Origens da Grande Reversão

Existem duas linhas de investigação que precisam ser elucidadas a fim de compreender o declínio do Estado de bem-estar e a queda massiva dos padrões de vida. Uma linha de análise examina a profunda mudança no ambiente internacional: nós mudamos de um sistema bi-polar competitivo, baseado na rivalidade entre os Estados coletivistas de bem-estar do Bloco oriental e os Estados capitalistas da Europa e América do Norte para um sistema monopolizado pelos Estados capitalistas em competição.

Uma segunda linha de investigação nos conduz ao exame das mudanças nas relações sociais internas dos Estados capitalistas: ou seja, da passagem de intensas lutas de classes para a colaboração de classe a longo prazo, como princípio organizador das relações entre trabalho e capital.

A principal proposição que informa este ensaio é de que a emergência do Estado de bem-estar foi uma consequência histórica de um período em que havia altos níveis de competição entre owelfarianismo coletivista e o capitalismo, bem como refere-se a um momento em que o sindicalismo classista e os movimentos sociais tinham ascendência sobre as organizações que promoviam a colaboração de classes.

É claro que os dois processos são interligados: como os Estados coletivistas implementaram melhores condições de bem-estar para seus cidadãos, sindicatos e movimentos sociais no Oeste tinham incentivos sociais e exemplos positivos para motivar seus membros e desafiar os capitalistas a corresponder à legislação do bloco coletivista.


As Origens e Desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Ocidental


Imediatamente após a derrota dos regimes fascistas-capitalistas, com a queda da Alemanha Nazista, a União Soviética e seus aliados na Europa Oriental ingressaram num programa amplo de reconstrução, recuperação, crescimento econômico e consolidação do seu poder, baseando-se em reformas socioeconômicas de bem-estar e longo alcance. O grande medo entre os regimes capitalistas ocidentais era de que a classe trabalhadora do Ocidente poderia “seguir” o exemplo soviético ou, no mínimo, apoiar partidos e ações que comprometeriam a recuperação capitalista. Dado o descrédito político de muitos capitalistas ocidentais por conta de sua colaboração com os nazistas ou sua oposição fraca e tardia à versão fascista do capitalismo, eles não podiam recorrer aos métodos demasiadamente repressivos do passado. Em vez disso, as classes capitalistas ocidentais realizaram uma estratégia dupla para enfrentar as reformas welfare-coletivistas soviéticas: repressão seletiva dos comunistas domésticos e da esquerda radical; concessões de bem-estar para assegurar a lealdade dos sindicatos e partidos social-democratas e democratas cristãos.

Com a recuperação econômica e o crescimento do pós-guerra, a competição política, ideológica e econômica se intensificou: o bloco soviético implementou reformas abrangentes, incluindo pleno emprego, segurança no emprego garantida, assistência à saúde universal, educação gratuita, férias remuneradas de um mês, pensões integrais, campos de verão e hotéis de férias gratuitos para famílias de trabalhadores e licença-maternidade remunerada e prolongada. Eles enfatizaram a importância do bem-estar social sobre o consumo individual. O ocidente capitalista estava sob pressão para aproximar-se das vantagens do bem-estar do Leste, enquanto expandia o consumo individual baseado em crédito barato e condições de parcelamento tornadas possíveis pelas suas economias mais avançadas. A partir da metade dos anos 1940 até a metade dos anos 1970, o Ocidente competiu com o Bloco Soviético com dois objetivos em mente: reter a lealdade dos trabalhadores no ocidente e, ao mesmo tempo, promover o isolamento dos setores militantes sindicais e seduzir os trabalhadores ocidentais com promessas de programas de bem-estar equivalentes e de maior consumo individual.

Apesar dos avanços nos programas de bem-estar, no Ocidente e no Oriente, havia grandes protestos de trabalhadores no Leste da Europa: eles focavam na independência nacional, na tutela paternalista autoritária dos sindicatos e no acesso insuficiente aos bens de consumo. No Ocidente, havia grandes levantes de trabalhadores e estudantes na França e na Itália pedindo o fim da dominação capitalista nos locais de trabalho e na vida social. Havia oposição popular às guerras imperialistas (Indochina, Argélia, etc.), aos atributos autoritários do Estado capitalista (racismo) e à concentração generalizada de riqueza.

Em outros termos, as novas lutas no Ocidente e no Oriente foram condições para a consolidação do Estado de bem-estar e a expansão do poder político e social popular sobre o Estado e o processo produtivo.

A competição continuada entre o sistema de bem-estar coletivista e o capitalista assegurava que não haveria recuo das reformas alcançadas. De todo modo, as derrotas das revoltas populares dos anos sessenta e setenta asseguraram que não haveria mais avanços no bem-estar social a partir de então. Mais importante, um "impasse" constituiu-se entre as classes dominantes e os trabalhadores em ambos os blocos, levando a uma estagnação das economias, à burocratização dos sindicatos e a demandas por parte das classes capitalistas por uma dinâmica e por novas lideranças capazes de desafiar o bloco coletivista e sistematicamente desmantelar o Estado de bem-estar.

O Processo de Reversão: De Reagan-Thatcher a Gorbachev


A grande ilusão, que arrebatou as massas do bloco welfare-coletivista, era a noção de que a promessa ocidental do consumo de massas poderia ser combinada com programas avançados de bem-estar que eles há muito tempo davam como certa. Os sinais políticos do Ocidente, contudo, foram se movendo na direção oposta. Com a ascendência do Presidente Ronald Reagan nos EUA e da Primeira Ministra Margaret Thatcher na Grã Bretanha, os capitalistas recuperaram controle total sobre a agenda social, disferindo golpes mortais ao que restou da militância sindical e lançando uma corrida armamentista de larga escala com a União Soviética para derrubar sua economia. Além disso, o “welfarismo” no Leste foi plenamente minado por uma classe emergente em ascensão, elites educadas que juntaram-se com cleptocratas, neoliberais, novos gângsters e qualquer outro que tenha defendido os “valores ocidentais”. Eles receberam sustentação política e material das fundações do ocidente, das agências de inteligência ocidentais, do Vaticano (especialmente na Polônia), de partidos social-democratas da Europa e da AFL-CIO [Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais] dos EUA enquanto, nas periferias, um verniz ideológico foi fornecido pelos auto-intitulados “anti-stalinistas” de esquerda no Ocidente.

Todo o programa de bem-estar do bloco soviético foi construído de alto a baixo e, como resultado, não produziu uma consciência de classe politizada, independente e uma organização de classe militante para defender-se do assalto de larga escala lançado pelo bloco gângster-cleptocratico-clerical-neoliberal-‘anti-stalinista’. Do mesmo modo, no Ocidente, todo o programa do bem-estar social foi amarrado aos partidos social-democratas europeus, ao Partido Democrata dos EUA e a uma hierarquia sindical carente tanto de consciência de classe como de interesse pela luta de classes. Sua maior preocupação, como burocratas sindicais, era a de recolher as taxas dos afiliados, manter o poder da organização interna sobre seus feudos e seu próprio enriquecimento pessoal.

O colapso do bloco soviético foi precipitado pela entrega sem precedentes, por parte do regime de Gorbachev, dos Estados aliados do Pacto de Varsóvia para o poder da OTAN. Os funcionários comunistas locais foram rapidamente substituídos por procuradores neoliberais e pró-ocidentais. Eles rapidamente procederam o lançamento de um assalto de larga escala à propriedade pública e desmantelaram a legislação de proteção trabalhista básica e a segurança do trabalho, que havia sido uma parte inerente das relações coletivistas entre a administração e o trabalho.

Com poucas notáveis exceções​​, toda a estrutura formal do welfarismo-coletivista foi esmagada. Logo depois veio a desilusão em massa, entre os trabalhadores do bloco oriental, como os seus sindicatos “anti-stalinistas” ocidentalizados que os presentearam com demissões em massa. A grande maioria dos militantes trabalhadores dos estaleiros de Gdansk, filiados ao Movimento "Solidariedade" da Polônia, foram demitidos e obrigados a perseguir biscates, enquanto seus tão aclamados 'líderes', de longa data beneficiários de apoio material das agências de inteligência e sindicatos ocidentais, converteram-se em prósperos políticos, editores e empresários.

Os sindicatos ocidentais e a esquerda "anti-stalinista" (social-democratas, trotskistas e toda seita e corrente intelectual em meio a isso), fizeram um belo serviço, não só ao acabar com o sistema coletivista (sob o slogan: "Qualquer coisa é melhor do que o stalinismo") mas de acabar com o Estado de bem-estar de dezenas de milhões de trabalhadores, pensionistas e suas famílias.

Uma vez que o welfare-coletivista foi destruído, a classe capitalista ocidental não mais precisou competir pela correspondência de benefícios de bem-estar. A Grande Reversão entrava em marcha acelerada.

Pelas duas décadas seguintes, os regimes ocidentais, liberais, conservadores e social-democratas, cada um por sua vez, cortaram fora a legislação do bem-estar: pensões foram cortadas e a idade de aposentadoria foi estendida à medida em que se instituiu a doutrina do "trabalhe até cair". A segurança no trabalho desapareceu, as proteções no local de trabalho foram eliminadas, indenizações foram cortadas e as demissões dos trabalhadores foram simplificadas, ao mesmo tempo em que a mobilidade do capital floresceu.

A globalização neoliberal explorou vastas reservas de trabalho qualificado mal pago dos antigos países coletivistas. Os trabalhadores “anti-stalinistas” herdaram o pior de todos os mundos: perderam a rede de proteção do bem-estar social do Leste e falharam na garantia dos níveis de consumo individual e de prosperidade do Ocidente. O capital alemão explorou o trabalho mais barato checo e polonês, enquanto os políticos checos privatizaram as indústrias estatais altamente sofisticadas e os serviços sociais, aumentando os custos e restringindo o acesso aos serviços remanescentes.

Em nome da “competitividade” o capital ocidental desindustrializou e realocou exitosamente vastas indústrias com uma virtual falta de resistência dos burocratizados sindicatos “anti-stalinistas”. Sem mais competir com os coletivistas sobre quem teria o melhor sistema de bem-estar, os capitalistas ocidentais agora competiam entre eles próprios sobre quem teria os mais baixos custos com trabalho e encargos sociais, a mais flexível proteção ambiental e trabalhista e as mais fáceis e pouco custosas leis para demitir empregados e alugar trabalhadores precários.

O exército inteiro dos impotentes esquerdistas “anti-stalinistas”, confortavelmente estabelecido nas universidades, urraram até ficarem roucos contra a “ofensiva neoliberal” e a “necessidade de uma estratégia anti-capitalista”, sem a menor reflexão sobre como eles contribuíram para minar o próprio Estado de bem-estar que havia educado, alimentado e empregado os trabalhadores.

Militância do Trabalho: Norte e Sul


Os programas de bem-estar na Europa Ocidental e América do Norte foram especialmente atingidos pela perda de um sistema social competidor no Leste, pelo influxo e impacto do trabalho barato do Leste e porque seus próprios sindicatos tornaram-se auxiliares dos partidos neoliberais socialistas, trabalhistas e democráticos.

Em contraste, no Sul, em particular na América Latina e, num grau menor, na Ásia, o neoliberalismo anti-bem-estar durou apenas uma década. Na América Latina o neoliberalismo rapidamente foi submetido a intensa pressão, quando uma nova onda de militância de classe irrompeu e reconquistou algum terreno perdido. Pelo fim da primeira década do século – o trabalho na América Latina estava aumentando sua parcela na renda nacional, encargos sociais estavam aumentando e o Estado de bem-estar estava em processo de momentânea recuperação, em contraste direto com o que estava ocorrendo na Europa Ocidental e América do Norte.

Revoltas sociais e poderosos movimentos populares conduziram a regimes e políticas de esquerda e centro-esquerda na América Latina. Poderosas ondas de lutas nacionais derrubaram os regimes neoliberais. Uma crescente onda de protestos operários e camponeses na China levou a um aumento salarial de 10% a 30% nos cinturões industriais e promoveu a restauração da saúde e do sistema público de educação. Enfrentando uma nova revolta autóctone, sociocultural e de trabalhadores, o Estado Chinês e a elite empresarial rapidamente promoveram uma legislação de bem-estar social no momento em que nações do sul da Europa como Grécia, Espanha, Portugal e Itália estavam no processo de demitir trabalhadores e arrochar salários, reduzindo a renda mínima, aumentando a idade de aposentadoria e cortando encargos sociais.

Os regimes capitalistas do Ocidente não mais encaravam competição dos sistemas de bem-estar rivais do bloco oriental desde que todos abraçaram o ethos do “quanto menor, melhor”: menores encargos sociais significavam maiores subsídios aos negócios, maiores lucros para lançar guerras imperialistas e para estabelecer o aparato estatal policial de “segurança nacional”. Redução das taxações do capital conduz a maiores lucros.

A esquerda ocidental e intelectuais liberais tiveram um papel vital em ofuscar a importante contribuição positiva que o bem-estar soviético prestou ao pressionar os regimes capitalistas do Ocidente para seguir seu exemplo. Durante as décadas que se seguiram à morte de Stalin e como a sociedade soviética caminhava rumo a um sistema híbrido de welfarismo autoritário, estes intelectuais continuaram a se referir a tais regimes como “stalinistas”, obscurecendo a sua principal fonte de legitimação entre os seus cidadãos – seu avançado sistema de bem-estar. Os mesmos intelectuais iriam clamar que o “sistema stalinista” era um obstáculo ao socialismo e viraram os trabalhadores contra seus aspectos positivos como Estado de bem-estar, mantendo o foco exclusivamente no velho “Gulag”. Eles argumentavam que a “queda do stalinismo” iria promover uma grande abertura pelo “socialismo democrático revolucionário”. Na realidade, a queda do welfarismo-coletivista levou à destruição catastrófica do Estado de bem-estar, tanto no Leste quanto no Oeste, favorecendo a ascendência das mais virulentas formas do primitivo capitalismo neoliberal. Por sua vez, isto levou ao encolhimento do movimento sindical e estimulou a “virada à direita” dos partidos social-democratas e trabalhistas através das ideologias do "Novo Trabalhismo” e da “Terceira Via”.

Os intelectuais da esquerda “anti-stalinista” nunca entraram em qualquer reflexão séria a respeito de seu próprio papel na derrubada do Estado de bem-estar coletivo, bem como não assumiram qualquer responsabilidade pelas devastadoras consequências socioeconômicas, tanto no Leste quanto no Ocidente. Além disso, os mesmos intelectuais não tiveram reservas nesta “Era pós-soviética” para apoiar (“criticamente”, é claro) o Partido Trabalhista Inglês, o Partido Socialista Francês, o Partido Democrata de Clinton-Obama e outros “males menores” que praticavam o neoliberalismo. Eles apoiaram a total destruição da Iugoslávia e as guerras coloniais no Oriente Médio, Norte da África e Sul da Ásia, lideradas pelos EUA. Não foram poucos os intelectuais “anti-stalinistas” na Inglaterra e na França que brindaram em copos de champagne com os generais, banqueiros e elites do petróleo quando da invasão sangrenta e devastação da OTAN na Líbia – o único Estado de bem-estar na África.

Os intelectuais de esquerda “anti-stalinistas”, ora bem abrigados em privilegiadas posições universitárias em Londres, Paris, Nova Iorque e Los Angeles não foram pessoalmente afetados pela reversão dos programas de bem-estar ocidentais. Eles se recusam insistentemente a reconhecer o papel construtivo que os concorrentes programas de bem-estar soviéticos tiveram ao forçar o Ocidente a “acompanhar” em uma espécie de "corrida de bem-estar social", proporcionando benefícios para a sua classe trabalhadora. Ao invés disso, eles argumentam (em seus fóruns acadêmicos) que uma maior “militância dos trabalhadores” (dificilmente possível com uma associação sindical decrescente e burocratizada) e maiores e mais frequentes “fóruns de intelectuais socialistas” (onde eles podem apresentar suas próprias análises radicais... uns para os outros) irão eventualmente restaurar o sistema de bem-estar. De fato, níveis históricos de regressão, na medida em que se considere a legislação de bem-estar, continuam intactos. Existe uma relação inversa (e perversa) entre a proeminência acadêmica da esquerda “anti-stalinista” e o declínio das políticas do Estado de bem-estar. E os intelectuais “anti-stalinistas” ainda se interrogam sobre a guinada ao populismo demagógico de extrema-direita em meio à pressionada classe trabalhadora!

Se compararmos e examinarmos a relativa influência dos intelectuais “anti-stalinistas” na formação do Estado de bem-estar com relação ao impacto do desmantelamento do sistema coletivista de bem-estar no bloco do Leste, a evidência é absurdamente clara: os sistemas de bem-estar ocidentais foram muito mais influenciados pelos seus competidores sistêmicos do que pelas piedosas críticas dos acadêmicos “anti-stalinistas” marginais. A metafísica “anti-stalinista” cegou uma geração inteira de intelectuais para a complexa interação e vantagens de um sistema competitivo internacional onde os rivais oferecem medidas de bem-estar para legitimar seu próprio governo e minar os adversários. A realidade da política do poder global levou a esquerda “anti-stalinista” a tornar-se lacaia da luta dos capitalistas ocidentais para conter os custos do bem-estar e estabelecer a plataforma de lançamento para uma contra-revolução neoliberal. As profundas estruturas do capitalismo foram as primeiras beneficiárias do anti-stalinismo.

A derrubada da ordem legal dos Estados coletivistas conduziu às mais egrégias formas de capitalismo predatório e mafioso na antiga URSS e nações do Pacto de Varsóvia. Contrariamente às desilusões da esquerda “anti-stalinista”, nenhuma democracia socialista “pós-stalinista” emergiu em lugar algum. Os operadores-chave na derrubada do Estado do welfare-coletivista e beneficiários do vácuo de poder foram os oligarcas bilionários, que pilharam a Rússia e o Leste, o cartel de drogas e escravos brancos de muitos bilhões de dólares, que transformou centenas de milhares de trabalhadores fabris desempregados e seus filhos na Ucrânia, Moldova, Polônia, Hungria, Kosovo, Romênia e de toda parte em alcoólatras, prostitutas e dependentes de drogas.

Demograficamente, os maiores perdedores na derrubada do sistema de welfare-coletivista têm sido as mulheres trabalhadoras: elas perderam seus empregos, suas licenças-maternidade, assistência aos filhos e proteções legais. Elas sofreram com uma violência doméstica epidêmica sob os punhos de seus maridos bêbados e desempregados. As médias de mortalidade materna e infantil subiram, num sistema de saúde pública precário. As mulheres da classe trabalhadora do Leste sofreram uma perda sem precedentes de status material e de direitos. Isto conduziu ao maior declínio demográfico da história do pós-guerra – taxas de natalidade em queda livre, aumento da média de mortes e desesperança generalizada. No Ocidente, as feministas “anti-stalinistas” ignoraram sua própria cumplicidade na escravização e degradação de suas “irmãs” no Leste. (Elas estavam muito ocupadas festejando a subida de Vaclav Havel).

É claro, os intelectuais “anti-stalinistas” vão dizer que as consequências que eles imaginavam estão muito longe daquilo que se deu e eles vão se recusar a assumir qualquer responsabilidade pelas consequências reais das suas ações, da sua cumplicidade e das ilusões que criaram. Sua alegação ultrajante de que "qualquer coisa é melhor do que o stalinismo" é desonesta diante do grande abismo contendo uma geração perdida de trabalhadores do bloco oriental e suas famílias. Eles precisam começar a contar o grande exército de vários milhões de desempregados em todo o Leste, as milhões de vítimas assoladas pelo HIV e pela tuberculose na Rússia e na Europa Oriental (onde nem a tuberculose nem o HIV representavam uma ameaça antes da “queda”), as vidas destroçadas de milhões de jovens e mulheres presas nos prostíbulos de Tel Aviv, Pristina, Bucareste, Hamburgo, Barcelona, ​​Amman, Tânger e Brooklyn...

Conclusão


O único grande golpe aos programas de bem-estar tal como conhecemos, que foram desenvolvidos durante as quatro décadas de 1940 a 1980, foi o fim da rivalidade entre o Bloco soviético e a Europa Ocidental e América do Norte. Apesar da natureza autoritária do bloco oriental e o caráter imperialista do Ocidente, ambos costuraram legitimidade e vantagens políticas pela garantia da lealdade das massas de trabalhadores e por meio de concessões sociais e econômicas.

Hoje, diante da “reviravolta” neoliberal, as grandes lutas de classe se desenvolvem pela defesa dos resquícios do Estado de bem-estar, os restos cadavéricos de um período anterior. No presente há muito pouca perspectiva de qualquer retorno aos sistemas internacionais de bem-estar em competição, a menos que olhemos para alguns poucos países progressistas, como Venezuela, que instituiu uma série de reformas na saúde, educação e trabalho, financiadas pelo setor do petróleo nacionalizado.

Um dos paradoxos da história do welfarismo no Leste Europeu pode ser encontrado no fato de que a maioria das lutas trabalhistas em andamento (na República Checa Polônia, Hungria e outros países que tiveram a reversão de seus regimes coletivistas), envolve a defesa da pensão, da aposentadoria, saúde pública, emprego, educação e outras políticas de bem-estar – os resíduos “stalinistas”. Em outros termos, enquanto intelectuais ocidentais ainda se vangloriam com seu triunfo sobre o stalinismo, os trabalhadores realmente existentes no Leste estão engajados em lutas militantes diárias para reter e reconquistar os elementos positivos daqueles Estados malignos. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que na Rússia e na China, onde as privatizações significaram perda de postos de trabalho e, no caso da China, a perda brutal de benefícios públicos de saúde. Hoje as famílias dos trabalhadores com doenças sérias estão arruinadas pelos custos da assistência médica privada.

No mundo atual, o “anti-stalinismo” é uma metáfora para uma geração falida, às margens das políticas de massas. Estas foram superadas por um virulento neoliberalismo, que tomou de empréstimo sua linguagem pejorativa (Blair e Bush também eram “anti-stalinistas”) no curso da demolição do Estado de bem-estar. Hoje em dia o ímpeto das massas pela reconstrução do Estado de bem-estar é encontrado nestes países, que perderam ou estão em processo de perder toda a sua rede de segurança social – como a Grécia, Portugal, Espanha e Itália – e nos países da América Latina, onde levantes populares, baseados na luta de classes ligadas aos movimentos de libertação nacional, estão em ascensão.

As novas lutas de massas pelo bem-estar fazem poucas referências diretas às antigas experiências coletivistas e ainda menos ao discurso vazio da esquerda “anti-stalinista”. Este último está preso em um túnel do tempo obsoleto e irrelevante. O que é evidente, no entanto, é que o bem-estar, programas sociais e de trabalho, que foram ganhos e perdidos na sequência do desaparecimento do bloco soviético, voltaram como objetivos estratégicos que motivam lutas atuais e futuras lutas dos trabalhadores.

O que precisa ser explorado mais aprofundadamente é a relação entre o aumento dos vastos aparatos estatais policiais no Ocidente e o declínio e desmantelamento de seus Estados de bem-estar respectivos: o crescimento da "Segurança nacional" e da "Guerra ao Terror" corre em paralelo com o declínio da segurança social, dos programas de saúde pública e da grande queda nos padrões de vida para centenas de milhões.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Madre Teresa de Calcutá, uma humanista?


 Estudo acadêmico com mais de 500 documentos conclui que Madre Teresa não era modelo de altruísmo: idolatrava o sofrimento e mantinha pessoas moribundas em Calcutá e outros lugares sem mínima higiene ou tratamento médico, aceitou honras concedidas pelo ditador do Haiti e ainda elogiou o regime, era avarenta com dinheiro na hora de doar, dando apenas orações e medalhinhas de Nossa Senhora para pessoas afetadas por enchentes e pela explosão de uma fábrica de pesticidas (isso quando sua fundação, devido à sua celebridade, dispunha de centenas de milhões de dólares), e, quando recebeu o Prêmio Nobel da Paz, aproveitou a oportunidade para dizer a mulheres bósnias que haviam engravidado de estupradores sérvios durante a guerra da Bósnia que "sinto que o maior destruidor da paz hoje é o aborto".

 Uma fanática, excessivamente dogmática, fetichista de sofrimento desnecessário de pobres, que secretamente se torturava por causa de sua falta de fé (vivia com dúvidas se Deus existia porque ele não respondia a suas orações), aliada de ditadores e corruptos (praticamente fazendo lavagem do dinheiro deles doado para sua fundação).

 Esta é a verdadeira Madre Teresa de Calcutá, esta é Agnes Gonxha (seu nome verdadeiro). O maior embuste pseudo-humanitário de todo o século XX.

Um artigo sobre o estudo:

https://whyevolutionistrue.wordpress.com/2013/03/05/a-new-expose-on-mother-teresa-shows-that-she-and-the-vatican-were-even-worse-than-we-thought/

 Mais informações:
https://www.youtube.com/watch?v=pvBJXw4OYjw
https://www.youtube.com/watch?v=dPEgo38Ovrc

O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica


Artigo de Carlos Lopes publicado no site do jornal Hora do Povo.







O neoliberalismo é uma lista de panaceias. Aliás, é a única doutrina, até hoje, que tem mais de uma panaceia. Nisso ele superou em muito os vendedores de elixir do Velho Oeste


O historiador inglês Perry Anderson relata algo muito interessante:


“Recordo-me de uma conversa que tive no Rio de Janeiro, em 1987, quando era consultor de uma equipe do Banco Mundial e fazia uma análise comparativa de cerca de 24 países do Sul, no que tocava a políticas econômicas. Um amigo neoliberal da equipe, sumamente inteligente, economista destacado, grande admirador da experiência chilena sob o regime de Pinochet, confiou-me que o problema crítico no Brasil durante a presidência de Sarney não era uma taxa de inflação demasiado alta – como a maioria dos funcionários do Banco Mundial tolamente acreditava –, mas uma taxa de inflação demasiado baixa. ‘Esperemos que os diques se rompam’, ele disse, ‘precisamos de uma hiperinflação aqui, para condicionar o povo a aceitar a medicina deflacionária drástica que falta neste país’.” (Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, grifos nossos).


Mais interessante ainda foi o que aconteceu, logo depois, no Brasil.


Após a posse no Ministério da Fazenda, em dezembro de 1987, do sr. Maílson da Nóbrega – que chegara em maio ao Brasil, depois de dois anos na Inglaterra, de onde saiu um neoliberal tão consumado quanto néscio - a inflação mensal, medida pelo INPC, pulou de 13,97% (dez/1987) para 82,18% no último mês de sua gestão (março/1990). Durante esse período, Maílson congelou salários, confiscou recursos de cadernetas de poupança e aposentadorias, bloqueou gastos públicos, extinguiu órgãos do governo e até tentou privatizar as estatais. Nas suas próprias palavras, “foram dados os passos fundamentais para a abertura da economia, as privatizações e a modernização das finanças nacionais”.


A inflação anual triplicou em 1988, chegando a 993,28%; e dobrou em 1989, para 1.863,56%. Em dois anos, a política supostamente “anti-inflacionária” do sr. Maílson quintuplicou a inflação (mais exatamente, foi multiplicada por 4,7).


Pode ser que tudo isso se deva apenas ao fato de Maílson, que hoje destila a sua sapiência econômica na “Veja”, ser um rematado incompetente. Mas, como dizia aquele personagem de Cervantes, “pero que las hay, las hay”. Segundo Maílson, tudo o que ele fez estava certo: a inflação só não baixou por culpa do Congresso, dos seus colegas ministros, dos governadores, dos empresários nacionais, dos sindicatos de trabalhadores e até da Rede Globo – se não fossem eles, seu plano seria um sucesso...


Mas foi esse ambiente, envenenado por uma inflação de quase 2000%, que forneceu o caldo de cultura para a instalação do neoliberalismo, com todo o seu cortejo de gangsters, no poder, abanado por uma mídia completamente sem escrúpulos, antidemocrática, antinacional e antipopular.


Resta explicitar que também foi esse ambiente que fez com que aberrações como o Plano Collor e o Plano Real fossem impostas sem gerarem imediatamente um repúdio geral, apesar de implicarem na destruição do que o país construíra por seis décadas, inclusive parte de seu povo. A inflação tornou-se um espantalho para a chantagem neoliberal. Mais adiante, analisaremos o atual sistema de metas de inflação. Por agora, frisamos que seu evidente absurdo só não é percebido por causa do esmagamento diante do terrorismo, só possível depois dos acontecimentos do final da década de 80, em torno de uma fantasiosa ameaça de surto inflacionário.


OBSCURANTISMO


O neoliberalismo é uma lista de panaceias. Aliás, é a única doutrina, até hoje, que tem mais de uma panaceia. Nisso ele superou em muito os vendedores de elixir do Velho Oeste. Há pelo menos 10 panaceias, segundo o rol e incensado pelo inventor do Consenso de Washington (cf. John Williamson, “A short history of the Washington Consensus”, in conf. “From the Washington consensus towards a new global governance”, Barcelona, set./2004).


Em suma, em vez de teoria - esse produto do pensamento - o neoliberalismo não chega nem àquela vulgaridade apelidada de economia política “neoclássica”. Ele tem prescrições, e nenhuma preocupação em fundamentá-las. Pelo contrário, a preocupação é fugir de qualquer fundamentação e passar essas prescrições como óbvias, como as únicas possíveis. Não por acaso, quando os neoliberais, ao modo do sr. Meirelles, falam em “fundamentos”, sempre estão se referindo às suas próprias panaceias, cujo fundamento são elas mesmas.


Torna-se, assim, mais compreensível porque sempre o significado das palavras é pervertido pelos neoliberais, assim como seu ódio à qualquer vestígio de ciência, que faz lembrar o grito de guerra do fascista Millán-Astray: “¡Muera la inteligencia!”.
Tomemos como exemplo, outra vez, o “investimento direto estrangeiro” (IDE), a que nos referimos na parte anterior deste artigo.


O IDE – isto é, a penetração de empresas estrangeiras – sempre foi considerado, desde o século XIX, um problema para as economias dependentes ou coloniais, agravado pelo surgimento das multinacionais, ou seja, do capitalismo monopolista nos países centrais.


Se o leitor consultar qualquer trabalho sobre o assunto, por exemplo, a partir da década de 40 do século passado, verá que toda a literatura econômica é unânime em constatar que as multinacionais são um freio para o desenvolvimento dos países que não fazem parte do centro do sistema.


Não são apenas os autores “de esquerda” - por exemplo, o brasileiro Aristóteles Moura, nos seus extraordinários livros “O Dólar no Brasil” (1956) e “Capitais Estrangeiros no Brasil” (1959) - que chegaram a essa conclusão, ou os trabalhos dos pesquisadores norte-americanos da Labor Research Association - “Monopoly Today” (1950) e “Billionaire Corporations” (1954).


A própria ONU, já em 1949, no estudo “Les Mouvements Internationaux de Capitaux entre les deux Guerres”, apontava o problema já no período 1918-1939, ao que se seguiria uma série de outros trabalhos - sem contar os da Cepal, que também é um órgão da ONU.


Tomemos, para encerrar essa brevíssima recensão dos estudos sobre o tema, um famoso livro de alguém que não pode ser acusado nem mesmo de suspeita de ter relação com a “esquerda”, o economista norte-americano Raymond Vernon, professor de Harvard, ex-membro da equipe do Plano Marshall, um dos idealizadores do FMI e do GATT, funcionário durante décadas do Departamento de Estado e da SEC (a agência que, presumivelmente, cuida das Bolsas de Valores dos EUA).


Trata-se de um estudo empírico, publicado por Vernon em 1971, “Sovereignty at Bay: The Multinational Spread of U.S. Enterprises”, traduzido no mundo todo (inclusive no Brasil, já em 1978: “Soberania Ameaçada: A Expansão Multinacional das Empresas Americanas”; não conhecemos a tradução, mas ela foi bastante citada em trabalhos acadêmicos).


Pois bem, apesar do professor Vernon mostrar horror a tudo o que ele acha que é ideológico (como se ele mesmo não tivesse alguma ideologia), suas conclusões são semelhantes aos demais trabalhos sobre o assunto – o que está expresso no título que deu ao seu livro, apesar de, 10 anos depois, ter-se declarado arrependido por esse título. Mas não o mudou, embora tempo não lhe faltasse para fazê-lo, até seu falecimento, em 1999.


As únicas exceções a essa constatação sobre o IDE, naturalmente, eram os agentes diretos do capital estrangeiro como Gudin, Roberto Campos, Martínez de Hoz e seus equivalentes em outros países, todos alucinados por uma ditadura, que levaram as economias dessas nações, sob regimes tão entreguistas quanto repressivos, à bancarrota.


Não é difícil explicar porque, da década de 80 em diante, tenham aparecido tantos elementos propugnando que o melhor para as economias da América Latina, da África, da Ásia, do Leste europeu, é entregá-las ao arbítrio do capital norte-americano, ou germano-anglo-francês, ou japonês. A correlação de forças mundial é suficiente para explicá-lo – como na conhecida descrição de Lenin sobre o período de contrarrevolução que sucedeu 1905, “desânimo, desmoralização, cisões, dispersão, deserções, pornografia em vez de política. Fortalecimento da tendência para o idealismo filosófico, misticismo como disfarce de um estado de espírito contrarrevolucionário”. Afinal, como escreveu em outra ocasião – a da I Guerra Mundial – o mesmo autor, “toda crise na vida dos homens levanta alguns e abate outros”.


Mas é necessário voltar à própria história do que veio após o rompimento, pelos EUA, da relação entre o dólar e o ouro, para entendermos como uma mera série de slogans se impôs como ideologia desse período. No entanto, o que houve foi uma espécie de fusão entre uma ideologia preexistente, cinzenta, apagada e sem importância, com o que havia de mais reacionário, parasita e anti-humano nos países centrais: a cúpula dos bancos e demais antros especulativos, as aves de rapina do cartel bélico, os saqueadores do cartel do petróleo e assemelhados. Vejamos, então, o surgimento dessa ideologia.


O TRUQUE


O neoliberalismo está associado, com razão, ao nome de Friedrich von Hayek. Esse austríaco era, na década de 30 do século passado, um saco de pancadas nos debates econômicos. O que ele fez depois só pode ser compreendido como uma manobra desonesta para eludir essas derrotas – e uma tentativa auto-ilusória de tornar-se imune à crítica.


Essa manobra consistiu em desistir de fundamentar suas concepções, já consideradas ultrarreacionárias naquela época, transformando-as numa crença sem nem ao menos uma teologia que procurasse sustentá-la. Com isso, Hayek abandonava as pretensões teóricas para adentrar no terreno da mera propaganda enganosa.


Como se pode criticar um credo sem demonstrar a falsidade do seu fundamento? Ao eliminar o último, Hayek pretendia escapar da crítica.


Evidentemente, a crítica mais demolidora a uma crença sem fundamento é a demonstração da sua falta de fundamento. Mas Hayek estava contando com uma vantagem não acessível aos seus oponentes: a mídia, que dispensa qualquer fundamento para afirmar as maiores barbaridades.


Mas voltemos ao início da carreira de Hayek.
Sua derrota mais estrondosa foi numa polêmica contra o economista polonês Oskar Lange sobre a possibilidade de uma economia planificada – o “debate sobre o cálculo socialista”, em 1936.


Lange jamais foi um grande marxista. Pelo contrário, demonstrou em suas obras um entendimento no mínimo duvidoso sobre a teoria do valor - e sua concepção da sociedade socialista é basicamente aquilo que depois seria chamado, com infausto destino, “socialismo de mercado”.


Apesar dessas debilidades (que, aliás, só apareceriam plenamente em obras posteriores), Lange, no debate, demonstrou que a suposta impossibilidade do planejamento econômico, levantada por Hayek, era uma falácia. E, o que foi o golpe de misericórdia, Lange expôs o ridículo da posição de seu oponente, ao observar que, se o fundamento da teoria então defendida por Hayek, era que a oferta e a procura entram sempre em equilíbrio no “livre mercado” porque as decisões do homo economicus são sempre racionais (portanto, previsíveis), essa racionalidade tornaria o planejamento consciente da economia não só possível, como desejável. Levando às últimas consequências esse raciocínio, Lange mostrou que tal racionalidade dispensaria o “livre mercado”, pois ele seria completamente desnecessário se as decisões do indivíduo fossem sempre previsíveis. Nesse caso, inclusive, seria mais eficiente uma economia planificada sem qualquer mercado.


Com isso, Hayek ficou embaraçado pelo próprio fundamento da doutrina “neoclássica” de que, na época, era adepto – e o debate se encerrou com a acachapante vitória de Lange e dos marxistas.
O segundo debate mais importante em que Hayek se envolveu, foi com John Maynard Keynes. Nessa época, Hayek recém chegara à Inglaterra – e foi logo brigar com Lord Keynes, então em ascendente prestígio, que o levaria a ser o mais renomado economista não-marxista nas décadas posteriores.


A questão em debate pode ser formulada em termos simples: “foi uma significativa contribuição de John Maynard Keynes ao pensamento econômico sugerir que a economia moderna bem pode entrar num equilíbrio de desemprego e baixo desempenho. Este foi o fato vívido da Grande Depressão” (Galbraith, “A Journey Through Economic Time”, 1ª ed., 1994, pág. 229).


Em outras palavras: a economia capitalista, na época dos monopólios, não sairia da crise por si própria, mas somente com a intervenção do Estado.


Foi essa “sugestão” de Keynes que Hayek resolveu contestar – seguindo também os “neoclássicos” e outros idólatras do mercado, segundo os quais, na crise iniciada em 1929, como disse Schumpeter, se nada se fizesse, tudo se resolveria. O fato de que isso implicava na morte por fome de milhões de pessoas não era algo que preocupasse esses economistas. Muito menos que, como ressaltava Keynes, nem assim estaria garantida a saída da crise.


Keynes não precisou se esforçar para vencer o debate – a economia capitalista, então na pior fase da crise, ganhou o debate para ele. Mas a realidade, é forçoso reconhecer, nunca foi um impedimento para Hayek.


Assim, massacrado por marxistas e keynesianos, Hayek renegou os fundamentos dos “neoclássicos” - ou qualquer outro - e, pouco antes do fim da II Guerra, em 1944, publicou um livro que é o marco inicial do neoliberalismo: “The Road to Serfdom” (O Caminho da Servidão).


Como qualquer um que o leia pode comprovar, esse livro é um panfleto – foi escrito para a campanha do Partido Conservador contra o Partido Trabalhista. A tese central é que qualquer forma de coletivismo, qualquer ideia de justiça social (“justiça distributiva”), qualquer aspiração “a uma distribuição mais justa”, vale dizer, qualquer preocupação social, é uma tirania e leva a uma ditadura. Liberdade é a mesma coisa que um suposto “livre mercado”, sem intervenções, controle nem regulações do Estado ou da sociedade. Em suma, Hayek pintava a ditadura dos monopólios – pois o único “mercado” que existe no capitalismo dos países centrais é aquele manietado por esses monopólios – como o reino da liberdade.


Como panfleto eleitoral, foi um fracasso: o Partido Trabalhista ganhou as eleições, apesar do líder conservador ser Winston Churchill, que governara o país durante a guerra.


Mas, por que Hayek diz que a preocupação com a justiça social é uma tirania? Obviamente, porque, na sociedade, quem deve prevalecer são os “mais capazes”. A igualdade é um ideal “tirânico” exatamente porque tiraniza os mais capazes. A liberdade seria, portanto, sinônimo de desigualdade.


É essa a defesa da democracia feita por Hayek, bastante coerente com sua declaração, 37 anos depois, ao passar em revista o seu paraíso neoliberal (o Chile, sob a ditadura de Pinochet): “Pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal do que um governo democrático carente de liberalismo” (El Mercurio, 12/04/1981, entrevista, págs. D8/D9).


Vários autores, inclusive Paul Sweezy e John Kenneth Galbraith, já puseram em ridículo esse livro – portanto, aqui apenas observaremos que os “mais capazes” de Hayek são sempre os mais capazes de especular, os mais capazes de bajular, os mais capazes de roubar, os mais capazes de trair, os mais capazes de pisar no pescoço dos outros para se dar bem, os mais capazes de ser insensíveis diante de outro ser humano, etc., etc.


Por isso é que os neoliberais pregam a “desregulamentação” de tudo e vivem berrando por um “Estado indutor” que garanta um “ambiente de negócios” que estimule esses “mais capazes”, isto é, que deixe à solta a sua atividade antissocial. Senão, é uma terrível tirania.


Observemos que Hayek, nesse livro, desiste de qualquer fundamentação econômica – ele mesmo diz que seu suposto argumento é apenas “político”, isto é, consiste apenas em propaganda anticomunista e reacionária.


Na época, a reação até que fez um esforço para promover esse livro – a Universidade de Chicago, uma das obras filantrópicas de John D. Rockefeller, publicou uma edição nos EUA e um ex-comunista que se tornara um fanático anticomunista, logo depois um macartista dos mais assanhados, publicou uma condensação no Reader’s Digest.


Mas esse tipo de publicidade somente fez com que o livro fosse encarado como o que realmente era: um panfleto delirante, em seu direitismo troglodita, escrito por um autor capaz de criticar Hitler por ser demasiado “de esquerda” (literalmente: “o que levou [o nazismo] ao totalitarismo não foi o elemento especificamente alemão, mas o elemento socialista”).


Hayek e a sua seita continuariam a amargar sua apagada mediocridade pelos próximos 35 anos, mesmo depois que “três anos depois, em 1947, enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em outros países, Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça.  Entre os célebres participantes estavam não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. (…) Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. (…) Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. (…) eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo – na realidade imprescindível em si” (Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”).


Alguns autores, inclusive Galbraith, chamaram isso de “darwinismo social”. Em respeito a Darwin, que não tem nada a ver com isso, achamos o nome inadequado. Na verdade, o mais preciso seria chamá-lo de neo-nazismo.