domingo, 25 de maio de 2014

O relativismo e a modernidade

O seguinte artigo foi publicado na coluna  de Antonio Cícero da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 29/12/2007.


A proposição de que toda verdade é relativa, tão ouvida hoje em dia, é insustentável



As ideologias "pós-modernas" abraçaram o relativismo com a mesma inconsequência com que atacavam a modernidade. Parece-me claro que muitas das teses de pensadores extremamente influentes, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Richard Rorty e seus discípulos, podem ser consideradas relativistas, mesmo se eles próprios, como é natural, jamais tenham querido assim se rotular.

É mais comum um filósofo relativizar, de algum modo, a verdade, do que confessar-se relativista. Nietzsche, um dos pensadores mais citados hoje em dia, é claramente relativista, embora seja mais freqüentemente classificado de "perspectivista".

O fato é que é comum ouvir-se hoje em dia que "toda verdade é relativa". Essa proposição, porém, é insustentável. Por quê? Porque incorre no que os lógicos chamam de auto-contradição performativa. Essa se manifesta no seguinte dilema: se a própria proposição "toda verdade é relativa" for relativa, segue-se que nem toda verdade é relativa; por outro lado, se a proposição "toda verdade é relativa" não for relativa, segue-se, igualmente, que nem toda verdade é relativa. Desse modo, o relativismo universal se desmente ao ser afirmado.

Mas o relativismo é inviável também do ponto de vista prático ou político. Embora ele seja muitas vezes defendido a partir de uma atitude pluralista, em que o relativista, negando-se a tomar qualquer verdade como absoluta, aceita que haja verdades diferentes daquelas em que acredita, ele, com isso, acaba por minar a sua própria posição.

É que, como diz Platão sobre o relativista Protágoras: "ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto que esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele". Assim, enquanto o relativista aceita, por princípio, que sejam relativamente verdadeiras as crenças do anti-relativista ou absolutista (seja ele, por exemplo, um terrorista jihadista), esse não reconhece absolutamente nenhuma verdade nas teses -que, para ele, não passam de manifestações de fraqueza, decadência etc- do relativista.

Pior ainda: o relativismo é capaz  de se transformar no seu oposto. "Da equivalência de todas as ideologias, todas igualmente ficções", afirmava Mussolini, sob a influência de Nietzsche, "o relativismo moderno deduz que cada qual tem o direito de criar-se a sua própria e impô-la com toda a energia de que é capaz".

E qual foi a ideologia que Mussolini criou e impôs com toda a energia de que foi capaz? O fascismo, para o qual, como afirmou em "A Doutrina do Fascismo", "o Estado é um absoluto".Eis como é simples a transformação do relativismo em absolutismo.

A modernidade filosófica mesma não é nem jamais foi relativista, pelo menos nesse sentido vulgar. É verdade que, desde o princípio, Descartes e, mesmo antes dele, Montaigne, por exemplo, puseram em questão todos os pretensos conhecimentos dados ou positivos -o que, de certo modo, equivale a relativizá-los. Entretanto, os pretensos conhecimentos positivos são relativizados por esses pensadores a partir da crítica efetuada pela razão: a partir, portanto, da razão crítica.

Assim, ao mesmo tempo em que, por um lado, todos os pretensos conhecimentos positivos são reconhecidos como relativos, por outro lado, a razão (enquanto faculdade de criticar) é reconhecida, desde o princípio da modernidade, como um absoluto epistemológico. Não que ela não possa criticar a si própria: ao contrário, nunca é demais lembrar que, na "Crítica da Razão Pura", de Kant, a razão é tanto sujeito quanto objeto da crítica. Entretanto, justamente ao criticar e questionar a si própria, a razão não pode deixar de se afirmar.

De todo modo, o reconhecimento de que a razão crítica - ou negativa - é epistemologicamente absoluta equivale ao reconhecimento de que nenhum pretenso conhecimento positivo é absoluto: ou, em outras palavras, de que todo pretenso conhecimento positivo é relativo.

Por sua vez, o reconhecimento da relatividade – logo, da falibilidade – de todo pretenso conhecimento positivo é o que torna possível conceber a constituição das condições da produção do conhecimento científico empírico – entre as quais a sociedade aberta – e a concomitante rejeição de toda pretensão de pretenso conhecimento que se furte ao exame aberto e livre das suas pretensões cognitivas.

sábado, 24 de maio de 2014

A esquerda estadunidense x a esquerda brasileira

Estava eu lendo um livro do Richard Rorty sobre o pensamento americano de esquerda no século XX (o subtítulo da versão traduzida do livro é quase esse) quando percebi que o Brasil tem um diferencial em relação aos EUA, a meu ver uma vantagem: a nossa esquerda é, de certa forma, completa.

 Explicando melhor: a esquerda dos EUA, nos 2 primeiros terços do século passado, era basicamente trabalhista. Havia uma relação muito forte entre os sindicatos, os intelectuais e os políticos do partido democrata. Conquistas muito importantes foram conseguidas nesse período. Entretanto, na sua devoção à luta contra o egoísmo econômico, os esquerdistas estadunidenses, basicamente brancos heterossexuais de classe média (e isso não é um ad hominem, ok?), esqueciam da causa negra, feminina e LGBT.

 Rorty diz, por exemplo, que ''por volta dos anos sessenta, homens de esquerda nas agências de emprego e nos saguões das faculdades frequentemente falavam das mulheres com o mesmo tom jocoso, e dos homossexuais com o mesmo descaso grosseiro, com que falavam os homens de direita nos clubes de campo. A situação dos afro-americanos era lastimada, mas não transformada, por esta esquerda predominantemente branca. O Partido Democrata dependia do sólido sul, e Franklin D. Roosevelt não tinha intenção de perder os eleitores brancos sulistas para ajudar os negros. Líderes sindicais como os irmãos Reuther, que quiseram desesperadamente integrar os sindicatos, não podiam fazer muito para eliminar o preconceito racial entre seus membros. Os negros americanos começaram a ter um indício de tratamento decente somente nos anos cinquenta, quando começaram a tomar as questões em suas próprias mãos. A maioria dos reformistas de esquerda desse período estavam felizes, ignorando que os americanos morenos no sudoeste estavam sendo linchados, segregados e humilhados do mesmo modo que os afro-americanos do sul. Quase ninguém da esquerda anterior aos anos sessenta pensou em protestar contra a homofobia, e assim esquerdistas como F.O. Matthiessen e Bayard Rustin tiveram de ocultar sua homossexualidade.''

 O filósofo então nos introduz à onda de radicalismo político que tomou conta da juventude estadunidense pós-68, que deixou sua marca principalmente no meio acadêmico. Ele a denomina de ''esquerda cultural'', devido ao modelo de ativismo da mesma: nas universidades, especialmente nos cursos de ciências sociais, abriram-se departamentos de ''estudos culturais'', notadamente estudos das ''vítimas'': as mulheres e as minorias latinas eram alguns de seus objetos de pesquisa. Os professores passaram a recomendar para leitura extra-classe nas aulas de literatura do ensino médio livros como 'Beloved', de Toni Morrison, e indicar textos sobre o suicídio de adolescentes homossexuais nas aulas de redação. Tudo com o objetivo de tornar mais difícil para seus alunos serem sádicos do que havia sido para seus pais. ''Com esta substituição parcial de Marx por Freud como uma fonte para a teoria social'' - diz Rorty - ''o sadismo, ao invés do egoísmo, tornou-se o principal alvo da esquerda. (...)Muitos dos membros desta esquerda especializaram-se no que eles chamaram de 'política da diferença' ou 'da identidade' ou 'do reconhecimento'. Esta esquerda cultural pensa mais sobre estigma do que sobre dinheiro, mais sobre motivações psicossexuais profundas e ocultas do que sobre a superficial e evidente ganância.''

 ''Oras'', o jovem gafanhoto pode estar pensando, ''o que diabos isso tem a ver com a nossa própria esquerda?''. É simples: exceto pelo governismo petista e sua  tímida socialdemocracia, que alia-se a todo tipo de reacionário (haja visto a deprimente sensação que foi ver Marco Feliciano usando uma camisa com ''100% Dilma, 100% 13'' ou algo assim num evento recente), as nossas esquerdas são simultaneamente trabalhistas e culturais. Partidos como PCO e PSOL combinam agendas de justiça econômica e defesa do trabalhador com um progressismo moral que visa a emancipação dos grupos que eu citei acima. Nas universidades acha-se um clima parecido, ao menos nos departamentos de ciências humanas: jovens intelectuais politizados que integram as duas áreas de ativismo. Mesmo em centros de discussão na internet - grupos como ''Debates Políticos: Diálogos do Socialismo'' ou páginas como Meu Professor de História, Bule Voador e Histórias da Esquerda - essa tendência é facilmente perceptível.

 Esse fato representa um potencial enorme para o país. Num momento tão crucial como este - quando o Brasil será sede de um dos maiores eventos globais - e com tantas divergências de opinião mesmo dentro da direita e da esquerda, o caráter misto do pensamento esquerdista nacional fornece esperança para o futuro da política brasileira, principalmente em questão de organização de manifestações ou, quem sabe, futuros candidatos e partidos. O que falta para a esquerda tupiniquim é, ao meu ver, uma integração maior ao movimentos sindical, que perdeu a força que tinha no fim dos anos 90, e mais participação nas grandes mídias e ambiente escolar secundarista. De resto, estamos prontos: a economia política de Marx, o racionalismo científico de Carl Sagan, a ética feminista emancipadora de Simone de Beavoir, o antitotalitarismo de Hannah Arendt, a historiografia de Eric Hobsbawm e a sociologia anticapitalista de Florestan Fernandes são algumas de nossas armas contra o conservadorismo moral, fundamentalismo religioso e ganância por lucro que tentam matar de vez o país.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O orgulho nacional, por Richard Rorty



Trecho inicial de Achieving Our Country, lançado no Brasil com o nome de Para Realizar a América.

''O orgulho nacional é, para os países, o que a autoestima é para os indivíduos: uma condição necessária para o auto-aperfeiçoamento. Orgulho nacional excessivo pode produzir belicosidade e imperialismo, da mesma maneira que excessiva autoestima pode gerar arrogância. Mas, assim como muito pouca autoestima torna difícil para uma pessoa dispor de coragem moral, orgulho nacional insuficiente torna improváveis debates políticos vigorosos e eficazes. O envolvimento nacional com o seu país - sentimentos de vergonha intensa ou de orgulho fulgurante despertados por várias partes de sua história, e por várias políticas nacionais contemporâneas - é necessário para que as deliberações políticas sejam imaginativas e produtivas. Tais deliberações provavelmente não ocorrerão a menos que o orgulho sobrepuje a vergonha.

 A necessidade deste tipo de envolvimento existe até mesmo para aqueles que, como eu, esperam que os Estados Unidos da América algum dia venham a ceder sua soberania ao que Tennyson chamou de 'o Parlamento do Homem, a Federação do Mundo'. Pois uma federação assim nunca virá a existir a menos que os governantes dos estados-nações individuais cooperem para realizá-la, e a menos que os cidadãos desses estados-nações tenham um certo orgulho (mesmo que seja um orgulho pesaroso e hesitante) dos esforços dos seus governantes nesse sentido.

 Aqueles que esperam persuadir uma nação ao auto-esforço precisam lembrar a seu país tanto do que pode ter orgulho quanto do que pode ter vergonha. Eles têm de contar histórias inspiradoras sobre episódios e figuras do passado da nação - episódios e figuras aos quais o país deve permanecer fiel. As nações confiam aos seus artistas e intelectuais a criação de imagens do passado nacional e a tarefa de contar histórias desse passado. A competição pela liderança política é em pate uma competição entre diferentes histórias sobre a auto-identidade de uma nação, e entre diferentes símbolos de grandeza.''


Richard Rorty foi um filósofo neopragmatista estadunidense radicado em Harvard, cujo trabalho mais famoso é o livro Filosofia e o Espelho da Natureza. O pensamento rortyano encontra eco nas obras do neurologista e filósofo estadunidense Sam Harris e do filósofo brasileiro Paulo Ghiraldelli Jr, dentre outros.


terça-feira, 13 de maio de 2014

A Era do Antifascismo, 1929-45 (Primeira parte)

''A era do antifascismo'' é um conjunto de seis textos que postarei aqui no Bora Discutir. Tratam-se das seis partes referentes ao capítulo 11 do livro ''Como mudar o mundo: Marx e o marxismo'', do falecido historiador britânico Eric Hobsbawm. Boa leitura!


 Na década de 1930, o marxismo tornou-se uma força relevante entre os intelectuais da
Europa Ocidental e no mundo de língua inglesa. Fazia já muito tempo que ele representava
essa força na Europa Oriental e em partes da Central, e é claro que a Revolução Russa atraíra
numerosos socialistas ocidentais e outros rebeldes e revolucionários. Entretanto, ao contrário
do que se crê comumente, depois que a onda revolucionária de 1917-20 abrandou, o tipo de
marxismo que se tornou avassaladoramente dominante — o da Internacional Comunista —
não mostrou nenhuma atração forte para os intelectuais do Ocidente, sobretudo os de origem
burguesa. Eles se sentiam mais atraídos por grupos marxistas dissidentes, notadamente pelo
trotskismo, mas esses grupos eram numericamente tão pequenos em comparação com os
principais partidos comunistas que essa atração era desprezível do ponto de vista quantitativo.
No Ocidente, os partidos comunistas eram em geral proletários, e a posição do intelectual
“burguês” nesses partidos era muitas vezes anômala e nem sempre tranquila.(1, 2) Além disso,
principalmente após o período de “bolchevização”, o papel dos trabalhadores na liderança
desses partidos passou a ser deliberadamente ressaltado. Ao contrário dos partidos da Segunda
Internacional, poucos líderes destacados dos partidos comunistas eram intelectuais, a não ser
em certos países subdesenvolvidos e coloniais, e esses partidos normalmente não se
orgulhavam de ter intelectuais a dirigi-los, embora gostassem de contar com intelectuais de
renome em outras funções. Por isso, a afluência de intelectuais para partidos comunistas na
década de 1930 foi um fenômeno novo: na Grã-Bretanha, quase 15% dos delegados ao
Congresso do Partido Comunista em 1938 eram estudantes ou profissionais liberais.(3)

 A penetração do marxismo intelectual nesses países ocidentais foi um fenômeno não só
novo como também autóctone. Chama a atenção a importância dos refugiados políticos para a
difusão do socialismo, e sobretudo do marxismo, na era da Segunda Internacional,(4) e a década
de 1930 foi, infelizmente, um período de intensa emigração política. Ademais, o impacto
desses emigrantes sobre a vida intelectual dos países que os receberam foi profundo, tanto na
Grã-Bretanha quanto, e ainda mais, nos Estados Unidos, embora provavelmente menor na
França. Mas sobre as gerações autóctones que pendiam para o marxismo nos países do
Ocidente essa emigração não teve maior impacto.

 Talvez isso ocorresse porque a versão do marxismo mais aceita era, de longe, a que se
associava aos partidos comunistas e à União Soviética, disseminada mediante a publicação,
em tradução, dos “clássicos” (que agora incluíam Lênin e Stálin, bem como Plekhanov).
Existia agora uma versão internacional padronizada do marxismo, exemplificada de forma
muito sistemática na seção intitulada “Materialismo dialético e materialismo histórico”, na
História do PCUS(b): Breve curso, de 1938. Por isso, refugiados comunistas ortodoxos não
levavam consigo, ao emigrar, nem expunham em público qualquer coisa que soubessem que
divergia da versão padrão. Os marxistas heterodoxos ou marxizantes ficavam relativamente
isolados pela notoriedade de sua heterodoxia, mesmo que comunistas leais não estivessem
proibidos de manter contato com eles, como acontecia com os seguidores de Trotski.

 Dois outros fatores reduziam a influência da diáspora marxista. O primeiro era linguístico.
As duas línguas principais do discurso marxista, o alemão e o russo, eram pouco ou nada
conhecidas no Ocidente.(5) Fora dos Estados Unidos não existia um grande número de pessoas
de origem russa ou alemã capazes de ler livros nessas línguas e que estivessem interessadas
em obras esquerdistas. Assim, até mesmo autores aceitos por comunistas ortodoxos estavam
inacessíveis, a menos que houvesse traduções. Mas eram raras. Só em 1950 foi publicada em
inglês a primeira coletânea de estudos de Lukács, e mesmo um texto básico como os
Frühschriften, de Marx, disponível desde 1932, só causou impacto na França através das duas
ou três pessoas que eram capazes de lê-los em alemão, e ainda assim isso não aconteceu logo.
É claro que, inversamente, as obras que eram traduzidas adquiriam uma importância
desmesurada, como atesta o impacto revolucionário, sobre cientistas britânicos, do ensaio de
B. Hessen sobre Newton (ver p. 268, a seguir).

 O segundo fator foi a crescente resistência das sociedades ao influxo de emigrantes. Os
emigrantes, políticos ou não, oriundos da Alemanha hitlerista eram aceitos com relutância no
Ocidente, e com a exceção parcial dos Estados Unidos, não eram bem recebidos nem se
integravam, exceto em casos especiais. Permaneciam à margem da sociedade e, muitas vezes,
desconhecidos.(6) Assim, a formação dos marxistas no Ocidente se fez independentemente da
tradição (ou tradições) marxista central. Não terá sido por acaso que a primeira (e ainda, em
muitos aspectos, a melhor) exposição da teoria econômica marxista em inglês, incorporando
os debates e os fatos do período da Segunda Internacional, tenha sido publicada nos Estados
Unidos, ou seja, num país onde a distinção entre o marxismo (ou o conhecimento do
marxismo) dos imigrantes e a “nova esquerda” nativa do período era a menos acentuada.(7)

 Por isso, a difusão do marxismo foi um fenômeno paradoxal. Fez-se localmente, e não por
importação, na medida em que ocorreu, em cada país, independentemente de influências
externas, a não ser do comunismo oficial. Ao mesmo tempo, e exatamente por isso, assumiu,
predominantemente, uma forma uniforme e padronizada. Contudo, essa uniformidade não
consegue ocultar uma clara tendência para a segregação intelectual nacional, que contrasta
tanto com o período da Segunda Internacional quanto com o caráter internacional do
marxismo intelectual, mais ou menos desde 1960. Isso se deveu, em parte, à estrutura muito
centralizada e disciplinada da Internacional Comunista e ao caráter cada vez mais “oficial”
dos textos que emanavam dela e da União Soviética, mas que — até mais ou menos 1948 —
atuavam um tanto seletivamente (ver adiante). Periódicos comunistas internacionais,
publicados em várias línguas, com algumas variações regionais de conteúdo, como o
International Press Correspondence e o Communist International, tratavam basicamente de
assuntos políticos rotineiros e eram escritos principalmente por líderes políticos e pelo,
chamemos assim, quadro internacional de redatores do movimento. Na década de 1930 não
havia nenhum equivalente à Neue Zeit em qualquer idioma.(8) Por outro lado, os periódicos
teóricos, intelectuais e culturais marxistas ou marxizantes que começaram a surgir em vários
países ocidentais nos últimos anos da década de 1930 estavam a cargo sobretudo de
intelectuais carentes de autoridade política e não tinham nenhuma ressonância internacional
significativa além dos falantes nativos das línguas em que eram publicados, embora alguns
desses periódicos criassem conexões internacionais. Por isso, paradoxalmente, havia margem
para variação e desenvolvimento local, desde que não houvesse uma “linha” internacional
sobre determinado assunto ou não ficasse claro que essa “linha” era compulsória. Por isso
havia, como veremos, bastante teorização marxista independente (por exemplo, sobre ciências
naturais e literatura na Grã-Bretanha), e parte dela por fim sucumbiu à imposição de uma
ortodoxia mais universal no período de Zhdanov. Em essência, porém, cada país ou área
cultural em que o marxismo não estivesse oficialmente proibido adaptou o modelo
internacional padrão a sua própria maneira e à luz de suas condições locais, o que foi
facilitado pela mudança na linha internacional do Comintern depois de 1934.

 Somente em um campo podemos falar de um autêntico internacionalismo descentralizado
de intelectuais na esquerda. Como era de esperar, isso ocorreu no campo da literatura e das
artes, que estavam ligadas à política da esquerda menos por uma reflexão teórica do que por
um comprometimento emocional dos artistas e de seus admiradores pelas lutas do período. A
arte e a esquerda recriaram fortes vínculos durante a Primeira Guerra Mundial, mas não por
meio da teoria marxista ortodoxa. Somente no campo da cultura encontramos uma verdadeira
resistência, até entre intelectuais comunistas, à imposição da ortodoxia. Poucos comunistas
contestaram abertamente o “realismo socialista”, que se tornou oficial na União Soviética a
partir de 1934, embora seja significativo que o debate sobre o que poderia ser chamado de
“modernismo” nunca tenha cessado de todo e o lado não ortodoxo jamais capitulasse
realmente. Brecht não se rendeu a Lukács. Faziam-se esforços sinceros para admirar o que
vinha da União Soviética na década de 1930 e para silenciar com relação a obras que não
podiam ser admiradas (sobretudo pinturas e esculturas), mas a admiração autêntica dirigia-se
ao que ainda sobrevivia da arte e da literatura soviéticas da década de 1920. Poucos se
dispunham a discordar publicamente da crítica oficial das mais famosas figuras internacionais
do “modernismo” nas artes, porém era ainda em menor número os que se dispunham, ao
menos privadamente, a deixar de admirar Joyce, Matisse ou Picasso, mesmo enquanto
divulgavam com sinceridade estilos mais próximos ao “realismo socialista”.(9) A ortodoxia
oficial não aprovava o jazz, mas entre seus apreciadores e defensores mais ativos e
apaixonados no mundo anglo-saxão havia um número elevado de comunistas e simpatizantes.

 Por conseguinte, os intelectuais marxistas não apartados do resto do mundo tendiam,
qualquer que fosse seu país de origem, a partilhar uma cultura esquerdista internacional, que
incluía escritores e artistas identificados com o comunismo ou ao menos comprometidos com
a luta antifascista, e felizmente eram muitos: Malraux, Silone, Brecht (na medida em que era
conhecido na época), García Lorca, Dos Passos, Eisenstein, Picasso e outros.(10) Para os
membros de partidos comunistas, o grupo podia incluir escritores que contavam com uma
aprovação mais ou menos oficial como comunistas ou “progressistas”: Barbusse, Rolland,
Gorki, Andersen Nexö, Dreiser e outros. Quase com certeza incluía os nomes que faziam parte
da lista internacional de personagens da alta cultura, a menos que fossem identificados com a
reação ou o fascismo: escritores como Joyce e Proust, os pintores famosos (principalmente
franceses) do começo do século xx, os conhecidos arquitetos do “movimento modernista” e
ainda os cineastas russos famosos e Charlie Chaplin. A novidade da década de 1930 estava não
na existência dessa cultura internacional cujos nomes provinham, indiferentemente, de vários
países — na realidade, sobretudo da França, dos Estados Unidos, das Ilhas Britânicas, da
Rússia, da Alemanha e da Espanha — e sim no comprometimento político desses personagens
com a esquerda.(11) Não era, com certeza, uma cultura especificamente marxista, mas, sem
dúvida, foi crucial o papel de uma minoria de marxistas dedicados (ou seja, na prática, de
comunistas) em sua consolidação.(12)

Referências:
1. Para a situação geral do movimento comunista, ver Aldo Agosti, Bandiere rosse: Un profilo storico dei communismi europei (Roma, 1999), pp. 35-40. Para a origem diversificada e o quadro ideológico dos intelectuais comunistas ocidentais, ver Thomas Kroll, Kommunistische Intellektuelle in Westeuropa (Colônia-Weimar-Viena, 2007), que compara a França, a Itália, a Áustria e a Grã-Bretanha no período 1945-56.
2. Nada menos que 95% dos membros do kpd — Kommunistische Partei Deutschlands (Partido Comunista Alemão) tinham apenas educação primária, e 1%, educação superior (H. Weber, Die Wandlung des deutschen Kommunismus (Frankfurt, 1969, ii, p. 29). Para a situação dos intelectuais num partido muito proletário (ilegal), ver G. Amendola, Un isola (Milão, 1980).
3. For peace and plenty. Report of the Fifteenth Congress of the CPGB (Londres, 1938), p. 135. Há indícios de que a composição dos congressos traduz a do partido como um todo. Cf. K. Newton, The sociology of British communism (Londres, 1969), pp. 6-7.
4. Ver Georges Haupt, “Emigration et diffusion des idées socialistes: l’exemple d’Anna Kuliscioff” (Pluriel no 14, 1978, pp. 2-12).
5. Maurice Dobb teve de escrever sua primeira obra importante sobre a economia soviética, Russian economic development since the Revolution (Londres, 1928), com a ajuda de um tradutor.
6. Foi esse o caso de figuras como Karl Korsch, Walter Benjamin, Karl Polany, Norbert Elias e outros, marxistas e não marxistas.
7. P. M. Sweezy, The theory of capitalist development (Nova York, 1942).
8. O Unter dem Banner des Marxismus (Pod znameniem marksisma), publicação que estava mais perto de ser uma revista internacional de discussão teórica, sumiu de vista em meados da década de 1930, e em todo caso vinha refletindo cada vez mais a ortodoxia soviética. Além disso, só era editado em alemão e russo.
9. Cf. o típico casuísmo de Radek: “Será necessário aprender com grandes artistas, como Proust, a capacidade de esboçar, de delinear o mais ligeiro movimento de um homem? Não é isso que está em questão. O que está em questão é se temos nosso próprio caminho ou se esse caminho é indicado por experiências feitas no exterior”. Problems of Soviet literature (Moscou, 1935), p. 151.
10. Para um levantamento desse tipo de literatura, ver John Lehmann, New writing in Europe (Londres, 1940).
11. Para uma boa descrição desse clima político-cultural, ver J. M. Richards, Autobiography of an unjust fella (Londres, 1980), pp. 119-20. Richards foi editor da Architectural Review na Grã-Bretanha.
12. A Associação Internacional de Artistas (1933-9), organizada por comunistas, promovia exposições — em geral com um título como “Artistas contra o fascismo e a guerra” — de artistas acadêmicos, construtivistas, cubistas, surrealistas, realistas sociais e pós-impressionistas, de arte alemã do século xx, de artistas franceses (Gromaire, Léger, Lhote, Zadkine) etc. Seus próprios militantes eram, na maioria, realistas, mas influenciados pela arte mexicana (Rivera, Orozco) e americana (Gropper, Ben Shahn), e não por modelos soviéticos. Ver Tony Rickaby, “The Artists’ International” (History Workshop 6, outono de 1978, pp. 154-68).

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Arregaçando o Estado burguês



O brasileiro médio tem uma visão demonizada do ''político''. Compreensível, diante de tantos casos de corrupção e da situação do povo, mas imperdoável para quem deseja saber as origens desses males.

 O senso comum é a ideia do político intrinsecamente corrupto e egoísta, que prejudica direta ou indiretamente por pura pilantragem. Faça um exercício de pensamento, caro leitor: de que adiantaria a um político roubar se pudesse ser descoberto facilmente e não ser reeleito? Não, não... em se falando de bandidagem na política, a situação é bem mais complexa, e o próprio político, embora seja um elemento central, não é o principal.

 Vejamos o caso dos serviços públicos: temos saúde e educação gratuitas de péssima qualidade. Não é um problema recente; remonta à ditadura, quando serviços públicos foram sucateados em nome do setor privado, sendo que a educação pública chegou a receber só 1% do PIB nesse período. Mesmo hoje a investimento nessa área é escasso, insuficiente (ainda que o cenário tenha melhorado bastante entre 2002 e 2013). Para completar, temos bizarrices como Átila Lira, dono do Instituto Camilo Filho - faculdade privada da cidade de Teresina, Piauí - sendo secretário da educação de seu município. Será que ele buscará recursos para as universidades públicas? Claro que não. Coisas semelhantes, como donos de grandes hospitais e clínicas privadas sendo responsáveis por cargos relacionados à prestação pública desses serviços, acontecem em todo canto, e terão a mesma atitude. Isso porque, como empresários, não estão preocupados com o bem-estar do trabalhador; simplesmente querem lucrar. Já está sentindo náuseas, leitor? Se não, deixe-me embrulhar seu estômago mais um pouco.

 O jogo entre a política e a elite empresarial começa na verdade antes de um candidato tomar posse: inicia-se nas eleições. Segundo nossa legislação,  os partidos podem receber parte do dinheiro de suas campanhas por doação de pessoas físicas e jurídicas. Em termos práticos, isso significa que partidos cujas propostas agradem ao empresariado terão muito mais grana para seus comícios e propagandas. Mais visados, provavelmente terão mais chance de ser eleitos pelo povo. Quanto aos partidos menores, os de orientação popular, que recebem apenas a verba estatal e as ínfimas doações que os humildes contribuintes a eles ligados podem dar? Já dizia Chacrinha: quem não se comunica, se trumbica. Esses partidos - e seus candidatos -, que poderiam fazer algo pelo trabalhador, têm uma chance irrisória de conseguir muitos votos, ao menos com uma população tão despolitizada como a nossa (um projeto de lei que tenta combater essa escrotice: trata-se do financiamento público exclusivo das campanhas, sobre o qual você pode ler aqui).

 Quer algo pior? Vamos lá: quase metade do nosso PIB vai embora para pagamentos de juros e amortização da dívida externa. Quase metade das riquezas do país indo para as mãos de banqueiros que enriquecem com especulação e juros exorbitantes. Enquanto isso, escolas, hospitais e outras estruturas mantidas pelo Estado caem aos pedaços. Infelizmente, num artigo curto como esse, não se pode analisar de forma mais profunda a questão do Estado burguês, mas vários alertas podem ser dados: o golpe de 1964 não foi apenas um golpe militar, por exemplo, mas civil-militar, pois teve apoio das elites conservadoras brasileiras e do governo (e burguesia) estadunidense, que se aterrorizaram perante as medidas sociais que o centro-esquerda Jango desejava implantar. A rede Globo, que havia dado todo o apoio midiático possível a Fernando Collor de Melo, voltou-lhe suas armas e fez o povo tirar-lhe do poder quando ele deixou de satisfazer as vontades da toda-poderosa. E muito mais.

 Isso quer dizer que todo empresário é um canalha, ou que todo político corrupto é um mero marionete da burguesia? Evidente que não. Mas serve para tirar da cabeça que o problema do Brasil são ''os políticos''. Eles são só parte do problema. E a politização genuína - de preferência à esquerda - é parte da solução.




domingo, 11 de maio de 2014

Teocracia e totalitarismo, parte 2

O texto abaixo é a continuação do capítulo 17 do livro ''god is not Great: how religion poisons everything'', de Christopher Hitchens, publicado aqui com o título 'Teocracia e totalitarismo'.


                         ''Deus está conosco'', dizia a inscrição no cinturão dos soldados nazistas.

 Costuma-se esquecer que a tríade do Eixo incluía outro membro - o Japão -, que tinha como chefe de Estado não apenas uma pessoa religiosa, mas na verdade uma divindade. Se a chocante heresia de acreditar que o imperador era Deus algum dia foi denunciada em algum púlpito alemão ou italiano por qualquer prelado, eu fui incapaz de descobrir. No sagrado nome desse mamífero ridiculamente sobreavaliado enormes áreas da China, da Indochina e do Pacífico foram saqueadas e escravizadas. Também em seu nome milhões de japoneses foram martirizados e sacrificados. O culto a esse deus-rei era tão obrigatório e histérico que se acreditava que todo o povo japonês poderia apelar ao suicídio caso sua pessoa fosse ameaçada ao final da guerra. Assim chegou-se a um acordo de que ele poderia ''permanecer'', mas que dali por diante teria de alegar ser apenas um imperador, e talvez de alguma forma divino, mas não estritamente falando de um deus. Essa deferência à força de opinião religiosa deve implicar o reconhecimento de que a fé e a adoração podem fazer as pessoas se comportarem realmente muito mal.

 Assim, aqueles que invocam a ''tirania secular'' em comparação com a religião esperam que esqueçamos duas coisas: a ligação entre as igrejas católicas e o fascismo e a capitulação das igrejas ao nacional-socialismo. Essa afirmação não é apenas minha: ela foi admitida pelas próprias autoridades religiosas. Sua consciência pesada nessa questão é ilustrada por um fragmento de má fé que ainda precisa ser combatido. Em sites religiosos e na propaganda religiosa é possível se deparar com uma afirmação supostamente feita por Albert Einstein em 1940:

          Sou um amante da liberdade, quando a revolução chegou à Alemanha eu esperei
          que as universidades a defendessem, sabendo que elas sempre tinham alardeado
          sua devoção à causa da verdade; mas não, as universidades foram imediatamente
          silenciadas. Então eu esperei pelos grandes editores dos jornais cujos editoriais
          inflamados nos dias passados tinham proclamado seu amor à liberdade; mas eles,
          como as universidades, foram silenciados em algumas semanas. (...) Apenas a Igreja
          permaneceu firmemente no caminho da campanha de Hitler para eliminar a verda-
          de. Eu nunca antes tinha tido qualquer interesse especial pela Igreja, mas hoje sinto
          grande afeto e admiração, porque apenas a Igreja teve a coragem e a persistência
          de defender a verdade intelectual e a liberdade moral. Assim, sou obrigado a con-
          fessar que o que eu antes desprezei hoje louvo sem reservas.

 Originalmente publicado na revista Time (sem qualquer fonte verificável), essa suposta declaração foi certa vez citada em uma transmissão nacional de rádio do famoso porta-voz católico americano e clérigo Fulton Sheen, e continua a circular. Como destacou o analista William Waterhoose, ela de modo algum soa como Albert Einstein. Sua retórica é floreada demais, para começar. E não faz qualquer menção à perseguição dos judeus. E faz o Einstein sereno e cuidadoso parecer tolo, por alegar ter um dia ''desprezado'' algo pelo qual ele ''nunca teve especial interesse''. Há ainda outra dificuldade, por essa declaração nunca aparecer em nenhuma antologia das observações escritas ou ditas por Einstein. Finalmente, Waterhoose conseguiu descobrir uma carta não-publicada nos arquivos Einstein de Jerusalém, na qual o velho homem se queixava em 1947 de ter um dia feito uma observação louvando alguns ''religiosos'' (não ''igrejas''), que tinha desde então sido exagerada a ponto de se tornar irreconhecível.
 Qualquer um que queira saber o que Einstein realmente disse nos primeiros dias da barbárie de Hitler pode descobrir facilmente. Por exemplo:
     
          Eu espero que condições saudáveis logo se imponham na Alemanha, e no futuro gran-
          des homens como Kant e Goethe não sejam simplesmente festejados de tempos em
          tempos, mas que os princípios que eles ensinaram prevaleçam na vida pública e na 
          consciência geral.

 Fica muito claro que com isso ele colocava sua ''fé'', como sempre, na tradição iluminista. Aqueles que buscavam representar erroneamente o homem que nos deu uma teoria alternativa para o universo (bem como aqueles que permaneceram silenciosos, ou pior ainda, enquanto seus colegas judeus estavam sendo deportados e destruídos) traem os escrúpulos de suas consciências pesadas.

 Quanto ao stalinismo soviético e chinês, com seu exorbitante culto à personalidade e sua indiferença pervertida para com a vida e os direitos humanos, não se pode esperar descobrir grandes coincidências com as religiões pré-existentes. Para começar, a Igreja Ortodoxa Russa tinha sido a principal impulsionadora da autocracia czarista, enquanto o próprio czar era visto como o líder formal de uma fé e algo um pouco mais que meramente humano. Na China, as igrejas cristãs eram fundamentalmente identificadas como as ''concessões'' estrangeiras arrancadas por poderes imperiais, que estavam entre as principais causas da própria revolução. Isso não explica ou desculpa o assassinato de padres e freiras e a violação de Igrejas - não mais do que se deveria desculpar o incêndio de igrejas e o assassinato do clero na Espanha durante a luta da república espanhola contra o fascismo católico -, mas a longa associação da religião com o poder secular corrupto significou que a maioria das nações precisa passar por pelo menos uma fase anticlerical, de Cromwell ao Risorgimento, passando por Henrique VIII e a Revolução Francesa, e nas condições de guerra e colapso que havia na Rússia e na China esses interlúdios foram particularmente brutais. (Devo acrescentar, porém, que nenhum cristão sério deveria esperar a restauração da religião como era em nenhum dos dois países: a Igreja na Rússia era defensora da escravidão e autora de pogrons antijudaicos, e na China os missionários, os comerciantes e concessionários avarentos eram sócios o crime.)

 Lenin e Trotsky certamente eram ateus convictos que acreditavam que as ilusões da religião podiam ser destruídas por atos políticos e que nesse meio tempo as propriedades obscenamente ricas da Igreja podiam ser confiscadas e nacionalizadas. Também havia nas fileiras bolcheviques, como entre os jacobinos de 1789, aqueles que viam a revolução como uma religião alternativa, ligada a mitos de redenção e messianismo. Para Josef Stalin, que tinha se preparado para ser padre em um seminário na Geórgia, toda a coisa não passava de uma questão de poder. ''Quantas divisões tem o papa?'' foi a famosa pergunta idiota que ele fez. (A verdadeira resposta a esse sarcasmo cansativo era: ''Mais do que você pensa.'') Depois, Stalin pedantemente repetiu a rotina papal de fazer a ciência se ajustar ao dogma, insistindo que o xamã e charlatão Trofim Lysenko tinha revelado o segredo da genética e prometendo safas extras de vegetais particularmente inspirados. (Milhões de inocentes morreram de doses internas suplicantes em consequência dessa ''revelação''.) Esse César a quem todas as coisas eram devidamente atribuídas se preocupou, à medida que seu regime foi se tornando mais nacionalista e estatista, em manter pelo menos uma igreja-marionete que podia ligar seu tradicional apelo ao dele. Isso foi verdade especialmente durante a Segunda Guerra Mundial, quando a ''Internacional'' foi substituída como hino nacional russo pelo tipo de propaganda musical que havia derrotado Bonaparte em 1812 (isso em uma época em que ''voluntários'' de vários Estados fascistas europeus estavam invadindo o território russo sob a sagrada bandeira de uma cruzada contra o comunismo ''sem deus''.) Em uma passagem muito negligenciada de A revolução dos Bichos, George Orwell permite que Moses, o corvo, havia muito o defensor crocitante de um paraíso além do céu, retorne à fazenda para pregar ás criaturas mais crédulas após Napoleão ter derrotado Bola-de-Neve. Sua analogia com a manipulação da Igreja Ortodoxa Russa por Stalin foi, como sempre, muito precisa. (Os stalinistas poloneses do pós-guerra tinham recorrido à mesma tática, legalizando uma organização católica chamada Pax Christi e dando a ela assentos no Parlamento de Varsóvia, para encanto de comunistas católicos colegas de jornada como Brian Greene.) A propaganda anti-religiosa na União Soviética era do tipo materialista mais banal: um santuário a Lenin frequentemente tinha vitrais, enquanto no museu oficial do ateísmo havia o testemunho de um cosmonauta russa que não tinha visto nenhum deus no espaço sideral. Essa cretinice expressava no mínimo tanto desprezo pelos caipiras simplórios quanto por qualquer ícone realizador de maravilhas. Como colocou o grande laureado da Polônia, Czeslaw Milosz, em seu clássico antitotalitário The Captive Mind, lançado em 1953:

        Eu conheci muitos católicos - poloneses, franceses, espanhóis - que eram rígidos stalinistas
        no campo da política mas que mantinham certas reservas internas, acreditando que Deus
        faria correções assim que as sentenças sanguinárias dos todo-poderosos da História fossem
        cumpridas. Eles levaram esse raciocínio ainda mais longe. Argumentam que a História se
        desenvolve de acordo com as leis imutáveis que existem pela vontade de Deus; uma delas
        é a luta de classes; o século XX marca a vitória do proletariado, que é liderado pelo Partido
        Comunista; Stalin, o líder do Partido Comunista, cumpre a vontade de Deus, portanto é 
        preciso obedecer a ele. A humanidade só pode ser renovada segundo o padrão russo; por 
        isso nenhum cristão pode se opor à ideia - cruel, é verdade - que irá criar um novo tipo de 
        homem sobre todo o planeta. Tal raciocínio é frequentemente utilizado por clérigos que são
        ferramentas do Partido. ''Cristo é um novo homem. O novo homem é o homem soviético. 
        Portanto, Cristo é um homem soviético!'', disse Justinian Marina, o patriarca romeno.

 Homens como Marina sem dúvida eram odiosos e patéticos, simultaneamente odiosos e patéticos, mas isso em princípio não é pior do que os inúmero pactos feitos entre Igreja e Império, Igreja e monarquia, Igreja e fascismo e Igreja e Estado, todos eles justificados pela necessidade de o fiel fazer alianças temporais pelo bem de objetivos ''superiores'', enquanto se entrega a César (a palavra da qual deriva ''czar''), mesmo quando ele for ''sem deus''.

 Um cientista político ou antropólogo teria pouca dificuldade em reconhecer o que os editores e colaboradores de O deus que falhou apresentaram naquela prosa imortal: absolutistas comunistas não tentavam tanto negar a religião, em sociedades que se sabiam saturadas de fé e superstição, quanto substituí-la. A solene elevação de líderes infalíveis que eram fonte de infinita recompensa e bênção; a busca permanente de hereges e cismáticos; os horrendos julgamentos espetaculares que produzem confissões inacreditáveis por intermédio da tortura... nada disso era muito difícil de interpretar em termos tradicionais. Nem a histeria em tempos de peste e fome, quando as autoridades iniciavam uma busca ensandecida a qualquer culpado, menos o real. (A grande Doris Lessing certa vez me disse que deixou o Partido Comunista ao descobrir que os inquisidores de Stalin tinham pilhado os museus da ortodoxia russa e do czarismo e reutilizado os antigos instrumentos de tortura.) Também não o era a incessante invocação de um ''Futuro Radiante'', cuja chegada um dia iria justificar todos os crimes e dissolver todas as pequenas dúvidas. ''Extra ecclesiam, nulla sallus'', como costumava dizer a antiga fé. ''Na revolução, tudo'', como Fidel Castro gostava de lembrar. ''Fora da revolução, nada''. De fato, na periferia de Castro se desenvolveu uma bizarra mutação conhecida, em um oxímoro, como ''teologia da libertação'', cujos padres e até mesmo bispos desenvolveram liturgias ''alternativas'' louvando a noção enganosa de que Jesus de Nazaré na verdade era um socialista militante. Por uma combinação de bons e maus motivos (o arcebispo Romero El Salvador era um homem de coragem e princípios, de uma forma que alguns clérigos de ''comunidades de base'' nicaraguenses não eram), o papado acabou com isso como sendo heresia. Que bom teria sido se ele tivesse condenado o nazismo e o fascismo com o mesmo tom firme e claro.

 Em muitos poucos casos, como o da Albânia, o comunismo tentou extirpar a religião inteiramente e proclamar um Estado por completo ateu. Isso apenas levou a cultos ainda mais extremados de seres humanos medíocres, como o ditador Enver Hoxha, e a batismos e cerimônias secretas que comprovaram a absoluta alienação das pessoas comuns do regime. Não há nada no moderno argumento secular que de longe sugira a proibição da observância religiosa. Sigmund Freud estava certo de descrever o impulso religioso, em O futuro de uma ilusão, como essencialmente inextinguível até, ou a não ser, que a espécie humana consiga vencer seu medo da morte ou sua tendência ao wishful thinking. Nenhuma das duas situações parece provável. Tudo o que os totalitários demonstraram é que o impulso religioso - a necessidade de venerar - pode assumir formas ainda mais monstruosas se reprimido. Isso não necessariamente deve ser um cumprimento à nossa tendência à veneração.

 Nos primeiros meses deste século eu fiz uma visita à Coreia do Norte. Ali, contido em um quadrilátero hermético de território limitado pelo mar ou por fronteiras quase impenetráveis, há uma terra inteiramente devotada à bajulação. Todos os momentos despertos do cidadão - o súdito - são consagrados a louvar o Ser Supremo e seu Pai. Toda sala de aula ressoa com isso, todos os filmes, as óperas e as peças são dedicados a isso, todas as transmissões de rádio e televisão são voltadas para isso. Assim como todos os livros, todos os locais de trabalho. Eu costumava tentar imaginar em como seria ter de cantar louvores infinitos, e hoje eu sei. Nem o demônio é esquecido: o mal vigilante dos estrangeiros e descrentes é evitado por uma vigilância perpétua, que inclui momentos diários de ritual no trabalho nos quais é inculcado o ódio ao ''outro''. O Estado norte-coreano nasceu aproximadamente na mesma época em que 1984 estava sendo publicado,  e quase se pode acreditar que o pai sagrado do Estado, Kim Il Sung, recebeu um exemplar do romance e foi questionado se poderia colocá-lo em prática. Mas mesmo Orwell não tentou dizer que o nascimento do ''Grande Irmão'' foi cercado de sinais e prodígios milagrosos - como pássaros louvando o acontecimento milagroso cantando com vozes humanas. Nem o Partido Interno de Pista Número 1/Oceania gastou bilhões de escassos dólares, em uma época de fome terrível, para provar que o mamífero enganoso Kim Il Sung e seu filho mamífero patético Kim Jong Il eram duas encarnações da mesma pessoa. (Nessa versão da heresia ariana tão condenada por Atanásio, a Coreia do Norte é única por ter um homem morto como Chefe de Estado: Kim Jong Il é o chefe do partido e do exército, mas a presidência é exercida perpetuamente por seu pai morto, o que faz do país uma necrocracia ou uma mausoleucracia, além de um regime que está a apenas uma pessoa da Trindade.) A vida após a morte não é mencionada na Coreia, porque a ideia de deserção em qualquer direção é fortemente desencorajada, mas em compensação não é dito que os dois Kim continuarão a dominá-lo depois que você tiver morrido. Estudiosos do tema podem ver facilmente que o que temos na Coreia do Norte não é tanto uma forma extrema de comunismo - o termo mal é mencionado em meio às tempestades de dedicação extasiada -, mas uma forma pervertida, embora refinada, de confucionismo e veneração aos ancestrais.

 Quando eu deixei a Coreia do Norte, com uma sensação mista de alívio, ultraje e pena tão grande que ainda continuo com ela, estava deixando um Estado totalitário, e também religioso. Desde então eu tenho conversado com muitas das valorosas pessoas que estão tentando minar esse sistema atroz interna e externamente. Admito desde já que alguns dos resistentes mais valorosos são cristãos fundamentalistas e anticomunistas. Um desses homens corajosos concedeu há pouco tempo uma entrevista na qual foi honesto o bastante para dizer que tinha dificuldade em pregar a ideia de um salvador para os poucos esfaimados e aterrorizados que tinham conseguido escapar de seu estado-prisão. A própria ideia de um redentor infalível e todo-poderoso, diziam, era conhecida demais deles. Uma tigela de arroz, alguma exposição a uma cultura mais ampla e algum alívio do fardo hediondo do entusiasmo compulsório eram o máximo que eles pediam por hora. Aqueles que têm sorte o bastante de chegar à Coreia do Sul ou aos Estados Unidos podem se ver confrontados por um outro Messias. O criminoso inveterado e sonegador de impostos Sun Myung Moon, líder inconteste da ''Igreja da Unificação'' e grande financiador da extrema-direita nos Estados Unidos, é um dos patronos do golpe do ''design inteligente''. Um personagem importante nesse dito movimento e um homem que nunca deixa de dar a esse guro homem-deus seu adequado nome de ''Pai'' é Jonathan Wells, autor de uma risível diatribe antievolucionista intitulada The icons of evolution. Como o próprio Wells diz de forma tocante: ''As palavras do Pai, meus estudos e minhas preces me convenceram de que eu deveria dedicar minha vida a destruir o darwinismo, assim como muitos de meus colegas unificacionistas já dedicaram suas vidas a destruir o marxismo. Quando o pai me escolheu (junto com cerca de outros 12 outros formados no seminário) para participar de um programa de doutorado em 1978, eu agradeci a oportunidade de combater''. É improvável que o livro do Sr. Wells consiga sequer uma nota de pé de página na história das baboseiras, mas tendo visto o ''paternalismo'' em ação nas duas Coreias, eu tenho uma ideia de como deveria ser o Distrito Consumido do estado de Nova York quando os crentes faziam tudo do seu jeito.

 Mesmo resignadamente, a religião tem de admitir que o que está propondo é uma solução ''total'' na qual a fé deve ser de certa forma cega, e na qual todos os aspectos da vida pública e privada devem ser submetido s a uma constante supervisão. Essa vigilância constante e essa sujeição contínua, normalmente implementadas pelo medo na forma de vingança infinita, não despertam invariavelmente as melhores características dos mamíferos. Certamente é verdade que a emancipação da religião nem sempre produz o melhor mamífero. Dois grandes exemplos: um dos maiores e mais iluminados cientistas do século XX, J. D. Bernal, foi um abjeto partidário de Stalin e passou grande parte da vida defendendo os crimes de seu líder. H. L. Mencken, um dos melhores satiristas da religião, era muito entusiasmado com Nietzsche e advogava uma forma de ''darwinismo social'' que incluía a eugenia e o desprezo pelos fracos e doentes. Ele também teve uma quedinha por Adolf Hitler e escreveu uma resenha imperdoavelmente indulgente de Minha luta. O humanismo tem muitos crimes pelos quais se desculpar. Mas ele pode se desculpar por eles, e também corrigi-los, em seus próprios termos e sem ter de abalar ou questionar as bases de qualquer sistema de crenças inalterável. Sistemas totalitários, quaisquer que sejam suas formas externas, são fundamentalistas e como dissemos agora, ''baseados na fé''.

 Em seu estudo magistral do fenômeno totalitário, Hannah Arend não estava apenas sendo tribal quando atribuiu um lugar especial ao antissemitismo. A ideia de que um grupo de pessoas - seja ele definido como uma nação ou uma religião - possa ser condenado para todos os tempos, e sem possibilidade de recurso, era (e é) essencialmente totalitária. É terrivelmente fascinante que Hitler tenha começado como propagador desse preconceito enlouquecido, e que Stalin tenha acabado sendo ao mesmo tempo vítima e defensor dele. Mas o vírus foi durante séculos mantido vivo pela religião. Santo Agostinho definitivamente usou o mito do Judeu Errante e o exílio dos judeus em geral como prova da justiça divina. Os judeus ortodoxos não são isentos de culpa. Alegando terem sido ''escolhidos'' em um acordo especial e exclusivo com o  Todo-Poderoso, eles provocaram o ódio e a suspeita, e produziram sua própria forma de racismo. Contudo, são acima de tudo os judeus seculares que foram e são odiados pelos totalitários, portanto não há sentido em qualquer ''culpe a vítima''. A Ordem Jesuíta, até o século XX, se recusava, por estatuto, a admitir um homem a não ser que ele pudesse provar que não tinha ''sangue judeu'' por várias gerações. O Vaticano pregou que todos os judeus herdavam a responsabilidade pelo teicídio. A Igreja francesa insuflou a multidão contra Dreyfus e ''os intelectuais''. O islamismo nunca perdoou ''os judeus'' por encontrarem Maomé e decidirem que ele não era o verdadeiro mensageiro. Por enfatizar tribo, dinastia e origem racial em seus livros sagrados, a religião precisa aceitar a responsabilidade de transmitir uma das ilusões mais primitivas da humanidade através das gerações.

 A ligação entre religião, racismo e totalitarismo também pode ser encontrada na outra odiosa ditadura do século XX: o sistema vil do apartheid da África do Sul. Aquela não era apenas a ideologia de uma tribo de língua holandesa disposta a extorquir trabalho forçado de povos de um diferente padrão de pigmentação; era também uma forma de calvinismo na prática. A Igreja Reformada Holandesa pregava como dogma que negros e brancos eram biblicamente proibidos de se misturar, quanto mais de coexistir em termos de igualdade. Racismo é totalitário por definição: ele marca a vítima perpetuamente e nega a ela até mesmo o direito de um farrapo de dignidade ou privacidade, até mesmo o direito elementar de fazer amor, casar ou ter filhos com um ente querido da tribo ''errada'' sem ter seu amor anulado pela lei... E essa era a vida de milhões que viviam no ''Ocidente cristão'' em nossos próprios dias. O Partido Nacional, do governo, que também estava altamente contaminado por antissemitismo e que tinha ficado do lado dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, se baseava nos delírios do púlpito para justificar seu próprio mito de sangue de um ''Êxodo'' bôer que deu a eles direitos exclusivos em uma ''terra prometida''. Consequentemente, uma transmutação africânder do sionismo produziu um Estado atrasado e despótico no qual os direitos de todos os outros povos foram abolidos e no qual a sobrevivência dos próprios africânderes acabou ameaçada pela corrupção, pelo caos e pela brutalidade. Nesse momento os anciãos bovinos da Igreja tiveram uma revelação que permitiu o fim gradual do apartheid. Mas isso de modo algum pode admitir o perdão pelo mal que a religião causou enquanto se sentia forte o bastante para fazê-lo. São os muitos cristãos e judeus seculares, e os muitos ateus e agnósticos do Congresso Nacional Africano, que merecem o crédito pela sociedade sul-africana ter sido salva da barbárie total e da implosão.

 O último século viu muitos outros improvisos sobre a velha ideia de uma ditadura que podia cuidar de problemas mais que apenas seculares ou cotidianos. Eles variaram de levemente ofensivos - a Igreja Ortodoxa Grega batizou a junta militar golpista de 1967, com as suas viseiras e seus capacetes de aço, de ''a Grécia para os cristãos gregos'' - até o escravizador ''angka'' do Khmer Vermelho no Camboja, que buscou sua autoridade em templos e lendas pré-históricos. (Seu algumas vezes amigo, algumas vezes rival, o já mencionado rei Sihanouk, que conseguiu um abrigo de playboy sob a proteção de stalinistas chineses, também era adepto de ser um deus-rei quando interessava a ele.) Entre um extremo e outro está o xá do Irã, que alegava ser ''a sombra de Deus'', bem como ''a luz dos arianos'', que reprimiu a oposição secular e tomou o cuidado de ser representado como guardião dos santuários xiitas. Sua megalomania foi sucedida por uma de suas primas próximas, a heresia de Khomeini da velayet-i-faqui, ou o completo controle social pelos mulás (que também exibem seu falecido líder como seu fundador e afirmam que suas palavras sagradas nunca podem ser apagadas). No extremo pode ser encontrado o purismo medieval do Talibã, que se dedicou a descobrir novas coisas a proibir (tudo, de música a papel reciclado, que podia conter um pequeno fragmento de polpa de um Corão jogado fora) e novos métodos de punição (homossexuais queimados vivos). A alternativa a esses fenômenos grotescos não é a quimera da ditadura secular, e sim a defesa do pluralismo secular e o direito a não acreditar ou ser obrigado a acreditar. Essa defesa agora se tornou uma responsabilidade urgente e inevitável: uma questão de sobrevivência.


   

sábado, 10 de maio de 2014

O que importa?


Autor:  Walter Benn Michaels
Tradutor: Luiz Lima da Silva

Este artigo - de 2009 - é uma resenha sobre o livro Who Cares About the White Working Class?, uma coleção de ensaios sociológicos que se encontra aqui (em inglês). O original se encontra aqui. Walter Benn Michaels é autor de um livro que recomendo a todos sobre as políticas de ação afirmativa - The Trouble With Diversity, cuja introdução pode ser lida aqui - que um dia terei a paciência e o tempo, não necessariamente nesta ordem - de traduzir ao português.

A história que envolve o professor Henry Louis Gates, citada no texto, pode ser lida aqui. Foi um caso bastante rumoroso em 2009.



O que Importa

Por Walter Benn Michaels



Nos Estados Unidos havia (ou há) uma ONG chamada “Love Makes a Family” [O Amor Constitui Família], fundada em 1999, para lutar pelo direito dos casais gays de adotar crianças, e que desempenhou um papel central no apoio a uniões civis. Há alguns meses, sua diretora, Ann Stanback, anunciou que, tendo “alcançado seus objetivos”, a ONG cessaria suas operações no final do ano [de 2009], e que ela deixaria o cargo para passar mais tempo com sua esposa, Charlotte. “Nossa missão foi cumprida”, disse.



Sempre é possível que esta de declaração de missão cumprida venha a se provar tão prematura quanto outras feitas na última década. [NT: O autor faz alusão à célebre faixa colocada no porta-aviões “Abraham Lincoln”, onde George W. Bush proferiu seu discurso proclamando vitória na Guerra do Iraque] O casamento homossexual é legal em Connecticut, onde fica (va) a sede de “Love Makes a Family”, mas certamente não é legal em todos os EUA. Ninguém nega, contudo, que a luta pelos direitos dos homossexuais tenha feito progressos extraordinários nos últimos 40 anos desde Stonewall. E que o avanço na luta contra a homofobia tenha sido acompanhado de progressos comparáveis no combate ao racismo e sexismo. Embora as afirmações, que se ouvem esporadicamente, de que a eleição do presidente Obama nos conduziu a uma sociedade pós-racial sejam obviamente erradas, é bastante claro que o país que acabou de eleger um presidente negro (e que produziu tantos votos para a candidatura presidencial de uma mulher) é muito menos racista e sexista do que costumava ser.



Mas seria um erro pensar que os EUA, por terem se tornado uma sociedade menos racista, sexista e homofóbica, tornaram-se também uma sociedade mais igualitária. De fato, em certos aspectos cruciais, o país é mais desigual do que era há 40 anos. Nenhum grupo dedicado a acabar com a desigualdade econômica estaria inclinado hoje a cantar vitória e ir para casa. Em 1969, o quintil superior dos assalariados dos Estados Unidos recebeu 43% de todo o rendimento ganho no país, enquanto o quintil inferior ficou com 4,1%. Em 2007, o quintil superior recebeu 49,7% contra 3,4% do quintil inferior. Muito embora essa desigualdade tenha aspectos de gênero e raça, estes são menos relevantes do que você imagina. Os brancos, por exemplo, representam cerca de 70% da população dos EUA, e 62% das pessoas no quintil inferior. Os progressos na luta contra o racismo não fizeram nenhum bem a estes últimos, e nem sequer foram concebidos para fazer-lhes algum bem. Em termos mais gerais, mesmo se conseguíssemos eliminar completamente os efeitos do racismo e do sexismo, não teríamos, ainda assim, feito nenhum progresso em direção à igualdade econômica. Uma sociedade em que os brancos sejam proporcionalmente representados no quintil mais baixo (e negros proporcionalmente representados no quintil superior) não será mais igual; será exatamente tão desigual como é hoje. Não será mais justa; apenas proporcionalmente injusta.



Uma pergunta óbvia é, então, como devemos compreender o fato de que fizemos muito progresso em algumas áreas, enquanto em outras estamos a andar para trás. E a resposta quase que igualmente óbvia é que as áreas em que fizemos progressos têm sido aquelas que estão fundamentalmente de acordo com os valores mais profundos do neoliberalismo, e aquelas em que não avançamos não estão. Indo diretamente ao ponto, podemos observar que a tolerância cada vez maior com a desigualdade econômica e a intolerância crescente com o racismo, o sexismo e a homofobia – ou seja, com a discriminação enquanto tal – são características fundamentais do neoliberalismo. Daí os avanços extraordinários na luta contra a discriminação e, consequentemente, os seus limites como uma contribuição para qualquer política de esquerda. O aumento das desigualdades do neoliberalismo não foi causado pelo racismo nem pelo sexismo e não será revertido – porquanto sequer é abordado – pelo antirracismo ou pelo antissexismo.



Não quero, com isso, dizer que o antirracismo e o antissexismo não sejam coisas boas, e sim que estes, na verdade, nada têm a ver com políticas de esquerda, e que, na medida em que funcionem como um seu substituto podem ser uma coisa ruim. As universidades americanas são exemplares nesse sentido: eles são menos racistas e sexistas do que eram há 40 anos e, ao mesmo tempo mais elitistas. Uma coisa serve de álibi para a outra: você cobra mais igualdade, e elas lhe dão mais diversidade. Os corações neoliberais batem mais fortemente ao som dos “telhados de vidro” [“glass ceilings”] se partindo e à vista dos médicos, advogados e professores de cor, assumindo seus lugares na classe média alta. Disso decorre o fato de muitas empresas buscarem a diversidade quase tão entusiasticamente quanto os lucros, e proclamarem repetidamente que os dois são não somente compatíveis, mas que têm um nexo de causalidade – que a diversidade é boa para os negócios. Só que uma elite diversificada não é menos elitista por ser diversificada, e interpô-la como resposta à demanda por igualdade, longe de ser uma política de esquerda, é a política da direita.



A polêmica recente sobre a prisão por “conduta imprópria” de Henry Louis Gates ajuda a clarificar este ponto. Gates, como um dos seus colegas de Harvard, disse, é “um homem negro rico, importante e famoso”, um ponto que o próprio Gates evidenciou ao policial que o prendeu, pois disse a ele mais ou menos o seguinte: “Você não sabe com quem está se metendo”. Mas, apesar de sua útil sugestão, o policial deixou de reconhecer uma verdade essencial sobre a América neoliberal: ele não pode mais abaixar a cabeça somente para os brancos ricos, tem de fazê-lo para os negros ricos também. O problema, como um simpático articulista colocou no The Guardian, é que “a raça de Gates atropelou o seu status de classe”, ou, como disse o próprio Gates ao “New York Times, “Eu não posso usar a minha toga de Harvard em toda parte”. Nos velhos maus tempos, essa situação quase nunca tinha lugar – os policiais poderiam tratar com segurança todos os negros, ou melhor, todos os não-brancos, da forma como tradicionalmente são tratados os brancos pobres. Mas agora que fizemos algum progresso real no sentido de diversificar as nossas elites, é preciso recuar e dar o tempo necessário para descobrir “com quem você está se metendo”. Você precisa se certificar de que ninguém tenha seu status de classe atropelado por sua raça.



Na sequência da detenção de Gates, entre as centenas de pessoas protestando contra a injustiça da discriminação racial, uma cardiologista branca casada com um homem negro, foi quem colocou melhor o problema, quando lamentou que, mesmo no “bairro multirracial” onde vive (Hyde Park, onde [Barack] Obama morava), ela ouve de vez em quando as pessoas comentando nervosamente, “Olhe aqueles caras negros vindo em nossa direção”, ao que ela responde: “Sim, mas eles estão vestindo calções de lacrosse e jeans Calvin Klein. Eles são provavelmente os filhos do professor caminhando pela rua. Você tem que aprender a discernir as diferenças entre as pessoas”, ela passou a dizer. “É muito frustrante.” As diferenças a que ela se refere, é claro, estão entre crianças ricas e pobres, e a frustração que ela sente é com as pessoas que não se dão conta de que a classe vem antes da raça. Porém, se é fácil simpatizar com essa frustração – crianças negras ricas têm infinitamente menos chances de assaltá-lo do que crianças negras pobres, ou mesmo crianças brancas pobres – é muito mais difícil vê-la como a expressão de uma política progressista.



No entanto, esta parece ser a nossa forma de ver o problema. O ideal neoliberal é um mundo onde as pessoas ricas de todas as raças e sexos podem desfrutar alegremente de sua riqueza, e onde as injustiças produzidas não pela discriminação, mas sim pela exploração – há menos pobres (7%) do que os negros (9%) em Harvard, e a situação lá não é das piores – são discretamente varridas para baixo do tapete. Assim, todos podem se indignar com o desrespeito com que um professor negro que vive na próspera Ware St. (e aluga uma “mansão” para passar férias de verão em Martha's Vineyard à qual ele chama, por diversão, “Tara” [NT: fazenda de Scarlett o’Hara em “E o Vento Levou”, romance descaradamente racista ambientado na Guerra Civil]) possa ser tratado, mas ninguém se indigna com o com o sistema social que criou o fosso entre Ware St ou “Tara” e os locais onde a maioria dos americanos vive. Todo mundo está indignado com o fato de Gates ter passado por maus bocados, mas ninguém se incomodou com o fato de que ele e o resto dos 10% que estão no topo da escala dos assalariados americanos estejam tão bem de vida. Na verdade, é exatamente o oposto. Os social-democratas – em particular, os social-democratas brancos – estão empolgados com o sucesso de Gates, já que comprova a legitimidade do seu próprio: o racismo não dá todo esse dinheiro, ele o ganhou!



Assim, a primazia da luta contra a discriminação não só desempenha a função econômica de tornar os mercados mais eficientes, como também desempenha a função terapêutica de fazer com que aqueles de nós que tiraram proveito desses mercados durmam melhor à noite. E – o que talvez seja o mais importante – tem “há muito tempo” a função intelectual de centralizar a análise social nas “questões de identidade racial ou sexual” e sobre as assim chamadas “diferenças culturais” em vez de como e porque as “economias capitalistas criam um grande número de postos de trabalho com baixos salários, baixa qualificação e precárias garantias de emprego”, como Wendy Bottero afirma em seu ensaio para o recente livro publicado pelo Runnymede Trust, “Quem se preocupa com a classe trabalhadora branca?” [“Who Cares About the White Working Class?”]. A mensagem deste livro, contudo, é que as classes sociais “ressurgiram”: “O que nós aprendemos aqui”, segundo o organizador do livro, Kjartan Páll Sveinsson, “é que as chances que a vida oferece às crianças de hoje são predominantemente ligados dos rendimentos dos pais, ocupações e qualificações educacionais”. Em outras palavras, à classe.



Esta afirmação, por incrível que pareça, representa um avanço substancial sobre o racismo anti-multiculturalista, uma vez que a lógica do antirracismo exige apenas a correção das disparidades dentro das classes e não entre elas. Se cerca de 1,5% de sua população tiver ascendência paquistanesa, então coloque 1,5% de paquistaneses em cada faixa de renda e o seu trabalho está feito. O fato de o quintil superior ser quatro vezes mais rico que o quintil inferior – e a vantagem que os filhos de paquistaneses ricos teriam sobre os filhos dos pobres – não é o seu problema. É por isso que, numa sociedade como a Grã-Bretanha, cujo coeficiente de Gini – medida-padrão de desigualdade de renda – é o mais elevado na UE, a ambição de eliminar as disparidades raciais em vez das desigualdades de renda em si funciona como uma forma de legitimação, e não como uma crítica. E é também por isso que, quando uma organização como o Runnymede Trust, que há anos se dedica a promover “um Reino Unido multietnicamente bem-sucedido, abordando questões de igualdade racial e de discriminação contra as comunidades minoritárias”, começa a abordar a questão da classe, ocorre uma mudança real. A igualdade racial exige respeito pela diferença racial; a igualdade de classe exige a eliminação das diferenças de classe.



No caso, porém, o que “Quem se preocupa com a classe trabalhadora branca?” realmente oferece é menos uma alternativa ao multiculturalismo neoliberal do que uma sua refinada e engenhosa extensão. Os autores que contribuíram para o livro entendem a “reemergência da classe” não como uma função da injustiça crescente de classe (quando Thatcher assumiu o cargo, o coeficiente de Gini do RU era de 0,25, agora é de 0,36, o maior de sempre), mas como função da injustiça crescente do “classismo”. O que os indigna, em outras palavras, não é a existência de diferenças de classe, mas o “desprezo” e o “desrespeito” com que a classe baixa é tratada.



Pode-se ter uma boa noção de como isso funciona a partir da análise, feita por Beverley Skeggs em seu ensaio, de uma história contada por um dos indivíduos da classe operária pesquisados por ela sobre uma viagem que ela e seus amigos fizeram a Kendals, em Manchester: "Sabe como é, trata-se de um restaurante realmente elegante, e nós estávamos lá, rindo sobre os chocolates na vitrine, imaginando quantos poderíamos comer – se pudéssemos comprá-los – e aquela mulher apenas olhou para nós. Se ela pudesse nos matar só de olhar para nós... Era como se aquele fosse o seu lugar, e nós não pertencêssemos a ele”. O ponto particular que Skeggs sublinha é que “o olhar que dá forma à leitura simbólica das mulheres faz com que se sintam fora do “seu” lugar, gerando uma sensação de qual deveria ser esse "lugar", e o mais geral é que a “classe média” deve ser “responsabilizada pelos níveis de violência simbólica que adotam em seus encontros diários” com as classes mais baixas.



O foco de sua indignação (na verdade, naquilo que podemos concluir a partir da história, o foco da indignação da própria narradora) não é o fato de que algumas pessoas podem comprar os chocolates e os outros não, mas que aqueles que podem sejam desrespeitosos com aqueles que não podem. E isto representa algo novo na política da esquerda; enquanto esta historicamente condenava a situação que dá origem ao desrespeito, é a direita que tradicionalmente trata o desrespeito como o mal em si.



Diz muito, portanto, sobre “Quem se preocupa com a classe trabalhadora branca?” que Ferdinand Mount, que já foi conselheiro de Margareth Thatcher, seja por duas vezes citado e elogiado no livro por condenar o mau comportamento da classe média em exibir o seu desprezo aberto para a “cultura da classe trabalhadora”. Ele representa um avanço em relação àqueles que procuram culpar os pobres por sua pobreza e que consideram a cultura da pobreza e não a estrutura do capitalismo como o problema. Esta última é a visão do que poderíamos chamar de “neoliberalismo de direita” e, do ponto de vista que poderíamos chamar de “neoliberalismo de esquerda”, não é nada a não ser a expressão do preconceito de classe. O que os neoliberais de esquerda querem é oferecer alguma “assertividade” à classe trabalhadora. Querem que transitemos da raça para a classe, mas fazendo isso tratando de questões de raça como se fossem questões de classe, e que comecemos a tratar a classe operária branca com o mesmo respeito devido, digamos, aos somalis – reconhecendo “positivamente” o valor e o significado tanto da condição de classe quanto da diversidade étnica. Se os neoliberais de direita buscam o direito de condenar a “cultura da pobreza”, os neoliberais de esquerda lutam pelo direito a apreciá-la.



A grande virtude deste debate é que de ambos os lados a desigualdade se transformou num grande estigma. Isto é, uma vez que você comece a redefinir a questão das diferenças de classe como sendo o problema do preconceito de classe – e quando você completar a transformação de gênero, raça e classe em racismo, sexismo e classismo – você não precisará mais se preocupar com a redistribuição da riqueza. Você pode apenas lutar para que os pobres sejam tratados com respeito e sem desprezo. Contudo, se em termos humanos o respeito parece ser o caminho certo a seguir, politicamente ele é tão inócuo quanto o desprezo.



Isso é bastante óbvio quando se trata de classe. Kjartan Páll Sveinsson diz que “a classe trabalhadora branca é discriminada em várias frentes, incluindo o seu sotaque, seu estilo, a comida que come e a roupa que veste” – e isto é sem dúvida verdade. Mas o fim da discriminação não alteraria a natureza do sistema que gera o “grande número de postos de trabalho com baixos salários, baixa qualificação e precárias garantias de emprego” descritos por Bottero. Apenas se modificam as ferramentas utilizadas para decidir quem terá direito a eles. E é difícil compreender como o entusiasmo com a cultura dos churrascos nas lajes das favelas e os bailes funk pode compensar as desvantagens representadas por empregos como esses.



A raça, por outro lado, tem provado ser uma tecnologia mais bem-sucedida de mistificação. Nos EUA, um dos usos mais frequentes do racismo foi (e ainda é) induzir os brancos pobres a sentir uma comunhão essencial e totalmente ilusória com os brancos ricos, e um dos usos mais frequentes do antirracismo é fazer com que os negros pobres sintam-se umbilicalmente ligados (também de forma totalmente ilusória) com os negros ricos. Além disso, visa criar, na forma da celebração da “identidade” e da “diversidade étnica”, um vínculo entre os negros pobres e brancos ricos. Assim, a faxineira negra que limpa o meu escritório não tem porque se sentir tão mal com o fato de eu ganhar quase dez vezes mais que ela, porque ela pode ter a certeza de que eu não sou racista ou sexista e que eu respeito a sua cultura. E ela pode se sentir orgulhosa, porque o diretor da nossa faculdade, que ganha bem mais de dez vezes o que ela ganha, é tão negro quanto ela. E uma vez que a chanceler da nossa universidade, que ganha mais de 15 vezes o que ela ganha, é, além de negra, mulher (que belos são os frutos do antirracismo e antissexismo!), ela deve se sentir duplamente orgulhosa! Porém – e eu reconheço que esta é a menor das provas testemunhais – duvido que ela o faça. Se o lado ruim das políticas de luta contra a discriminação é que elas agora funcionam para legitimar o aumento das disparidades que não são produzidas pelo racismo ou pelo sexismo, o lado bom é o grau em que elas tornam visível o fato de que o aumento das disparidades, na verdade, nada tem a ver com racismo ou sexismo. Um bom sociólogo, com olhos tão límpidos quanto os da faxineira da Universidade de Illinois, poderia começar a partir daí.

A importância das políticas de ação afirmativa

*Texto do professor de História da UFT Bertone Sousa, para seu blog pessoal

A incompreensão do que sejam as políticas de ações afirmativas leva as pessoas a fazerem afirmações inadequadas acerca de sua aplicação. Desde as cotas para negros e índios nas universidades e leis de proteção às mulheres, idosos, entre outros grupos, essas políticas têm como alvo grupos sociais específicos vítimas  de discriminação, violência, exclusão e têm como objetivo corrigir e atenuar a desigualdade e promover mais equalização social.

Em geral, os conservadores são contra. Mas eles metem os pés pelas mãos quando colocam o conceito de “direito natural” acima dos direitos sociais e quando desprezam os desníveis e desigualdades existentes para reafirmar dogmas políticos legitimadores dessa ordem e que servem apenas como catalisadores de atitudes preconceituosas.  As políticas afirmativas são um importante instrumento para corrigirmos problemas sociais de longa duração e é importante um engajamento social para a superação do preconceito contra determinados grupos. Por isso, nesse texto pretendo discutir o que são e para que servem as políticas afirmativas enfocando as cotas raciais.

Para os conservadores, o governo brasileiro está privilegiando grupos quando cria cotas raciais. O que é então e qual o objetivo dessas políticas? O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. fala com muita propriedade que as cotas para negros e índios nas universidades faz parte de políticas afirmativas para minorias. Nesse caso, estamos falando de minoria sociológica, não numérica. Ou seja, negros não são minoria numérica, mas são sociológica, isto é, eles são maioria na sociedade mas são minoria em termos de inserção em espaços historicamente ocupados por brancos como, por exemplo, as universidades. E o objetivo das políticas afirmativas é garantir direitos a grupos sociais que não possuem hegemonia cultural e que por isso sofrem exclusão, preconceitos e estigmatização.

Que os negros sofrem exclusão social no Brasil é inegável. Eles estão nas favelas, presídios, periferias das grandes cidades, sub-empregos, trabalhos informais, mas não estão nas universidades. Nelas, eles sofrem preconceito porque a elite branca que ocupa esse espaço não está acostumada a conviver com eles nas instituições de ensino superior. E por que os negros estão nas favelas? Porque após a abolição da escravatura, não foram tomadas medidas efetivas para sua inclusão social, escolarização, aquisição de condições de vida e trabalho dignas. Antes, foram abandonados à própria sorte e relegados ao desprezo do restante da sociedade. Então o objetivo das cotas é aumentar a quantidade de negros nas universidades e com isso diminuir o preconceito com a presença deles nesses espaços. As cotas não têm o objetivo de quitar dívidas históricas ou compensar a escravidão do passado, pois nesse caso seriam ineficientes. Mas como política afirmativa pra diminuir o preconceito podem, sim, ser eficazes. As cotas não tomam o negro por inferior, ou menos inteligente.

Quando reclamam do fato de os negros terem de concorrer com os brancos em condições de igualdade, as pessoas estão reproduzindo uma visão elitista espúria, pois o negro não concorre em condições de igualdade com o branco da classe média, que estudou em instituições privadas de melhor qualidade e possui capital social, cultural e econômico que o negro não possui. As cotas não têm o objetivo de serem eternas, assim como aconteceu com as cotas para mulheres nos partidos políticos. Elas tinham o mesmo objetivo: diminuir o preconceito com a participação das mulheres nesses espaços e incentivar sua inserção ali; hoje as cotas para mulheres nos partidos já não são mais necessárias porque o problema foi praticamente resolvido. Aqueles que são contra cotas para negros em geral são racistas ou estão reproduzindo, sem o saber, uma visão de mundo racista que pretende manter esse segmento afastado das instituições de ensino superior. Em 2001, um estudo realizado por Ricardo Henriques para o IPEA constatou que apenas 2% dos estudantes universitários brasileiros eram negros e que dos mais de 20 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza, 70% eram negros.

Nesse sentido, a política afirmativa é uma forma de tratar de forma desigual os desiguais, ou seja, é uma medida reparatória de redução da exclusão e da desigualdade que, de outra forma, não poderia ser solucionada. Por outro lado, dizer que a cota é uma discriminação contra o branco ou contra o próprio negro ou que o negro se sentiria inferiorizado por entrar na universidade por cota é apenas uma forma de desviar a atenção para o problema histórico da discriminação e pressionar a sociedade, inclusive os negros a se colocarem contra as cotas. O uso frequente desses argumentos é apenas um indicativo de que ainda temos um longo caminho até a superação do preconceito em diversos meios sociais, mas sem dúvida, as cotas já se constituem em um passo importante para isso.

Essa ação afirmativa de inclusão dos negros nas universidades não é uma invenção brasileira, pois foi adotada no sistema educacional norte-americano na década de 60, tendo como uma de suas metas justamente a correção do desnível social e o combate à hostilidade e o preconceito institucional contra eles. Além das universidades, empresas, meios de comunicação e órgãos publicitários também foram obrigados por lei a reservarem vagas para contratação de afro-descendentes. Isso proporcionou a ascensão dos negros à classe média, com sua inserção em profissões e instituições de ensino que antes eram representadas praticamente apenas por brancos. Além dos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia também adotaram a medida.

Onde está o erro de raciocínio dos direitistas? No fato de acreditarem que a constituição já protege a todos. A questão é que por sofrer estigma social alguns grupos não são devidamente assistidos pela lei, por isso é preciso criar outra lei não para privilegiá-los, mas para equipará-los aos outros grupos sociais. Foi o que aconteceu com a criação da lei Maria da Penha: foi uma lei criada para combater a violência contra mulheres, já que a constituição federal, por si só, é insuficiente para isso. É por isso que as políticas afirmativas atuam no sentido de proteger minorias sociais contra variados tipos de violência que sofrem no cotidiano. Outros exemplos são o estatuto do idoso e o estatuto da criança e do adolescente.

Então alguém poderia argumentar: por que não se criam leis para proteger japoneses, iltalianos, seus descendentes, etc.? Porque não existem ações sociais contra esses grupos no sentido de excluí-los, estigmatizá-los, discriminá-los. As políticas afirmativas não visam criar leis para beneficiar indiscriminadamente qualquer grupo. Elas visam promover inclusão e/ou proteção a segmentos que sofrem variadas formas de exclusão e/ou violência: negros, índios, mulheres, homossexuais, crianças, idosos, deficientes físicos, etc.

A direita, que prega a lei natural, não quer as políticas afirmativas por não querer ingerência do Estado na vida social, mas na questão do aborto, por exemplo, eles defendem que o Estado intervenha diretamente para coibir essa prática, mas agem movidos muito mais por uma questão de princípios religiosos do que por consciência social. A direita e as elites não têm problema com o preconceito e a exclusão contra variados grupos porque eles não sofrem diretamente com isso. Ao contrário, eles escrevem telenovelas colocando o negro quase sempre como empregado doméstico, naturalizando uma visão do negro como serviçal e perpetuando o preconceito.

Como assinalei anteriormente, a miopia social e interpretações equivocadas de alguns grupos e indivíduos que se colocam como conservadores só tende a ser prejudicial para promovermos políticas sociais e educacionais inclusivas. Em alguns casos, apela-se a teoria de conspiração estapafúrdias, retirando o foco da análise dos problemas sociais propriamente ditos. Os conservadores são contra políticas afirmativas, como são contra movimentos sociais, reforma agrária, esquerda, isto é, são contra tudo o que questione e pretenda criar mecanismos políticos de superação dos desníveis sociais extremos em nossa sociedade e, agindo assim, se colocam contra a própria sociedade e a favor de interesses corporativistas e do silenciamento das minorias sociais. Se pretendemos reduzir os abismos sociais, estender a ação da lei para grupos que não são devidamente assistidos por ela e promover inclusão, as políticas afirmativas são o melhor caminho para isso.

Veja mais em: http://bertonesousa.wordpress.com/

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Eric Hobsbawm: a importância do marxismo e da crítica à injustiça social

No último mês de outubro fez-se um ano do falecimento do historiador britânico Eric Hobsbawm. Para quem estuda história, é de conhecimento geral que Hobsbawm é uma das maiores referências em história contemporânea. Seu legado intelectual é vastíssimo e suas contribuições para a renovação do marxismo enquanto perspectiva teórica também foram importantíssimas. Detratores do renomado historiador já tentaram acusá-lo de cúmplice do stalinismo e apoiador de tiranias; nada disso, contudo, pode ser imputado a ele. Hobsbawm faz parte de uma geração de pesquisadores, como E.P. Thompson, Christopher Hill, Raymond Williams que não se dobraram aos direcionamentos reducionistas de certo marxismo nem descartaram o marxismo para a lata de lixo por conta dos direcionamentos totalitários que o socialismo ganhou no decorrer do século XX.

No início dos anos 1990, ele também contribuiu para uma coletânea de textos organizada por Robin Blackburn com o título “Depois da Queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo” (publicado no Brasil pela editora Paz e Terra e hoje disponível apenas em sebos), que reuniu a contribuição de variados intelectuais, além dele próprio e de Thompson, também de Norberto Bobbio, Habermas, Fredric Jameson, entre outros. Escrito no calor dos acontecimentos que resultaram no fim da União Soviética, os autores analisaram com bastante lucidez o significado histórico daqueles eventos, e, embora algumas análises possam estar superadas, ainda vale a pena a leitura.  Ler sua obra é tanto instigante (incluindo sua autobiografia, “Tempos Interessantes”), como também necessária para compreendermos as raízes de alguns mal-estares sociais e intelectuais de nossa época.


Em 1995, Hobsbawm concedeu uma entrevista para o jornalista Geneton Moraes Neto, e publicada em sua coluna no G1, em que esclarece a importância da União Soviética no século XX, em que sentido ele a apoiou, o significado da morte do marxismo, a importância da utopia enquanto motivação para a elaboração de perspectivas de futuro e da crítica à injustiça social, um dos pontos fortes do marxismo que não perdeu sua atualidade, entre outros temas. A entrevista permanece tão atual como há quase vinte anos.¹
Entrevista com Geneto Moraes Neto

Órfãos de Marx, saudosistas do socialismo, parem de chorar. Porque o que sumiu na poeira da História foi o chamado “socialismo real”, um equívoco cinzento feito à base de partido único, Estado onipotente, arte demagógica e imprensa oficialesca. Mas, desfeito o equívoco, abre-se agora “um vasto espaço para o sonho”, território livre para novas utopias. Quem garante é o historiador que conseguiu se transformar em guru dos historiadores, o marxista que fez a autópsia do socialismo: o britânico Eric Hobsbawm.

Um acaso do calendário reúne a biografia pessoal de Hobsbawm a um dos principais acontecimentos do século XX: o historiador nasceu em 1917, ano em que Lênin escreveu a palavra bolchevique na história da Rússia. Quando ainda usava calças curtas, Hobsbawm virou comunista, se é que um menino de quatorze anos é capaz de enumerar três diferenças razoáveis entre “centralismo democrático” e pudim de chocolate. Passado o vendaval, ele faz uma avaliação sincera das ilusões que viveu.

Eis a entrevista, agora publicada pela primeira vez na íntegra:

GMN : Qual foi a maior ilusão política de Eric Hobsbawm?

Hobsbawm : “Minha maior ilusão política foi acreditar que a União Soviética poderia ser uma alternativa de desenvolvimento para o Ocidente. Tal crença tomou corpo simplesmente porque, a certa altura do século XX, a economia capitalista mergulhou numa crise catastrófica, à qual a União Soviética parecia imune. Mas, principalmente depois dos anos cinquenta e sessenta, ficou claro que o socialismo soviético não iria cumprir suas promessas nem realizar suas potencialidades. A partir daí, muitos – como eu – deixaram de acreditar no que tinham acreditado quando jovens”.

GMN : O marxismo morreu?

Hobsbawm (depois de longa pausa) : “Não. Em primeiro lugar, a crítica essencial que Marx fez ao capitalismo é necessária ainda hoje. Como historiador, digo que a abordagem marxista é extremamente útil para que se entenda como as sociedades mudam- não apenas as sociedades capitalistas mas também as sociedades socialistas, hoje inexistentes. Não há dúvida de que uma grande parte das crenças do marxismo já não pode ser considera válida. O fim do socialismo real deixou um enorme vazio.

Hoje,um grande número dos que poderiam estar na esquerda – socialista ou revolucionária – já não sabe em quem acreditar”.

GMN : O senhor lamenta ter apoiado os governos soviéticos?

Hobsbawm : “Não lamento, porque nunca vivi na União Soviética. Quem, como eu, apoiava os governos soviéticos não estava pensando na Rússia, mas em nossos próprios países e no resto do mundo. Porque, para o resto do mundo, a existência da União Soviética, ainda que fosse ruim para a Rússia, teve um desenvolvimento positivo. Sem a União Soviética, não teríamos vencido a Segunda Guerra.

Sem a União Soviética, o capitalismo não teria sido reformado, como foi, depois da Guerra. Os que, no Ocidente, foram marxistas ou apoiaram o movimento comunista não têm do que se lamentar, porque estavam apenas tentando alcançar, em seus próprios países, objetivos que eram bons. Quando tiveram a chance de mudar os seus países, mudaram para melhor. Mas, para tanto, pediram o apoio de um regime que impôs um enorme sofrimento ao povo russo – mais do que a qualquer povo”.

GMN : Qual foi o pecado capital do socialismo?

Hobsbawm : “A falta de liberdade foi um terrível pecado, particularmente para os intelectuais. Mas o pecado capital do socialismo foi acreditar que a economia poderia ser operada inteiramente através de um planejamento centralizado, sem a atuação dos elementos do mercado. Os consumidores, os cidadãos comuns, não tinham a liberdade de comprar o que queriam. O que existia, basicamente, era um exagero do papel do Estado Central como um arquiteto da nova sociedade.

Marx disse, em relação às suas teorias, que o importante não era interpretar o mundo, mas modificá-lo. Ficou provado que é mais difícil mudar o mundo através das linhas de análise marxista do que interpretá-lo. Além de tudo, o desenvolvimento dos partidos socialistas foi profundamente influenciado – e distorcido – pelo fato de que o marxismo tomou o poder na Rússia. O que aconteceu na União Soviética dominou por anos e anos o desenvolvimento do marxismo e do movimento comunista internacional, o que acabou provocando uma divisão – mais negativa do que perigosa – entre as duas facções do marxismo: os social-democratas e reformistas de um lado; os comunistas e revolucionários de outro”.

GMN : E qual é o pecado capital do capitalismo?

Hobsbawn : “O pecado capital do capitalismo é a injustiça social. Isso quando nós falamos em termos morais. Em termos práticos, o pecado é que o capitalismo é um sistema que desenvolveu um mundo que precisa de administração e planejamento global – mas o próprio capitalismo não pode prover esta administração e este planejamento. O capitalismo, então, deixa o mundo com sérios e crescentes problemas, para os quais não encontra soluções”.

GMN : O senhor disse uma vez que “o problema básico da história marxista é descobrir como a humanidade passou da Idade da Pedra para a Idade do Átomo”. Se o marxismo não conseguiu, quem é que vai conseguir explicar?

Hobsbawm : “Em primeiro lugar, não acredito que o marxismo tenha falhado na explicação do desenvolvimento da História. Eis um grande debate que se desenvolve entre historiadores e filósofos. A contribuição do marxismo permanece essencial. O que haverá é um marxismo modificado. A crença dos marxistas na determinação única do desenvolvimento econômico provou ser inadequada. Deve-se levar em conta a análise de fatores como a cultura e as idéias”.

GMN : Haverá lugar na história para uma nova tentativa de aplicar a ideia marxista de uma sociedade sem classes?

Hobsbawm : “O socialismo real – tal como o tivemos até há poucos anos – não vai voltar. Mas há lugar, sim, para uma nova tentativa de construir uma sociedade de liberdade e de igualdade, em que os seres humanos terão a chance de desenvolver todas as suas capacidades. Eu espero que haja espaço para movimentos que favoreçam a justiça social”.

GMN : O fim do socialismo foi um choque para as esquerdas. Qual será o próximo sonho? Um jovem arriscaria a vida para implantar uma sociedade liberal-democrata, como se arriscou antes por outros ideais?

Hobsbawn : “Uma democracia liberal é algo pelo qual ninguém é capaz de morrer. Nem é bom que um jovem esteja preparado para morrer tão facilmente por uma causa. O fim do socialismo real deixou um enorme vazio. Hoje, um grande número dos que poderiam estar na esquerda – seja a esquerda socialista, seja a esquerda revolucionária – não sabem em quem acreditar”.

GMN : O vácuo pode criar espaço para novos sonhos ?

Hobsbawn : “Há um vasto espaço para o sonho. Mas também há o perigo de que esse espaço seja preenchido por um tipo errado de sonho: por sonhos nacionalistas, por sonhos racistas, por sonhos de ressurreição de religiões fundamentalistas. De qualquer maneira, problemas como a pobreza e a desigualdade, cada vez mais presentes no desenvolvimento global da economia, assumem uma tal proporção que haverá certamente espaço para movimentos políticos que tentem resolvê-los”.

GMN : É possível prever que movimentos serão esses?

Hobsbawn : “Alguns desses movimentos serão os antigos movimentos de esquerda. Há no Brasil, por exemplo, um partido de trabalhadores que é similar a partidos de massa que existiram no passado na Europa. Em muitas partes do Terceiro Mundo, há lugar para movimentos iguais aos que existiram antes. Não devemos, portanto, eliminar os movimentos do passado.

A verdade é que o vácuo ideológico será muito mais sério nos países desenvolvidos, os países ricos. Porque nestes países a crise da fé e das crenças – e também a mudança provocada pela extensão da industrialização a países do Terceiro Mundo – terão um efeito mais dramático”.

GMN : A desilusão das esquerdas dará, então, lugar a novos sonhos num futuro próximo ?

Hobsbawm: ”É possível que sim, mas, felizmente,historiadores não são profetas.

Nós só tratamos do passado. Historiadores fizeram previsões que provaram ser inexatas. Hoje, com exceção dos instituto de pesquisas econômicas dos governos, todos são céticos na hora de fazer previsões…”.

GMN : Como é que a História vai julgar Fidel Castro? Daqui a meio século, ele vai receber um julgamento positivo ou vai ser condenado como o último ditador comunista ?

Hobsbawm : “O julgamento será positivo, sem dúvida alguma. Fidel Castro será claramente a figura mais importante da história nacional de Cuba. Quanto à América Latina como um todo, Fidel Castro será um símbolo de libertação – ainda que as políticas de libertação que ele adotou não tenham sido bem sucedidas. Em todo caso, será visto não como um homem não muito bom ao governar o próprio país. Porque, sob o aspecto econômico, ele fez um péssimo trabalho. Por outro lado, as reformas sociais são absolutamente esplêndidas. Há fraquezas no regime cubano, mas Fidel Castro vai ter um papel bastante positivo nos julgamentos históricos do futuro”.

GMN : O senhor diz, na última página do livro “A Idade dos Extremos”, que, no final do Século XX, não sabemos para onde vamos. É bom ou é ruim não saber para onde caminha a humanidade?

Hobsbawm : ”Não saber para onde vamos é o destino da humanidade. Algumas vezes, o homem pensa que sabe para onde vai. Mas, em geral, a gente erra quando pensa que sabe”.

GMN : O senhor diz que o homem hoje tem a ilusão de que vive num “eterno presente”. Isso afeta a percepção da História ?

Hobsbawm : “O “eterno presente” é, em parte, resultado da quebra de relações entre as gerações e, por outro lado, conseqüência da sociedade de consumo. A desvantagem é que é impossível que as pessoas entendam a situação em que vivem sem que saibam como as coisas surgiram, antes. A maioria das pessoas na verdade gostaria de estabelecer tal continuidade entre elas e o passado. Não é fácil estabelecer tal continuidade hoje, porque as mudanças do mundo têm sido tão rápidas e tão profundas que a experiência de vida da maioria das pessoas é marcada pela descontinuidade”.

GMN : A televisão é culpada por criar a ilusão de que vivemos todos num eterno presente ?

Hobsbawm : “Sim. Mas este é apenas um aspecto de uma sociedade de consumo que atua satisfazendo os desejos e as vontades das pessoas a qualquer momento. A sociedade de consumo se interessa pelo que as pessoas fazem agora. A lógica do mercado é ganhar dinheiro com o que as pessoas vão gastar agora – não com o que vão gastar daqui a vinte anos”.

GMN : O senhor é freqüentemente citado na imprensa como “o maior historiador vivo”. Aceita o título ?

Hobsbawm : “É difícil julgar. Não me vejo como o mais importante historiador, mas é uma sensação agradável ver que as pessoas pensam que os livros que escrevi são importantes. Sinceramente, não me cabe julgar se essas pessoas estão certas. Em todo caso,penso que exageram….”.

GMN : Quem é Eric Hosbabwm, por Eric Hobsbawm ?

Hobsbawm : “Tudo o que posso dizer é que tento tentado ver como, num determinado período da História, as coisas se juntam para formar um todo. Porque existe, sim, uma conexão entre as diferentes partes da vida”.

Entrevista que Hobsbawm forneceu ao programa Milênio:


1-Texto introdutório feito por Bertone Sousa, professor do curso de História da UFT