terça-feira, 26 de agosto de 2014

''Eu sou capitalista, você é capitalista, todo mundo é capitalista nessa p@##%!''


''Eu não liderei a revolução russa de 1917 pra ler/ouvir uma besteira dessas'', diria o Lênin. 

 Embora, creio eu, sejam incomuns, certas pessoas acham que a afirmação do título deste artigo é verdadeira. Para elas, viver numa sociedade capitalista - melhor dizendo, sob o modo de produção capitalista - significa, logicamente, ser capitalista. Meu objetivo aqui é mostrar que tal crença é um erro teórico absurdo, e que chega a contribuir para a manutenção dos mecanismos de exploração dos trabalhadores.

 Primeiro, o que é capital? Misturando senso-comum com linguagem econômica, nós nos acostumamos a achar e dizer que capital é qualquer tipo de bem que possa se tornar fonte de renda. Uma casa, por exemplo, ou mesmo um conhecimento especializado poderiam ser capital porque são bens que podem gerar renda ao proprietário. Daí podem-se concluir duas coisas:

1) Que o capital existe em toda e qualquer sociedade, em qualquer lugar e tempo;
2) Que objetos inanimados podem ser produtivos e gerar renda por si próprios.

 A teoria marxista discorda dessas conclusões. O argumento é o seguinte: embora o capital tenha surgido antes das relações capitalistas de produção, ele é inerente ao modo de produção capitalista, porque jamais uma coisa seria capaz de gerar renda. Na verdade, o capital seria uma relação social que toma a forma de coisa. Se são os homens com seu trabalho que geram riquezas, o capital é, antes de mais nada, a relação entre seres humanos que se transforma em bens materiais. Nas palavras de Marx:

''(...) o capital não é uma coisa, mas uma relação de produção definida, pertencente a uma formação histórica particular da sociedade, que se configura (materializa) em coisa e lhe empresta um caráter social específico.''

 Ou seja, o capital não é simplesmente um conjunto de meios de produção; esses é que foram transformados em capital ao serem apropriados por uma classe social (a burguesia) e empregados com a finalidade de gerar rendas. Não por acaso, o Houaiss também dá a seguinte definição de capitalismo: ''sistema social em que o capital está em mãos de empresas privadas que contratam mão-de-obra em troca de salário''.

 Para os marxistas, o capitalismo se apresenta como um modo de produção baseado fundamentalmente na propriedade privada dos meios de produção. Assim sendo, de um lado, há uma burguesia capitalista, na condição de classe dominante e detentora dos meios de produção; de outro, o proletariado, como classe dominada, que necessita vender sua força de trabalho para obter os itens necessários à sua subsistência.

Marx  também nos diz o seguinte:

''Mas, o trabalho do proletário, o trabalho assalariado cria propriedade para o proletário? De nenhum modo. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob a condição de produzir novo trabalho assalariado, a fim de explorá-lo novamente. Em sua forma atual a propriedade se move entre os dois termos antagônicos: capital e trabalho. Examinemos os dois termos dessa antinomia.
 Ser capitalista significa ocupar não somente uma posição pessoal, mas também uma posição social na produção. O capital é um produto coletivo: só pode ser posto em movimento pelos esforços combinados de muitos membros da sociedade, e mesmo, em última instância, pelos esforços combinados de todos os membros da sociedade.
O capital não é, pois, uma força pessoal; é uma força social.
Assim, quando o capital é transformado em propriedade comum, pertencente a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. O que se transformou foi apenas o caráter social da propriedade. Esta perde seu caráter de classe.''

 Em outras palavras: em se tratando de capitalismo, há uma minoria capitalista, e a condição para ser tal é a propriedade privada dos meios de produção. Os que vendem sua força de trabalho podem ser, no máximo, pró-capitalismo, o que me parece sinônimo de ingenuidade e/ou masoquismo. Se quisermos ver o fim da pobreza, do subdesenvolvimento, da desigualdade de renda abismal, de boa parte da criminalidade, da destruição desenfreada do meio-ambiente e de muitos outros problemas que caracterizam a sociedade moderna, a solução é justamente o rompimento violento com o domínio do capital - o domínio da classe burguesa.

domingo, 24 de agosto de 2014

Afinal, o que diabos querem os socialistas/comunistas?



''Qual a posição dos comunistas diante dos proletários em geral?

Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários.

Não têm interesses que os separem do proletariado em geral.

Não proclamam princípios particulares, segundo os quais, pretenderiam modelar o movimento operário.

Os comunistas só se distinguem dos outros partidos operários em dois pontos: 1) Nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns do proletariado, independentemente da nacionalidade. 2) Nas diferentes fases por que passa a luta entre proletários e burgueses, representam, sempre, e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto.

Praticamente, os comunistas constituem, pois, a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário.
   
O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado.
   
As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo.
   
São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sob os nossos olhos. A abolição das relações de propriedade que têm existido até hoje não é uma característica peculiar exclusiva do comunismo.
   
Todas as relações de propriedade têm passado por modificações constantes em conseqüência das contínuas transformações das condições históricas.
   
A Revolução Francesa, por exemplo, aboliu a propriedade feudal em proveito da propriedade burguesa.
   
O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade geral, mas a abolição da propriedade burguesa.
   
Ora, a propriedade privada atual, a propriedade burguesa, é a última e mais perfeita expressão do modo de produção e de apropriação baseado nos antagonismos de classe, na exploração de uns pelos outros.
   
Neste sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada.
   
Censuram-nos, a nós comunistas, o querer abolir a propriedade pessoalmente adquirida, fruto do trabalho do indivíduo propriedade que se declara ser a base de toda liberdade, de toda atividade, de toda independência individual.
   
A propriedade pessoal, fruto do trabalho e do mérito! Pretende-se falar da propriedade do pequeno burguês, do pequeno camponês, forma de propriedade anterior à propriedade burguesa? Não precisamos aboli-la, porque o progresso da indústria já a aboliu e continua a aboli-la diariamente. Ou por ventura pretende-se falar da propriedade privada atual, da propriedade burguesa?
   
Mas, o trabalho do proletário, o trabalho assalariado cria propriedade para o proletário? De nenhum modo. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob a condição de produzir novo trabalho assalariado, a fim de explorá-lo novamente. Em sua forma atual a propriedade se move entre os dois termos antagônicos: capital e trabalho. Examinemos os dois termos dessa antinomia.
   
Ser capitalista significa ocupar não somente uma posição pessoal, mas também uma posição social na produção. O capital é um produto coletivo: só pode ser posto em movimento pelos esforços combinados de muitos membros da sociedade, e mesmo, em última instância, pelos esforços combinados de todos os membros da sociedade.

O capital não é, pois, uma força pessoal; é uma força social.

Assim, quando o capital é transformado em propriedade comum, pertencente a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. O que se transformou foi apenas o caráter social da propriedade. Esta perde seu caráter de classe.

Passemos ao trabalho assalariado.

O preço médio que se paga pelo trabalho assalariado é o mínimo de salário, isto é, a soma dos meios de subsistência necessária para que o operário viva como operário. Por conseguinte, o que o operário obtém com o seu trabalho é o estritamente necessário para mera conservação e reprodução de sua vida, Não queremos de nenhum modo abolir essa apropriação pessoal dos produtos do trabalho, indispensável à manutenção e à reprodução da vida humana, pois essa apropriação não deixa nenhum lucro líquido que confira poder sobre o trabalho alheio. O que queremos é suprimir o caráter miserável desta apropriação que faz com que o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os interesse da classe dominante.

Na sociedade burguesa, o trabalho vivo é sempre um meio de aumentar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista, o trabalho acumulado é sempre um meio de ampliar, enriquecer é melhorar cada vez mais a existência dos trabalhadores.

Na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na sociedade comunista é o presente que domina o passado. Na sociedade burguesa, o capital é independente e pessoal, ao passo que o indivíduo que trabalha não tem nem independência nem personalidade.

É a abolição de semelhante estado de coisas que a burguesia verbera como a abolição da individualidade e da liberdade. E com razão. Porque se trata efetivamente de abolir a individualidade burguesa, a independência burguesa, a liberdade burguesa.

Por liberdade, nas condições atuais da produção burguesa, compreende-se a liberdade de comércio, a liberdade de comprar e vender.

Mas, se o tráfico desaparece, desaparecerá também a liberdade de traficar. Demais, toda a fraseologia sobre a liberdade de comércio, bem como todas as bazófias liberais de nossa burguesia só têm sentido quando se referem ao comércio tolhido e ao burguês oprimido da Idade Média; nenhum sentido têm quando se trata da abolição comunista do tráfico, das relações burguesas de produção e da própria burguesia.

Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusai-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa maioria da sociedade.

Em resumo, acusai-nos de querer abolir vossa propriedade. De fato, é isso que queremos.

Desde o momento em que o trabalho não mais pode ser convertido em capital, em dinheiro; em renda da terra, numa palavra, em poder social capaz de ser monopolizado, isto é, desde o momento em que a propriedade individual não possa mais converter-se em propriedade burguesa, declarais quê a individualidade está suprimida.

Confessais, pois, que quando falais do indivíduo, quereis referir-vos unicamente ao burguês, ao proprietário burguês. E este indivíduo, sem dúvida, deve ser suprimido.

O comunismo não retira a ninguém o poder de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outro por meio dessa apropriação.

Alega-se ainda que, com a abolição da propriedade privada, toda a atividade cessaria, uma inércia geral apoderar-se-ia do mundo.

Se isso fosse verdade, há muito que a sociedade burguesa teria sucumbido à ociosidade, pois que os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham. Toda a objeção se reduz a essa tautologia: não haverá mais o trabalho assalariado quando não mais existir capital.

As acusações feitas contra o modo comunista de produção, e de apropriação dos produtos materiais têm sido feitas igualmente contra a produção e a apropriação dos produtos do trabalho intelectual. Assim como o desaparecimento da propriedade de classe equivale, para o burguês, ao desaparecimento de toda produção, também o desaparecimento da cultura de classe significa, para ele, o desaparecimento de toda a cultura.

A cultura, cuja perda o burguês deplora, é, para a imensa maioria dos homens, apenas um adestramento que os transforma em máquinas.

Mas não discutais conosco enquanto aplicardes à abolição da propriedade burguesa o critério de vossas noções burguesas de liberdade, cultura, direito, etc. Vossas próprias idéias decorrem do regime burguês de produção e de propriedade burguesa, assim como vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe.

A falsa concepção interesseira que vos leva a erigir em leis eternas da natureza e da razão as relações sociais oriundas do vosso modo de produção e de propriedade - relações transitórias que surgem e desaparecem no curso da produção - a compartilhais com todas as classes dominantes já desaparecidas. O que admitis; para a propriedade antiga, o que admitis para a propriedade feudal, já não vos atreveis; a admitir para a propriedade burguesa.

Abolição da família! Até os mais radicais ficam indignados diante desse desígnio infame dos comunistas.

Sobre que fundamento repousa a família atual, a família burguesa? No capital, no ganho individual. A família, na sua plenitude, só existe para a burguesia, mas encontra seu complemento na supressão forçada da família para o proletário e na prostituição pública.

A família burguesa desvanece-se naturalmente com o desvanecer de seu complemento, e uma e outra desaparecerão com o desaparecimento do capital.

Acusai-nos de querer abolir a exploração das crianças por seus próprios pais? Confessamos este crime.

Dizeis também que destruímos os vínculos mais íntimos, substituindo a educação doméstica pela educação social.

E vossa educação não é também determinada pela sociedade, pelas condições sociais em que educais vossos filhos, pela intervenção direta ou. indireta da sociedade, por meio de vossas escolas etc.? Os comunistas não inventaram essa intromissão da sociedade na educação, apenas mudam seu caráter e arrancam a educação à Influência da classe dominante.

As declamações burguesas sobre a família e a educação, sobre os doces laços que unem a criança aos pais, tomam-se cada vez mais repugnantes à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares do proletário e transforma as crianças em simples objetos de comércio, em simples instrumentos de trabalho.

Toda a burguesia grita em coro: "Vós, comunistas, quereis Introduzir a comunidade das mulheres!".

Para o burguês, sua mulher nada mais é que um instrumento de produção. Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum, conclui naturalmente que haverá comunidade de mulheres. Não imagina que se trata precisamente de arrancar a mulher de seu papel atual de simples instrumento de produção.

Nada mais grotesco, aliás, que a virtuosa indignação que, a nossos burgueses, inspira a pretensa comunidade oficial das mulheres que adotariam os comunistas. Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres. Esta quase sempre existiu.

Nossos burgueses, não contentes em ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da prostituição oficial, têm singular prazer em comerem-se uns aos outros.

O casamento burguês é, na realidade, a comunidade das mulheres casadas. No máximo, poderiam acusar os comunistas de quererem substituir uma comunidade de mulheres, hipócrita e dissimulada, por outra que seria franca e oficial. De resto, é evidente que, com a abolição das relações de produção atuais, a comunidade das mulheres que deriva dessas relações, isto é, a prostituição oficial e não oficial desaparecerá.

Além disso, os comunistas são acusados de quererem abolir a pátria, a nacionalidade.

Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem. Como, porém, o proletariado tem por objetivo conquistar o poder político e erigir-se em classe dirigente da nação, tomar-se ele mesmo a nação, ele é, nessa medida, nacional, embora de nenhum modo no sentido burguês da palavra.

As demarcações e os antagonismos nacionais entre os povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade do comércio e o mercado mundial, com a uniformidade da produção industrial e as condições de existência que lhes correspondem.

A supremacia do proletariado fará com que tais demarcações e antagonismos desapareçam ainda mais depressa. A ação comum do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições para sua emancipação.

Suprimi a exploração do homem pelo homem e tereis suprimido a exploração de uma nação por outra.

Quando os antagonismos de classes, no interior das nações, tiverem desaparecido, desaparecerá a hostilidade entre as próprias nações.

Quanto às acusações feitas aos comunistas em nome da religião, da filosofia e da ideologia em geral, não merecem um exame aprofundado.

Será preciso grande perspicácia para compreender que as idéias, as noções e as concepções, numa palavra, que a consciência do homem se modifica com toda mudança sobrevinda em suas condições de vida, em suas relações sociais, em sua existência social?
Que demonstra a história das idéias senão que a produção intelectual se transforma com a produção material? As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante.

Quando se fala de idéias que revolucionam uma sociedade inteira, isto quer dizer que, no seio da velha sociedade, se formaram os elementos de uma nova sociedade e que a dissolução das velhas idéias marcha de par com a dissolução das antigas condições de vida.

Quando o mundo antigo declinava, as velhas religiões foram vencidas pela religião cristã; quando, no século XVIII, as idéias cristãs cederam lugar às idéias racionalistas, a sociedade feudal travava sua batalha decisiva contra a burguesia então revolucionária. As idéias de liberdade religiosa e de liberdade de consciência não fizeram mais que proclamar o império da livre concorrência no domínio do conhecimento.

"Sem dúvida, - dir-se-á -, as idéias religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., modificaram-se no curso do desenvolvimento histórico, mas a religião, a moral, a filosofia, a política, o direito mantiveram-se sempre através dessas transformações.

"Além disso, há verdades eternas, como a liberdade, a justiça, etc., que são comuns a todos os regimes sociais. Mas o comunismo quer abolir estas verdades eternas, quer abolir a religião e a moral, em lugar de lhes dar uma nova forma, e isso contradiz todo o desenvolvimento histórico anterior".

A que se reduz essa acusação? A história de toda a sociedade até nossos dias consiste no desenvolvimento dos antagonismos de classes, antagonismos que se têm revestido de formas diferentes nas diferentes épocas,

Mas qualquer que tenha sido a forma desses antagonismos, a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores. Portanto, nada há de espantoso que a consciência social de todos os séculos, apesar de toda sua variedade e diversidade, se tenha movido sempre sob certas formas comuns, formas de consciência que só se dissolverão completamente com o desaparecimento total dos antagonismos de classes.

A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade; nada de estranho, portanto, que no curso de seu desenvolvimento, rompa, de modo mais radical, com as idéias tradicionais.

Mas deixemos de lado as objeções feitas pela burguesia ao comunismo.

Vimos acima que a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia.

O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas.

Isto naturalmente só poderá realizar-se, a princípio, por uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesas, isto é, pela aplicação de medidas que, do ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção.

Essas medidas, é claro, serão diferentes nos vários países.

Todavia, nos países mais adiantados, as seguintes medidas poderão geralmente ser postas em prática:
1 - Expropriação da propriedade latifundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado.
2 - Imposto fortemente progressivo.
3 - Abolição do direito de herança.
4 - Confiscação da propriedade de todos os emigrados e sediciosos.
5 - Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo.
6 - Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios de transporte.
7 - Multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado, arroteamento das terras incultas e melhoramento das- terras cultivadas, segundo um plano geral.
8 - Trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura.
9 - Combinação do trabalho agrícola e industrial, medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente a distinção entre a cidade e o campo .
10 - Educação pública e gratuita de todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material, etc.

Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do desenvolvimento, e sendo concentrada toda a produção propriamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe, se se converte por uma revolução em classe dominante e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói juntamente com essas relações de produção, as condições dos antagonismos entre as classes e as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe.

Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos.''

Capítulo II do Manifesto do Partido Comunista, ou simplesmente Manifesto Comunista, escrito em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels a pedido da Liga Comunista.

sábado, 23 de agosto de 2014

A evolução do ''tipo'' homossexual da Idade Moderna aos dias atuais

O texto a seguir compõe um trecho do capítulo 4 do livro ''XY: Sobre a Identidade Masculina.'' Por motivos de dificuldade técnica, não pude subscrever as notas bibliográficas nele contidas, que exemplificam a riqueza investigativa da obra. Boa leitura.



O estatuto do sodomita antes do século XIX

 A sodomia é uma categoria ''vale-tudo'' que compreende contatos sexuais - não necessariamente anais - entre homens, homens e animais, homens e mulheres, desafiando a reprodução. Michel Foucault assinala sua inclusão na lista dos pecados graves, ao lado do estupro (relações fora do casamento), do adultério, do desvio de menores, do incesto espiritual ou carnal e da carícia recíproca. Embora chamados comumente de ''infames'', os sodomitas escapam a qualquer classificação precisa. Montesquieu, interrogando-se sobre esse crime estranho, punido com o fogo, admitia que ''muitas vezes ele é impenetrável''.


 Sob o Ancien Régime, a sodomia era proibida por motivos religiosos. Era chamada ''pecado mudo'' ou ''vício abominável'', sobre o qual era melhor não falar ao povo. Para mostrar a imprecisão do conceito de sodomia, Pierre Hahn teve a boa ideia de consultar o manual dos confessores. Assim, o Tratado de sodomia, do padre L.M. Sinistrati d'Ameno (de meados do século XVIII), faz diferenciações sutis, que não podem deixar de surpreender o leitor do século XX. Para o sábio eclesiástico, a sodomia se define como a relação carnal entre dois machos ou duas fêmeas, mas nem por isso todos os atos ''homossexuais'' são constitutivos desse crime. Para que exista crime, é necessário que haja coito, introdução do pênis no ânus, ''a fim de que se distinga da simples volúpia (polução, masturbação) obtida mutuamente entre macho e macho ou entre fêmea e fêmea''. O pecado existe quando nos enganamos de vaso! Segundo alguns doutores, ''a intromissão do membro viril  no vaso posterior deveria acontecer com regularidade, e seria preciso que houvesse descarga de sêmen no interior do ânus. Esta era a sodomia 'perfeita', e neste caso os pecadores só podiam ser absolvidos pelo papa ou os bispos''. Em troca, se o macho copulava pelo ânus com uma mulher, a sodomia era ''imperfeita'', e um simples confessor podia absolvê-los.

 No século XVIII, o crime se laiciza, e o vocabulário muda. Fala-se cada vez menos em 'sodomia' (rejeição à referência bíblica) e cada vez mais em pederastia (sobretudo a partir de 1740) ou infâmia (jargão da polícia). Segundo Maurice Lever, a laicização do delito homossexual, que se torna ''pecado filosófico'' contra o Estado, a ordem e a natureza (fala-se também em ''amor antifísico''), dessacraliza o vício, que não cheira mais a enxofre. O crime se banaliza, torna-se apenas um delito. Seja qual for a opinião dos filósofos, a homossexualidade nunca é descrita como uma identidade específica. A sodomia é uma aberração temporária, uma confusão da natureza, nada mais. Mesmo que Rousseau, Voltaire ou Condorcet não tenham escondido a repulsa que lhes inspirava pessoalmente tal prática, eles nunca procuraram acusar ''o criminoso''. Ao contrário. Voltaire insiste na ideia de mal-entendido: ''Os jovens machos de nossa espécie, educados juntos, sentindo esta força que a natureza começa a manifestar neles, e não encontrando o objeto de seus instintos, lançam-se sobre aquele que lhes é semelhante.'' Nenhum motivo para estigmatizar pela vida inteira um ser humano! Amigo de Voltaire, Condorcet, tão sensível à noção de Direitos do Homem, propõe descriminalizar a sodomia, desde que ''não envolva violência''.

 O mais tolerante de todos foi, sem dúvida, Diderot. Nos seus escritos, especialmente no Entretien, que se segue ao Rêve de d'Alembert, a homossexualidade não só perde todo traço de pecado ou infâmia como adquire um status de um prazer delicioso, do mesmo calibre que a masturbação. Para Diderot, que fala sob a máscara do Dr. Bordeu, a abstinência nos torna loucos, o que é, para ele, uma oportunidade de prestar uma vibrante homenagem ao prazer sexual.  O estado de necessidades deve ser satisfeito a qualquer preço. Depois de ter legitimado as práticas solitárias, Diderot-Bordeu fala a Mademoiselle de Lespinasse, que não acredita no que ouve, sobre a superioridade da homossexualidade, em nome do princípio do prazer e da partilha deste. O Código Penal francês de 1791 não mais condenaria a sodomia em si mesma. Essa tolerância, confirmada pelo Código de 1810, teria fim com a lei de 18 de abril de 1832, que instituiu o crime da pedofilia. Em troca, o Código Penal continuou fechando os olhos para as relações heterossexuais entre um adulto e um menor... É verdade que o estatuto do pederasta está em vias de mudar radicalmente e suscita novas interrogações.

Século XIX: definição da identidade pela preferência sexual


 A última terça parte do século vitoriano assiste ao surgimento de novas concepções sobre a homossexualidade. O sodomita, que antes era apenas uma aberração temporária, dá lugar ao ''homossexual'', que caracteriza uma espécie particular. Com a invenção de novas palavras - ''homossexual'' e ''invertido'' - para designar aqueles que se interessam pelo mesmo sexo, altera-se a ideia que se faz deles. A criação de uma palavra corresponde, neste caso, à criação de uma essência, de uma doença psíquica e de um mal social. O nascimento do ''homossexual'' é o nascimento de uma problemática e de uma intolerância que sobreviveram até nossos dias.


 Pierre Hahn data de 1857 a primeira pesquisa sobre os homossexuais franceses, feita pelo doutor Tardieu e policiais. Com ela começa a caçada aos pederastas, que interessam cada vez mais à polícia, aos juízes e à esfera médico-legal. Segundo o grande médico, esse vício tende a crescer a cada dia... e os escândalos públicos determinam uma repressão mais rigorosa da pederastia, dos estupros e dos atentados ao pudor cometidos contra crianças. Mais curioso é que são os próprios homossexuais que se põem na frente do fogo, inventando a problemática identificatória. Eles querem que seja reconhecida a sua especificidade, ou seja, o que chamaríamos hoje de direito à diferença. É um húngaro, o doutor Benkert, que cria, em 1869, o termo homossexualidade e pede ao Ministro da Justiça a abolição da velha lei prussiana contra essa prática. Na mesma época, um antigo magistrado de Hanôver, Heinrich Ulrichs, ele mesmo homossexual, analisa a homossexualidade sob o triplo ponto de vista do historiador, do médico e do filósofo. Infelizmente, de suas ilustradas distinções entre pederastia e aqueles a quem chamou de ''uranistas'' só sobreviveria a definição dos últimos: ''Uma alma feminina caída sobre um corpo de homem.'' Sem pretender, Ulrichs dirige a pederastia para o caminho escorregadio de patologia mental. É com base nesta crença em uma espécie de terceiro sexo que o psiquiatra alemão Westphal publica em 1870 seu estudo sobre A inversão congênita do sentimento sexual com consciência mórbida do fenômeno, Havelock Ellis define o invertido como uma anomalia congênita e Hirschfeld fala do ''sexo intermediário''.

 Pouco a pouco, todo mundo concorda em vê-los como doentes. Em 1882, Magnan e Charcot os batizam de ''invertidos sexuais'' e os situam no quadro das degenerescências. ''No final do século, nenhum homem podia se considerar sadio, normal, se não afirmasse sua identidade sexual dos pés à cabeça.'' O nascimento da homossexualidade patológica caminha lado a lado com o surgimento da ''raça maldita'', nas palavras de Marcel Proust, e também com o advento da normalidade heterossexual. A identidade sexual torna-se um destino. Graças à influência decisiva das Psicopatias sexuais de Richard Krafft-Ebing, a extrema atenção dada aos pervertidos e à anormalidade lança nova luz sobre o ''normal''. A sexualidade masculina ''normal'' provém de um ''instinto'' cujo objeto natural seria o outro sexo. Cria-se o conceito de heterossexualidade para descrever essa normalidade, que postulava uma diferença radical entre os sexos, ao mesmo tempo que ligava de modo indissolúvel a identidade de gênero (ser um homem ou uma mulher) e a identidade sexual.

 Em suma, o discurso médico do século XIX transformou os comportamentos sexuais em identidades sexuais. Os pervertidos, depois dos libertinos, dão aos indivíduos uma nova especificidade. Enquanto o sodomita, observa Foucault, era apenas o sujeito jurídico dos atos proibidos, ''o homossexual do século XIX tornou-se um personagem: um passado, uma história e uma infância; uma morfologia também, com uma anatomia indiscreta e uma fisiologia misteriosa. Nada do que ele é, no total, escapa à sua sexualidade (...). O homossexual é agora uma espécie.'' Depois da alma platônica e da razão cartesiana, o sexo tornou-se a última verdade do ser.

 A incorporação da homossexualidade ao campo da medicina deveria tê-la protegido dos julgamentos morais. Isto não aconteceu. A problemática das ''perversões'' permitiu todas as ambiguidades. Não se distinguem a doença e o vício, o mal psíquico e o mal moral. Operou-se um consenso para estigmatizar esses homens efeminados, incapazes de se reproduzir! Na Inglaterra, assim como na França,  as atitudes anti-homossexuais estão ligadas ao temor do declínio do império. Não têm conta os textos que evocam com angústia as consequências desastrosas da redução da natalidade! O homossexual ameaça a nação e a família. Mas ele é também um ''traidor da causa masculina''. Os próprios médicos condenam esses homens efeminados, que não cumprem suas obrigações de homens. Acusam-lhes de falta de grandeza da alma, de coragem e devoção; deploram sua vaidade, suas indiscrições, suas tagarelices. Em suma, são ''mulheres frustradas, homens incompletos''.

 A estigmatização dos homossexuais é, sem dúvida, resultado do processo de classificação das sexualidades. Por ironia da história, os próprios homossexuais e os sexólogos que se apresentaram como reformistas são, em grande parte, os responsáveis pelo confinamento dos ''desviantes'' no terreno da anormalidade. O melhor exemplo desta derrapagem vem do sexólogo Havelock Ellis. Acreditando estar reforçando a tolerância da sociedade burguesa à sexualidade, ele desenvolveu o argumento do caráter inato e irresponsável desta última: não se pode fazer nada, ela é de nascença. Como resultado, ''a hipótese de uma homossexualidade determinada biologicamente se impôs na literatura médica do século XX, acarretando todo tipo de tentativas hormonais e cirúrgicas para mudar lésbicas e homossexuais masculinos em heterossexuais.''

 Jeffrey Weeks demonstrou brilhantemente a responsabilidade dos sexólogos na formação do ''tipo'' homossexual. A despeito de seu fervor científico, a sexologia não era neutra nem simplesmente descritiva. Dizia o que devíamos ser e o que fazia de nós normais. A obsessão pela norma determinou um considerável esforço para definir o anormal. Multiplicaram-se as explicações etiológicas: corrupção ou degeneração, caráter inato ou trauma de infância... Produziram-se tipologias complexas, distinguindo diferentes homossexualidades...

 Ellis distingue o invertido e o pervertido; Freud, o invertido absoluto e o contingente. Clifford Allen define doze tipos, entre os quais o compulsivo, o nervoso, o neurótico, o psicótico, o psicopata e o alcoólatra. Richard Harvey recenseia 46 espécies de homossexuais... e Kinsey inventa o continuum do heterossexual ao homossexual. Depois disso, como observa J. Weeks, muitos sexólogos compreenderam o perigo dessas tipologias rígidas. Mas era tarde demais. Uma vez imposto o tipo do ''homossexual'', tornou-se impossível escapar dele. As práticas sexuais passaram a ser o critério de descrição da pessoa. Isto significa que os sexólogos criaram  o homossexual, como pensam Michel Foucault e Jonathan Ned Kartz? Sim e não. As práticas homossexuais existem em toda parte e desde sempre. Mas, ''até que a sexologia lhe colocasse um rótulo, a homossexualidade era apenas uma parte difusa do sentimento de identidade. A identidade homossexual, tal como a conhecemos, é, portanto, uma produção de classificação social, cujo principal objetivo era a regulação e o controle, Nomear era aprisionar.''

 O século XX não tirou o homossexual de sua prisão. Um século após o de Oscar Wilde, muitos dos nossos contemporâneos continuam a olhá-lo como um tipo sexual criminoso, na melhor das hipóteses um doente ou um desviante. Duas razões podem explicar essas atitudes discriminatórias. A primeira deve-se à nossa ignorância: depois de 150 anos de estudos e polêmicas, ainda não sabemos definir com precisão esse comportamento fluido e multiforme, cuja origem não se conhece claramente. A multiplicidade de explicações reforçou o mistério e, portanto, a estranheza. A outra razão é de ordem ideológica. Uma vez que a nossa concepção de masculinidade é heterossexual, a homossexualidade desempenha o útil papel de contraste, e sua imagem negativa reforça a contrário o aspecto positivo e desejável da heterossexualidade.


Elisabeth Badinter, nascida em 5 de março de 1944, é historiadora, autora e professora de filosofia na  École Polytechnique em Paris. Em 1992, lançou  livro ''XY: Sobre a Identidade Masculina'', cuja versão brasileira veio pela editora Nova Fronteira.


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Foucault e as relações entre o saber e o poder


''Vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha 'ao compasso da verdade' - ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e que detém, por esse motivo, poderes específicos.'' 
''(Deve-se) mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiro, por evidentes, certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída.''

 Michel Foucault, filósofo francês do século XX, renovou o pensamento social com suas reflexões sobre o poder na sociedade moderna em suas mais diversas formas. Uma das contribuições mais interessantes do (autodenominado) estruturalista foi o ''insight'' de que os valores - o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o sadio e o doente etc - são consagrados historicamente em função de interesses relativos a poder dentro da sociedade.

 Segundo ele, a definição do que é bom, do que é verdade, do que é sadio depende das circunstâncias em que o poder se encontra. Exemplos práticos: acreditava-se, entre os séculos XVII e XIX, que os negros (e asiáticos em geral) eram inferiores aos brancos; ainda no século XX, os homossexuais eram tidos como doentes. Ambas as teses receberam legitimação por meio do discurso científico. Na idade média, acreditava-se que a mulher era a corruptora do homem, responsável pela queda do paraíso. Tal tese recebeu legitimação pelo discurso religioso. Em tais casos, um determinado discurso falso tomou caráter social de verdade porque quem o pronunciou tinha reconhecimento social, status, poder. No entendimento de Foucault, esse poder não seria essencialmente um poder de repressão ou de censura, mas sim um poder criador, no sentido de que produz a realidade e seus conceitos. 

Foucault falando ao mega-fone ao lado de Jean-Paul Sartre, durante manifestação.

 Também esse controle das noções por parte de quem detém poder gera mecanismos de controle social e punição, cuja evolução Foucault acompanha no livro Vigiar e punir, uma genealogia do poder. Ele caracteriza a sociedade contemporânea como uma sociedade disciplinar, na qual prevalece a produção de práticas disciplinares de vigilância e controles constantes, que se estendem a todos os âmbitos da vida dos indivíduos. Uma das formas mais eficientes dessa vigilância e disciplina se dá, no seu entender, através dos discursos e práticas científicas, aparentemente neutras e racionais, que procuram normatizar o comportamento dos indivíduos. Isso se demonstraria pelo tratamento científico dado à sexualidade, no qual o comportamento sexual é normatizado por meio do convencimento racional dos indivíduos sobre os cuidados necessários à sua vida nesse âmbito. Desse modo, assumindo a forma do saber, o poder  atinge os indivíduos em seu corpo, em seu comportamento e em seus sentimentos. 

 Portanto, já que o poder se encontra em múltiplos espaços, a resistência a esse estado de coisas não caberia, segundo o filósofo, a um partido ou uma classe revolucionária, pois estes se dirigiriam a um único foco de poder. Seria necessária, portanto, a ação de múltiplos pontos de resistência.




sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Do protesto justo à cretinice

 Certa vez critiquei duramente um camarada pelo fato de o mesmo defender que as ordens de assassinato e trabalho forçado aos kulaks por parte de Stalin fossem válidas, justificáveis. Disse-me ele que isso o era devido ao fato de que tais camponeses ricos se opunham à estratégia de implementação do comunismo, o que precisava de punição. Como fiel defensor do humanismo que sou, em especial do humanismo marxista,  repliquei que, como Marx havia dito, ''o comunismo não constitui em si o objetivo da evolução humana'', ele é um meio para atingir a emancipação humana. Como poderia o execrável feito de Stalin, que não era senão um retorno das antigas teocracias, ser o caminho para a emancipação humana?

 Essa atitude autoritária e anti-humanista (de apoiar algo como os maus feitos de Stalin - porque ele também não foi exclusivamente um demônio), porém, não está apenas entre defensores da burocracia stalinista ou do fascismo; para meu pesar, uma versão dele se engendrou até na esquerda cultural, e é disso que esse texto tratará.

 Como todos sabemos, no dia 13 desse mês o presidenciável Eduardo Campos, candidato pelo PSB, sofreu um terrível acidente de avião e faleceu, um evento trágico sobre o qual a mídia-urubu brasileira não deixou de tripudiar. Seja dita a verdade: Campos não era santo, e não o é agora. No governo de Pernambuco, privatizou partes do setor público de serviços, reprimiu as manifestações de 2013, reduziu o volume de investimentos na UPE e manteve sua oposição à legalização do aborto; trata-se de um candidato que não teria meu voto. Entretanto, Campos era humano, e deixou família e amigos. Por mais canalha que sejamos (e suponho que  ele não conseguiu o feito de ser o pior Homo sapiens sapiens a caminhar sobre a Terra), muito provavelmente haverá alguém - mais de um alguém - que amemos profundamente. Nesse momento de dor por uma perda tão trágica, o mínimo a se fazer é prestar condolências à família e, sem esquecer de que milhões de brasileiros enfrentam condições quase ou tão lastimáveis quanto, apiedar-se para com tal interrupção brutal de uma vida...

 Mas não. Certas moças, oriundas de uma corrente mais radical e, graças aos deuses, minoritária (espero eu) do feminismo, fizeram questão de expôr sua torta e desrespeitosa visão do falecimento de Campos:

Se o leitor tiver uma índole mais ou menos parecida com a minha,  leves náuseas, vergonha alheia e um tanto de ira já devem ter começado a aparecer, misturados.
  Tais moças se dizem adeptas da ''misandria'', que numa tradução literal significa ''ódio aos homens''; uma reação à misoginia (ódio às mulheres, ao que é feminino)solidificada na nossa sociedade. Este que vos escreve não tem um juízo formado sobre haver ou não de fato uma misoginia estrutural (dado o forte sentido do termo ''ódio''), mas tem convicção de que há um machismo institucional, rigidamente estabelecido, devido ao histórico de patriarcalismo em nossa civilização.

 Existem, parece-me, duas ''misandrias'': uma é a rejeição forte ao ''modelo de macho'' moldado ao longo da nossa existência, responsável pela opressão sistemática de mulheres, homo/bi/transsexuais e outras minorias sociológicas; tal rejeição está acompanhada de uma militância que pretende dar fim ao mesmo (é mais ou menos o que se pode ler aqui). Há, também, um ódio irracional, declarado, à todo e qualquer homem, que reduz os membros do sexo masculino à pura e simples causa de todos os males do mundo, cujas mortes deveriam ser motivo de comemoração para todas as mulheres. Servindo de ponte entre as duas, está uma ''teoria da opressão'' que põe todos os homens como sujeitos ativos da opressão infligida às mulheres,  tendo análogos nas relações héteros-'sexodiversos', brancos-negros, ricos-pobres etc. Já fiz uma crítica dessa teoria da opressão em outra postagem, e embora eu tenha que fazer revisões naquele texto - creio que os indivíduos podem sim, obviamente, cometer opressão, mas só se estiverem uma posição favorável em determinada relação ou estrutura de poder e se for sua intenção subjugar o oprimido -, ainda acho que há considerações relevantes lá.

 A luta pelo empoderamento das mulheres tem de ser realizada, e sob o protagonismo das mulheres; mas se essa luta se pautar em conceitos e atitudes absurdas como as das moças que fizeram escárnio da morte de Campos, a contrarreação que se voltará para ela virá não somente dos típicos machos-cis-héteros-opressores, mas de mulheres que, mantendo suas visões conservadoras ou progressistas críticas e o afeto que sentem por amigos ou parentes  do sexo masculino, rejeitarão essa onda feminista, beirando o risco de um retraso na emancipação feminina.

 E não há acusação de ''macho-cis'', ''omisplicanista'' ou coisa do tipo que vá me fazer abandonar esse julgamento, assim como não há atitude de Campos que justifique tamanho mau-caratismo.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O projeto de educação na contemporaneidade, ou ''Estamos educando nossas crianças ERRADO!''

 Eu iria escrever um texto sobre os conceitos de alienação na obra de Marx, mas preferi deixá-lo para depois e tratar logo, por uma série de razões, de um tema que a meu ver está conectado: o paradigma da educação nos dias de hoje.

 O modelo de educação atual nasceu na Prússia, ainda no século XVIII, e era um proposta inovadora, baseada nas ideias iluministas, que propunha ensino público e universal. Era inovadora, preciso dizer, para a época. Tal modelo guardava muitas características do militarismo, e estava voltado à demanda de possuidores de conhecimento técnico que pudessem auxiliar no processo de modernização industrial. Posteriormente esse modelo se espalhou pela Europa, e dela para o resto do mundo. Veio a modernização, veio uma substituição da vanguarda iluminista por outras escolas filosóficas (ainda que, em boa parte, ''descendentes'' daquela), mas não veio a modernização da estrutura escolar, do paradigma educacional.

 Ainda que alguns pensadores tenham se esforçado para introduzir uma espécie de pedagogia contestatória - em um sentido mais elaborado, Paulo Freire, e menos elaborado, (por que não dizer?) Carl Sagan -, e ainda que alguns conteúdos e manuais escolares sejam constituídos de forma a promover o pensamento crítico, no geral ainda tratamos a educação como se o objetivo principal fosse a formação de técnicos para o mercado de trabalho, e não a formação da consciência de seres humanos. Que frase ouvimos por todo o ensino médio? ''Estude, para passar no vestibular!'' Alguns amigos já compartilharam comigo a triste confissão de que foram criticados pelos pais e/ou por outros amigos por dedicar horas de estudo e trabalho intelectual a coisas que não estavam, a rigor, ligadas à atividade escolar ou ao ENEM (ou vestibular). A retórica dominante na nossa sociedade é a de que a educação deve ter como alvo apenas o sucesso individual, financeiro - isto é, que se deve estudar para ganhar dinheiro.



 O dinheiro, claro, tem papel importantíssimo (o mais importante de todos?) na nossa sociedade; sem ele não há como almejar muita coisa. Mas não é isso mesmo o reflexo de um mal social? Estamos concedendo importância divina à matéria morta - o dinheiro, para usar as palavras de Marx, transforma a infidelidade em fidelidade, o ódio em amor, o vício em virtude, a estupidez em inteligência. A que tipo de degradação não somos forçados a passar, em nome de um punhado desta matéria morta? Quantos mendigos a pedir esmolas nós vemos pelas ruas sem que os passantes lhes concedam sequer um olhar de compaixão, e quão contrastante isso é com os olhares vibrantes destes mesmos passantes ao visualizar uma joia, um celular, um computador, uma roupa - quão nojenta é esse tipo de situação, uma consequência da atribuição de altos valores àqueles objetos, mas pouco ou nenhum àquelas pessoas?

 Ainda sim, na escola - o local onde parte fundamental das nossas personalidades é formada - não somos estimulados a pensar sobre isso, em como resolvê-lo; fala-se em conseguir notas boas, arranjar um bom emprego, ganhar dinheiro! Quando muito, diz-se que você deve deixar o dinheiro em segundo plano caso alguma profissão que lhe retorne menos lhe dê mais satisfação pessoal. Permanece a doutrina de foco em si, como se os seres humanos fossem mônadas autossuficientes, entidades divorciadas do mundo real. Mas o que somos nós, senão um animal social? Grande parte do que somos é influência das nossas relações sociais. O ser humano só atinge sua concretização máxima enquanto parte de um todo; viver em grupo constitui nossa essência.

 Que conclusão poderia ser mais natural, diante disso, que moldar nossos atos pela melhoria geral da comunidade? Identificar o problema de outro e auxiliá-lo, de forma que aquele desapareça? Buscar a felicidade não só para si, mas fazê-la um alvo disponível para todos que desejarem alcançá-lo? Não deveriam tais coisas ser parte essencial - quem sabe, majoritária - da nossa estrutura educacional? O conhecimento técnico não deve ser desprezado - toda nação necessita dele para se desenvolver -, mas uma importância muito maior deve ser dada à formação do aluno não como mero citoyen - mero membro egoísta de uma sociedade egoísta -, mas como ser genérico, como ser que faz parte de uma comunidade e que tem nessa vida comunitária exatamente a realização da essência de seu ser.

 É preciso destruir a ideologia de uma sociedade que pauteia-se na exploração permanente dos fracos pelos fortes, dos que pouco ou nada dispõem pelos que muito dispõem; é preciso que cada pessoa se veja como membro de um todo social. Para conseguir que isso aconteça - e por tabela pôr abaixo toda a alienação humana sob o atual modo de produção, como a extra-valorização de objetos e simultâneo desprezo aos seres humanos -, a educação tem de mudar. O conteúdo visto por nossas crianças e jovens tem de ser alterado, a forma como ele é ensinado tem de ser repensada, os valores que a eles impomos têm de ser substituídos. Enquanto isso não for feito, poderemos atingir emancipações religiosas, políticas, econômicas ou o que mais for, mas a mais importante das emancipações não o será: trata-se da emancipação humana.

sábado, 9 de agosto de 2014

Descriminalização da maconha e a luta contra as drogas ilícitas

'''O dia em que a América venceu a guerra contra as drogas.''

Dentre as polêmicas recentes na discussão política brasileira está a questão do combate às drogas (e os métodos deste), especialmente a maconha - que é considerada uma droga leve, mais que o álcool. As pesquisas científicas sobre os efeitos da erva no organismo são abrangentes e divergentes, de forma que não é possível um consenso acerca disso. Entretanto, é possível discutir a eficácia da estratégia adotada pelo governo atual.

 Trata-se de um modelo inciado em 1970 nos EUA, no mandato do presidente Richard Nixon - o mesmo que deu suporte ao golpe de Estado no Chile em 1973 -, intitulado ''Guerra às drogas'', que se baseia em forte repressão policial e penal. A nível global, o resultado disso foi um gasto de aproximadamente US$ 1 trilhão e cerca de 40% de toda a população carcerária mundial presa por causa das drogas, segundo pesquisa da London School of Economics. Estudiosos como Mark Kleiman - professor de Políticas Públicas na Universidade da Califórnia, em Los Angeles - afirmam que, ainda sim, o consumo de drogas ilegais não diminuiu; pelo contrário, constata George Soros, um megainvestidor e ator influente no cenário econômico mundial: esse modelo teria fomentado um imenso mercado negro, gerador de violência, através dos cartéis de drogas e seus usuários, o que fez da segurança pública um problema crônico na América Latina.

 Diante disso, qual deveria ser a estratégia do governo? As experiências holandesa e uruguaia sugerem que uma forte regulação do governo sobre a venda da Cannabis  pode contribuir de forma crucial para o fim do mercado ilegal, gerar lucro para o Estado e (se aliado ao aumento geral do padrão de vida, por meio de redistribuição de renda, cuidado médico, educacional e habitacional e abundância de oportunidades, além de um bom uso da publicidade) reduzir drasticamente o número de pessoas no grupo de consumidores em potencial. Quanto às drogas mais pesadas, um exemplo de política progressista e eficiente é a que toma forma no programa ''Braços Abertos'', do prefeito Fernando Haddad, em São Paulo.

 Ao contrário do senso comum belicoso e autoritário, tais medidas têm mais chance de sucesso porque atacam as causas do problema, ao invés das (tão-somente) consequências.

Fontes de pesquisa:

http://www.polbr.med.br/ano13/prat0613.php
https://www.youtube.com/watch?v=uPIGUbfPzpw
http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/139172/A-guerra-%C3%A0s-drogas-j%C3%A1-custou-US$-1-trilh%C3%A3o.htm
http://www.lse.ac.uk/newsAndMedia/news/archives/2014/05/EndWarOnDrugsReport.aspx
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,guerra-as-drogas-nao-diminui-consumo,1172466
http://www.brasildefato.com.br/node/12844
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Carl-Hart-o-problema-da-guerra-as-drogas-no-Brasil-me-lembra-o-Apartheid/5/30960
http://terramagazine.terra.com.br/blogterramagazine/blog/2014/02/14/bracos-abertos-reduziu-consumo-de-drogas-na-cracolandia-em-ate-70-diz-haddad/
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/01/haddad-diz-que-53-usuarios-tentam-largar-crack-apos-bracos-abertos.html
http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/2236


sábado, 2 de agosto de 2014

O processo de derrocada da URSS



 O processo de ''desestalinização'' da URSS pouco modificou o cenário anterior, embora em seu início algumas tentativas dos ''novos'' dirigentes tenham sinalizado no sentido de que ocorreriam mudanças mais profundas e duradouras na sociedade soviética. Se, por um lado, a autoridade e a onipotência do líder único foi, desde logo, afetada e repudiada, de outro, porém, a dominação da burocracia – que dera sustentação ao stalinismo – manteve-se intocada, a ideia e o fato do partido único. O poder da burocracia se estendia por todas as instâncias da vida soviética: ela, afinal, era responsável não só pela administração do aparelho de Estado, como, também, pelo controle do enorme aparelho produtivo e social da União Soviética, o que incluía fábricas, minas, redes de comunicação e de ensino, escritórios e serviços em geral.

 A influência da burocracia era, enfim, absoluta e opressiva. Ela, a rigor, confundia-se com o partido único, que, por sua vez, era o mecanismo através do qual ela dominava o Estado, exercia o poder e, não menos importante, garantia os seus privilégios. Nesse sentido, tornou-se óbvio, desde cedo, que a desestalinização iria até o ponto em que o domínio, o poder e os privilégios da burocracia não fossem postos em questão. Esse era, portanto, o seu limite.

 O paradoxo da desestalinização reside, sem dúvida, no fato de que ela foi levada a cabo por ex-discípulos de Stálin – como Brejnev, que reprimiu violentamente a tentativa húngara de romper com o Pacto de Varsóvia e tentar um socialismo mais humano –, que conduziram o processo com vistas a atingir apenas soluções parciais e sucedâneas. Segundo Deutscher (1968c, p. 156), os epígonos do stalinismo

''(...) afastaram do Estado que haviam recebido a insanidade do terror e dos expurgos, mas falharam em trazer sanidade à sua atividade. Libertaram o povo soviético do medo, mas foram incapazes de inspirar-lhe esperança. Incentivaram-lhe a pensar por si próprio, mas não lhe permitiram que expressasse pensamentos críticos.'' 

 Conscientes das necessidades sociais e econômicas da URSS, desgastada intensamente por uma crise paralisante³, lograram relativo sucesso nos primeiros anos da desestalinização, especialmente na claudicante base agrícola do país. Logo, porém, o ritmo geral da atividade econômica arrefeceu, mostrando-se, como na era de Stálin, profundamente assimétrico, desigual e lento nas diversas esferas de produção e distribuição, com graves efeitos sobre o conjunto.

 Na realidade, o stalinismo causou marcas tão penetrantes na sociedade soviética que a simples desestalinização, por melhores que fossem as intenções dos seus responsáveis, seria, naturalmente, impotente e incapaz de apagá-las, a não ser que ela evoluísse na direção de um amplo e ativo movimento de regeneração do poder, o que significaria a mobilização política dos trabalhadores urbanos e camponeses. Os grupos trotskistas, inspirados nos famosos textos de Trótsky sobre a ''degeneração burocrática'' do socialismo na União Soviética, acalentaram, por décadas, a expectativa de que isso, mais cedo ou mais tarde, viria a acontecer, mas sob a forma de uma reação politicamente consciente das bases da sociedade. É impossível saber, porém, se os líderes da desestalinização, oriundos eles mesmos da burocracia intocada, avaliaram, um dia, o que poderia representar, afinal, a participação e autônoma das massas na definição do ritmo e do alcance do processo que comandavam. O certo é que, utilizando os meios coercitivos e as técnicas repressivas que diziam combater, mantiveram o povo soviético politicamente ''adormecido'', executando certas reformas ''por cima'' e limitadas, que nem de longe punham em risco o seu domínio e os seus privilégios materiais. Décadas mais tarde, Gorbachev seguiria um caminho totalmente inverso. Com o intuito de promover as transformações democráticas enfeixadas na Glasnost e na Perestroika, ele viu-se na contingência de se apoiar no proletariado soviético, como forma de se opor à resistência dos setores mais conservadores da burocracia. Contudo, o ''despertar'' do povo soviético para a atividade de massa reverteu todas as expectativas: ao invés de buscar, como esperavam os trotskistas e o próprio Gorbachev, a assepsia da estrutura de poder e o avanço na direção do socialismo democrático, o povo soviético voltou-se, surpreendentemente, para a negação do socialismo, ou seja, para a ''restauração'' do capitalismo e da economia de mercado, sob a liderança de remanescentes convertidos da própria burocracia stalinista. Deutscher, certamente, chamaria a isto de uma amarga ''ironia da história''.

 As reformas propostas por Gorbachev visavam superar e resolver, com a máxima urgência, a crise que, há décadas, bloqueara o pleno desenvolvimento das forças produtivas da União Soviética:

''A perestroika é uma necessidade urgente que surgiu dos processos de desenvolvimento em nossa sociedade socialista. Esta encontra-se pronta para ser mudada e há muito tempo que anseia por mudanças. Qualquer demora para implantar a perestroika poderia levar, num futuro próximo, a uma situação interna exacerbada que, em termos claros, constituiria um terreno fértil para uma grave crise social, econômica e política.'' (Gorbachev, 1989, p. 15)

  Após definir perestroika como uma revolução, Gorbachev acrescentou:

''A política é, sem dúvida, a coisa mais importante em qualquer processo revolucionário, e isto vale igualmente para a perestroika. Por isso, damos prioridade às medidas políticas, à democratização ampla e genuína, à luta resoluta contra a rotina burocrática e as violações da lei, ao envolvimento ativo das massas na administração dos recursos do país. Tudo está ligado diretamente à principal questão de qualquer revolução: o poder. Não vamos mudar o poder soviético, é claro, ou abandonar seus princípios fundamentais, mas aprovamos a necessidade de mudanças que fortalecerão o socialismo, fazendo-o mais dinâmico e significativo politicamente. É por isso que temos razão em caracterizar nossos planos para democratização de larga escala da sociedade soviética como um programa para mudanças de nosso sistema político.'' (Gorbachev, 1989, p. 59)

 O projeto histórico de Gorbachev tinha duas principais vertentes. A primeira, no plano econômico, tratava-se de liberar as forças produtivas da União Soviética e evitar que a estagnação e o atraso se aprofundassem. O diagnóstico a respeito era, de fato, uma consternação:

''O acadêmico Aganbeguian, o  principal conselheiro de Gorbachev, resumiu toda a miséria do baixo rendimento da URSS, sublinhando o fato de que a agricultura soviética produzia menos cereais que os Estados Unidos usando quatro vezes e meia mais tratores que este país. Poderia ter acrescentado que esta produção se fazia com nove vezes mais pessoas 'ocupadas' na agricultura, isto é, que a produtividade do trabalho agrícola na URSS é apenas 10% do que é nos Estados Unidos.'' (Mandel, 1989, p.109)¹

 A segunda vertente, é claro, situava-se no plano político, e era o corolário natural da anterior: a intenção expressa de Gorbachev era substituir a gestão burocrática, que, com a sua incúria e desordem paralisantes, mostrou-se ser um verdadeiro obstáculo à modernização do país. Não eram, portanto, objetivos de realização simples. Gorbachev tinha consciência de que os seus propósitos, inevitavelmente, colidiriam com o sistema burocrático de dominação. E é esse aspecto, e suas consequências, que cabe ressaltar, por fim, neste trabalho.

 Gorbachev procurou, no início, conduzir uma reforma meramente acidental da máquina burocrática. São, por exemplo, desse período as invectivas contra a corrupção, o alcoolismo, o nepotismo, a lentidão, e outras táticas comuns no aparelho administrativo do país. Na fase seguinte, Gorbachev procurou combinar reformas econômicas com medidas voltadas para a democratização da vida pública. Surgiram, então, as primeiras resistências mais ostensivas contra a sua política vindas da burocracia. Gorbachev resolveu, então, enfrentar a burocracia - e, para tanto, ampliou os espaços de manifestação popular, em busca de apoio para as suas iniciativas. A partir daí, os acontecimentos se precipitaram. Ocorreu, então, um fenômeno absolutamente inusitado pelas suas dimensões e intensidade: o proletariado soviético, que esteve ausente da cena política como autor de um mínimo de autonomia de classe durante mais de cinco décadas, passou a exigir, nas ruas, um aprofundamento e uma maior celeridade nas reformas.

 Nesse ponto, e em face do crescimento da pressão popular, o sistema burocrático de dominação aparentemente se dividiu em duas partes, ambas acossando e isolando politicamente Gorbachev, cujo projeto de socialismo democrático punha em risco a estabilidade de suas vantagens.² De um lado, postaram-se os setores mais retrógrados da burocracia, que intentaram, numa cartada desesperada, a deposição militar de Gorbachev, com o objetivo declarado de restaurar o status quo. De outro, reuniram-se os grupos mais interessados no afastamento político de Gorbachev - mas como forma de manter, na nova ordem em emergências, os seus privilégios. Estes últimos, agindo com notável senso de oportunismo político, trouxeram a si os reclamos e a insatisfação do povo soviético, liquidaram o projeto histórico de Gorbachev - e levaram a cabo a derrocada da União Soviética.

 A experiência socialista da URSS chegava, de forma melancólica e surpreendente, ao seu fim. Nas ruas, o povo soviético rejubilava-se contra um sistema que lhe prometera, e não cumprira, ''o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade.''

Notas:

1 - Os dados disponíveis sobre a evolução da renda nacional mostram, com clareza, a persistente queda da vitalidade da economia soviética. No quinquênio 1951-55, a renda nacional da URSS cresceu, em média, algo em torno de 11% ao ano; no período seguinte (1965-60), tal crescimento manteve-se a redor dos 9%; entre 1961-65, diminuiu para 6,5%; no quinquênio seguinte (1966-70) apresentou pequena recuperação (7,8%), para decair, novamente, entre 1971-75, para 5,7%; nos períodos seguintes, ou seja, 1976-80 e 1981-85, a renda nacional soviética evoluiu anualmente a taxas de 4,8% e 3,5%, respectivamente, confirmando a tendência declinante dos últimos 35 anos. E não só isso. Entre 1966-70 (média anual) e 1981, a taxa anual de consumo per capta de mercadorias  (víveres, não-duráveis e duráveis) passou de 5,4% para 1,8% e o de serviços (pessoais, educação e saúde) caiu de 4,3% para 1,9%!

2 - As vantagens, ou privilégios, materiais da burocracia tomavam duas formas principais: ''maiores rendas monetárias (inclusive renda obtida ilegalmente através da corrupção, suborno, roubo e operações no mercado 'negro' ou 'cinzento') e vantagens não-monetárias oriundas da posição ocupada na estrutura hierárquica da sociedade burocracia (por exemplo, acesso à lojas especiais, uso de residências urbanas e rurais luxuosas etc)''. (Mandel, 1981, p. 117) Isso, claro, sem falar nos privilégios não materiais, como ''prestígio social'', ''poder'' etc.

Bibliografia: 

DEUTSCHER, Isaac. Ironias da história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968c.
MANDEL, Ernest. Marxismo revolucionário atual. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
 ______. Além da perestroika, São Paulo, Busca Vida, 1989, Vol. 1.