sábado, 26 de março de 2016

Crise econômica mundial, movimento social e socialismo

12 teses

por Robert Kurz



1. Segundo a actual “formação de opinião” nos média, na política e na ciência económica, a crise económica mundial já não deve existir. Os discursos de fim de alarme sucedem-se diariamente. Gostaria de se acreditar que, aconteça o que acontecer, dentro de um ano tudo vai pertencer ao passado. Talvez não tenha sido assim tão grave; há que esquecer o grande susto geral nos meses após o colapso do Lehman Brothers e as ondas de choque que se lhe seguiram. Ao mesmo tempo, tem de se admitir que o novo crescimento esperado após o colapso global começa a um nível muito mais baixo; levaria muitos anos até se chegar outra vez ao nível de acumulação de antes da crise. As consequências disto raramente são discutidas. Nesta situação, é apropriado pôr em evidência a base epistémica para a "formação de opinião". Base que é constituída por um pensamento positivista, o qual reconhece apenas factos imediatos, dissociados do seu contexto social mundial e do seu devir histórico. O método consiste numa "projecção" (extrapolação) de dados empíricos isolados e de sondagens de "opinião". Esta forma de abordagem falhou grandiosamente no passado recente. Ainda no início do Verão de 2008 se extrapolava com optimismo profissional o suposto crescimento da economia mundial até 2020. Aparentemente, a crise desabou do céu limpo. Podemos, pois, concluir que a percepção e a metodologia positivistas não podem dizer nada sobre o desenvolvimento real. O que também se aplica ao actual discurso de fim de alarme. Se a maioria da esquerda académica e política nem sequer conseguiu prever a crise económica mundial, isso indica que ela já há muito tempo adaptou momentos do pensamento positivista e que está pouco a par da teoria da crise.


2. Um componente importante da actual formação de opinião positiva é a esperança de uma dinâmica de acumulação na Ásia (sobretudo na China), pela qual agora a economia mundial há-de ser impulsionada. Ignora-se aqui a estrutura dessa dinâmica. O crescimento record da China na primeira década do século XXI baseou-se 60 por cento nas exportações, especialmente para os Estados Unidos. Em contrapartida, o crescimento nos Estados Unidos baseou-se 70 por cento no consumo. Tratava-se de uma conjuntura económica de deficit unilateral no Pacífico, pela qual foi impulsionado o crescimento global. Este volante paralisou. Embora a quebra do consumo nos Estados Unidos ainda não esteja plenamente consumada, as exportações chinesas nos três primeiros trimestres de 2009 caíram 25 por cento. Nada indica que a China possa alternar para um consumo interno, susceptível de compensar esta diminuição quantitativa ainda que aproximadamente, ou até mesmo de trazer uma dinâmica de crescimento global. O consumo alargado da classe média chinesa era apenas o produto residual do fluxo das exportações de sentido único. A crise do crescimento da China tem sido compensada nos últimos meses apenas por um gigantesco plano público de recuperação económica, que vai numa pequena parte para o consumo e na maior parte para investimentos em infra-estruturas (aeroportos e portos, estradas e ferrovias etc.) bem como para a especulação imobiliária. Este programa é financiado a crédito pelo Estado e pelos privados, com a particularidade de os bancos serem forçados a assumir todo o risco, contra a sua racionalidade empresarial própria, ao contrário do que acontece no Ocidente. Supõe-se que a conjuntura económica de deficit unilateral do Pacífico voltará a subir e que o nível anterior voltará a ser rapidamente atingido e ultrapassado. Mas isso é extremamente improvável. Ora, se essa expectativa não ocorrer, revelar-se-ão como ruínas de investimento não só os actuais programas de infra-estruturas, mas também as capacidades excedentárias construídas por módulos nas zonas económicas de exportação. Então também a China será apanhada pelo megacrash financeiro, apenas com algum atraso. Também neste aspecto se pode observar que grande parte da esquerda se entrega à mesma ingénua expectativa que a opinião pública burguesa, sem conseguir apresentar um fundamento analítico para tal.


3. Não só na China, mas em todo o mundo a suposta recuperação dos últimos meses baseou-se exclusivamente em programas públicos de apoio à conjuntura económica, ou seja, afinal, em consumo público financiado a crédito. Estes programas podem ser facilmente operados com as capacidades construídas durante a conjuntura de deficit. Eles não requerem novos investimentos do capital privado, pois as capacidades existentes continuam altamente subutilizadas, apesar destes programas. É de esperar, pelo contrário, uma pressão para a redução do excesso de capacidades instaladas em todas as áreas-chave. Por tudo isto os programas conjunturais não dão qualquer ajuda para o muito invocado crescimento auto-sustentado. Para tanto seria necessária uma conjuntura de investimento privado para a qual não existem quaisquer bases. O inflado consumo público, cujo financiamento é alimentado directamente na área monetária, contém no entanto um enorme potencial inflacionário, se tiver que substituir a longo prazo a acumulação autónoma de capital. No dilema do crescimento forçado não mais viável, os Estados aceitam uma inflação galopante, com o objectivo de aguentar a conjuntura bem artificialmente por algum tempo e desendividar-se depois via inflação. Mas isso iria acabar por ter, uma vez mais, consequências devastadoras para a própria acumulação de capital. E mais uma vez é de notar que boa parte da esquerda, tal como da opinião pública burguesa inclinada para a opinião formada pela esquerda, gostaria de considerar o Estado com capacidades superiores, como deus ex machina e lender of last resort (financiador de última instância), sem terem pensado suficientemente esta opção e as suas consequências.


4. Uma análise puramente fenomenológica da crise económica mundial já mostra que as suas causas não estão a ser eliminadas pelas manobras de recuperação até agora adoptadas. Uma análise histórica que vá mais fundo pode demonstrar que estas causas remontam aos anos oitenta do século passado. Depois de se ter esgotado a dinâmica de acumulação fordista do pós-guerra, não se concretizou o esperado potencial de valorização real em novas áreas tecnológicas (tecnologias da informação, biotecnologia etc.). A tentativa de adiar os problemas de valorização em primeiro lugar através do consumo público já então fracassou e resultou em inflação. A política neo-liberal de desregulamentação limitou-se a transferir o problema do crédito público para os mercados financeiros transnacionais. Formaram-se as célebres bolhas financeiras que, durante mais de duas décadas, pareciam gerar uma acumulação virtual insubstancial. Esta acumulação aparente foi acompanhada por uma cerrada cadeia de crises financeiras parciais, em diferentes países, regiões e sectores (da crise da dívida dos países do Terceiro Mundo, passando pelo crash financeiro nos E.U.A. e no Japão no final dos anos oitenta e início dos anos noventa, pela crise das economias dos Tigres Asiáticos, pela crise russa, pela crise bancária escandinava e pela crise da Argentina, até ao crash das dotcom depois da viragem do século), crises que não foram percebidas em sua coerência interna e pareceram susceptíveis de serem dominadas com a maré cheia de dinheiro dos bancos centrais. A nova crise financeira mundial é a primeira global, que já não pode ser contida com os meios habituais. O modelo oficial de explicação resume-se a designar como um "erro histórico" a desregulamentação neoliberal e a reduzir a crise a "excessos" dos banqueiros no céu financeiro os quais, infelizmente, se teriam repercutido na “economia real” saudável. Na verdade, verificou-se exactamente o contrário. Desde os anos noventa ocorreu uma reciclagem das bolhas financeiras na chamada economia real, que alimentou o poder de compra, já sem substância de valor real, para o consumo e o investimento na reprodução capitalista e, desde então, produziu as conjunturas de deficit. O potencial inflacionário deste “keynesianismo do mercado financeiro", foi distribuído pelas zonas monetárias globais e só começou a manifestar-se no auge da conjuntura de deficit (quase 20 por cento na China, esperados seis por cento nos E.U.A.), mas foi ofuscado pelo choque da desvalorização do capital financeiro, para se restabelecer agora com os programas públicos. Porque o padrão de explicação oficial é falso, também a ambicionada re-regulamentação não arranca, tendo sido, pelo contrário, adiada para um tempo imaginário "depois da crise". Não existe qualquer "acumulação real" saudável e a sua dinâmica há muito tempo esgotada já só pode ser prorrogada através de precários programas de simulação, em que as bolhas financeiras possíveis após o choque da desvalorização já não têm força para a reciclagem numa nova conjuntura de deficit, e em que o crédito público já esbarra nos seus limites a curto prazo. Está neste contexto o pior erro de grande parte da esquerda. Mesmo antes do colapso global, os movimentos de crítica da globalização e a esquerda política, numa "crítica reduzida do capitalismo", tinham maioritariamente responsabilizado a especulação financeira pelas manifestações de crise sociais e económicas, pondo assim de pernas para o ar a relação entre causa e efeito. Portanto, não é a esquerda que segue aqui o falso modelo de explicação da opinião pública burguesa; pelo contrário, esta é que foi buscar o seu modelo de explicação ao mainstream da esquerda.


5. Mesmo a análise histórica da dependência recíproca entre a falta de dinâmica de acumulação real do capital global e a formação de uma economia de bolhas financeiras transnacionais ainda fica limitada às aparências. Uma explicação adequada só é possível com referência à crítica da economia política de Marx. Marx analisou a dinâmica histórica do capital e o seu “limite interno” num plano conceptual abstracto. A sua exposição categorial afasta-se do pensamento positivista, porque argumenta no plano da substância do valor insusceptível de reconhecimento empírico imediato, plano que não se confunde com o conceito de criação de valor da economia nacional ou da economia empresarial, em cujas contas não aparece a conexão de quantidades de trabalho abstracto, substância de valor real, ciclos de giro do capital físico e do capital-mercadoria, criação de moeda e sistema de crédito, ou seja, o movimento real só é reproduzido de forma distorcida. A análise categorial de Marx da dinâmica de acumulação mostra a auto-contradição interna do modo de produção capitalista baseada na crescente composição orgânica do capital. A proporção crescente de capital constante (o capital físico "morto", que transmite valor, mas não cria valor) em comparação com o capital variável (a força de trabalho que cria valor e mais-valia) em cada capital-dinheiro aplicado leva à queda tendencial (histórica) da taxa de lucro. Esta expressão relativa da auto-contradição pode ser compensada pelo impacto no conjunto da sociedade de um aumento relativo da mais-valia por força de trabalho (redução do valor desta através do desenvolvimento das forças produtivas), mas só se, ao mesmo tempo, a utilização de capital-dinheiro e, portanto, a aplicação de força de trabalho aumentar em conformidade e levar a uma massa de lucro crescente, apesar da queda da taxa de lucro. Aqui também se faz notar a auto-contradição, na medida em que os custos prévios sempre crescentes do capital físico já não podem ser adequadamente financiados pelos lucros do passado, mas obrigam ao recurso também crescente ao sistema de crédito. Deste modo, o capital tem de recorrer cada vez mais à antecipação da mais-valia futura, para manter em funcionamento a produção de mais-valia actual. Daqui se pode concluir por um limite interno histórico da valorização, se o uso adicional de força de trabalho, mesmo com aplicação crescente de capital-dinheiro, já não tem sucesso suficiente, e se as cadeias de crédito por antecipação do futuro distante se rompem, caindo também assim a massa do lucro. O desenvolvimento na base da terceira revolução industrial desde a década de oitenta pode ser explicado neste sentido, ainda que, pelas razões apresentadas acima, não exista nenhuma evidência empírica, em termos de uma extrapolação positivista. Trata-se, porém, do "poder de abstracção" conceptual (Marx), para explicar os fenómenos reais, em vez de percebê-los como factos descontextualizados, que se possam interpretar arbitrariamente. As insuficiências apontadas de grande parte da esquerda podem ser atribuídas em última instância ao facto de se ter recorrido à teoria de Marx apenas de modo fragmentário. O nível categorial, na medida em que foi sequer tematizado, foi curto-circuitado com diagnósticos positivistas, pressupondo a eterna capacidade de produção de mais-valia relativa e de expansão do capital.


6. O cerne do problema é a categoria do trabalho abstracto, que é definida por Marx de modo claramente negativo, mas foi ligada a uma ontologia do trabalho positiva no marxismo tradicional. Deste modo, "o trabalho" não surgia como abstracção real especificamente capitalista, mas a substância do capital, que é o trabalho, surgia ao mesmo tempo como eterna condição humana. Sendo assim, o trabalho seria naturalmente inesgotável. Isso significava, para a teoria de crise, que era impensável um limite interno da própria substância da valorização, sendo a crise definida apenas ao nível das metamorfoses e desproporcionalidades na circulação do capital; nomeadamente como a chamada "crise de limpeza", que apenas repõe o equilíbrio perturbado da reprodução capitalista. Também a nova crise económica mundial assim é percebida, e aqui se baseia em última análise a sintonia com o horizonte de expectativa burguês. Daqui resulta também uma opção de acção que apenas pretende assumir influência sobre a reestruturação do processo de acumulação, pressupondo já este e excluindo à partida a possibilidade do seu esgotamento histórico.


7. Assim, a esquerda encontra-se numa sintonia com a consciência das massas absolutamente equivocada e insustentável na realidade, consciência esta que permanece passiva e sem força de mobilização. A internalização das categorias capitalistas como condições de vida inquestionáveis já fez um longo percurso. O movimento operário clássico, na fixação dos seus objectivos, manteve-se no terreno da forma de ser capitalista, e fez da substância deste ser, que é o trabalho abstracto, a base da sua legitimação. Mas esta auto-legitimação rompeu-se na terceira revolução industrial. O recuo global da classe operária criadora de mais-valia é apenas o reverso da crise substancial do capital. Os sectores de exportação chineses não constituem qualquer contraprova quantitativa, porque não têm como ponto de partida qualquer produção real de mais-valia, mas foram gerados apenas pelas bolhas financeiras, a partir dos anos noventa. Portanto, a invocação de uma “consciência de classe” baseada na criação de mais-valia real roda em falso. O "trabalho" perdeu a sua pretensa segurança ontológica. Ele está desmoralizado; e tanto relativamente à quantidade produtiva de capital em desaparecimento, como também por causa do seu carácter cada vez mais destrutivo e já não fundado nos conteúdos das necessidades vitais, e ainda por causa da sua precarização. Uma expressão dessa desmoralização é que o slogan oficial "qualquer emprego é melhor do que nada" está, ele próprio, inscrito na consciência das massas por força da ontologia do trabalho. Daqui deriva a esperança desesperadamente reduzida apenas a que a reanimação da dinâmica de acumulação possa ainda trazer melhorias. Assim se explica também a força eleitoral dos partidos liberais-conservadores até no núcleo remanescente da força de trabalho efectiva, e mesmo entre a população desempregada e supérflua.


8. Contramovimentos capazes de intervenção com o tradicional potencial de greve já só existem para os interesses particulares em posições-chave (maquinistas dos caminhos de ferro, controladores de tráfego aéreo), ficando pelo caminho os outros, como representantes de lobbys fracos (produtores de leite). Os movimentos de protesto com motivação de esquerda, com a sua crítica truncada do capitalismo, não vão além de acções simbólicas, com carácter de evento. Por outro lado, a orientação estatista da esquerda política corre o risco vir a dar na partilha da administração capitalista da crise (Linkspartei [Partido da Esquerda], em Berlim e noutros lugares). A tendência inevitável para o declínio é mais provavelmente digerida em formações ideológicas anti-semitas, racistas e sexistas. Também o feminismo da história recente é triturado pelo desenvolvimento da crise, porque o carácter estruturalmente androcêntrico das categorias capitalistas permanece obnubilado e já nem no movimento operário clássico fora objecto de qualquer reflexão. Simultaneamente, as novas classes médias tornadas quantitativamente dominantes sabem que o interesse do seu capital humano qualificado precarizado está dependente de que surja alguma produção de mais-valia real e, perante o desaparecimento desta, está dependente do crédito público e das bolhas financeiras. Por um lado, eles tornam-se assim portadores da crítica truncada do capitalismo reduzida ao capital financeiro; por outro lado, mantêm a esperança precisamente na reanimação deste.


9. Uma resistência generalizada contra a administração da crise, que até agora não está à vista, só é possível se for quebrada até certo ponto a concorrência universal. Sem dúvida que as reivindicações imanentes têm de constituir o ponto de partida. Isso inclui, por exemplo, um salário mínimo legal geral suficiente, um aumento drástico dos valores mínimos das transferências sociais e a paragem das privatizações de serviços públicos, na saúde e noutros campos. Mas, em primeiro lugar, tais reivindicações, dada a situação, já não se conseguem obter nos canais oficiais da política. A orientação estatizante na consciência das massas, tal como na esquerda, constitui um travão nesta questão, porque desta forma o problema é delegado no Estado. Seria necessário, em vez disso, um movimento social de massas já não meramente simbólico, com vontade e capacidade de paralisar a empresa capitalista mesmo na crise. Em segundo lugar, e verdadeiramente decisivo, tal movimento não pode mais ficar dependente do critério da capacidade de financiamento capitalista, o qual pressupõe uma acumulação de capital com êxito. Ele tem de explicar que os interesses vitais são inegociáveis e assumir-se conscientemente como "não responsável" perante o critério sistémico da financiabilidade. Se, de qualquer modo, o resultado da política da administração da crise é a inflação, só assim se pode conseguir capacidade de acção. Isto é condição para se perceber que a política tradicional de reforma com base na acumulação de capital, ou invocando o seu sucesso ("participação no êxito do crescimento"), se tornou obsoleta e, não por acaso, virou em contra-reformas socialmente repressivas. Assim fica excluída também uma política de esquerda como parteira e equipa reformadora de uma acumulação de capital reestruturada. Só pode tratar-se de um movimento de transição, que desenvolva uma nova consciência da inconsistência das condições capitalistas de vida e pretenda ir para além delas.


10. Assim fica também na ordem do dia a reinvenção do socialismo. Na realidade, a ameaça de que nós “também podemos fazer diferente" e lutar por uma sociedade para além do capitalismo foi sempre o catalisador e a força penetrante das reivindicações imanentes. No passado, uma crise económica mundial da dimensão da actual teria sido inevitavelmente motivo de actualização da passagem para o socialismo. Se esse objectivo, hoje, parece inconcebível para a maioria da esquerda, isso tem a ver, naturalmente, com a queda do socialismo real burocrático de Estado. Esta final foi celebrada mesmo na véspera do carnaval da abertura para a “liberdade”, cuja inverdade a esquerda não quer reconhecer. Já na ideologia do movimento operário clássico e, por maioria de razão, sob as coerções da "modernização atrasada", na periferia do mercado mundial, o conceito de socialismo se reduziu à nacionalização das categorias capitalistas, em vez de fixar como objectivo a sua abolição. O fracasso desta redução historicamente condicionada, porém, não foi processado criticamente, mas sim afirmativamente. Agora envergonha-se esta "chegada" ao capitalismo, cujos critérios (como a independência das “empresas”, as concessões à concorrência, a "liberdade” de formação de preços etc.) já tinham sido objecto de reformas no socialismo real e, muito antes do fim desta formação, já há muito tempo se tinham tornado paradigma do carácter inultrapassável das categorias capitalistas entre a esquerda ocidental.


11. Portanto, a orientação estatista da esquerda também não tem nada a ver com o objectivo historicamente falhado de um Estado dos trabalhadores, na base do trabalho abstracto ontologizado; pelo contrário, a esquerda está completamente obstinada com o Estado actual, tal como já antes o fizera a social-democracia nos anos vinte do século passado, para acabar aterrando em Godesberg e depois, com Schröder, no plano Hartz IV. O que resta é, por um lado, um keynesianismo de esquerda enfeitado com um pseudo-marxismo, que nunca passou de um “pacote de salvamento” ideológico da valorização do capital e que foi posto de parte pelas instituições capitalistas na década de oitenta. Se a sua revitalização é reclamada por partes da esquerda, na alegre esperança de renovação de uma reforma da política, tal não passa de uma ilusão, porque o novo keynesianismo de crise apenas pode executar a administração repressiva da crise e mais não representa que a continuação do neoliberalismo por outros meios. A questão premente do planeamento social dos recursos só aparece de uma forma perversa, como nacionalização da crise. Por outro lado, apresenta-se como complementar do keynesianismo de crise da "esquerda" o programa de uma “economia solidária” que, ultrapassando o contexto da socialização capitalista em estruturas alternativas particulares (pequenas cooperativas, comunas de auto-exploração, ajudas de bairro, hortas de subsistência, moedas alternativas regionais, etc.) propaga a ilusão num modo de vida e de produção “diferente” sobre a terra queimada do capital, programa este que poderá vir a ser assumido pela administração de crise. Outro aspecto das orientações alternativas de vistas curtas consiste em retomar a velha ideia de uma "democratização” empresarial. Mas uma co-gestão sob condições de crise mais não é do que tornar os empregados co-responsáveis pela subsistência na concorrência (fracasso no mercado das empresas ocupadas pelos trabalhadores na Argentina, corte voluntário de salários na Opel e na Arcandor).


12. Todos esses sucedâneos da transformação, ou do socialismo, falham basicamente o problema da "síntese social", feita pela forma geral da reprodução como forma do valor e da mercadoria, a qual só existe por causa da forma de mercadoria da força de trabalho. Um novo conceito de socialismo só pode ser conseguido na medida em que for rompida a internalização das formas de vida capitalistas através da forma de mercadoria da força de trabalho, do trabalho abstracto, da lógica de valorização e da forma de mercadoria da reprodução. Historicamente está na ordem do dia uma auto-administração social, para lá deste contexto social e formal, como planeamento consciente da aplicação dos recursos de toda a sociedade (recursos naturais, tecnologia, conhecimento), já não baseada na contabilização de unidades de trabalho abstracto; incluindo as infra-estruturas e os momentos da reprodução que não assumem a forma de mercadoria e que têm sido delegados nas mulheres. Tal objectivo de transformação socialista que vai mais longe precisa dum período histórico para se estabelecer; mas, simultaneamente, também é um pré-requisito para se poder mobilizar a resistência às restrições da administração de crise. Tal objectivo pode tornar-se compreensível na prática à medida que o decurso da crise económica mundial leve à desactivação de recursos vitais, em proporções nunca vistas, por falta de rentabilidade e de capacidade de concorrência ou de financiamento, apesar de existirem os meios materiais necessários. Se a crítica de esquerda do capitalismo quiser sair do desmoralizado combate de retaguarda e recuperar a ofensiva, ela precisa de quebrar essa casca e saltar por acima da própria sombra histórica.


Original Weltwirtschaftskrise, soziale Bewegung und Sozialismus. 12 Thesen em www.exit-online.org. Comunicação apresentada na Conferência do Fórum Marxista da Saxónia em 14.11.2009

domingo, 20 de março de 2016

Nacionalismo de direita, nacionalismo de esquerda

A manifestação de 1/03/2016 na avenida Paulista, em São Paulo. Midiaticamente, tratou-se de uma manifestação ''em defesa da democracia'', contra o movimento forçado de impeachment de Dilma Roussef e a defesa do Estado Democrático de Direito, ameaçado pela politização do poder judiciário. Na prática, muitos outros valores e reivindicações estavam lá.


 Há uma profunda diferença entre aquilo que podemos chamar de ''nacionalismo vermelho'' -- o nacionalismo de todos aqueles que, de social-democratas a comunistas, são parte da abstração conhecida como ''esquerda política'' -- e o nacionalismo daqueles (ou da maioria daqueles) que compareceram na ou apoiaram a manifestação de 13/03/2016, encabeçada por organizações como FIESP e por indivíduos como Jair Bolsonaro.

 O nacionalismo destes últimos ''pensa'' que a ''essência'' do Brasil são símbolos e a ordem social vigente: o Brasil deles (ou melhor, o que querem defender) é mais a bandeira azul, verde e amarela e da atual distribuição de renda do que a população brasileira (e seus interesses) em si; não lhes incomoda a pobreza de muitos, a quase guerra civil dentro de muitos bairros pobres, o racismo institucionalizado (hora velado, hora explícito) ou o sofrimento que a homofobia provoca em tantos meninos e meninas todo dia. Esbravejam contra a ''vergonha'' que estaríamos passando ''internacionalmente'' em virtude do escândalo de corrupção ''do PT'', mas não sentem vergonha de haver, ainda hoje, 36 milhões de brasileiros que não sabem se terão comida no dia seguinte (chegam a reclamar contra o Bolsa-Família, que busca garantir a comida no prato de cada família em troca da presença das crianças e jovens na escola!), de sermos o país que mais mata pessoas transgênero todo ano ou de que, em pleno século XXI, exportemos basicamente produtos primários, importando a maior parte dos bens de média e alta tecnologia que consumimos (mesmo tendo os recursos para produzir a maior parte deles aqui dentro).

 O nacionalismo ''esquerdista'', por sua vez, é muito mais uma paixão pelo nosso povo e pelo que o país, mais do que é, pode e deve ser: esse ''nacionalismo vermelho'' é um projeto de nação -- o ideal de um país soberano, rico, tecnologicamente desenvolvido, meritocrático (portanto mais igualitário) e livre dos males do machismo, da misoginia, do racismo e da LGBTfobia. Um país onde todos tenham acesso à saúde, à educação, à moradia e ao lazer de qualidade, e onde se possa fazer muito mais do que passar a vida trabalhando (''perder a vida a ganhá-la''), cada um recebendo do produto social o montante proporcional a seus próprios esforços. Internamente, podemos discordar quanto à eficiência desse ou daquele meio, da efetividade ou incapacidade do governo, da necessidade ou não de sair do capitalismo, mas os valores que possuímos nos unem.

 Nosso nacionalismo pode ser verde e amarelo se quiser, mas ele não se prende a isso -- e é algo muito maior do que tal.

quarta-feira, 16 de março de 2016

O baixo desempenho econômico do governo Dilma I resultou de escolhas políticas


 Artigo de Ricardo Summa e Franklin Serrano sobre as causas do desaceleramento econômico na primeira gestão de Dilma Roussef.*

Crescimento econômico do Brasil por trimestres

Do resumo:

O artigo analisa a rápida desaceleração da economia brasileira para os anos de 2011-2014, no qual esta cresceu apenas 2,1% em média anual, em comparação a média de crescimento de 4,4% do período 2004-2010. O crescimento do período 2004-2010 foi mais do que o dobro da média anual dos 23 anos anteriores. Dessa forma, é importante entender por que essa maior taxa de crescimento – embora bastante menor que a do período anterior a década de 80 – não se sustentou nos últimos 4 anos.

 Os autores argumentam que a desaceleração resultou majoritariamente do forte declínio do crescimento da demanda doméstica, mais do que de uma queda no ritmo das exportações ou mais ainda do que qualquer mudança de condições de financiamento externo. Os autores demonstram também que a rápida queda do crescimento da demanda domestica foi um resultado deliberado de decisões políticas tomadas pelo governo. Essas decisões de desacelerar a economia não eram necessárias, no sentido que não foram tomadas em resposta ao aparecimento de alguma restrição externa, como um problema de Balanço de Pagamentos. 

 As exportações brasileiras, bem como sua mudança de crescimento nos dois períodos, são muito pequenas para explicar a maior parte da desaceleração do PIB da economia brasileira. No período 2011-2014 as exportações eram apenas 11,3 % do PIB (e 11,9% em 2004-2010). 

 A ideia de que a deterioração das condições de financiamento externo pode ter levado à desaceleração também é refutada pelos dados. Por exemplo, a relação entre dívida externa total e exportação cai de 4,7 em 1999 para 1,27 no fim de 2010, e era apenas 1,54 em 2014. A relação entre dívida externa total e reservas internacionais foi reduzida de 6,5 em 2000 para apenas 0,89 em 2010 (e 0,93 em 2014). Além disso, a porcentagem do passivo externo líquido denominado em dólares caiu de algo em torno de 75% em 2003 para um mínimo de 35% in 2010, e em 2014 se situou próximo de 40%.

 Esses fatos tomados em conjunto indicam que a economia tinha espaço para se expandir após 2010. Porém, o governo decidiu reduzir o ritmo de crescimento da demanda agregada por meio de mudanças nas políticas monetária, macroprudencial e fiscal. Por exemplo, o Banco Central inicia um ciclo de aumento da taxa básica de juros após abril de 2010, que dura até julho de 2011, aumentando a taxa selic nominal de 8,75% para 12,5%. Esse aumento da taxa básica e as políticas macroprudenciais – que reduzem o crescimento do crédito - de certa forma contribuíram para o fim do boom do consumo privado (especialmente dos bens duráveis). O Consumo privado desacelera fortemente até meados de 2012 como resultado dessas medidas. 

 No fim do ano de 2010, o governo decidiu também promover um forte ajuste fiscal para aumentar o superávit primário e cumprir a meta cheia de 3,1% do PIB em 2011. Outro sinal de compromisso contracionista do novo governo foi a decisão, após anos de aumentos consideráveis, de não aumentar o salário mínimo real em 2011, algo que não ocorria no Brasil desde 1994. E apesar da desaceleração da economia mundial já no início de 2011, cujos sinais já eram evidentes no primeiro trimestre, o ajuste fiscal foi mantido durante o ano todo e a meta cheia de superávit primário foi atingida. 

 Esse rápido crescimento do superávit primário só foi possível graças a uma redução fortíssima do crescimento do gasto público. Em 2011, o investimento público caiu dramaticamente em termos reais, com queda de 17,9% no investimento da administração pública e 7,8% no investimento das empresas estatais. 

 A política contracionista do governo levou também à um declínio pronunciado do investimento privado, pois o investimento agregado (publico e privado) caiu rapidamente. Após crescer à uma taxa média de 8% entre 2004 e 2010, com pico de 18% em 2010, a formação bruta de capital fixo cresceu apenas 1,8% em média no período 2011-2014. 

 Assim, foi a forte redução do crescimento do investimento – e não um suposto processo de “desindustrialização” relacionado a taxa de câmbio real, como alguns economistas sustentam – que explica a desaceleração do crescimento da produção industrial desde 2011. A industria manufatureira cresceu nos anos 2007-2008 e em 2010, quando a taxa real de câmbio já estava apreciada. É importante notar também que durante o período de rápido crescimento de 2004-2010, a taxa de câmbio real apreciada foi muito importante para o controle da inflação e do crescimento dos salários reais, e assim do consumo das famílias. 

 O artigo mostra também que a análise que serviu de base para sustentar a estratégia do governo estava equivocada. Apesar da economia já estar desacelerando ao longo de 2010, o argumento era de que um aperto fiscal seria necessário para permitir uma diminuição da taxa de juros. Esperava-se que taxas de juros mais baixas, em combinação com desonerações fiscais e outros incentivos de mercado levariam ao crescimento do setor privado: estimulando o investimento privado e o crescimento puxado pelas exportações, uma vez que a taxa de juros mais baixa levaria também a um câmbio mais desvalorizado. Porém, como as políticas contracionistas derrubaram a demanda agregada, o investimento privado despencou. E pelas razões explicadas no artigo, o crescimento liderado pelas exportações também não ocorreu. E a suposta relação entre divida publica e risco soberano se mostraram como uma hipótese infundada. 

Os esforços do governo para convencer o setor privado a liderar o processo de crescimento econômico, via politicas macroeconômicas contracionistas, desonerações tributárias e parcerias público-privadas tiveram o resultado oposto ao esperado. Para retomar o crescimento e a criação de empregos para os níveis do período 2004-2010, o governo deve mudar o rumo e retomar algumas políticas e estratégias desse período, no qual o governo chamou para si a responsabilidade de promover o crescimento do investimento, do consumo, do emprego formal e da infra-estrutura necessária. 


*Franklin Serrano é Professor Associado no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil e pesquisador associado sênior do Center for Economic and Policy Research. Ricardo Summa é Professor Adjunto do Instituto de Economia da Universidade Federal de Rio de Janeiro, Brasil.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Thomas Palley sobre a visão keynesiana de esquerda quanto ao livre-comércio


Princípio da demanda efetiva e distribuição exógena = um amor de heterodoxia econômica.



 Artigo de Thomas Palley sobre ''livre'' comércio externo, baseada nas ideias de, dentre outros, Keynes e Marx. Talvez um dia eu traduza a coisa e disponibilize aqui.

 Sugiro que se leia também esse texto (e os links citados ao final dele, especialmente os 2 últimos, do prof.º Matías Vernengo).

domingo, 13 de março de 2016

Nuvens negras no futuro do país

Da linha do tempo facebookiana de um camarada, graduando em Ciências Econômicas, sobre as manifestações desse domingo e as expectativas para a economia brasileira no horizonte:

 O mais curioso dessas manifestações é o caráter pacifico, diria quase idílico, do comportamento coletivo. Famílias com camisa do brasil, fotos, trio-elétrico, selfies e adereços decorativos nos fazem achar de que se trata de um evento comemorativo de envergadura nacional, e não um protesto ferrenho contra a corrupção. Mas esse é o aspecto da superfície, visível, que não tem lá muita importância caso nãos nos preocupemos em saber a razão do porquê desse tipo característico de manifestação-"celebração".

Eu sei lá, mas penso que, no inconsciente da coletividade, há a sensação de que não é necessário fazer "muita força" pra derrubar o "petismo", o "neodesenvolvimentismo", "lulismo" e suas variantes. Não é necessário porque as contradições internas do modelo de governo petista já chegaram no ponto de ruptura, e que dali não se vislumbra mais nenhuma expressão de força que possa protelar o seu definhamento.

Para entender o fim desse modelo, uma digressão:

O arranjo de "governabilidade petista" se sustentara num pacto entre agro-empresários, empreiteiras, parte da indústria e do setor financeiro nacional. Enquanto havia desonerações e isenções fiscais generosas, taxa de juros especiais, linhas de crédito abundante, superávits comerciais expressivos -- que àquela época eram puxadas não pela contração das importações como hoje, mas por um auge exportador --, câmbio valorizado e, aliado a tudo isso, a garantia de superávits primários e ao zelo pela "responsabilidade fiscal", a condução dessa governabilidade pôde prosseguir com segurança, resistindo até mesmo à maremotos políticos como o Mensalão.

Mas estamos em outra conjuntura. O "boom" chinês que coincidira com uma política fiscal "prudente" permitiu a concatenação dos interesses entre as frações do capital (industrial, bancário e agrário) -- possibilitando a realização das medidas citadas acima --;mas com a reversão abrupta do comércio externo provocada pela crise de 2008, os preços das matéria-primas transitaram gradualmente para um "viés de queda", aprofundando-se em 2012 até chegar perto das profundezas em 2016. Com isso, a rentabilidade dos diferentes tipos de capital passa a ser ameaçada; sem a folga externa causada pela enxurrada de dólares decorrente da demanda chinesa e da liquidez externa, o Brasil, como qualquer outro país do mundo, volta-se para o mercado interno por meio de medidas anticíclicas -- recrudescimento do crédito e das isenções fiscais.

Naturalmente, o endividamento tanto público como privado progredira. Mas é aqui onde reside o nó górdio: uma coisa é o endividamento das economias desenvolvidas (só uma nota: desde 2007, a dívida pública de economias avançadas cresceu 35 pontos percentuais da produção econômica total, segundo o Instituto Global McKinsey), outra BEM diferente, é a o das economias periféricas, como a nossa. Sendo bem simplista: o endividamento dos países periféricos é visto com temeridade pois a baixa produtividade -- que quer dizer baixa capacidade de acumulação e geração de valor novo para o capital --, características dessas economias, impede-lhes de custear o serviço da dívida de forma sustentável. São economias vulneráveis, com industrias de baixa competitividade internacional, que dependem da exportação de bens suscetíveis a reversão cíclicas nos preços - a deterioração nos termos de troca.

Todos esses fatores fazem com que os investidores fiquem preocupados quando verificam uma progressão acentuada no endividamento desses países, como o Brasil -- além da leniência do seu governo com o superávit primário e a lei de responsabilidade fiscal.

Voltando ao pacto da governabilidade petista: tendo em vista o quadro apresentado acima, a fração do capital financeiro se rebela, enquanto o governo abastece os demais os setores (construção civil, automobilístico etc) à custa de um crescente envidamento. O arranjo tecido pelo lulismo se fragiliza, portanto.

Mas esse pacto é contundentemente afetado quando o esforço do governo em manter o ímpeto de expansão dos outros setores se demonstra ineficaz. As concessões fiscais, ao invés de estimular o investimento na ampliação da capacidade produtiva, apenas estabilizaram a queda na margem de lucros e adiaram a retração da industria e da construção civil -- o que lidera os investimento é a taxa de lucro, e não a pura e simples sustentação da demanda agregada. O crescimento não veio como esperado, a arrecadação por conseguinte caiu e a "capacidade" de pagamento da dívida percebida pelo mercado se deteriorou. O ajuste fiscal aparece então como resultado lógico.

E com o ajuste fiscal, obviamente, o arranjo lulista atinge seu ponto crítico, pois todas as benesses dadas aos demais setores são cortadas ou diminuídas, levando-os a um tombo significativo, enquanto o rating dos títulos brasileiros continua a se deteriorar.

As vigas do arranjo lulistas ficaram abaladas; o apoio político não é constituído por uma relação de poder pessoal, mas por uma relação intermediadas por coisas e que se realizam por meio delas.. Assim que a mercadoria desvaloriza e os números caem, o apoio político de um setor para um governo começa a fraquejar -- porque a relação de um empresário com o governo não é pautado pelo poder do "político", mas pelo objetivo de fazer sua mercadoria multiplica e se transformar em dinheiro.

Em suma, o arranjo político do lulismo não serve mais para o capitalismo. As suas possibilidades se esgotaram na medida em que as suas políticas de sustentação da demanda esbarraram nos limites de uma economia periférica.

Voltando ao caráter festivo das manifestações:

O lulismo é um zumbi inofensivo, capenga, que será inevitavelmente enterrado. O que resta para os seus opositores é a contemplação desse carcomido "inimigo", num clima de tranquilidade inconsciente. Não é preciso fazer barricadas, lançar coquetel-molotov's, pichar muros, confrontar a polícia etc; a força supra-humana do capital já se encarregou de liquida-lo -- manifestando-se nas altas tresloucadas das bolsas de valores quando as informações parecem confirmar uma provável dissolução do governo petista.

Mas para a rapazeada que saiu às ruas, trata-se de uma vitória de pirro. O panorama para os próximos anos é aterrador; o ajuste fiscal será reforçado, reformas na previdência serão levadas a cabo, flexibilização dos direitos trabalhistas implementadas etc -- o PL da terceirização tá na espreita, não se esqueçam. Muitas empresas nos últimos anos cresceram na esteira do boom chinês associado às políticas expansionistas dos bancos estatais, e com a inviabilidade de ambos, estas mesmas unidades tenderão a ser liquidadas, gerando desemprego em massa.

Para sairmos do brejo teremos que ser puxados pela corrente externa -- mas como? o comércio externo em 2015 permanecera estagnado, e a expectativa para 2016 é de uma atividade ainda mais vagarosa, chegando perto dos patamares de 2009 em que o mercado global quase entrou em paralisia.

Muitos que odeiam o governo do PT devem passar nos próximos anos por dificuldades que podem leva-los ao mesmo fim do objeto de seu ódio: ao definhamento.

A dependência das economias primário-exportadoras latino-americanas


O texto abaixo é um trecho do artigo ''A economia política de Raúl Prebisch'', de Adolfo Gurrieri, incluso no livro ''O Manifesto Latino-Americano e outros ensaios'', uma coletânea de artigos de Prebisch organizada por Gurrieri e lançado pelo Centro Internacional Celso Furtado e pela editora Contraponto em 2011. Pretendo transcrever o artigo na íntegra e publicá-lo aqui posteriormente. 

 

 I. A ideia de desenvolvimento e a desigualdade internacional

 
Desde o início do caminho cepalino, Prebisch se orienta por uma ideia de desenvolvimento que manterá sem grandes mudanças em todos os trabalhos posteriores. Não por acaso, para defini-la de maneira sintética recorre à fórmula ''o progresso técnico e seus frutos'', pois ela evidencia seu vínculo com a tradição racionalista.

 Poucas ideias influenciaram mais a cultura ocidental do que a de progresso, que alcança expressão mais plena com os filósofos do Iluminismo. Além de um ideal de aperfeiçoamento moral, ela também afirma a possibilidade de melhorar as condições materiais de vida, derrotando os antigos flagelos da fome, da enfermidade e da morte prematura, com o uso apropriado e sistemático da razão.

 Ao definir sua ideia de desenvolvimento de maneira mais específica, ele recorre à visão dos economistas clássicos: o progresso técnico consiste em um processo de elevação dos níveis de produtividade real da força de trabalho, obtido com a adoção de métodos produtivos mais eficientes; os principais frutos desse processo são a elevação da renda e das condições de vida da população.

 Mas seu ponto de partida foi a distribuição internacional do progresso técnico e de seus frutos: a evidência empírica mostra que há considerável desigualdade no nível médio de renda dos países industrializados e dos países produtores e exportadores de produtos primários. Isso tem uma enorme importância teórica e prática, pois refuta a justificação básica da teoria clássica sobre a divisão internacional do trabalho e do padrão histórico de desenvolvimento baseado em exportações de bens primários que predominou na América Latina até a crise de 1929.

 As enormes vantagens do desenvolvimento da produtividade não chegaram à periferia em medida comparável à que a população desses grandes países conseguiu desfrutar. Daí as diferenças tão acentuadas nos níveis de vida das massas dessa e daquela. [...] Existe, pois, manifesto desequilíbrio. Qualquer que seja sua explicação ou o modo de justificá-lo, trata-se de um fato inquestionável que destrói a premissa básica do esquema da divisão internacional do trabalho. [1949: 1]

 Como se sabe, a teoria do comércio internacional baseada no princípio das vantagens comparativas supõe que o intercâmbio entre países que se especializaram em produzir de acordo com a sua dotação de recursos permitirá reduzir ou eliminar a desigualdade na distribuição de renda para eles. As rendas dos países tenderiam a equiparar-se -- de maneira absoluta ou relativa, conforme os autores -- de modo que a divisão internacional do trabalho entre eles seria não só a mais eficiente do ponto de vista da alocação de recursos, mas também mais equitativa no que diz respeito à distribuição das rendas geradas no conjunto do sistema. De acordo com essa teoria,

o fruto do progresso técnico tende a repartir-se de maneira uniforme entre toda a coletividade, seja pela baixa de preços, seja pela alta equivalente das rendas. Mediante o intercâmbio internacional, os países produtores de bens primários obtêm sua parte naquele bolo. Não precisam, pois, industrializar-se. Tornando-se menos eficientes, perderiam as vantagens clássicas do intercâmbio. [ibid., p. 1]

 Essa teoria  redistributiva foi refutada pelos fatos. Com ela, foi refutada também a divisão internacional do trabalho que tanta importância teve na orientação das economias latino-americanas até a grande crise (de 1929). Ambas as refutações abriram um horizonte de problemas que representou o começo de um ''longo caminho de pesquisa e ação que teremos de percorrer se tivermos o firme propósito de resolvê-los'' [ibid., p. 1].

II. O sistema centro-periferia

 O fato de os países da América Latina terem uma renda média bastante inferior à renda dos países industriais decorre, em última instância, de eles integrarem um sistema de relações internacionais que Prebisch denominou ''centro-periferia''. O desenvolvimento dessa hipótese é o cerne da sua teorização sobre o subdesenvolvimento latino-americano.


 O sistema centro-periferia se forma historicamente a partir da geração e da difusão do progresso técnico, fenômeno que molda a ordem capitalista mundial.

O movimento começa na Inglaterra, prossegue com diferentes graus de intensidade no continente europeu, adquire um impulso extraordinário nos Estados Unidos e finalmente chega no Japão. [1950:1]

 Esses países constituem os ''grandes centros industriais'' em torno dos quais se forma uma ''vasta e heterogênea periferia'' que se liga aos centros de um modo subordinado às necessidades deles. A difusão universal do progresso técnico configura as relações entre centro e periferia, dando lugar a um sistema cuja composição e cujo funcionamento -- características estruturais, funções de seus componentes, relações entre eles -- respondem às necessidades dos primeiros.

 O desenvolvimento ''para fora'' constitui uma manifestação exemplar do sistema centro-periferia, pois se volta ''primordialmente para [satisfazer] as necessidades de produtos primários dos grandes centros industriais'' [1951:3], de acordo com a divisão internacional do trabalho que eles impõem. ''À América Latina, como parte da periferia do sistema econômico mundial, corresponde o papel específico de produzir alimentos e matérias-primas para os grandes centros industriais'' [1949:1]. Seu objetivo primordial não é elevar o nível de vida da população da periferia, mas permitir que os centros satisfaçam ''da maneira mais econômica o próprio consumo'' [1951:3]. Como a satisfação das necessidades dos centros é o princípio ordenador do sistema global, que influi decisivamente no modo como a periferia se desenvolve e no papel que cumprem os componentes do processo econômico; a partir desse processo desse princípio ordenador das estruturas econômicas periféricas compreende-se o papel assumido pelo comércio exterior, a profundidade com que penetra nas atividades econômicas e a população que abarca, a quantidade e as maneiras de participação do investimento estrangeiro, as formas tecnológicas predominantes, as pautas de consumo e de demanda, etc.

 Submetido às condições impostas pelo sistema global, o progresso técnico chega à periferia de modo ''lento'' e ''irregular''. Lento porque ''no longo período que transcorre desde a Revolução Industrial até a Primeira Guerra Mundial, as novas formas de produzir [...] só abrangeram uma proporção reduzida da população mundial''; irregular porque elas só penetram naqueles reduzidos setores ''nos quais são necessárias para produzir alimentos e matérias-primas de baixo custo para os centros industriais'' [1950:1]. Os países periféricos desempenham uma ''função primária''. Inserem-se no sistema de maneira segmentada e estabelecem vínculos com os centros depois de passar por uma ''rigorosa seleção de atitudes''.

 Essa penetração irregular do progresso técnico leva à coexistência de regiões, setores econômicos e grupos sociais com diferentes níveis níveis de produtividade e renda. A estrutura econômica se torna heterogênea.

Novas terras férteis que o desenvolvimento dos transportes tornou acessíveis na segunda metade do século XIX recebem homens, técnica e capitais para empreender a produção agrícola e mineradora que a demanda europeia requer cada vez mais, enquanto outras terras de cultivo secular, que sustentam antigas populações, ficam excluídas desse impressionante processo de expansão da técnica e da economia capitalistas por causa da menor produtividade ou do difícil acesso. Na América Latina, permanecem existindo extensas regiões relativamente importantes, do ponto de vista demográfico, nas quais as formas de exploração da terra e, em consequência, o nível de vida das massas são essencialmente pré-capitalistas. [1950:2]

O sistema centro-periferia dá aos países da periferia a possibilidade de cumprir uma função sempre que eles disponham dos recursos requeridos para isso ou da capacidade de mobilizá-los. A partir da necessidade inicial dos centros, o país periférico pode estabelecer uma vinculação com eles, desde que conte com condições estruturais que lhe concedam uma posição funcional no conjunto. Essa inter-relação de vínculos funcionais e condições estruturais condiciona em grande parte a inserção dos países periféricos no sistema global. Incia-se assim nesses países um processo de transformações cujas consequências -- como a já mencionada heterogeneidade nos níveis de produtividade e de renda causada pela penetração ''irregular'' do progresso técnico e pela especialização produtiva -- deixam uma profunda marca na estrutura econômica e social.

 Mas a complexa teia de vínculos funcionais e de condições estruturais que definem a inserção periférica têm uma consequência que manifesta claramente o caráter subordinado dessa inserção no sistema global: a incapacidade de a periferia reter totalmente as rendas geradas por seu próprio desenvolvimento, Isso contribui para concentrar no centro as rendas geradas pelo conjunto do sistema.

 Prebisch considera que, de um lado, o sistema centro-periferia, visto como um todo, funciona primordialmente para satisfazer as necessidades e interesses dos centros industriais, nos quais o progresso técnico se originou ou se difundiu com rapidez; de outro, os países periféricos se inserem no sistema na medida em que podem servir àqueles interesses e necessidades, fornecendo matérias-primas e alimentos e recebendo produtos manufaturados e capitais. Essa inserção não só é insuficiente para equiparar o nível de renda da periferia ao dos centros, mas também impõe à estrutura produtiva periférica dois traços negativos -- heterogeneidade estrutural e especialização -- como consequência da lenta e irregular penetração do progresso técnico. De tudo isso decorrem três desigualdades principais entre centro e periferia: na posição e na função que ocupam dentro do sistema, em suas estruturas produtivas em seus níveis médios de produtividade e de renda.

 Esse esquema geral das relações centro-periferia, que Prebisch esboça em seus primeiros textos, refere-se à modalidade na qual a periferia desempenha o papel de produtora e exportadora de matérias-primas. Quando foi elaborado, não havia as outras formas de relação entre centros e periferia que correspondem a padrões de desenvolvimento vigentes depois, como os que se baseiam no investimento direto estrangeiro na indústria da periferia. Mas o esquema geral não contém nenhuma limitação que impeça a sua aplicação a essas outras modalidades, como de fato ocorreu quando elas passaram a predominar em alguns países latino-americanos. É equivocada a interpretação usual, segundo a qual esse esquema se reduziria a considerar somente as relações comerciais entre centro e periferia. O que o esquema destaca é a importância da forma como cada país periférico vincula-se aos centros e das características de sua estrutura econômica, que recebe e difunde o progresso técnico como consequência dessa vinculação. Esse processo condiciona a posição e a função da periferia, suas possibilidades de desenvolvimento e os problemas específicos que ela deve enfrentar para reorientar sua economia.

 Essas razões explicam por que a hipótese do sistema centro-periferia teve tamanha fertilidade: podem-se usar argumentos convincentes para defender que a reflexão econômica, sociológica e política das últimas décadas contribuiu para enriquecê-la, mas não para superá-la, e que grande dos estudos e controvérsias sobre as relações econômicas internacionais, na América Latina e fora dela, teve relação com esse fecundo paradigma. Como exemplo dos avanços realizados a partir daquele esquema interpretativo podemos citar os estudos sobre o desenvolvimento baseado na transnacionalização das economias periféricas, com suas condições e consequências políticas -- especialmente as análises sobre o Estado ''burocrático-autoritário'' --, e os esforços analíticos para incorporar as estruturas de dominação como vínculos mediadores entre centros e periferia. Por isso não se deve estranhar que vários ensaios precursores tenham sido escritos no âmbito da CEPAL também sobre esses temas; um estudo da história desas ideias mostraria que elas constituem desenvolvimento teóricos que, subindo nos ombros do paradigma preexistente, puderam compreender uma realidade cambiante.

 III. A deterioração dos termos de troca 

 Uma interpretação errônea afirma que naqueles anos Prebisch só se preocupou com as relações comerciais entre centros e periferia. Isso talvez decorra da atenção preferencial que ele dedicou à relação dos termos de intercâmbio entre produtos primários e industriais. Essa comparação dinâmica dos termos lhe parece interessante, pois se relaciona diretamente com as diferenças na produtividade e na renda médias dos dois tipos de países. Ele não considera, é claro, que a deterioração seja a causa última dessas diferenças, mas tão somente uma manifestação, no mercado internacional de bens, das profundas desigualdades estruturais, funcionais e de poder entre centros e periferia. Por isso analisa em detalhes as causas da deterioração para mostrar que elas surgem da estrutura e do funcionamento do sistema geral.

 Se partirmos do plausível pressuposto de que a produtividade do trabalho aumentou no centro em ritmo maior que na periferia, a teoria convencional do comércio internacional só seria verdadeira se a relação de preços se tivesse movido a favor dos produtos primários. O maior ritmo de aumento da produtividade na produção industrial deveria provocar uma redução relativa de custos e preços dos bens industriais, promovendo maior equiparação das rendas.

 Se a relação dos preços tivesse permanecido constante, sempre se admitindo que a produtividade cresce mais no centro que na periferia, a diferença na taxa de incremento da produtividade de cada um provocaria nos respectivos níveis de renda média uma desigualdade que teria sido tão ampla e crescente quanto aquela diferença. Finalmente, se os preços evoluíram de maneira desfavorável aos produtos primários -- ou seja, se esses preços ''se deterioraram'' perante os preços industriais --, isso significa que os centros não só retêm os ''frutos'' de seus próprios aumentos de produtividade, mas também se apropriam de uma parte daqueles gerados pela periferia.

 À luz da evidência da estatística e analisando períodos prolongados, Prebisch afirma que isso ocorreu. A renda global gerada pelo sistema tende a concentrar-se nos centros, em contraposição à afirmação tradicional. Esse resultado é coerente com o que ele chama depois de ''caráter centrípeto do sistema centro-periferia''.

 A evolução da relação de preços indica que os centros tiveram maior capacidade de reter as rendas que geraram e de se apropriar de uma parte das rendas produzidas pela periferia. Para Prebisch, as causas dessa capacidade desigual precisam ser buscadas na natureza do sistema. Essa busca o conduz a formular algumas hipóteses que o ajudam a compreender melhor a natureza do sistema.

 Em princípio, o pressuposto de que a produtividade do trabalho aumentou mais no centro que na periferia baseia-se na existência de dois fatores principais: o maior potencial cientifico-tecnológico e a maior capacidade de acumulação de capital. Ambos os fatores constituem elementos-chave do dinamismo das economias centrais, que geram maior renda; não surpreende que também a retenham mais eficientemente.

Assinalar aquela disparidade de preços não implica fazer juízos sobre seu significado de outros pontos de vista. No que diz respeito à equidade, se poderia argumentar que os países que se esforçam para conseguir um alto grau de eficiência técnica não têm por que compartilhar os frutos dessa eficiência com o resto do mundo. [1949:5]

 Adiante, ele diz que ''a proteção desse nível de vida, conseguido com muito esforço, tinha de prevalecer sobre as pretensas virtudes de um conceito acadêmico'' [1949:8]. Mesmo assim, como decorrência da maior capacidade de reter os resultados, os centros possuem também uma clara superioridade no que diz respeito à interação dinâmica entre acumulação, produtividade e renda; a periferia, ao contrário, padece do círculo vicioso em que são precárias a produtividade, a renda e a acumulação. Por meio de quais mecanismos os centros retêm a renda gerada pelos aumentos de produtividade e se apropriam de parte da renda gerada na periferia? Prebisch deseja ir além da explicação baseada no desejo dos centros, pois a teoria tradicional também reconhecia o interesse em reter os frutos do progresso técnico, mas defendia que de todo modo esses frutos se transfeririam para a periferia, de forma equitativa, graças à ação das forças de mercado.

 A primeira causa que explica a capacidade de retenção dos centros é a relativa imobilidade da força de trabalho, o que já havia sido reconhecido por alguns economistas neoclássicos. Ao observar o que ocorreu nos Estados Unidos, Prebisch conclui que os incrementos de produtividade e de renda que começam nos setores industriais mais dinâmicos tendem a difundir-se para o restante da economia. O setor dinâmico aumenta sua demanda por trabalho, o que eleva os salários nele; maiores salários aumentam a demanda dos bens que ele produz e de outros bens e serviços, o que aumenta a ocupação e os preços relativos desses bens e dos fatores de produção correspondentes. Porém, essa elevação não conduz a uma equiparação; por isso, os países centrais adotam medidas para proteger os preços dos bens agropecuários e/ou as rendas dos produtores desses bens. Mas esse processo autossustentado é ainda mais limitado na relação entre países centrais e periféricos, pois entre eles a força de trabalho tem menos mobilidade; se a força de trabalho da periferia pudesse se transferir aos centros para se incorporar ao processo de industrialização, não só teria sido possível aumentar sua produtividade e suas rendas, mas também se tornaria possível interromper a queda dos salários e dos preços de produtos primários de exportação da periferia. Se, dentro do sistema centro-periferia,

a população ativa tivesse mobilidade perfeita e a migração não enfrentasse resistências, e se o rápido desenvolvimento da indústria e das demais atividades pudesse absorver com rapidez a sobra real ou potencial de gente ativa, existiria uma nítida tendência ao nivelamento dos salários nas economias primárias e industriais. [1950:51]

  Dada a menor mobilidade relativa da força de trabalho em nível internacional,

na produção primária [da periferia] tende a existir uma sobra de população ativa que exerce uma pressão desfavorável sobre os salários e os preços primários. Essa tendência nasce, de um lado, do incremento relativamente forte da população nas regiões de produção primária e, de outro, do progresso técnico, que requer menos gente para obter a mesma quantidade de produtos. [1950:50]

  Na visão de Prebisch, a oferta abundante de força de trabalho na periferia, que não pode transpor os limites dos Estados nacionais, se agrava por causa da difusão do progresso técnico, que, de um lado, propicia um aumento da população e, de outro, induz à adoção de técnicas que economizam mão de obra.

 Em segundo lugar, Prebisch destaca a maior capacidade dos agentes produtivos dos centros -- empresários e trabalhadores -- para defender e aumentar suas rendas, fenômeno que ele analisa levando em consideração as flutuações cíclicas.

 Na fase ascendente, parte dos ganhos se transforma em aumento de sala´rios, seja pela concorrência entre os empresários, seja pela pressão das organizações de trabalhadores. Na fase descendente, quando os ganhos diminuem, aquela parte que nos centros se transformou em aumentos salariais já perdeu sua fluidez por causa da reconhecida resistência á diminuição de salários. A pressão se desloca com mais força para a periferia, pois nela, dadas as limitações de sua concorrência, não são rígidos os salários e os ganhos. Quanto menor a possibilidade de se comprimirem as rendas do centro, maior a pressão para fazê-lo na periferia. A desorganização característica das massas que trabalham na produção primária, especialmente na agricultura dos países da periferia, as impedem de conseguir aumentos de salário compatíveis aos dos países industriais, ou mesmo de manter seus ganhos. A compressão das rendas é menos difícil na periferia. [1949:7]

 A esses fatores que contribuem para reforçar a capacidade de os centros reterem ou aumentarem suas rendas somam-se, em terceiro lugar, políticas diretas adotadas com essa finalidade.

 Os países com altas rendas adotam medidas para evitar que países com rendas mais baixas lhes façam concorrência prejudicial em certos setores, graças a essas menores rendas ou à maior produtividade, ou a uma combinação favorável de níveis de renda e de produtividade. [1950:86]

 Essas políticas são particularmente claras no caso da agricultura dos centros, que é protegida no mercado interno e subsidiada no externo, mas também são aplicadas em indústrias que têm altos custos por apresentarem uma relação desfavorável entre produtividade e salários, devendo, pois, ser protegidas de competidores externos. Os centros se fecham para defender sua renda, impedindo que ela vaze para o exterior.

 Além da influência que essas medidas protecionistas exercem sobre as exportações periféricas -- e, como consequência, sobre os preços delas --, Prebisch observa, em quarto lugar, que a dinâmica do desenvolvimento dos centros conspira contra o aumento das exportações primárias.

 Depois de analisar as exportações da América Latina para os Estados Unidos e a Inglaterra, ele conclui que a demanda desses países cai -- por causa de queda nas rendas, restrições à importação, etc. -- e por isso os preços dos produtos primários baixam sem que se produza, como se poderia esperar, uma reativação da demanda. No período de 1925 a 1948, que Prebisch estuda, os Estados Unidos subordinaram claramente as importações primárias à evolução da sua renda real, sem deixar que as quedas de preços os afetassem significativamente. Por isso Prebisch afirma que os centros impõem limites às exportações primárias, limites que a periferia não pode ultrapassar; se pretende fazê-lo, só conseguirá ''forçar as exportações em prejuízo dos termos de intercâmbio, sem obter um aumento substancial no valor exportado'' [1950:33].

 No ensaio de 1951 ele relaciona as importações de centro e periferia à evolução das respectivas rendas. Por um lado, ''as importações de produtos primários nos centros industriais tendem a crescer com menos intensidade que a renda real. Em outras palavras: nos centros, a elasticidade-renda da demanda de importações primárias tende a ser menor que a unidade'' [1951:23]. Isso se deve a diversos motivos, que variam conforme os produtos; entre eles destacam-se o menor e melhor uso de matérias-primas nos bens finais, a difusão de materiais sintéticos e as alterações na cesta de consumo, por causa do crescimento da renda, em prejuízo relativo dos alimentos e a favor de bens industriais mais elaborados e de serviços (lei de Engel). Por outro lado, os países periféricos precisam importar bens de capital e outros bens manufaturados para satisfazer suas necessidades de acumulação e de crescimento da renda. Combinados, os dois processos produzem uma ''disparidade dinâmica de importações entre centro e periferia''. Ela inclina a balança a favor dos preços dos bens produzidos nos centros, contribuindo para deteriorar os preços dos bens produzidos pela periferia.

 O dinamismo do desenvolvimento da periferia subordina-se ao dos centros, e a disparidade de elasticidade provoca vulnerabilidade externa. Ambos são manifestações da posição dependente da periferia no sistema, assim como a abundante oferta de trabalho expressa o caráter especializado e heterogêneo de sua estrutura produtiva. Esse caráter dependente se confirma quando Prebisch pergunta o que aconteceria se a periferia decidisse defender com firmeza os preços dos seus produtos de exportação. Ele conclui que, na maior parte dos casos, embora nem sempre, a diminuição da demanda dos centros ''será tão forte quanto seja necessário para conseguir comprimir as rendas no setor primário'' [1949:7], pois a demanda de bens primários é ''induzida'' pela de bens industriais.

 A indústria contém um elemento dinâmico que a produção primária não contém em grau comparável. Esta, como o nome indica, corresponde às primeiras etapas do processo produtivo, enquanto a indústria corresponde às etapas subsequentes. Por causa dessa posição relativa de ambas as atividades, o aumento da atividade industrial puxa a atividade primária, mas esta não tem o poder de estimular a atividade industrial. [1950:52]

 Essa posição subordinada das atividades primárias em relação às industriais no processo produtivo global

transfere irresistivelmente à periferia a tarefa de reduzir o valor da oferta [de modo a torná-la compatível com uma demanda que também diminui], de maneira que quanto mais tenham subido os salários [nos centros] na fase ascendente do ciclo e quanto mais rígidos eles forem na fase descendente, tanto maior será a pressão dos centros sobre a periferia, mediante a redução da demanda de produtos primários e a subsequente queda nos seus preços. [1950:63]

 Em síntese: por seu potencial técnico-científico e de acumulação de capital, os centros obtêm incrementos de produtividade muito superiores aos da periferia; especializam-se em produzir os bens cuja demanda é crescente em relação à renda; controlam o dinamismo econômico pela posição de liderança que a demanda de bens industriais tem em relação à de bens primários; contam com uma estrutura econômica e social que favorece a capacidade de seus agentes econômicos para reter renda, se comparados com os da periferia, por causa de maior homogeneidade, maior diversificação produtiva e melhor organização empresarial e sindical; finalmente, lançam mão de medidas diretas para proteger sua renda da competitividade externa. Por causa desse conjunto de condições,

os grandes centros industriais não só retêm o fruto da aplicação das inovações técnicas em suas economias, mas também estão em posição favorável para captar uma parte do que tem origem no progresso técnico da periferia. [1949:7]


IV. A condição periférica


 Quando refletimos sobre o diagnóstico que Prebisch apresenta, e que resumimos nas páginas anteriores, fica evidente que, para ele, há uma espécie de ''condição periférica'', caracterizada pela posição funcional, a estrutura econômica, o atraso na relação com os centros, a capacidade dinâmica e todas as consequências que decorrem disso. É importante reconhecer essa condição, pois ela mostra, de um lado, a situação que deve ser superada pela política de desenvolvimento e, de outro, o arsenal no qual se devem obter os principais meios de ação; se não a levamos em conta -- como estímulo, obstáculo ou meio --, corremos o grave risco de sugerir remédios inapropriados ou contraproducentes.

 A crítica fundamental que Prebisch formula contra a teoria convenciona é justamente aquela de que ela não leva em consideração as peculiaridades da condição periférica, atribuindo a si mesma uma validade universal que não possui. Essas peculiaridades obrigam a questionar os pressupostos e as políticas indicadas pela teoria tradicional, de modo a adaptá-los, transformá-los ou descartá-los, conforme seu grau de coerência com o objetivo de desenvolvimento.

 A condição periférica é una e múltipla ao mesmo tempo. É una, considerada como um conjunto de proposições gerais que definem uma condição ''típica'' a partir da análise de situações concretas variadas. Essa unidade conceitual responde a várias finalidades: apresenta com clareza os problemas centrais do desenvolvimento periférico, orienta a pesquisa e a ação e permite agregar vontades a favor da transformação desejada. Mas não se deve supor que ela descreva os países tal como existem. A partir dessa caracterização geral deve começar o estudo das múltiplas situações particulares.

 Prebisch previne reiteradamente contra a tentação de se atribuir à ''condição periférica'', definida genericamente, um falso sentido de universalidade. Esse conceito não é uma matriz construída para aprisionar a realidade, mas sim um esquema que nos liberta dos nós da teoria convencional e aponta algumas áreas-problema que constituem o núcleo da questão do desenvolvimento. A partir dela devem-se analisar situações concretas, pois só essa análise pode servir de base a uma política de desenvolvimento nacional, racionalmente concebida.

Apesar de esses países [os latino-americanos] terem tantos problemas semelhantes, não conseguimos sequer examiná-los e esclarecê-los em conjunto. Portanto, não se deve estranhar que os estudos sobre a economia dos países da América Latina frequentemente privilegiam o critério ou a experiência específica dos grandes centros da economia mundial. Deles não podemos esperar soluções que digam respeito diretamente a nós. Portanto, é pertinente apresentar com clareza o caso dos países latino-americanos, a fim de que seus interesses, aspirações e possibilidades, ressalvadas as diferenças e especificidades, se integrem de maneira adequada em fórmulas gerais de cooperação econômica internacional. [1949:1-2]




Bibliografia


Os seguintes textos de Prebisch foram usados neste trecho:

1949: ''El desarollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas''. A primeira versão apareceu em maio de 1949, mas está citado aqui de acordo com a sua versão publicada sem modificações no Bolletín Económico de la América Latina, v. VIII, n. 1, fevereiro de 1962, p. 1-24.

1950: ''Estudio económico de América Latina, 1949''. A primeira versão apareceu em 1950, mas está citado aqui de acordo com a versão publicada sob o título ''Interpretación del proceso de desarollo latinoamericano en 1949'', série comemorativa do XXV aniversário da CEPAL, Santigo do Chile, 1973.

1951: ''Problemas teóricos y prácticos del crecimiento económico''. A primeira versão apareceu em 1951, mas está citado aqui de acordo com a versão publicada na série comemorativa do XXV aniversário da CEPAL.


 Sugestões de leitura sobre o tema:


sábado, 12 de março de 2016

Poder mundial e dinheiro mundial

A função económica da máquina militar dos Estados Unidos no capitalismo global e os motivos ocultos da nova crise financeira


por Robert Kurz




 Desde 1989, quando se fala do "fim de uma era", na maior parte dos casos as pessoas referem-se à queda da RDA e do socialismo de Estado, na Rússia e na Europa Oriental; na sua sequência, ao fim da guerra-fria entre os blocos e ao desaparecimento das guerras "quentes" por procuração, nos pátios das traseiras do mercado mundial. Segundo os eufóricos da liberdade de então, a suposta vitória do capitalismo, paralelamente à generalização inevitável da "economia de mercado" e à constituição de um espaço económico unificado global segundo o padrão ocidental, deveria anunciar uma nova era de prosperidade global, desarmamento e paz. Esta expectativa revelou-se completamente ilusória. Nos últimos 17 anos desenvolveu-se realmente bem o contrário dos prognósticos interesseiros dos optimistas profissionais. A globalização trouxe, em levas sucessivas, cada vez mais zonas de pobreza em massa, guerras civis sem perspectiva, e um terrorismo pós-moderno neo-religioso que não se pode qualificar senão como bárbaro. O Ocidente, sob a direcção da última potência mundial, os Estados Unidos da América, reagiu a tudo isso com "guerras de ordenamento mundial" com igual falta de perspectivas e com uma precária administração da crise planetária (sobre isso vd. Kurz, 2003).


Pelos vistos, a interpretação dos acontecimentos pós-1989 foi meramente superficial e daí que não resultou. De facto, então não se desmoronou simples e isoladamente o bloco de Leste, como "sistema de penúria mal concebido", mas igual destino tiveram não poucos países de orientação pró-ocidental do chamado Terceiro Mundo. Mais ainda: mesmo nos países centrais ocidentais há muito tempo que o "milagre económico" do pós guerra tinha afrouxado, com as taxas de crescimento sempre a descer. Desde então constituiu-se um desemprego em massa estrutural, que vai de par com o subemprego e a precarização do trabalho. Sob a impressão destas tendências, poderia impor-se uma interpretação completamente diferente, a saber, que se trata de uma crise geral do moderno sistema mundial produtor de mercadorias, que não poupa os próprios centros capitalistas. Nesta perspectiva, o chamado socialismo real do bloco de Leste não constituiu uma alternativa histórica, mas um sistema de capitalismo de Estado de "modernização atrasada" na periferia do mercado mundial e sua parte integrante. Depois de, com o fim dos velhos regimes de desenvolvimento de diversas cores, os "elos mais fracos" deste sistema mundial terem sido os primeiros a romper-se, o processo de crise prossegue imparável no espaço da globalização directa.


A terceira revolução industrial é considerada, e não sem razão, a causa de longe mais profunda da nova crise mundial. Pela primeira vez na história do capitalismo os potenciais de racionalização ultrapassam as possibilidades de expansão dos mercados. Na concorrência de crise, o capital desfaz a sua própria "substância trabalho" (Marx). O reverso do desemprego estrutural em massa e do subemprego à escala mundial é, por isso, a fuga do capital monetário para a célebre economia das "bolhas financeiras", uma vez que os investimentos adicionais na economia real deixaram de ser rentáveis; é o que se depreende dos excessos de capacidade de produção a nível global (exemplarmente na indústria automóvel) e das batalhas especulativas das "fusões e aquisições" (vd. sobre isso Kurz 2005).


A interpretação aqui esboçada a traços largos no fim dos anos 90 era considerada com cabimento e até plausível, pelo menos junto de parte da crítica social de esquerda. Entretanto, as pessoas habituaram-se a que o capital pareça poder de algum modo viver, mesmo com uma acumulação simulada de bolhas financeiras ("jobless growth"). E a mais recente industrialização para exportação na Ásia, sobretudo na China, não apontará para uma nova era de crescimento real, só que já não na Europa? Simultaneamente as guerras de ordenamento mundial parecem reduzir-se, de forma muito banal, aos ordinários interesses do petróleo, pois ameaça faltar o "produto" para a cultura de combustão capitalista. Perante este pano de fundo, será que vem aí uma nova concorrência imperialista de blocos, por exemplo entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China? Com tais considerações, a esquerda regride em grande parte, com certas modificações, ao seu velho padrão de pensamento anterior à mudança de era. Existem, porém, boas razões para crer que esta reinterpretação fornece uma mera caricatura da realidade que, vista mais de perto, se apresenta de modo completamente diferente. Neste contexto é essencial o estatuto político-económico da última potência mundial, os Estados Unidos da América, no capitalismo de crise global.


A crise do dinheiro e do sistema monetário mundial


A crise mundial da terceira revolução industrial e da globalização das últimas duas décadas remonta, por assim dizer, a uma crise do dinheiro que já há muito tempo está a cozinhar em lume brando, nomeadamente desde a primeira guerra mundial. Até aí o carácter do dinheiro, como "mercadoria à parte" (equivalente geral) dotada de uma substância de valor autónoma, era reconhecido de forma quase unânime. Por isso as moedas dos grandes países capitalistas tinham de ter "cobertura" em reservas de ouro nos bancos centrais. O ouro era o verdadeiro dinheiro mundial, a "lingua franca" do mercado mundial; e a libra esterlina da potência mundial de então, a Grã-Bretanha, só pôde funcionar como moeda mundial graças ao seu "padrão-ouro". Contudo, as economias industriais de guerra das duas guerras mundiais e as forças produtivas da segunda revolução industrial (produção em massa fordista, linha de montagem, "automobilização") deixaram de poder ser expressas, mesmo numa circulação acelerada, na "vinculação ao ouro" do dinheiro, que por isso teve de ser cortada. Por outras palavras: a substância de valor do dinheiro, que se baseia na substância condensada de trabalho do metal nobre ouro, não podia ser mantida. Por isso a "dessubstancialização" se fez sentir no plano do dinheiro, equivalente geral como "mercadoria-rainha" e forma de aparência do capital, já muito mais cedo do que no plano da vulgar "ralé da mercadoria", onde ela só hoje se torna manifesta, na terceira revolução industrial. A consequência foi a "inflação secular", completamente desconhecida no século XIX, a ininterrupta desvalorização do dinheiro – ora galopante (hiperinflação), ora latente.


Apesar do efeito inflacionário, alguns teóricos fizeram da necessidade virtude, declarando desnecessária a vinculação do dinheiro ao ouro, e o dinheiro um mero símbolo, que apenas teria de ser garantido juridicamente pelo Estado (assim, por ex., já Knapp 1905). Mas a derrocada do mercado mundial e a crise da economia mundial nos anos 30 teve também algo a ver com a falta de um dinheiro mundial reconhecido, uma vez que tinham fracassado todas as tentativas de regressar à vinculação ao ouro na Europa. Quando em 1944, em Bretton Woods, se lançaram as bases de uma ordem económica e monetária do pós-guerra, a coberto da "Pax Americana", toda ela foi traçada para ter por base o dólar, como nova moeda de reserva e do comércio mundial. O fundamento para isso era não só a posição industrial incomparável dos EUA (sobretudo devido ao poderoso impulso ao crescimento da economia de guerra), mas também o facto de o dólar ser a única moeda convertível em ouro. No célebre Fort Knox estavam então guardados três quartos das reservas mundiais de ouro (cf. Kennedy 1933).


Só nesta base da ordem monetária mundial de Bretton Woods e de câmbios fixos em relação ao dólar se pôde desenvolver o "milagre económico" do pós-guerra, à sombra da guerra fria. Mas a recuperação da Europa e do Japão, no mercado mundial em expansão, começou logo a corroer a dominação económica dos Estados Unidos e, por conseguinte, a substância de ouro do dólar. Na medida em que a quota-parte na exportação de mercadorias e de capital se alterava em desfavor dos EUA, também o dólar perdia força e era cada vez mais trocado por ouro. As reservas de Fort Knox derretiam-se. Em 1973, o presidente Nixon viu-se obrigado a revogar a convertibilidade do dólar em ouro.


Assim chegou ao fim o sistema de Bretton Woods. As taxas de câmbio tiveram de ser liberalizadas, "flutuando" desde então conforme a situação nos mercados, o que constitui o ponto de partida para uma especulação monetária inteiramente nova com base nas oscilações das taxas de câmbio, com perigosas repercussões sobre a economia real.


Contudo, uma vez que não chegou a vir a grande catástrofe, apesar da crise monetária mundial dos anos 70, o problema do dinheiro e da moeda é considerado desde então empiricamente resolvido, mesmo entre os teóricos de esquerda: contrariamente à opinião de Marx, o carácter do dinheiro como "mercadoria à parte", com substância de valor própria, teria passado definitivamente à história (veja-se por exemplo Heinrich 2004). Mas a prática, de modo algum segura, de relações monetárias flexíveis no espaço de tempo historicamente curto de poucas décadas nada de essencial diz ainda sobre a sustentabilidade da nova constelação, tanto mais que as crises monetárias na periferia, nos anos 90 na Ásia e após a viragem do século na Argentina, apontam para um problema que continua latente.


Do dólar-ouro ao dólar-armamento


A crise monetária mundial dos anos 70 apenas terminou sem grandes prejuízos porque o dólar, apesar da perda da convertibilidade em ouro, conseguiu manter quase intacta a sua função de dinheiro mundial, isto é, como moeda de reserva e do comércio mundial, à falta de uma alternativa credível. Caso contrário, o resultado teria sido já então a repetição da catástrofe dos anos 30, elevada a um patamar superior, pois sem a função de um dinheiro mundial o mercado mundial tem de implodir. No entanto, a reconstituição do dólar como moeda mundial ocorreu sobre um fundamento completamente novo. Em lugar da substância de valor do dinheiro alicerçada em ouro surgia agora, efectivamente, uma espécie de garantia "política", contudo não apenas jurídico-formal, mas essencialmente militar. A moeda da potência mundial, ou "superpotência" do hemisfério ocidental, assumia agora a sua função de dinheiro mundial apenas em razão desta base de poder.


Aqui consumou-se um estranho processo recíproco: à medida que a posição económica dos EUA declinava no mercado mundial regular dos fluxos de mercadorias e de capital (um processo que se prolonga até hoje), crescia continuamente o "complexo militar-industrial", já assim designado pelo presidente Eisenhower. As exorbitantes taxas de crescimento da indústria de armamento na segunda guerra mundial prosseguiram, na forma de uma muito discutida "economia de guerra permanente". Perante este pano de fundo, também a terceira revolução industrial da microelectrónica saldou-se em sempre novos sistemas de armamento de alta tecnologia e abriu o caminho da industrialização para a electronicização da guerra. Com o desenvolvimento de sucessivas gerações de armas, os EUA foram-se colocando numa posição inalcançável para o resto do mundo, no que respeita ao armamento. O presidente Reagan ainda forçou mais esta tendência. A União Soviética, como potência oponente da "modernização atrasada", soçobrou, desde logo, devido às contradições internas de uma "economia capitalista planificada", mas foi também "armada até à morte" e não conseguiu aguentar a corrida à alta tecnologia, nem no plano económico, nem no plano militar.


O "factor extra-económico" da máquina militar dos EUA, cada vez mais sem concorrência, deu assim origem a uma tremenda potência económica. É verdade que houve nos EUA quem lançasse avisos contra a imparável caminhada para uma "economia de guerra permanente", na medida em que esta desencadeava uma avalanche de dívida estatal. Embora Reagan, estritamente neoliberal e monetarista, tivesse cortado brutalmente os programas sociais keynesianos dos seus antecessores, ele deixou explodir o "keynesianismo do armamento", contra a sua própria doutrina. Com isso o já de si inflado complexo militar-industrial tornou-se sob muitos aspectos o suporte do crescimento e a máquina de empregos (até em formas derivadas). A economia dos EUA dava sinais de força interna nominal, embora fosse cada vez mais fraca no mercado mundial.


A astronómica dívida ligada a este processo de militarização económica deixou de poder ser financiada com as poupanças próprias já nos anos 80. Mas a potência económica da máquina militar também se repercutiu nas relações externas. Era precisamente o poder militar dos EUA como "polícia mundial" que parecia oferecer um "porto seguro" aos mercados financeiros globais. Esta impressão iria ainda reforçar-se consideravelmente após a suposta vitória sobre o sistema contrário do Leste. O dólar conservou a sua função de dinheiro mundial ao metamorfosear-se de dólar-ouro em dólar-armamento. E o carácter estratégico das guerras de ordenamento mundial, nos anos 90 e após a viragem do século, no Próximo Oriente, nos Balcãs e no Afeganistão, consistia em primeira linha em perpetuar o mito do "porto seguro" e, com ele, o dólar como moeda mundial através da demonstração de capacidade de intervenção militar global. Nesta base, em última instância irracional, o capital monetário excedentário na terceira revolução industrial (já não susceptível de investimento real rentável) fluiu cada vez mais de todo o mundo para os EUA, financiando assim indirectamente a máquina militar e do armamento.


A maior bolha financeira de todos os tempos e o milagre do consumo dos Estados Unidos


O limite interno da valorização real do capital na terceira revolução industrial promoveu por todo o lado a fuga para a superstrutura do crédito e para uma economia de bolhas financeiras. Esta economia de crise do capital financeiro teve forçosamente que se concentrar no suposto "porto seguro" do espaço do dólar. Quanto mais capital monetário excedentário vagueava pelos mercados financeiros globais, tanto maior se tornava a força de sucção dos EUA para absorver estas torrentes monetárias. Deste modo se formou in Gods own country "a mãe de todas as bolhas financeiras". Através da venda de títulos do tesouro americanos em todo o mundo não só se financiou o boom do armamento endividado. Paralelamente a isso também inflaram nos EUA os mercados de acções nos anos 90 e os mercados imobiliários após a viragem do século. Assim se lançaram as bases de uma nova qualidade do endividamento.


Ao lado do complexo militar-industrial formou-se assim um segundo pilar de crescimento aparente, "irregular", da economia interna dos Estados Unidos. Em virtude da dispersão da propriedade das acções e do imobiliário, muito maior que na Europa, pôde colocar-se em marcha um paradoxal "milagre do consumo". Embora os salários reais, em média, tenham estagnado ou até regredido desde os anos 70 (Cf. Thurow 1996), o consumo tornou-se cada vez mais o suporte decisivo do crescimento. A causa profunda desse boom não era de modo algum o tão invocado "milagre do emprego". É que, além do emprego no complexo militar-industrial, por seu lado dependente do soro do endividamento estatal, criaram-se sobretudo empregos de miséria no sector dos serviços, a célebre "pobreza empregada". Em virtude da posição fraca dos EUA no mercado mundial, também o emprego no sector exportador tende a diminuir.


O boom do consumo alimenta-se, até hoje, não tanto de rendimentos salariais regulares como, e em primeiro lugar, das bolhas financeiras dos mercados de acções e do imobiliário. Os ganhos diferenciais, provenientes dos aumentos fictícios do valor dos respectivos títulos de propriedade, devido à sua ampla dispersão, reflectiram-se em milhões de casos de endividamento com cartões de crédito e créditos hipotecários, numa escala nunca antes vista. A garantia era constituída precisamente pelos preços acrescidos, primeiro das acções e depois do imobiliário. O ingresso maciço do capital monetário excedentário de todo o mundo para o suposto porto "seguro" do dólar foi encaminhado para financiar, não apenas o consumo armamentista endividado, mas igualmente o consumo privado endividado. Esta é a maravilhosa máquina do dinheiro que tem alimentado o milagre do consumo dos Estados Unidos.


O circuito do deficit do Pacífico e a conjuntura mundial


A fraqueza da economia real dos EUA no mercado mundial revelou-se num deficit da balança comercial que não parou de se avolumar. Em termos relativos, na economia interna da última potência mundial, dominada pelo complexo armamentista e pela prestação de serviços, foram sendo produzidas cada vez menos mercadorias industriais; em algumas áreas a regressão foi mesmo absoluta. A maior parte dos cidadãos americanos, que se puderam endividar com base no crescimento duradouro do preço das acções e dos imóveis, consumiam cada vez mais mercadorias produzidas noutros países. Assim foi impulsionado um circuito do deficit global, que se fez notar pela primeira vez nos anos 80, acelerou nos anos 90 e hoje começa a sobreaquecer. Se, em primeiro lugar, tinha sobretudo deslizado para negativo a balança comercial com o Japão, o deficit não tardou a crescer também face aos pequenos Estados asiáticos e face à Europa, para finalmente transbordar de forma incrível, no tráfego de mercadorias com os colossos Índia e China. Hoje quase já não existe uma zona industrial do mundo que não tenha saldo positivo no comércio com os EUA.


O reverso do endividamento monetário externo, através da absorção dos fluxos globais de capital, consiste por conseguinte em que, inversamente, também os fluxos excedentários globais de mercadorias são absorvidos. Por outras palavras: os consumidores americanos (Estado e privados) pedem emprestado o dinheiro com que pagam aos fornecedores a enchente de mercadorias. Deste modo, os EUA tornaram-se o buraco negro da economia mundial. No entanto, tal implica uma dupla dependência recíproca. Se os maravilhosos consumidores americanos não fossem, por assim dizer, consumindo heroicamente a produção excedentária de todo o mundo, a crise da economia mundial da terceira revolução industrial já há muito tempo se teria manifestado com todo o seu peso. Acresce que não se trata de um fluxo de mercadorias entre economias nacionais separadas, mas de movimentos no interior da globalização da economia empresarial. São sobretudo as grandes empresas americanas, além de japonesas e europeias, que usam a China como placa giratória das cadeias transnacionais de criação de valor, por causa das estruturas de baixos salários, e a partir daí fornecem os mercados dos EUA e doutros lugares. Os correspondentes investimentos limitam-se por isso às "zonas económicas de exportação" e nada têm a ver com um "desenvolvimento" económico nacional tradicional da China, da Índia etc.


A estrada de sentido único da exportação da Ásia sobre o Pacífico para os EUA transformou entretanto o circuito do deficit num volante que move toda a economia mundial. A indústria europeia não só fornece, como outras regiões do mercado mundial, uma parte dos seus excedentes aos EUA por via directa, como ao mesmo tempo exporta cada vez mais componentes de produção para a máquina trituradora da exportação asiática (sobretudo no sector da construção de máquinas). A famigerada "retoma" dos últimos anos deve-se quase exclusivamente a esta economia-vudu. É verdade que, periodicamente, há avisos para o perigo destes crescentes "desequilíbrios da economia mundial" sob a forma dos deficits externos acumulados dos EUA. Mas, uma vez que tudo de algum modo se tem passado bem há tanto tempo, na maior parte dos casos o alarme é desactivado logo a seguir.


O cenário da crise do crédito e do dólar que aí vem


Durante o ano de 2007, contudo, concentraram-se ameaçadoras nuvens negras no horizonte da economia mundial. Tal não podia deixar de acontecer: Está a esvaziar-se a bolha do imobiliário americano, principal combustível do consumo nos últimos anos, e os preços das casas estão a baixar a olhos vistos. Deste modo, os créditos hipotecários no sector "subprime" (devedores sem capital próprio digno de menção) começam a ficar em maus lençóis a uma escala maciça. A dimensão que a crise financeira crescente poderá assumir já se revelou em poucos meses: De repente, bancos e caixas de poupança de muitos países viram-se sob uma pressão maciça no sentido de amortizarem crédito mal parado, porque os títulos da dívida americana circulam à escala global. Mas isto foi apenas o começo. Em virtude dos ciclos de rotação do capital de crédito e do capital real, que muitas vezes se estendem ao longo de anos, a verdadeira dimensão da crise do crédito só se tornará visível nos anos de 2008 a 2010. Se, neste espaço de tempo, o consumo americano sofrer uma ruptura profunda, não só se tornará efectivo o revés nos mercados globais de acções, mas também ficará paralisado o circuito do deficit do Pacífico e, com ele, a conjuntura mundial. Ninguém pode prever com exactidão a sua dimensão, mas a crise ameaça ultrapassar todos os fenómenos de crise da terceira revolução industrial dos últimos 20 anos.


É como assobiar para espantar o medo, quando os comentadores económicos agora fingem esperar que a conjuntura interna, na União Europeia ou até na China, poderia de repente tornar-se "auto-sustentada" e substituir o consumo dos Estados Unidos, como sugadora das torrentes excedentárias de mercadorias. De onde haveria de vir o poder de compra nestas regiões, se ele não surgiu até agora, apesar do boom das exportações? Simultaneamente abre-se um duplo dilema no que diz respeito aos juros. Às crises asiáticas dos anos 90 e à derrocada da New Economy virtual a seguir a 2000 ainda se fez frente com uma corrida à baixa dos juros dos bancos centrais que inundou os mercados com dinheiro barato. É o que os mercados financeiros esperam agora de novo da reserva federal americana, e os outros bancos centrais deverão seguir. Mas, por um lado, uma nova enchente de dólares poderia despertar o potencial de inflação há muito latente na "inflação patrimonial" dos títulos de dívida, e fazer transitar para um estádio galopante a secular desvalorização do dinheiro, se se pretender alimentar desta maneira o moribundo consumo dos Estados Unidos. Por outro lado, está à vista que o afluxo do capital monetário excedentário aos EUA decairá se o Banco Central Europeu, perante uma inflação crescente, não estiver pelos ajustes e assim se anular a diferença dos juros entre os EUA e a União Europeia. A simultaneidade de depressão e inflação vai-se tornando uma possibilidade.


O dilema dos juros, como resultado da difusão por todo o mundo da crise do crédito dos Estados Unidos, começa também a pôr em causa a função do dólar como dinheiro mundial. Por detrás do problema está, em última instância, o gigantesco deficit externo acumulado, que clama por uma desvalorização drástica do dólar e uma igualmente drástica revalorização das moedas com excedentes de exportação. De facto, no passado o dólar já foi por diversas vezes desvalorizado de forma controlada, o que levou a que os países credores tivessem de pagar uma parte das dívidas dos Estados Unidos. Agora, porém, antevê-se uma queda descontrolada, que já começou face ao Euro, enquanto as moedas asiáticas ainda são mantidas artificialmente baixas. Se, porém, a crise do crédito se repercutir plenamente, também esta barreira será derrubada. Nessa altura chegará ao fim, não apenas a capacidade de financiamento do complexo militar industrial, mas também o mito do "porto seguro".


O lugar do dólar, porém, não pode ser ocupado por nenhum outro dinheiro mundial, ainda que haja muita propaganda a favor do Euro nesse sentido. O Euro não pode assumir o lugar do dólar porque não tem bases para isso, nem em ouro, nem em armamento. A crise do dinheiro mundial e o potencial de inflação a ela associado apontam para uma amadurecida crise do dinheiro em geral. É o que se esboça também na imparável subida do preço do ouro, com sucessivos novos recordes, que acompanha a crise monetária em formação: O carácter de mercadoria do dinheiro, com substância de valor própria, impõe-se na crise. O ouro, de simples matéria-prima, torna-se novamente no "verdadeiro" dinheiro, ou dinheiro mundial, mas as forças produtivas da terceira revolução industrial já não podem ser mediadas como movimento do mercado mundial com base no ouro. Seria como tentar esvaziar o oceano como uma colher de café em ouro. A situação do período entre as duas guerras ameaça regressar, mas num nível de desenvolvimento muito mais elevado.


Crise mundial, ideologia mundial e guerra civil mundial


O que se espera da crítica social emancipatória nesta situação de um limite interno histórico do capitalismo é a redefinição de socialismo, para lá das formas fetichistas da mercadoria, do dinheiro, do Estado nacional e das relações de género que lhes estão associadas. Porém, na medida em que a esquerda, em vez disso, regressa aos seus velhos padrões de interpretação e procura uma nova "força" imanente às novas constelações mundiais, susceptível de ser ocupada positivamente, ela própria ameaça tornar-se reaccionária. Nestas circunstâncias, a crítica do capitalismo converte-se muitas vezes em anti-americanismo e anti-semitismo aberto ou estrutural. As "formas de pensamento objectivas" (Marx) do fetiche capital, que incluem uma "inversão da realidade", constituem (se não forem destruídas) o fundamento para uma digestão ideológica da crise, como a que já no período entre as duas guerras levou a resultados devastadores. No contexto da globalização do capital, o resultado é uma ideologia mundial assassina. Causas e efeitos são invertidos: a crise do crédito surge, não como efeito do esgotamento da acumulação real, mas como resultado da "avidez do capital financeiro" (uma ideia desde há 200 anos ligada aos clichés anti-semitas); o papel dos Estados Unidos e do dólar-armamento surge, não como condição comum transversal a todo o capital globalizado, mas como opressão imperial sobre o resto do mundo.


O motivo desta inversão ideológica hoje é o desejo desesperado de se refugiar de novo nos tempos da prosperidade fordista e da regulação keynesiana. Neste âmbito afirma-se, mesmo entre a esquerda radical, uma opção no sentido de substituir "a versão americana, unilateral do Empire" (Hardt/Negri, 2004) por uma globalização "democrática" sob a direcção da União Europeia, e porventura com o Euro como nova moeda do comércio mundial e de reserva. Esta opção não só é completamente cega perante a crise, mas também ignora o contexto interno do capital mundial e o carácter da União Europeia. Também, de entre as ideias fantasmáticas de aliança deste reformismo mundial virtual, qual delas será a mais horripilante; por exemplo, quando se pretende incluir o regime da Gazprom e dos serviços secretos de Putin, ou a burocracia de exportação chinesa suportada em grande parte pelo investimento do capital transnacional, tal como a nada santa aliança entre o caudilhismo do petróleo de Chavez e o regime islamista anti-semita de Teerão.


Mesmo abstraindo do facto de que uma globalização centrada na Europa não valeria nem mais um chavo que uma globalização centrada nos Estados Unidos, ela nem sequer seria possível. Não se trata apenas de o Euro não conseguir substituir-se ao dólar-armamento em queda, mas a União europeia, por isso mesmo, também não está em posição de reverter a corrente do capital monetário excedentário, nem de absorver a produção excedentária global. A Rússia, a Venezuela e o Irão, cujas pretensões políticas contra o "satã americano" se nutrem apenas da explosão do preço do petróleo, estão na economia mundial numa dependência ainda maior deste papel paradoxal da economia americana. Se o volante do circuito do deficit do Pacífico parar e surgir uma depressão mundial, os regimes do petróleo, todos eles, serão os primeiros a ficar no fio da navalha.


A crise mundial da terceira revolução industrial, que vai amadurecendo e para cuja administração não há nenhum novo "modelo de regulação" à vista, certamente não vai simplesmente prosseguir o seu caminho económico. Na situação económica insuperável da nova constelação de crise global que se vislumbra, mais ainda que em anteriores rupturas na história da modernização, espreita o perigo de uma "fuga para a frente" irracional, em direcção à guerra mundial. Porém, no nível de desenvolvimento da globalização, esta já não pode ser nenhuma guerra entre blocos de poder, entre impérios nacionais, por uma "nova partilha do mundo". Haveria que falar antes de uma nova guerra civil mundial de tipo novo, tal como já se apresentou nas guerras de "desestatização" e de ordenamento mundial, desde a queda da União Soviética, que talvez não tenham passado dos seus prenúncios. Nunca a palavra de ordem "socialismo ou barbárie" teve tanta actualidade como hoje. Mas, simultaneamente, no final da história da modernização, o socialismo tem de ser reinventado.


Bibliografia


Hardt, Michael/Negri, Antonio (2004): Multitude. Krieg und Demokratie im Empire [Multitude. Guerra e Democracia no Império], Frankfurt/Nova Iorque

Heinrich, Michael (2004): Die Wissenschaft vom Wert [A Ciência do Valor], Münster

Kennedy, Paul (1993): In Vorbereitung auf das 21. Jahrhundert [A Preparação para o Século XXI], Frankfurt/Main

Knapp, Georg Friedrich (1905): Staatliche Theorie des Geldes [A Teoria Estatal do Dinheiro], Munique e Lípsia

Kurz, Robert (2003): Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung [A guerra de ordenamento mundial. O fim da soberania e as metamorfoses do imperialismo na era da globalização], Bad Honnef

Kurz, Robert (2005): Das Weltkapital. Globalisierung und innere Schranken des modernen warenproduzierenden Systems [O Capital Mundial. A Globalização e os limites internos do sistema produtor de mercadorias moderno], Berlim

Thurow, Lester (1996): Die Zukunft des Kapitalismus [O Futuro do Capitalismo], Düsseldorf/Munique

Nota póstuma: O texto que segue foi escrito em Novembro de 2007 para a revista de debates de esquerda "Widersprüch" (Zurique) e aí foi publicado no início de Janeiro [nº 53]. Sob o signo da crise financeira em curso e do mais recente crash bolsista, ele adquire uma actualidade insuspeitada.

Disponível em 
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz283.htm