quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Suprimir o trabalho 'abstrato' ou suprimir o próprio "trabalho"?


Crianças operárias do século XIX. 

 Quem leu o primeiro volume de O Capital sabe que Marx faz aí a afirmação de que o "trabalho" possui, na sociedade mercantil-capitalista, uma dupla dimensão: por um lado, ele é "trabalho concreto", isto é, uma atividade material e tecnicamente específica que define a materialidade do produto -- criando, portanto, valores de uso; por outro, ele é "trabalho abstrato", "dispêndio de nervo, músculo e cérebro" indiferenciado e que constitui a substância do "valor", a forma da riqueza numa sociedade de produtores mercantis, isto é, de sujeitos formalmente independentes que produzem visando o intercâmbio de seu produto por outros produtos e, mais recentemente, por dinheiro.

A idéia que fica daí é que o "trabalho abstrato" é social e historicamente específico, restrito à sociedade mercantil (sendo a sociedade capitalista uma sociedade mercantil mais desenvolvida), enquanto o "trabalho concreto" é universal e acompanha os seres humanos por natureza; tal ideia foi e é largamente reproduzida pelos marxistas -- os quais, se também comunistas (se é que é possível ser "marxista" sem ser comunista), reivindicavam e reivindicam a eliminação do "trabalho abstrato" pela eliminação da propriedade privada e pela substituição da produção mercantil por uma produção socialista, racional e conscientemente planejada.

Acredito, no entanto, de que essa "naturalização" feita por Marx e pelos marxistas do "trabalho" (concreto) é incoerente com as linhas gerais da crítica à economia política realizada pelo autor. Nos Grundrisse, por exemplo, Marx censura os economistas políticos clássicos afirmando que:

"se a forma determinada do capital é assim abstraída e é enfatizado só o conteúdo  [material da produção]..., naturalmente que nada é mais fácil do que demonstrar que o capital é uma condição necessária de toda a produção humana. A demonstração é feita justamente pela abstração das determinações específicas que fazem do capital um momento de uma fase histórica particularmente desenvolvida da produção humana."

 Assim, o "método" de abstrair da forma social específica em que a atividade produtiva toma sob o modo de produção capitalista é um procedimento equivocado, pois nunca há a atividade produtiva "em-si" ou "por si mesma", mas sempre a atividade produtiva mediada por certas relações sociais, por certa organização social.

E eis que isso nos leva um passo à frente na crítica da economia política, pois o caráter social e historicamente específico da atividade produtiva -- criadora de "valores de uso" -- no modo de produção capitalista não é simplesmente o fato de uma de suas dimensões, o "trabalho abstrato", ser o conteúdo do "valor", mas sim o fato de ser ela própria, enquanto "trabalho", uma imposição, uma atividade forçada, que significa sofrimento para o indivíduo negativamente condicionado enquanto "trabalhador". Vê-se isso, por exemplo, pela própria etimologia da palavra, que vê a origem de "trabalho" em "tripalium", um instrumento de tortura utilizado em escravos (que aliás eram, na Grécia Antiga, os encarregados da produção -- de maneira que os nobres podiam se dedicar à ciência, à arte, à filosofia, à poesia etc).

Assim, o comunismo não deve ser apenas o "movimento real" que elimina o "trabalho abstrato" e o "valor" econômico ao substituir a produção mercantil pela produção socialista, planejada visando a satisfação das necessidades humanas, mas também a progressiva libertação da humanidade em relação ao "trabalho", deixando a produção material por conta das máquinas e permitindo, assim, que as pessoas possam se ocupar com aquilo que realmente lhes dá prazer, que os caracteriza como pessoas, seres dotados de personalidade própria; permitindo, enfim, a libertação da humanidade e o início da História verdadeiramente humana.


Obs. Para uma análise da trajetória temporal do conceito de "trabalho" em Marx, sugiro ver o muito bom artigo de um camarada: A aporia do conceito de trabalho em Marx


sábado, 6 de agosto de 2016

Subdesenvolvimento e revolução



 Camaradas, publico abaixo o texto ''Subdesarollo y revolución'' (1969) do grande (e infelizmente falecido) cientista social brasileiro Ruy Mauro Marini, que foi um dos fundadores da teoria marxista da dependência e também um grande lutador social. Um documentário resumo das ideias de Marini pode ser visto aqui.




Subdesenvolvimento e revolução


 A história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desenvolvimento do sistema capitalista mundial. Seu estudo é indispensável para quem deseje compreender a situação que este sistema enfrenta atualmente e as perspectivas que a ele se abrem. Inversamente, apenas a compreensão segura da evolução da economia capitalista mundial e dos mecanismos que a caracterizam proporciona o marco adequado para situar e analisar a problemática da América Latina. As simplificações nas quais, por sua limitação natural, este trabalho possa incorrer não devem fazer o leitor esquecer esta premissa fundamental.

A vinculação ao mercado mundial

 
A América Latina surge como tal ao se incorporar no sistema capitalista em formação, isto é, no momento da expansão mercantilista europeia do século XVI. A decadência dos países ibéricos, que primeiro se apossaram dos territórios americanos, engendra aqui situações conflitivas, derivadas dos avanços das demais potências europeias. Mas é a Inglaterra, mediante sua dominação imposta sobre Portugal e Espanha, que finalmente prevalece no controle e na exploração desses territórios.

 No decorrer dos três primeiros quartos do século XIX, e concomitantemente à afirmação definitiva do capitalismo industrial na Europa - principalmente na Inglaterra -, a região latino-americana é chamada a uma participação mais ativa no mercado mundial, como produtora de matérias-primas e como consumidora de uma parte da produção leve europeia. A ruptura do monopólio colonial ibérico se torna então uma necessidade e, com isso, desencadeia-se o processo de independência política, cujo ciclo termina praticamente ao final do primeiro quarto do século XIX, dando como resultado as fronteiras nacionais em geral ainda vigentes em nossos dias. A partir desse momento se dá a integração dinâmica dos novos países ao mercado mundial, assumindo duas modalidades que correspondem às condições reais de cada país para realizar tal integração e às transformações que esta vai sofrendo em função do avanço da industrialização nos países centrais. [1]

 Assim, num primeiro momento, os países que respondem mais prontamente às exigências da demanda internacional são aqueles que apresentam certa infraestrutura econômica, desenvolvida na fase colonial, e que se mostram capazes de criar condições políticas relativamente estáveis. Chile, Brasil e, pouco depois, Argentina aumentam sensivelmente neste período seu comércio com as metrópoles europeias, baseado na exportação de alimentos e matérias-primas como cereais, cobre, açúcar, café, carnes, couro e lã. Paralelamente, utilizando inclusive o crédito oferecido pela Inglaterra, aumentam suas importações de bens de consumo não duráveis e dão início à construção de um sistema de transporte, através de obras portuárias e das primeiras ferrovias, abrindo assim um mercado complementar à incipiente produção pesada europeia.

 A partir de 1875 certas mudanças no capitalismo internacional se fazem sentir. Novas potências se projetam para o exterior, em especial a Alemanha e os Estados Unidos, e este último país começa a instaurar uma política própria no continente americano, muitas vezes em choque com os interesses britânicos. No próprio campo do comércio, a influência estadunidense é considerável, tornando perceptível em alguns países, principalmente no Brasil, a tendência a direcionar suas exportações para a nova potência do norte. [2]

 Nos países centrais, por sua vez, aumenta o desenvolvimento da indústria pesada, com a tecnologia que lhe corresponde, e a economia se orienta a uma maior concentração das unidades produtivas, dando lugar ao surgimento dos monopólios. Esses traços, gerados pela acumulação capitalista realizada nas etapas anteriores, aceleram o processo e forçam o capital a buscar campos de aplicação fora das fronteiras nacionais, mediante empréstimos públicos e privados, financiamentos, aplicação em ações e, em menor medida, investimentos diretos. Portanto, diferentemente dos créditos externos utilizados antes e que correspondiam a operações comerciais compensatórias, a função que assume agora o capital estrangeiro na América Latina é subtrair abertamente uma parte da mais-valia criada dentro de cada economia nacional, o que aumenta a concentração do capital nas economias centrais e alimenta o processo de expansão imperialista.

 Em parte pelo efeito multiplicador da infraestrutura de transportes e pelo afluxo de capital estrangeiro, mas principalmente devido à aceleração do processo de industrialização e urbanização nos países centrais, que infla a demanda mundial de matérias-primas e alimentos, a economia exportadora latino-americana conhece um auge sem precedentes. Este auge está, no entanto, marcado por um aprofundamento de sua dependência frente aos países industriais, a tal ponto que os novos países que se vinculam de maneira dinâmica ao mercado mundial desenvolvem uma modalidade particular de integração.

 Efetivamente, o desenvolvimento do principal setor de exportação tende, nos países dependentes, a ser assegurado pelo capital estrangeiro através de investimentos diretos, deixando às classes dominantes nacionais o controle de atividades secundárias de exportação ou a exploração do mercado interno. [3] Mesmo os países que haviam se integrado de forma dinâmica à economia capitalista em sua fase anterior veem seu principal produto de exportação cair nas mãos do capital estrangeiro - como é o caso do Chile, primeiro com o salitre e logo com o cobre, ou da Argentina com os frigoríficos e do Brasil com o controle da exportação de café.

 Ainda que não transforme fundamentalmente o princípio sobre o qual se assenta a economia dependente latino-americana, esse processo tem implicações de certo alcance. De fato, em contraste com o que ocorre nos países capitalistas centrais, onde a atividade econômica está subordinada à relação existente entre as taxas internas de mais-valia e de investimento, nos países dependentes o mecanismo econômico básico provém da relação exportação-importação, de modo que, mesmo que seja obtida no interior da economia, a mais-valia se realiza na esfera do mercado externo, mediante a atividade de exportação, e se traduz em ren­das que se aplicam, em sua maior parte, nas importações. A diferença entre o valor das exportações e das importações, ou seja, o excedente passível de ser investido, sofre, portanto, a ação direta de fatores externos à economia nacional.

 Contudo, nos países em que a atividade principal de exportação está sob o controle das classes dominantes locais existe uma certa autonomia sobre as decisões de investimento - condicionada, evidentemente, pela dependência da economia frente ao mercado mundial. Em geral, o excedente é aplicado no setor mais rentável da economia, que é precisamente a atividade de exportação que mais excedente produziu (o que explica a afirmação sobre a tendência à monoprodução); porém, para atender o consumo das camadas da população que não têm acesso aos bens importados, ou então como defesa contra as crises cíclicas que afetam regularmente as economias centrais, parte do excedente se orienta também para atividades vinculadas ao mercado interno. Por isso, em alguns países - como a Argentina, o Brasil ou o Uruguai -, ao lado de uma indústria vinculada essencialmente à exportação (frigorífico, moinhos etc.), desenvolve-se uma indústria leve que produz para o mercado interno, indo além do nível artesanal e dando lugar, progressivamente, à implementação de núcleos fabris de relativa importância.

 E diferente a situação dos países em que a principal atividade de exportação se encontra nas mãos de capitalistas estrangeiros. A mais-valia colhida na esfera do comércio mundial pertence a capitalistas estrangeiros, e apenas uma parte dela - cuja magnitude varia de acordo com o poder de barganha de cada setor - passa à economia nacional através de tributos e impostos pagos ao Estado. [4] Daqui se derivam duas consequências: redistribuída às classes dominantes locais - que por isso disputam o controle do Estado -, essa parte da mais-valia se converte em demanda de bens importados, reduzindo consideravelmente o excedente passível de ser reinvestido; do mesmo modo, a parte da mais-valia que permanece em mãos do capitalista estrangeiro somente é investida no país se as condições da economia central assim exigirem. Partes substanciais da mais-valia são subtraídas do país através da exportação de lucros e, nos ciclos de depressão na metrópole, ela é transferida integralmente.

 Deste modo, com maior ou menor grau de dependência, a economia que se cria nos países latino-americanos, ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte, é uma economia exportadora, especializada na produção de alguns poucos bens primários. Uma parte variável da mais-valia que aqui se produz é drenada para as economias centrais, pela estrutura de preços vigente no mercado mundial, pelas práticas financeiras impostas por essas economias, ou pela da ação direta dos investidores estrangeiros no campo da produção.

 As classes dominantes locais tratam de se ressarcir desta perda aumentando o valor absoluto da mais-valia criada pelos trabalhadores agrícolas ou mineiros, submetendo-os a um processo de superexploração. A superexploração do trabalho constitui, portanto, o princípio fundamental da economia subdesenvolvida, com tudo que isso implica em matéria de baixos salários, falta de oportunidades de emprego, analfabetismo, subnutrição e repressão policial.

 A integração imperialista dos sistemas de produção

 A consolidação do imperialismo como forma dominante do capitalismo internacional não ocorre de forma tranquila. No curso de sua evolução terá que passar por um período extremamente difícil, que se abre com a guerra de partilha colonial de 1914, avança com a desorganização imposta ao mercado mundial pela crise de 1929 e culmina com a guerra pela hegemonia mundial de 1939. A economia que emerge deste processo re-estabelece a tendência integradora do imperialismo, mas agora em nível mais alto do que o anterior, na medida em que consolida definitivamente a integração na esfera do mercado e impulsiona a etapa da integração dos sistemas de produção compreendidos em seu raio de ação.
 Em seu aspecto mais global, este processo dá lugar a tendências contraditórias. Por um lado, reforça o sistema imperialista, conformando um centro hegemônico de poder - os Estados Unidos - que impulsiona e coordena a integração, garantindo-a com seu poder militar. Por outro lado, conduz ao surgimento de um campo de forças opostas; o campo socialista, que nasce e se desenvolve no fogo dos conflitos engendrados pela própria integra­ção imperialista.

 Dada a limitação deste ensaio à análise do que acontece no interior do sistema imperialista, não podemos aprofundar o estudo dos fenômenos específicos que se verificam nas economias centrais. Assinalemos apenas que o processo de integração se acompanha de uma expansão acelerada do setor de bens de capital, particularmente notável nas indústrias que, dentro deste setor, encontram-se vinculadas à produção bélica. Paralelamente ocorre uma hipertrofia do aparelho estatal, que se converte no principal agente de produção e consumo da economia, especialmente no que se refere à indústria de guerra.

 Se bem é certo que a estatização e a militarização imperialistas se realizam em função do campo socialista, também é certo que obedecem à própria dinâmica do sistema e expressam os mecanismos básicos que o regem. Em última instância, esta dinâmica e estes mecanismos se referem à acumulação de capital no interior do sistema, que tende a concentrar - por meio da superexploração  do trabalho nas economias periféricas - partes sempre crescentes da mais-valia nos centros integradores. O aumento do excedente passível de ser investido que estes centros dispõem, por muito que seja malgasto em atividades não produtivas - como a indústria bélica e a publicidade -, acarreta um aumento constante dos investimentos diretos nas economias periféricas, através dos quais se realiza progressivamente a integração do sistema produtivo destas economias ao sistema do centro integrador.

 Este processo se coliga com o crescimento e a diversificação do sistema periférico. Por certo, a crise do mercado imperialista, que estoura na segunda década do século XX, tem como mais importante consequência a inviabilização da antiga forma de vinculação que antes se impunha na América Latina - a forma da economia primário-exportadora. Isso se manifesta como uma tendência permanente, que não se limita apenas aos períodos de retração do mercado mundial; pelo contrário: devido ao surgimento de novas regiões produtoras (impelido pela expansão imperialista) e ao desenvolvimento de produções similares ou substitutos artificiais nas próprias economias centrais, constantemente se reduzem as possibilidades de comércio da América Latina, ao mesmo tempo em que se reduzem os termos de troca.

 A crise do setor externo, representada pelas restrições às exportações e pelas consequentes dificuldades para satisfazer o consumo interno através das importações, exigia uma mudança na atividade econômica da região. Assim, a industrialização via substituição de importações se impôs, em linhas gerais, em todos os países latino-americanos, conforme as possibilidades reais de seus respectivos mercados internos e de acordo com o grau de desenvolvimento alcançado na etapa anterior. Desde 1920 até o início dos anos 1950, muitos países se lançam por esse caminho, e alguns, como a Argentina, o Brasil e o México, chegam a criar uma indústria leve capaz de satisfazer no essencial a demanda interna de bens de consumo não duráveis.

 O fato que mais chama a atenção é o caráter relativamente pacífico que o trânsito da economia agrária para economia industrial assume na América Latina, em contraste com o que ocorreu na Europa. Isto fez com que muitos estudiosos mantivessem equivocadamente a tese de que a revolução burguesa latino-americana ainda está por se realizar. Ainda que fosse correto dizer que a revolução burguesa não se concretizou na América Latina segundo os cânones europeus, este argumento é enganoso, pois não considera adequadamente as condições objetivas dentro das quais se desenvolveu a industrialização latino-americana.

 É preciso lembrar, por certo, que a indústria que aqui se desenvolveu no século XIX tem um papel complementar ao setor de exportação. Somente em alguns países se gestou uma indústria de bens de consumo de base marcadamente artesanal, estimulada pela crise cíclica do mercado mundial e pelo crescimento da população urbana, que era constituída em sua maior parte por massas com baixo poder aquisitivo.

 No primeiro caso, os interesses da indústria coincidem rigorosamente com os do setor agrário-mercantil e seu desdobramento não causa uma diferenciação efetiva no interior das classes dominantes. No segundo, a classe industrial, que se inclui entre as classes médias urbanas, é formada, em geral, por imigrantes, os quais, ao não estarem integrados plenamente na sociedade, não chegam a participar ativamente nos choques de interesses que ali se verificam. Oferecerão, porém, um suporte real para a ideologia da classe média que então se desenvolve - protecionista no plano econômico e liberal na esfera política - e que se afirmará apenas onde alguns setores dominantes, entrando em conflito com os grupos mais privilegiados ou tendo que enfrentar a concorrência externa, tornam-se seu porta-voz. [5]

 De qualquer forma, a existência desse setor industrial dedicado ao mercado interno gera a base objetiva para uma transformação da atividade econômica quando ocorre a crise do mercado mundial. A restrição das importações abre novas possibilidades de crescimento, com vistas a atender a demanda interna insatisfeita. Por outro lado, esse setor irá se beneficiar com o excedente econômico produzido na atividade exportadora, tanto pela diminuição das oportunidades de investimento, quanto pela tendência desse excedente fluir para a indústria através do sistema bancário.

 O eixo do problema reside neste ponto. O setor exportador soube se defender da conjuntura de depressão vigente no mercado mundial, adotando políticas de defesa do emprego expressas na compra de parte da produção e na formação de reservas pelo Estado (como ocorre com o café, no Brasil), além de estabelecer acordos comerciais desvantajosos, que garantiam, entretanto, o escoamento da produção (por exemplo, o acordo Roca-Runciman, assinado pela Argentina e Inglaterra). Nessas condições, o setor exportador mantinha sua atividade e, de maneira correlata, devido às dificuldades para importar, exercia uma pressão estimulante sobre a oferta interna, criando a demanda efetiva que a indústria trataria de satisfazer.

 É este mecanismo que explica a possibilidade de um pacto em benefício mútuo entre a burguesia agrário-mercantil e a burguesia industrial ascendente, a despeito de alguns eventuais desajustes em suas relações. O Estado que assim se estabelece é um Estado de compromisso, que reflete a complementariedade objetiva que cimentava suas relações. As tensões se tornaram mais graves somente naqueles países onde o setor exportador, controlado diretamente pelo capital estrangeiro, não dispunha das condições necessárias para mudar sua orientação, o que deu lugar a conflitos radicais que terminaram, porém, por conduzir a uma situação de repressão imposta pelas antigas classes dominantes, uma situação que se traduziu em relativa estagnação econômica.

 A luta pelo desenvolvimento capitalista autônomo

 O pacto estabelecido entre a burguesia agroexportadora e a burguesia industrial expressava uma cooperação antagônica e não excluía, portanto, o conflito de interesses no interior da coalizão dominante. As divergências sobre a política cambial e de crédito, as tentativas constantes da burguesia industrial de canalizar para si o excedente gerado no setor exportador, e seu propósito de assegurar através do Estado o desenvolvimento dos setores básicos foram motivos de conflitos interburgueses constantes, que se manifestaram numa instabilidade política superficial, sem nunca colocar em xeque, de fato, as próprias bases do poder. Essas tensões resultavam, em última instância, dos movimentos do polo econômico vinculado ao mercado interno, em sua progressiva busca por se libertar da dependência do polo externo e impor seu predomínio. A aceleração que, durante a Segunda Guerra Mundial, produz-se no processo de industrialização latino-americano - e que lança novos países, como a Venezuela, ao caminho percorrido desde os anos 1930 pela Argentina, Brasil e México - reforça consideravelmente o polo interno e cria as condições para uma luta mais aberta pelo predomínio dentro da coalizão dominante. Nesta luta, a burguesia industrial lançará mão da pressão das massas urbanas, que haviam aumentado consideravelmente no período anterior, nos marcos de um jogo político normalmente conhecido como “populismo”. Seu fruto será o estabelecimento de regimes de tipo bonapartista, cujo exemplo mais claro é o governo de Juan Domingo Perón na Argentina.

 Historicamente, e do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, esta situação corresponde ao fim da etapa da industrialização substitutiva de bens de consumo não-duráveis, e leva à necessidade de implementar uma indústria pesada, produtora de bens intermediários, de consumo durável e de capital. Num primeiro momento, a burguesia industrial toma consciência desta situação pelo esgotamento relativo da expansão da indústria leve no mercado interno. Isto conduz a burguesia industrial a tentar ampliar a escala do mercado, o que é feito através da abertura de frentes externas - política seguida incialmente por Perón -, ou através da dinamização do próprio mercado interno - mediante políticas de redistribuição da renda, que vão desde o aumento dos salários até a proposta de uma reforma agrária (como ocorreu, em parte, com Perón, e mais fortemente com Vargas, em seu segundo período de governo, entre 1950 e 1954). No entanto, o bloqueio enfrentado pela indústria leve para sua expansão, junto às dificuldades de importar os bens intermediá­rios e os equipamentos necessários, levam a burguesia a encarar a segunda etapa do processo de industrialização, ou seja, a criação de uma indústria pesada.

 Na medida em que isso se combina com a exigência de ampliar o mercado para a indústria leve e demanda um maior excedente de capital para investir, faz-se necessário aumentar as transferências de capital do setor exportador e instaurar barreiras alfandegárias que defendam o mercado nacional. Assim, a burguesia se choca simultaneamente com a classe latifundiária-mercantil e com os trustes internacionais, aos quais a economia está conectada pelas atividades de importação e exportação.

 O bonapartismo se apresenta, nesta perspectiva, como o recurso político utilizado pela burguesia para enfrentar seus adversários. Fincando-se nas massas populares urbanas - seduzidas pela fraseologia populista e nacionalista e, mais concretamente, pelas tentativas de redistribuição da renda -, a burguesia procura erigir um novo esquema de poder, no qual, mediante o apoio das classes médias e do proletariado, e sem romper o esquema de colaboração vigente, seja capaz de se sobrepor às antigas classes latifundiária e mercantil. Devido às implicações nas relações econômicas com o centro imperialista hegemônico, esse processo tende a se combinar com a busca de fórmulas capazes de promover o desenvolvimento capitalista autônomo.

 Convém aqui ressaltar que essas mudanças na América Latina se tornam visíveis no mesmo momento em que, reorganizado o mercado mundial pela hegemonia dos Estados Unidos, o imperialismo afirma sua tendência à integração dos sistemas de produção. Esta integração é movida por duas razões fundamentais, sendo a primeira relacionada com o avanço da concentração de capital em escala mundial, o que deposita nas mãos das grandes companhias internacionais uma superabundância de recursos passíveis de ser investidos, que necessitam buscar novos campos de aplicação no exterior. A tendência declinante do mercado de matérias-primas e o desenvolvimento de um setor industrial vinculado ao mercado interno nas economias periféricas durante a fase de desorganização da economia mundial fizeram com que este setor atraísse capital estrangeiro em busca de oportunidades de investimento.

 A segunda razão da integração dos sistemas de produção é dada pelo grande desenvolvimento do setor de bens de capital nas economias centrais, acompanhado de uma aceleração considerável do progresso tecnológico. Isto fez com que, por um lado, os tipos de equipamentos produzidos, sempre mais sofisticados, devessem ser aplicados em atividades industriais mais elaboradas nos países periféricos, existindo interesse, por parte dos países centrais, de impulsionar ali o processo de industrialização. Por outro lado, na medida em que o ritmo do progresso técnico reduziu, nos países centrais, o prazo de reposição do capital fixo - que passou de uma média de oito anos para quatro anos [6] -, surgiu a necessidade de exportar para a periferia os equipamentos e má­quinas que se tornavam obsoletos e ainda não tinham sido totalmente amortizados.

 Assim, no momento em que as burguesias nacionais dos pa­ íses latino-americanos consideram conveniente desenvolver seu próprio setor de bens de capital, topam com o assédio do capital estrangeiro, que as pressiona para penetrar na economia periférica e implementar este setor. É natural, portanto, que, na busca por defender sua mais-valia e seu próprio campo de investimento - e vale lembrar que o campo representado pela indústria leve dava sinais de esgotamento -, a primeira reação dessas burguesias tenha sido a resistência ao assédio, formulando uma ideologia nacionalista orientada para a definição de um modelo de desenvolvimento capitalista autônomo. Mas também se compreende que, junto ao conflito já existente com as antigas classes dominantes internas, a abertura dessa segunda frente de luta tenha conduzido o conjunto da política burguesa ao fracasso.

O fracasso da burguesia

 
A causa fundamental deste fracasso se deve, em última instância, à impossibilidade da indústria se sobrepor ao condicionamento que o setor externo lhe impunha desde seus primeiros passos. Suprindo a demanda criada pelas classes ricas e utilizando tecnologia importada dos países centrais - cuja principal característica é poupar mão de obra -, a indústria latino-americana se deparou com um mercado reduzido, e tratava de compensá-lo através do uso abusivo da relação entre preços e salários. Isso era possível precisamente porque, ao mesmo tempo em que empregava uma tecnologia poupadora de mão de obra, a indústria se via diante de uma oferta de trabalho em constante expansão, o que permitia fixar os salários no seu nível mais baixo. Em contrapartida, o crescimento do mercado era extremamente lento, compensado apenas com a alta constante dos preços, isto é, com a inflação.

 
Quando se coloca o problema da criação de uma indústria pesada, a burguesia industrial se inclina inicialmente, como já vimos, para a reformulação desse esquema. Neste sentido, trata de mobilizar instrumentos capazes de ampliar a escala do mercado e procura acelerar a transferência do excedente criado pelas exportações em direção ao setor industrial. No afã por ampliar sua mais-valia relativa - aproveitando-se da crescente oferta mundial de equipamentos e maquinarias no pós-guerra -, acaba por se focar em medidas mais imediatas, tendentes a flexibilizar a curto prazo a capacidade de importar.

 Pois bem, vimos que desde os anos 1920 a capacidade para importar se deteriorava constantemente. Para elevar o montante de divisas disponíveis para importação de equipamentos e bens intermediários, não sobra outra alternativa à burguesia industrial do que ceder ao setor agroexportador, dando-lhe facilidades e incentivos. E para fazê-lo sem limitar a acumulação de capital necessário para enfrentar a segunda etapa da industrialização, deve descarregar sobre as massas de trabalhadores da cidade e do campo o esforço de capitalização, com o que afirma mais uma vez o princípio fundamental do sistema subdesenvolvido: a superexploração do trabalho.

 Este fenômeno - claramente expresso na aceleração da inflação e nas políticas de “estabilização”, bem como na renúncia a realizar uma reforma agrária efetiva - tem como consequência a ruptura da base em que se apoiava a política bonapartista. Ao consentir com as antigas classes dominantes, a burguesia industrial teve que abandonar sua fraseologia revolucionária, deixando de lado também o tema das reformas estruturais e as políticas de redistribuição da renda. Com isso se distanciou das aspirações das grandes massas e perdeu a possibilidade de manter com elas uma aliança tática.

 O processo se completou com a renúncia da burguesia a levar a cabo uma política de desenvolvimento autônomo. O assédio dos capitais estrangeiros, que se intensifica nos anos 1950, coincide com a dificuldade das economias latino-americanas em obter uma flexibilização de sua capacidade de importar mediante a expansão das exportações tradicionais (dificuldades especialmente sentidas ao terminar a Guerra da Coréia). Como vimos, as companhias estrangeiras dispunham de máquinas e equipamentos obsoletos e não amortizados nas metrópoles, que representavam um adiantamento efetivo no nível tecnológico imperante nos países latino-americanos. A entrada desses capitais - sob a forma de investimentos diretos e, cada vez mais, em associação com empresas locais - constituía uma solução conveniente para as duas partes: para o investidor estrangeiro sua maquinaria obsoleta permitiria lucros similares aos que poderiam ser obtidos com um equipamento mais moderno em seu país de origem, em virtude do preço mais baixo da mão de obra; e para a empresa local se abria a possibilidade de conseguir uma mais-valia extraordinária com a nova maquinaria. 

 Desta forma, a burguesia industrial latino-americana passa do ideal de um desenvolvimento autônomo para uma integração direta com os capitais imperialistas, dando lugar a um novo tipo de dependência, muito mais radical que a anterior. O mecanismo da associação de capitais é a forma que consagra esta integração, que não apenas desnacionaliza definitivamente a burguesia local, como também, entrelaçada à diminuição relativa do emprego de mão de obra própria do setor secundário latino-americano, consolida a prática abusiva de preços como meio para compensar a redução concomitante do mercado, tendo em vista que os preços se fixam segundo o custo de produção das empresas tecnologicamente mais atrasadas. O desenvolvimento capitalista integrado reforça o divórcio entre a burguesia e as massas populares, intensificando a superexploração a que estas estão submetidas e negando-lhes sua reivindicação mais elementar: o direito ao trabalho.

 A coincidência entre essas duas tendências - o abandono da política bonapartista e das aspirações pelo desenvolvimento autônomo - leva à queda dos regimes liberal-democráticos que vinham tentando se afirmar desde o pós-guerra e conduz à instauração de ditaduras tecnocrático-militares. Isso se soma à acentuação do papel dirigente do Estado e ao aumento considerável dos gastos militares, que vão se tornando, em escala crescente, parte da demanda de uma oferta industrial que não pode se basear na expansão do consumo popular. Com as deformações de escalas inerentes a esse processo, o imperialismo reproduz nas economias periféricas da América Latina os mesmos traços fundamentais consolidados nas economias centrais, em sua transi­ção para a integração dos sistemas de produção.

O desenvolvimento capitalista integrado

 
Nos marcos da dialética do desenvolvimento capitalista mundial, o capitalismo latino-americano reproduziu as leis gerais que regem o sistema em seu conjunto, mas, em sua especificidade, acentuou-as até o limite. A superexploração do trabalho em que se funda o conduziu finalmente a uma situação caracterizada pelo corte radical entre as tendências inerentes ao sistema - e, portanto, entre os interesses das classes por ele beneficiadas - e as necessidades mais básicas das grandes massas, que se manifestam em suas reivindicações por trabalho e consumo. A lei geral da acumulação capitalista, que implica a concentração da riqueza num polo da sociedade e o pauperismo absoluto da grande maioria do povo, se expressa aqui com toda brutalidade, colocando na ordem do dia a exigência de formular e praticar uma política revolucionária, de luta pela socialismo.

 
Seria ingênuo, porém, acreditar que o êxito desta política está inscrito na ordem natural das coisas e que se deriva necessariamente da irracionalidade cada dia mais evidente da organização econômica imposta pelo capitalismo. Se não tomarmos consciência da situação que atravessamos e não a contestarmos com uma ação sistemática e radical, nós, os povos do continente, corremos o risco de seguir perambulando durante um período imprevisí­vel nas sombras do escravismo e do embrutecimento. Isto é tanto mais perigoso pois o sistema já se mobiliza, seja para promover a eliminação física de populações inteiras (através, por exemplo, de técnicas de esterilização), seja para organizar um esquema econô­mico e político que possa funcionar como instrumento efetivo de contenção das forças revolucionárias emergentes.

 
Neste esquema, os atuais projetos de integração regional e a ditadura aberta de classe representada pelos regimes tecnocrático-militares desempenham um papel preponderante. A integração da economia se estabelece, de fato, como uma forma de levar ao auge, na América Latina, a integração imperialista dos sistemas de produção, no quadro de uma situação econômica marcada por uma capacidade potencial crescente da oferta e uma restrição sistemática das possibilidades de consumo. Esta situação, diretamente relacionada à difusão de tecnologias que economizam mão de obra numa estrutura de produção profundamente monopolista, conduziu à formação de ilhas caracterizadas por um relativo desenvolvimento industrial e urbano e dispersas entre grandes áreas rurais. Na medida em que a extrema concentra­ção da propriedade e da renda freia o desenvolvimento das áreas rurais e das próprias ilhas industriais, não se pensou em nada melhor que interligar estas ilhas e, voltando as costas às famintas massas camponesas, integrá-las num sistema mais ou menos coerente.

 É evidente que isto impõe um novo esquema de divisão internacional do trabalho, afetando não apenas as relações entre os países latino-americanos e os centros de dominação imperialista, mas também as relações daqueles entre si. No primeiro caso, são transferidas a esses países certas etapas inferiores do processo de produção, reservando as etapas mais avançadas e o controle da tecnologia corresponde aos centros imperialistas (como a produção de computadores, de conjuntos automatizados e de energia nuclear). Cada avanço da indústria latino-americana afirmará, portanto, com maior força, sua dependência econômica e tecnológica frente aos centros imperialistas. No segundo caso, se estabelecem níveis ou hierarquias entre os países da região, segundo os ramos de produção que se desenvolveram ou estão em condições de se desenvolver, negando aos demais o acesso a ditos processos de produção para torná-los simples mercados consumidores. As características próprias do sistema fazem com que esta tentativa de racionalizar a divisão do trabalho propicie a formação de centros subimperialistas associados à metrópole para explorar os povos vizinhos. Sua melhor expressão é a política levada a cabo pelo regime militar de Castelo Branco no Brasil, que atualmente o regime argentino procura imitar.

 A reorganização dos sistemas de produção latino-americanos, nos marcos da integração imperialista e diante do recrudescimento das lutas de classe na região, levou à implementação de regimes militares de corte essencialmente tecnocrático. A tarefa de tais regimes é dupla: por um lado, promover os ajustes estruturais necessários para colocar em marcha a nova ordem econômica requerida pela integração imperialista; por outro lado, reprimir as aspirações de progresso material e os movimentos de reformulação política originados pela ação das massas. Reproduzindo em escala mundial a cooperação antagônica praticada no interior de cada país, tais regimes estabelecem uma relação de estreita dependência com seu centro hegemônico - os Estados Unidos -, ao mesmo tempo que colidem continuamente com este em seu desejo de tirar maiores vantagens do processo de reorganização no qual se encontram empenhados.

 Vista numa perspectiva histórica mais ampla, uma América Latina integrada ao imperialismo não é mais viável que a sobrevivência do próprio sistema imperialista. A superexploração do trabalho em que se funda o imperialismo, sob cujo signo se pretende integrar os países da região, estabelece um descompasso entre a evolução das forças produtivas e as relações de produção, deixando entrever a derrocada do sistema em seu conjunto, com tudo que representa de exploração, opressão e degradação. Por outro lado, a luta mundial dos povos contra o imperialismo, à qual a América Latina se integrou vitoriosamente com a Revolu­ção Cubana, não depende exclusivamente do que queiram e fa­çam os povos deste continente, mas sofre também a influência de acontecimentos tão importantes quanto a guerra de libertação do povo vietnamita, a Revolução Cultural chinesa e o acirramento das lutas de classe no interior do próprio Estados Unidos.

 Contudo, parece evidente que, quanto mais avance o processo de integração imperialista dos sistemas de produção na América Latina e mais efetiva se torne a repressão aqui praticada contra os movimentos revolucionários, melhores condições terá o imperialismo para prolongar sua existência na contramão da história. Inversamente, a generalização da revolução latino-americana tende a destruir os principais suportes de apoio do imperialismo, e sua vitória representará para este um golpe mortal. Esta é a responsabilidade histórica dos povos latino-americanos e frente a ela não cabe outra atitude possível que não a prática revolucionária.

O futuro da revolução latino-americana

 No que diz respeito à revolução latino-americana, da mesma forma que ao ingressar na etapa de integração imperialista o capitalismo internacional levou à formação de um campo de forças antagônicas representado pelos países socialistas, também a integração imperialista dos sistemas de produção na América Latina está forjando sua própria negação. Esta negação já se manifestou no triunfo do socialismo em Cuba, e segue se desenrolando através das lutas de classe que perpassam toda a região, com a expressão mais visível na atividade guerrilheira levada a cabo na Venezuela, na Guatemala, na Colômbia e em outros países. O avanço irrefreável das massas exploradas se orienta inevitavelmente para a substituição do atual sistema de produção por outro que permita a plena expansão das forças produtivas e que resulte numa elevação efetiva nos níveis de trabalho e de consumo, isto é, o sistema socialista.

 Fundamentalmente, são duas as tendências principais que animam o atual movimento revolucionário latino-americano, e cuja realização coloca um desafio àqueles que se interessam por sua vitória. A primeira tem a ver com o estabelecimento de uma relação mais efetiva entre as classes exploradas e suas vanguardas políticas, dentre as quais muitas já se lançaram à empreitada suprema da luta armada. A segunda se refere às relações que devem se estabelecer entre essas classes dentro do quadro mais amplo do contexto internacional.

 O processo de industrialização na América Latina, devido às características que assumiu, teve como principal efeito intensificar a exploração das massas trabalhadoras da cidade e do campo. Assim, na medida em que a indústria dependeu sempre do excedente produzido no setor externo da economia e quis absorver partes crescentes deste excedente, as classes beneficiadas pela exportação buscaram compensar suas perdas através do aumento da mais-valia absoluta arrancada das massas camponesas. Isto não foi tão difícil já que, dada a extrema concentração da propriedade da terra, os trabalhadores do campo se viram privados das mínimas oportunidades de emprego e tiveram que ofertar no mercado sua força de trabalho por um preço vil.

 Um fenômeno similar se deu nas cidades. Desorganizando a antiga produção artesanal - principal fonte de emprego para as massas urbanas -, e se beneficiando das fortes migrações de trabalhadores que a arcaica estrutura agrária não absorvia, os capitalistas industriais se viram frente a uma oferta de mão de obra em constante expansão. O fato de que, ao buscar aumentar sua mais-valia relativa, tenham lançado mão de uma tecnologia que poupa mão de obra importada dos países centrais, acentuou ainda mais o crescimento relativo da oferta de trabalho, de encontro à redução sistemática das oportunidades de emprego na indústria.

 A principal consequência desta situação foi que a exploração dos trabalhadores urbanos se manteve sempre no limite do suportável, desmentindo aqueles que insistem em ver a classe operária latino-americana como um setor privilegiado da população. Na melhor das hipóteses - correspondente à fase da polí­tica bonapartista -, esta pôde apenas manter seu nível de vida, sem alcançar, porém, avanços reais, tendo que se contentar com a extensão horizontal do emprego, que permitia aumentar a renda global das famílias proletárias mediante o trabalho de um número cada vez maior de seus membros. O progresso tecnológico na região se expressou, portanto, num aumento simultâneo da mais-valia absoluta e relativa nas empresas por ele beneficiadas, e foi a premissa da acumulação de capital que permitiu que a burguesia marchasse rumo à criação de uma indústria pesada.

 O traço mais dramático dessa situação foi, no entanto, o crescimento espantoso das populações marginais urbanas, aglomeradas em bairros miseráveis, nas favelas e nas periferias. Sem uma posição definida no sistema de produção e vivendo de trabalhos ocasionais, esse subproletariado - que chega a superar, em certas cidades, um terço da população total - sequer pôde se somar à reivindicação básica do proletariado industrial - a extensão horizontal do emprego ou, melhor dito, o direito ao trabalho -, e se limitou, na maior parte dos casos, a reivindicações de consumo; converteu-se, assim, em massa de manobra de políticas demagógicas por excelência, pela impossibilidade objetiva de desenvolver uma consciência de classe, representou um dos suportes fundamentais do populismo.

 As ilusões populistas e nacionalistas criadas pela burguesia também ecoaram nas classes médias. Enfrentando a dificuldade de se situar dentro do sistema de produção, as reivindicações destas tenderam, no melhor dos casos, a coincidir com as reivindica­ções de trabalho do proletariado industrial, mas nada representan no sentido de fundar essa aspiração numa análise científica das condições que as motivavam, ou seja, a tendência inevitável do sistema a expulsar do processo produtivo massas crescentes da população. Mais do que isto, a classe média, participando objetivamente do processo de marginalização que afetava o subproletariado, coincidiu muitas vezes com este em suas reivindicações de consumo e confundiu inclusive o movimento próprio do subproletariado com a luta de classe dos trabalhadores industriais, tornando-se ela própria outro suporte fundamental do populismo.

 A diferenciação que o avanço da industrialização acarretava no interior da classe burguesa trouxe ainda mais perplexidade à classe média. A concentração das unidades de produção, o desenvolvimento da indústria pesada, a elevação do nível tecnológico ila indústria, a associação com o capital estrangeiro - que constituíam aspectos de um só processo -, tudo isso foi percebido por elas como realidades independentes, que podiam ser combatidas ou defendidas separadamente. Na medida em que isso implicou a conformação de camadas burguesas que se beneficiavam de forma desigual de tal processo, as classes médias tenderam a se aliar ás camadas menos favorecidas e a desenvolver uma ação política contraditória, que não saiu nunca dos marcos dos conflitos interburgueses.

 Foi assim que nasceu o mito da burguesia nacional oposta aos interesses do imperialismo ou, mais precisamente, foi a forma que se encontrou para justificar a adoção dessa categoria, forjada em contextos históricos diferentes. As classes médias atuaram no sentido de subordinar o movimento progressista das massas exploradas da cidade e do campo à burguesia mais atrasada econômica e tecnologicamente - assumindo seu ponto de vista -, burguesia esta que não podia sequer pleitear a possibilidade de se associar aos capitais estrangeiros e enfrentava, ela mesma, a ameaça da proletarização, representando o setor mais retardatário da sociedade. Ao mesmo tempo, as classes médias se deixavam seduzir pelo “desenvolvimentismo” dos grandes grupos econômicos, em sua marcha rumo a um aumento da composição técnica da produção e à implementação da indústria pesada, em associação com o capital estrangeiro, sem se dar conta de que assim contradiziam os interesses de sua pretensa “burguesia nacional”, para a qual esse caminho estava fechado.

 Pois bem, as vanguardas revolucionárias da América Latina trazem, em geral, a marca das classes médias. A incompreensão que as classes médias revelaram frente ao processo econômico de seus países e à luta de classes que daí se deriva dificultou consideravelmente a vinculação efetiva dessas vanguardas às forças reais da revolução, principalmente com o que forma sua coluna vertebral: o proletariado industrial. Com raras exceções, sua posição ambígua em relação aos conflitos interburgueses não lhe permitiu aliar-se ao proletariado e definir junto a este uma polí­tica operária, de luta pelo socialismo, que ponha em marcha uma frente dos trabalhadores da cidade e do campo contra o sistema de exploração ao qual estão submetidos.

 No entanto, somente isso pode dar pleno sentido à luta anti-imperialista e levá-la a suas últimas consequências. Ao definir no marco nacional uma política operária, as forças revolucionárias estarão dando início a um processo que conduz necessariamente à internacionalização da revolução e ao enfrentamento direto com o centro hegemônico imperialista. Os opressores nacionais e estrangeiros já se previnem contra essa eventualidade, tratando de estabelecer mecanismos de contenção, tais como os regimes militares subordinados à estratégia do Pentágono, a Força de Polícia Interamericana e os acordos para repetir, quando seja necessário, a experiência dominicana.

 A ação internacionalista de Guevara e a política revolucionária de Cuba antecipam a resposta que os povos do continente darão a seus opressores. Mais ainda, fazem que desponte no horizonte aquilo que parece ser a contribuição mais original da América Latina para a luta do proletariado internacional: seu caráter internacional. Tudo indica que será aqui que o internacionalismo proletário alcançará uma nova etapa de seu desenvolvimento e sentará as bases de uma sociedade mundial de nações livres da exploração do homem pelo homem.



Notas

[1] As principais características dessas modalidades ou tipos foram definidas por Celso Furtado e Aníbal Pinto em diferentes trabalhos e sistematizadas por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em Dependencia y desarollo en America Latina, Siglo XXI, México, 1973. [N.T.: Na primeira edição de Subdesarollo y revolución, de 1969, Marini faz menção a um estudo ainda inédito de Fernando Henrique Cardoso. A edição original do livro de Cardoso e Faletto é de 1969 - o texto já circulava, desde 1967, em versões internas do Instituto Latinoamericano de Planeación Econó­mica y Social (ILPES)—; no Brasil foi publicado pela primeira vez em 1970 pela Ed. Zahar.]

 [2] () choque de interesses entre os Estados Unidos e a Inglaterra já se manifestava na promulgação da República no Brasil (1889) e na guerra civil chilena, para dar apenas alguns exemplos. Esse choque permite também que um país como o Uruguai possa realizar, após a ascensão de Jorge Batlle ao poder, sua Integração dinâmica ao mercado mundial em condições similares às dos países antes citados.

[3] Isso se deve tanto à disponibilidade crescente de capital exportável nas economias centrais, quanto ao caráter mais sofisticado e custoso da tecnologia empregada, que exige grandes investimentos de capital. Daí se deriva a integração de parte do sistema de produção dos países periféricos à economia central, uma integração que ainda se dá em função do mercado mundial, e não do mercado interno, como ocorrerá posteriormente.

[4] A relação entre o investimento estrangeiro e o caráter mais sofisticado da tecnologia que nele se emprega conduz a que a empresa absorva pouca mão de obra, produzindo, assim, um montante relativamente baixo de salários. Estes salários se orientam, em termos gerais, ao consumo de bens importados e não repercutem de forma efetiva no mercado interno.

[5] Exemplos disso são o batllismo no Uruguai, o radicalismo argentino do começo do século XX, ou o civilismo brasileiro.

[6] Ver Ernest Mandel, Traité d'économie marxiste, Paris, 1962. Existe edição em espanhol: Editora Era, México, 1969.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Anselm Jappe, Robert Kurz e o fenômeno da financeirização


 O fenômeno da ''financeirização'' -- o crescimento absurdo do assim chamado ''capital fictício'', isto é, ações empresariais, títulos de dívidas públicas, derivativos etc mais ou menos a partir dos anos 80 -- foi geralmente interpretado dentro da esquerda como uma escolha subjetiva das classes dominantes a fim de aumentar a taxa de exploração ou, o que é mais ou menos a mesma coisa, se apropriar de uma parte maior do excedente produzido na economia. Assim, setores da esquerda propõem uma espécie de aliança com o ''setor progressista'', produtivo, da burguesia contra o ''setor reacionário'', parasitário, representado pelos capitalistas que acumulam capital a partir de empréstimos a juros; uma tal aliança poderia fazer novamente destravar a acumulação e o investimento e assim gerar emprego e renda, como na chamada Era de Ouro do capitalismo ocidental.

 E essa visão estiver incorreta? E se o alastrado fenômeno da financeirização houver sido, na verdade, uma forma de o sistema-mundo moribundo continuar sobrevivendo, como alguém que respira por aparelhos? Essa é, pelo que entendi, a tese de Anselm Jappe e Robert Kurz, 2 autores da chamada 'Nova crítica do valor', inspirada na obra de Marx. Deixarei abaixo 2 textos que comentam sobre o tema: um deles é um trecho de ''Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma renovação da crítica da economia política'' (Lisboa: Antígona, 2014), de Robert Kurz; o outro, um trecho de ''As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor'' (Lisboa: Antígona, 2006). Espero que gostem da leitura!



Anselm Jappe

 ...[N]
o capitalismo nem todo o trabalho é trabalho produtivo. Naturalmente não falamos da utilidade real do trabalho, uma vez que esse nível está ausente da lógica da valorização. Trata-se antes da questão de saber se um trabalho produz mais-valia. Marx dedicou uma certa atenção a esta questão, ao passo que de um modo geral os marxistas a negligenciaram, mostrando-se ainda menos capazes de reconhecer o laço que ela mantém com as crises do capitalismo. Deste modo, os marxistas abandonaram o terreno aos economistas burgueses que presentemente querem fazer crer que cada perda de trabalho nos sectores tradicionais (indústria pesada, agricultura, etc.) é amplamente compensada pelos novos empregos e pelas fantásticas oportunidades de ganho que se abrem e que se abrirão ainda mais num futuro próximo nos serviços, na informática, etc. - ignorando completamente que muitas vezes esses trabalhos, quer sejam «úteis» ou «não», não são «trabalho produtivo» em sentido capitalista.

 Para Marx, o único trabalho produtivo - em sentido capitalista - é o trabalho que cria mais-valia passível de ser reinvestida. Os outros trabalhos mais não fazem do que consumir os rendimentos daqueles que os pagam. Se vou ao alfaiate para mandar fazer um fato para meu uso pessoal, não faço uma despesa produtiva e o alfaiate não fez um trabalho produtivo em sentido capitalista. Se emprego o mesmo dinheiro como salário pago a operários da indústria de confecções cujos fatos produzidos depois revendo, aí trata-se de trabalho produtivo. A prová-lo está o facto de que a primeira despesa, se a repito um número suficiente de vezes, me deixa sem dinheiro, ao passo que a segunda despesa, depois de várias repetições, deveria fazer de mim um homem rico graças à mais-valia extorquida aos trabalhadores. Como é natural, o capitalismo não pode renunciar completamente aos trabalhos «não produtivos». Mas, dado que só o trabalho produtivo constitui a «essência» do capitalismo, este tem a obrigação de procurar limitar os trabalhos não produtivos e transformá-los tanto quanto possível em trabalhos produtivos. Por exemplo, um professor, enquanto tal, não é um trabalhador «produtivo». Mas, diz Marx, se ele trabalha numa escola privada criando mais-valia para o seu empregador, então torna-se produtivo (de capital). A distinção que Marx faz entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo foi fortemente atacada, e é muitas vezes acusada de só reconhecer o trabalho material, em particular o trabalho industrial, como produtivo de mais-valia, com exclusão dos serviços e de todos os trabalhos imateriais que hoje supostamente constituem a maior parte do trabalho social. Trata-se de uma acusação falsa, porque Marx nunca identificou no plano conceptual a questão do carácter produtivo ou não produtivo de um trabalho com o respectivo conteúdo material ou imaterial - mesmo se a preponderância do trabalho material na sua época lhe sugeria uma quase identidade empírica.

 Contudo, hoje em dia é possível determinar melhor a questão do trabalho produtivo. Não se pode decidir num caso isolado se um trabalho é produtivo; a resposta depende da posição desse trabalho dentro do processo completo de reprodução. Só ao nível do capital global se pode ver o carácter produtivo ou não produtivo de um trabalho; as pessoas que no interior de uma empresa estão adstritas às limpezas, por exemplo, ou à contabilidade, são trabalhadores não produtivos. Constituem um mal necessário para a empresa. A organização dessas pessoas em empresas especializadas que oferecem os seus servi­ços às outras empresas, que deixam portanto de empregar trabalhadores fixos para essas tarefas, cria mais-valia para os proprietários de tais empresas de serviços e constitui o segredo daquilo a que se chama «terciarização». Mas estes lucros para os capitais particulares anulam-se ao nível do capital global (infelizmente este facto não está suficientemente desenvolvido na argumentação de Marx), no qual estas actividades representam sempre uma dedução da mais-valia realizada pelo capital produtivo. Para que um trabalho seja produtivo, é preciso que os seus produtos retornem no processo de acumulação do capital e que o seu consumo alimente a produção alargada do capital, sendo consumidos por trabalhadores produtivos ou tornando-se bens de investimento para um ciclo que produza efectivamente mais-valia. Assim compreendida, a diferença entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo não coincide com a distinção entre bens materiais e serviços, nem com a distinção entre despesas do Estado e investimentos privados - mesmo sendo verdade que a quase totalidade das despesas do Estado representam um consumo não produtivo (armamento, administração pública, educação, saúde, etc.). É, pois, uma parte da produção industrial que hoje é não produtiva.

 Não é apenas a visível diminuição do trabalho no mundo contemporâneo que põe em crise a valorização, mas mais ainda o recuo invisível do trabalho produtivo. Só uma muito pequena parte das actividades levadas a cabo no mundo cria mais-valia e alimenta ainda o capitalismo. A diminuição do trabalho produtivo é igualmente causada pelo aumento constante daquilo a que Marx chama (com uma expressão francesa) os «faux frais», ou seja, os falsos encargos. Os sectores produtivos têm necessidade de numerosas actividades a montante, a jusante e ao lado do verdadeiro processo produtivo. Mas trata-se de trabalhos não produtivos e que muitas vezes não podem obedecer à lógica do valor. Em parte, estes trabalhos situam-se no interior da empresa, como as limpezas ou a contabilidade que mencionámos acima. Mas a maior parte dos «falsos encargos» encontra-se a cargo do Estado. Com os impostos e restantes rendimentos, o Estado financia tudo o que é demasiado caro, mesmo para as empresas maiores (a construção de caminhos-de-ferro é o exemplo histórico mais conhecido), ou que não pode ser organizado segundo os critérios habituais do lucro, sendo contudo indispensável: a produção moderna necessita de trabalhadores qualificados, precisando portanto de um sistema educativo abrangendo toda a sociedade, coisa que um sistema educativo totalmente privado não seria capaz de garantir. A «segurança» interna e externa, os transportes, o sistema sanitário, a administração e muitas outras coisas são necessárias para que o trabalho produtivo possa desenvolver-se. Em contrapartida, o trabalho produtivo tem que ceder ao Estado uma parte do seu lucro. Cada parcela particular de capital, como é natural, fica satisfeita com o facto de encontrar infra-estruturas que funcionam bem e cujo uso é muitas vezes gratuito. Mas, para o capital global, são falsos encargos que é preciso limitar o mais possível porque caso contrario poderão ameaçar a rentabilidade da produção. Desde os começos do capitalismo, os falsos encargos têm tendência para aumentar constantemente. As causas são o aumento continuo do capital fixo, sobretudo sob a forma da cientificização da produção; mas também o efeito que têm as infra-estruturas sobre a concorrência (um capital que não tenha à sua disposição auto-estradas para encaminhar os seus produtos, perderá na competição mundial), as necessidades da pacificação social, a corrida aos armamentos, a obrigação que o capital tem de encontrar trabalhadores cada vez mais qualificados ou, pelo menos, enquadrados nos valores do capitalismo. A tentativa de organizar estas actividades também sob a forma de empresas capitalistas, típica da época neoliberal, não altera a situação ao nível do capital global e arrasta consigo o risco de fazer explodir o quadro social geral dentro do qual se desenrola a produção de valor.

 A sufocação progressiva da produção de valor em virtude do aumento dos falsos encargos e do trabalho improdutivo, bem como a diminuição da massa de lucro que daí resulta, são, no plano lógico, uma consequência inelutável das contradições de base da mercadoria. A realidade histórica confirmou esta dedução lógica. Primeiro porque o capitalismo clássico, caracterizado pelo padrão-ouro - a convertibilidade ilimitada das moedas em ouro -, pelos orçamentos públicos em equilíbrio e pela livre concorrência sem intervenção do Estado, tinha chegado ao fim com a Primeira Guerra Mundial. Depois porque o capitalismo se encontra numa perpétua fuga para a frente; só continua a funcionar porque vai suspendendo as suas próprias leis. O período que vai de 1920 - e a fortiori de 1945 - até 1975 aproximadamente merece hoje, com boas razões, o nome de «fordismo». A partir da indústria automóvel americana e das inovações introduzidas por Henry Ford e Frederick Taylor (linha de montagem, «gestão científica» da força de trabalho, etc.), difundiu-se um novo sistema económico-social, primeiro nos Estados Unidos e depois, a seguir à Segunda Guerra Mundial, também nos outros países ocidentais. O fordismo andou a par dos métodos keynesianos em matéria de política económica; os resultados foram a produção em massa de bens semiduradouros a baixo preço, os salários elevados, o pleno emprego, a democracia política, os investimentos maciços do Estado nas infra-estruturas e nos serviços sociais, a estabilidade monetária e a penetração dos bens de consumo em todos os dominios da vida. Contudo, o «ciclo virtuoso» fordista não estava fundado sobre bases que lhe fossem próprias. Era o Estado, com os seus investimentos, geralmente pagos a crédito, que permitia o rápido crescimento dos sectores não produtivos - por exemplo, com a construção de auto-estradas, sem as quais não teria sido possível a automobilização do mundo. Este crescimento tornou possível um aumento dos sectores produtivos, suficiente em termos absolutos para compensar a diminuição relativa do lucro em cada produto particular. Enchendo completamente o mundo de mercadorias, o fordismo conseguiu adiar por várias décadas a crise estrutural do capitalismo que se manifestara já nos anos vinte, explodindo designadamente com a grande crise de 1929.

 Pelos anos de 1970-1975, o ciclo fordista-keynesiano esgotou-se porque se tornara impossível continuar a financiar os «encargos secundários». O abandono do padrão-ouro em benefício do dólar, em 1971, e o regresso da inflação nos países ocidentais eram os sinais do esgotamento do ciclo. Essa crise agravou-se infinitamente por via da revolução informática. Esta revolução já não instaura um novo modelo de acumulação: desde o início, a informática torna inúteis - «não rentáveis» - enormes quantidades de trabalho. Diferentemente do que se passou com o fordismo, a informática provoca essa inutilidade a um ritmo tal que já não há extensão do mercado que seja capaz de compensar a redução da parte de trabalho contida em cada mercadoria. A informática corta definitivamente o laço entre a produtividade e o dispêndio de trabalho abstracto incarnado no valor. Ela põe a girar o «círculo vicioso» a que temos vindo a assistir de há vinte anos a esta parte. O sistema capitalista, para sobreviver numa situação em que ele mesmo serra o ramo de árvore sobre o qual está sentado - o trabalho -, é obrigado, mais ainda do que antes, a procurar subterfúgios para fazer coincidir momentaneamente a circulação e a produção suspendendo praticamente a lei do valor. É importante que nos recordemos de que a produção de bens de uso não está em crise. Mas se fosse seguida à letra a lógica do valor, dever-se-ia abandonar quase toda a produção actual por «falta de rentabilidade». Para evitar chegar a essa conclusão, o «sujeito autómato» lança-se numa fuga para a frente cada vez mais desesperada.

O capital fictício

 Essa fuga faz-se indirectamente por intermédio do capital fictício, ou seja, pela autonomização dos mercados bolsistas e da especula­ção. Assim, o capital prolonga a sua vida para lá dos seus limites reais consumindo antecipadamente o seu futuro, isto é, vivendo a crédito. Também o crédito está embrionariamente «contido» na estrutura elementar da mercadoria: a mediação monetária separa a venda da compra porque permite adiar o pagamento. O trabalho e o dinheiro são estádios diferentes do mesmo processo de valorização, mas podem igualmente não coincidir: o dinheiro pode multiplicar-se mais rapidamente que o trabalho morto. Este factor cria a ilusão de que o dinheiro tem o poder místico de crescer por si só, sem a media­ção de um processo produtivo no qual fosse consumido trabalho. O juro monetário, em que na aparência se passa directamente do dinheiro a uma quantidade superior de dinheiro (D-D’, na linguagem utilizada no início do terceiro capítulo deste livro), torna-se na consciência comum a verdadeira forma de lucro - apesar de se tratar somente de uma dedução operada sobre o lucro obtido na produ­ção. Na verdade, só é dinheiro «bom» aquele que resulta de um processo bem sucedido de valorização do valor operada pelo trabalho. O dinheiro que representa trabalho não produtivo e o dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança - cuja forma principal é o crédito - acabam por se desvalorizar.

 A necessidade do crédito deriva do aumento contínuo do capital fixo que ultrapassa as capacidades das empresas. É pois uma consequência da produtividade aumentada do trabalho. Torna-se então indispensável investir no presente os ganhos esperados para o futuro. Enquanto esses ganhos vierem efectivamente no seguimento para pagar juros e para se poder ampliar a dívida, o endividamento não é grande problema. Mas, diferentemente do que se passava com os capitalistas do século XIX, já as empresas da expansão fordista só podiam financiar-se recorrendo ao crédito. Por outro lado, por causa da explosão dos encargos «não produtivos», os «falsos encargos», uma parte crescente dos créditos servia apenas para alimentar o consumo não produtivo. Por outro lado ainda, os Estados - que até à Primeira Guerra Mundial apresentavam orçamentos mais ou menos equilibrados - tinham começado a endividar-se para poderem assegurar as condições infra-estruturais necessárias às economias nacionais. Sendo certo que Keynes pensava que a intervenção do Estado não devia servir senão para «empurrar» a acumulação de modo a que ela pudesse depois voltar a arrancar sobre as suas próprias bases, a verdade é que essas intervenções rapidamente se revelaram uma conditio sine qua non para o funcionamento da economia, e ao mesmo tempo um peso em crescimento permanente para as finanças públicas.

 Quando se esgotou o mecanismo que compensava a diminui­ção da produtividade de valor através da ampliação da produção, o financiamento por via do crédito mudou de natureza. Depois de as quantidades de créditos em circulação terem ultrapassado largamente a quantidade de ouro existente, a abolição da convertibilidade do dólar em ouro (1971) desarticulou o último dispositivo de segurança. A partir de então, o dinheiro baseia-se exclusivamente na confiança, e não há limite algum para a sua multiplicação. Mas, em boa verdade, o dinheiro mais não é do que a incarnação do trabalho abstracto despendido no interior de processos de valorização suficientemente rentáveis. Como é natural, o Estado pode imprimir papel-moeda sem levar em conta a quantidade de trabalho produtivo, tanto mais que tal quantidade não pode ser medida directamente. Os actores económicos podem criar dinheiro sob a forma de acções, obrigações, empréstimos, etc. Mas a quantidade de dinheiro excedente perde fatalmente o seu valor na inflação ou na deflação. A redução drástica do trabalho produtivo à escala global faz igualmente com que o dinheiro perca a sua substância: o dinheiro torna-se «não válido». Se se calculasse todo o dinheiro que circula no mundo sob todas as sua formas (acções, obrigações, títulos de dívida, etc.), dividindo-o de seguida pelo número de habitantes do planeta, chegar-se-ia provavelmente a uma inflação global de várias centenas porcento. Se essa hiperinflação não se manifesta ainda, é porque em grande parte o dinheiro permanece «resguardado» nas estruturas financeiras sob a forma de acções, de dinheiro «virtual», de «direitos especiais de levantamento antecipado», etc.

 A multiplicação milagrosa do dinheiro suscitou fortes receios no início dos anos setenta - mas as somas em causa nessa altura não eram mais do que uma pequena fracção do «capital fictício» que viria a estar em circulação trinta anos mais tarde. O conceito de «capital fictício» foi desenvolvido por Marx no terceiro volume do Capital para designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação e na expectativa de ganhos futuros; logo que alguém exija o pagamento real das dívidas, a «bolha» não poderá deixar de rebentar com falências em cadeia. Porém, na época de Marx, tratava-se de um epifenómeno de que vinham acompanhadas as crises económicas reais. Os crashes financeiros tinham nesse tempo uma função de purga e não afectavam os processos produtivos reais. Até ao final do ciclo fordista, a especulação financeira seguia mais ou menos o ritmo e as dimensões da acumulação real.

 Tudo isso mudou enormemente a partir do momento em que a acumulação real, apesar de todos os créditos, estagnou. A partir de então, o recurso ao crédito serve para estimular uma acumulação inexistente e para prolongar artificialmente a vida de um modo de produção que já está morto. Somente uma quantidade muito pequena dessa liquidez circulante foi emitida directamente pelos Estados; a maior parte são acções, obrigações, créditos, valores imobiliários, «dinheiro electrónico», etc. - o que contribui para tornar este processo completamente incontrolável. Mediante uma reviravolta grotesca, que nem mesmo Marx foi capaz de prever, a produção real passou a ser um apêndice do capital fictício. Os movimentos vertiginosos registados a partir de 1987 nos mercados bolsistas já nada têm a ver com as oscilações conjunturais daquilo que resta da economia real. O capital fictício tornou-se inclusivamente o verdadeiro motor do crescimento. Os ganhos realizados com operações financeiras puramente especulativas tornaram-se um elemento indispensável nas finanças das empresas, dos Estados e dos privados - quer se trate do «milagre económico» americano, financiado com o maior endividamento da história, ou das numerosas famílias americanas que obtêm créditos bancários exclusivamente com base nas acções que detêm e na expectativa de que o respectivo preço venha a subir, ou das empresas, mesmo empresas «sérias», que têm orçamentos equilibrados apenas graças a receitas financeiras. Neste quadro, o famoso endividamento do terceiro mundo não é senão uma pequena parte de todo o capital fictício. Já não são apenas as receitas do Estado, mas também as de toda a sociedade, que se encontram antecipadamente gastas.

 Não é possível entrar aqui nos meandros das finanças internacionais e descrever os circuitos internacionais do défice (em que o défice entre os Estados Unidos e o Japão é o mais importante). A derrocada da estrutura financeira efectivar-se-á apenas após um certo período de incubação. Mas terá consequências catastróficas pois ver-se-á então que a acumulação real já terminara há muito. A subida cada vez mais fantástica dos mercados bolsistas segue a par da aparente tranquilidade das instituições económicas internacionais, que sem pestanejar fazem chegar aos países em falência (como a Indonésia, o Brasil ou a Turquia) somas - da ordem das dezenas de milhar de milhões de dólares - que poucos anos antes teriam feito estremecer até aos seus fundamentos as finanças internacionais, como sucedeu no caso da crise do México em 1995. Contudo, os movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a consequência das perturbações na economia real. A economia real não progrediria melhor se fossem abolidos os «excessos» especulativos, como tratam de pregar certos observadores inquietos, por exemplo, George Soros ou Ignacio Ramonet. Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar logo que lhe tenham sido retiradas as muletas da especulação. Com efeito, depois do rebentamento da bolha financeira, ver-se-á que era precisamente ela que durante um certo período escondia o facto de que a acumulação de valor tinha já atingido o seu limite histórico. Naturalmente isso não significará necessariamente o fim da produção de bens de uso - com a condição, contudo, de esta última ser desligada da produção de valor.



 Robert Kurz

 ...[Q]ue situação exprime a queda (relativa) da taxa de lucro de foma que começa por ser igualmente relativa no seio do sistema monetário? Já vimos que o crescimento de c/v -- a crescente composição orgânica do capita -- reduz, no plano do valor social global e em termos relativos, a quota-parte da força de trabalho, que é a única que cria valor novo por capital monetário investido, ao passo que os custos do capital material (c), que se referem à parafernália puramente material e se mantêm ''estéreis'' no que diz respeito a uma acumulação ulterior de ''riqueza abstrata'', sobem em termos relativos. Para o capital individual empírico, porém, isto tem como consequência que, com a intensidade do capital a subir, a totalidade dos custos prévios aumenta, ou seja, mais capital monetário tem de ser investido para poder pôr em movimento uma combinação rentável de c/v com hipóteses de conquistar uma quota do mercado competitiva.

 Isto também tem a ver com o fato de que, com a crescente quota-parte de ''c'' no plano global do capital, aumenta tanto o grau geral de socialização capitalista como, ao nível da economia empresarial individual, a divisão funcional, a profundidade de abrangência da cadeia de valor e a infraestrutura. O processo, descrito por Marx, de concentração e centralização do capital não é apenas uma consequência de conteúdo material de cientificização e da técnicização. Embora os famosos novos produtos e ramos produtivos, na fase da inovação, ainda possam, em parte, nascer de condições iniciais modestas, a transição para a produção intensiva em termos de tecnologia, material e gestão, dotada das necessárias estruturas de grande envergadura, acontece cada vez mais rapidamente e já não se processa ao longo de gerações, mas logo na geração fundadora.

 Nisso nem o outsourcing de algumas funções da economia empresarial, descoberto em tempos recentes e apicado de forma ostensiva, altera alguma coisa. Este método já é uma consequência da enorme subida subida da pressão dos custos que, no entanto, apenas é assim redistribuída; mas nada altera no plano do valor de toda a sociedade, constituindo apenas a maneira de o tacanho cálculo econômico-empresarial no plano do capital individual empírico lidar com a situação de um modo pretensamente ''esperto''. O mundo globalizado dos antros do outsourcing não tem nada a ver nem com a inovação de produtos, nem com novas pequenas empresas ou ramos de negócio independentes, tratando-se de um programa de redução de custos do próprio capital concentrado e centralizado por meio de empresas secundárias apenas formalmente autônomas, falsos independentes e trabalhadores assalariados de segunda e terceira categoria, destituídos de direitos decorrentes de contratação coletiva (o Japão parece ter sido, já há muito, precursor nessa matéria). No entanto, o problema do aumento dos custos prévios ou do constrangimento do recursos crescente ao capital monetário também se aplica aos antros do outsourcing que, embora só existam com base nos salários baixos ou numa auto-exploração desproporcionada, têm igualmente de adiantar os custos dos elementos do (crescente) capital material associado à sua função. E, para os seus fáticos ''capitais-mãe'', a pressão dos custos apenas é atenuada de forma insignificante pela deslocalização para estabelecimentos de baixos salários, uma vez que, de qualquer modo, não para de reduzir a quota-parte relativa dos encargos salariais tanto nas funções econômico-empresariais individuais como no capital global.

 No plano empírico dos capitais individuais, o problema do aumento do capital monetário a aplicar nos custos pre´viso de uma produção orientada para o lucro bem sucedida só se tornou significativo no início do século XX, a saber, nos estágios iniciais da segunda revolução industrial (taylorismo, fordismo) -- ou seja, cerca de 30 anos depois da morte de Marx. Assim, se iniciou um processo de um novo tipo cujo cuja caraterística essencial consistia na crescente importância e necessidade do crédito para a produção de mais-valia e lucro, bem como na expansão histórica do sistema de crédito decorrente.

 Evidentemente, o crédito e, com ele, o capital financeiro que rende juros tiveram alguma importância desde o início do desenvolvimento capitalista. Marx representou o nexo geral entre o sistema de crédito e o modo de produção capitalista n'O Capital, especialmente no terceiro volume -- por exemplo, o juro como forma derivada da mais-valia produzida, sendo certo que os representantes do ''capital funcional'' (ou seja, do capital produtivo) têm de entregar uma determinada quota-parte, sob a forma de juro, ao capital financeiro, passando pelo sistema bancário. Esta necessidade começa por se manifestar de forma desigual, sobretudo nas fundações de empresas, mas igualmente em casos de forte expansão da produção, assim como em situações especiais, problemáticas ou de emergência, quando há investimentos que têm de ser efetuados sem reservas próprias suficientes, etc. Também o Estado, que só surgiu juntamente com o fetiche do capital, recorreu desde o início ao capital de crédito, sobretudo no financiamento dos custos de armamento e da guerra desde a revolução militar das armas de fogo (nos séculos XVI, XV e XVI). O capital monetário necessário para o crédito consiste nas poupanças particulares dos membros da sociedade, incluindo os trabalhadores assalariados, e nas fortunas privadas passivas acumuladas das formas mais diversas, assim como nas reservas não aplicadas produtivamente, no momento, dos próprios capitais individuais, e concentra-se sobretudo nos bancos, que o emprestam a terceiros (evidentemente, as formas do crédito privado também são uma possibilidade). Marx não só derivou neste contexto a determinação geral da forma econômica do crédito como igualmente, e com as ferramentas da crítica ideológica, as mistificações a ela associadas, que se repercutem tanto na contabilidade das empresas como no ''preconceito popular''. O que aqui está em causa é a aparente ''qualidade oculta'' do capital que rende juros de criar de imediato mais dinheiro a partir de dinheiro (D-D'), visto que, para a consciência fixada na superfície do mercado, o nexo com a produção de mais-valia real já não é visível.

 Como a existência do capital monetário que rende juros ou do crédito também tem um caráter processual histórico, este, como já referimos, tem de se expressar de preferência na representação conceitual, na medida em que o lugar histórico no seio do desenvolvimento capitalista o permite. Já Marx viu que o sistema de crédito ganha em importância com o surgimento das sociedades anônimas, se torna o detonador de um desenvolvimento ulterior. No entanto, não associou sistematicamente estas tendências ao problema da queda da taxa de lucro ou até do limite interno e da desvalorização final do valor enquanto tal.

 Na realidade, porém, a necessidade de uma aplicação crescente de capital monetário, devido à queda da taxa de lucro e à acrescida intensidade de capital ao longo do século XX, conduziu a que cada vez menos os custos prévios, na sua imparável subida, pudessem ser pagos com base nos lucros correntes. Dito com mais precisão, foi-se reduzindo sucessivamente a capacidade de os capitais individuais criarem, a partir de seus próprios lucros, reservas suficientes para os investimentos necessários em capital material novo. Este problema agudizou-se com o desenvolvimento tecnológico acelerado, decorrente da cientificização. Na mesma medida em que as inovações de produtos enovas técnicas de produção fundamentais se sucediam umas às outras com cada vez maior celeridade e numa frente alargada, também foi aumentando a velocidade correspondente do processo que Marx designou como ''desgaste moral'' do capital material. O que se quer dizer com isto é que meios de produção que, em termos puramente técnico-formais, ainda se encontram intactos têm de ser abatidos e substituídos por já não corresponderem ao padrão social de produtividade, alterado por novas tecnologias, métodos de regulação ou modos de organização de processos.

 Ou seja, foi-se tornando cada vez mais impossível, mesmo para os maiores capitais individuais, refinanciarem-se suficientemente só com base nos proventos que eram o retorno de períodos de produção anteriores. O recurso permanente ao sistema de crédito tornou-se, não obstante as resistências iniciais, a conditio sine qua non de uma produção de lucro e participação no mercado continuada. Mas como o crédito e o capital que rende juros foram, desde o início, partes integrantes do capitalismo, tanto na ciência econômica burguesa como no marxismo, esta forma foi, até aos dias de hoje, objeto de uma perspectiva sobretudo a-histórica -- ou, pelo menos, fazia-se de conta (como, por exemplo, em Hilferding) que a importância crescente do crédito apenas correspondia à socialização capitalista crescente e, em geral, à crescente atividade produtiva (o que mais uma vez traduz uma confusão entre o plano do valor abstrato e o plano material do valor de uso). O salto qualitativo na função do crédito para a reprodução capitalista permaneceu largamente irrefletido, para já não falar no potencial de crise inerente a este desenvolvimento.

 Contudo, quando o crédito e, com ele, o acesso dos capitais produtivos ao capital monetário alheio desocupado, deixa de ser um fenômeno marginal ou um recurso esporádico para se transformar no pressuposto central da produção ulterior, e ainda por cima num patamar cada vez mais elevado, o eixo temporal da produção social de mais-valia desloca-se fundamentalmente do passado para o futuro. É que se retivermos, com Marx, que a qualidade supostamente oculta do capital que rende juros de criar diretamente mais dinheiro a partir de dinheiro apenas se deve ao ofuscamento, pelas aparências, da superfície do mercado e, na realidade, é mediada pela derivação da produção de mais-valia real, não nos podemos esquecer do fato de esta última não ocorrer sequer na altura em que o crédito é contraído, tendo ainda de se realizar e ser bem sucedida; de outro modo, o crédito, afinal, nem sequer seria necessário. Existe, portanto, uma enorme diferença ente o refinanciamento do capital pelo recurso predominante a uma produção de mais-valia já realizada no passado (por exemplo, sob a forma de reservas), por um lado, e pelo recurso predominante a uma produção de mais-valia futura, ainda nem iniciada e muito menos realizada (sob a forma de crédito), por outro. Por muito que as duas formas de refinanciamento desde sempre tenham andando a par, o aumento relativo da segunda (análogo ao aumento relativo da quota-parte de ''c'' na composição orgânica do capital) sempre constitui uma alteração não só quantitativa, mas também qualitativa na reprodução do capital, tal como no caso da queda da taxa de lucro.

 O novo e adicional potencial de crise desta alocação é óbvio, pois se o lucro realizado em períodos produtivos anteriores é um valor seguro, o lucro futuro, ainda por realizar é um valor totalmente inseguro. As condições a crédito a que se recorreu, porém, têm evidentemente de ser satisfeitas, ou seja, o crédito tem de ser reembolsado no fim do seu prazo e, entretanto, têm de se pagar os juros. Torna-se assim necessário que os capitais individuais, que recorrem ao crédito numa medida crescente, se apropriem de uma parte da massa social de mais-valia no mínimo suficiente para poderem pagar os seus créditos e, além disso, alcançar ainda um lucro próprio. Porém, quando isso se torna uma condição universal, não apenas se cria uma pressão adicional sobre os capitais individuais, mas também um problema ''sistêmico'': o refinanciamento, que já não é feito com base na produção passada de mais-valia real, mas na futura, não só requer que a massa de mais-valia cresça, mas que cresça tanto que a sua participação no passado não bloqueie a reprodução corrente posterior.

 Por outras palavras, mesmo quando enquanto o capital global vai se expandindo alegremente e a massa absoluta de mais-valia cresce, vai-se criando um defasamento temporal crescente entre a produção de mais-valia prevista e a que realmente se segue, O capitalismo começou a gastar o seu próprio futuro. As cadeias de crédito vão tornando-se cada vez mais longas e cada vez mais delgadas, embora seja apenas delas que brota a mais-valia. Podem quebrar-se a qualquer momento, e é isso que fazem todos os dias e numa extensão crescente. E não é só o risco da participação no mercado, crescentemente financiada com o recurso ao crédito, que deste modo aumenta para os capitais individuais, mas também o risco ''sistêmico'' de um colapso do sistema de crédito que afete diretamente o capitalismo na sua totalidade, pelo menos transitoriamente (enquanto a expansão ainda predominar). Em termos fundamentais, isso significa que esse potencial abstrato de crise, já referido por Marx no primeiro volume de O Capital, das compras e vendas que não coincidem  no local e no tempo se potencia historicamente no plano do sistema de crédito; pois é aqui, afinal, que a contração do crédito e o posterior serviço da dívida se encontram defasados temporal e estruturalmente de modo ainda mais óbvio e numa medida ainda maior.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Robert Kurz: preço, valor e totalidade


 Segue abaixo um (longo) trecho de ''O Estatuto social global das categorias e o individualismo metodológico a respeito do conceito de capital'', 9º capítulo do livro ''Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política'' (Lisboa: Antígona, 2014), de Robert Kurz, que me parece ser o autor de uma das mais bem elaboradas frentes da crítica da economia política atualmente, e que infelizmente faleceu em 2012. Até onde me é de conhecimento, este texto não está disponível em nenhum outro lugar da internet lusófona, então espero que vocês aproveitem!


Kurz (1943-2012)


 É esclarecedor que já nos inícios da análise da forma do valor feita por Marx se fale da relação global total como ''trabalho global'' (a que, a bem dizer, tanto se referem os combatentes da ortodoxia recente como os da Nova Leitura de Marx*, mas sem perceberem o alcance desta definição). Ora, também Max diz que o trabalho abstrato despendido por mercadoria individual tem de se ''afirmar'' como parte do trabalho global, mas a mediação entre a produção ou o dispêndio de trabalho por mercadoria individual e o todo social ou o ''trabalho global'' não é feita ou apenas figura na remissão para a produtividade social média como condição para a ''validade'' do dispêndio de trabalho individual. Esta definição, embora esteja certa, é completamente insuficiente para explicar a relação entre a produção parcial individual e a produção global, mantendo-se ainda no horizonte do individualismo metodológico. Do verdadeiro contexto de mediação complexo do ''processo global'' apenas se fala no terceiro livro [de O Capital, AM], embora aí já se encontre numa relação de tensão não resolvida face à análise da forma do valor ou da forma da mercadoria que consta do primeiro livro, ainda fixada na mercadoria individual ideal-típica.

 Se o capital for o verdadeiro pressuposto da forma de mercadoria, continua ainda assim a aplicar-se que o capital global ou o ''processo global'' do capital tem de ser o verdadeiro pressuposto do capital individual e, com ele, também da mercadoria individual. Desta perspectiva, que faz seu um entendimento dialético da totalidade e já não segue o individualismo metodológico com o seu raciocínio modelar, a exposição de Marx só pode referir-se, no fundo, ao todo mediado em si mesmo da relação fetichista do capital. As categorias reais do capital que são objeto da exposição teórica de Marx devem, por isso, ser entendidas desde o início e em todos os planos da exposição como meras categorias do todo social, do capital global e do seu movimento global, enquanto massa global que não pode ser abarcada de uma forma empírica imediata porque, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos, é diferente do movimento empírico dos capitais individual, No entanto, este último é o único que se apresenta aos agentes na prática, ao passo que o verdadeiro movimento do capital global real só pode ser registrado de forma empírica com base nos seus efeitos sociais (sobretudo em tempos de crise). É precisamente este o problema que não é tido em devida conta tanto pela Nova Leitura de Marx quanto pelos intérpretes tradicionais.

 Apenas e só o capital global, o todo fetichista, é a entidade categorial que julgamos conhecer como ''o capital'', entidade que é, no entanto, de acordo com a leitura habitual do primeiro livro da obra principal de Marx, é entendida por princípio como o capital individual, quer seja de forma empírica ou (de modo ligeiramente mais refletido) de forma ideal-típica, ou então ''em geral'', referindo-se esta generalidade somente ao elemento individual geral ou abstrato, e não à totalidade como generalidade (negativa) verdadeira. Desta perspectiva, o caráter do capital enquanto a realidade objetiva do fetiche acaba por permanecer oculto, pois no plano do capital individual parece ainda tratar-se de um acontecimento que possa ser apreendido com os meios da teoria da ação que, em certa medida, se resume ao cálculo subjetivo e em que se defrontam esses mesmos agentes e não aparece, na sua perspectiva limitada, como um objeto distinto, nomeadamente a entidade pressuposta do ''processo global'', desaparece num mundo composto por fatos imediatos. Por isso, os conceitos correntes da relação do capital são, por um lado, definidos de modo subjetivista, tanto no marxismo tradicional como na economia política ou no pensamento pós-moderno, ao passo que, por outro lado, o motivo condicionante não reconhecido como tal toma a forma  da objetividade positiva e intransponível de ''leis'' exteriores. É precisamente a ideologia pós-moderna que pode percepcionar o capital, no melhor dos casos, como um pormenor abstrato, porque já quase considera esta pequena elevação de abstração como uma generalização inadmissível. No entanto, o que transcende os sujeitos agentes e perfaz o movimento real de valorização é o todo do ''sujeito automático'', o apriorismo constitutivo e transcendental que apenas se manifesta no capital individual, mas não o é em termos categoriais. Só o capital global é o movimento espontâneo do valor, como um ''monstro que respira'' que se apresenta diante dos agentes, embora sejam estes que o produzam -- uma espécie de Adam Kadmon negativo da sociabilidade inconsciente ou, nas palavras de Marx, o ''valor que se valoriza a si mesmo, um monstro animado que começa a 'trabalhar' como se tivesse o diabo no corpo'' (Marx, 1965/1890, p. 209).

 Porém, se as determinações categoriais de Marx forem, contrariamente a entendimento sugerido pelo primeiro livro [de O Capital, AM], definidas deste modo como válidas apenas para o capital global ou o ''processo global'', isso tem consequências decisivas para a relação entre a essência e a aparência ou (na apresentação conceitual) para a relação entre a teoria e a empiria. Dito de outro modo, desta perspectiva alterada, a relação entre a forma de valor (qualidade) e a dimensão do valor (quantidade) não pode de modo algum ser explicada com base na produção individual de mercadorias ou na mercadoria individual (e com base no ato individual de realização no mercado), noção que ainda assim, devido aos moldes em que decorre a sua exposição, se infiltrou na argumentação de Marx respeitante ao ''começo'', uma vez que ainda não é aí que é formulada a lógica do contexto de mediação social global, Tudo o que Marx disse sobre a substância e a dimensão do valor não pode referir-se à mercadoria individual (nem mesmo ideal-típica), tal como erroneamente parece ser o caso no seu desenvolvimento analítico da forma de valor enquanto tal, mas apenas ao capital global e, com ele, a qualidade enquanto objetividade do valor e a respectiva quantidade não são coincidentes.

 A produção individual constitui já a priori uma parte da produção global capitalista e, por conseguinte, o dispêndio individual de trabalho constitui uma parte do ''trabalho global''. Por outras palavras, e diferentemente do que resulta a fixação inicial de Marx na mercadoria individual, a energia humana abstrata não se ''infiltra'' de imediato na mercadoria individual produzida em cada caso, mas é objetivamente agregada, por detrás das costas dos agentes individuais da produção, a uma massa total da substância social do valor socialmente produzido. Evidentemente, neste contexto, mantém-se correta a determinação de que apenas a energia de trabalho despendida com uma produtividade que corresponda à média social é ''válida''; mas precisamente não no que diz respeito ao trabalho despendido com a mercadoria individual, mas sim ao seu contributo para a massa global da substância social do valor.

 Agora, as metamorfoses do capital também têm de ser entendidas categorialmente, na unidade de forma e substância, como processo social global que se desenrola por detrás das costas dos agentes e, portanto, também inclui o movimento de realização. Mas as mesmas metamorfoses apresentam-se de um modo completamente diferente no plano empírico e no que diz respeito aos capitais individuais e aos seus representantes que, afinal, não podem assumir o ponto de vista da sua própria relação global. O movimento de realização no mercado, porém, é mediado pela concorrência universal, e é este movimento mediador da concorrência que determina, por sua vez, a concepção dos sujeitos funcionais e o seu comportamento. A verdadeira produção de valor substancial como um todo é que desaparece na percepção distorcida pelo filtro das relações de concorrência.

 Do ponto de vista do capital individual, parece que se aplica um determinado dispêndio de capital monetário, os custos (prévios) da produção, não se distinguindo entre a força de trabalho, a única que produz valor novo, e o capital material, que se limita a transferir valor produzido anteriormente (que se manifesta ao comprador desse capital material precisamente como meros custos). E nem pode ser de outra maneira, porque para o capital individual não conta minimamente o valor produzido pela força de trabalho que adquiriu, nem tão-pouco o verdadeiro valor que tenha sido produzido pelos seus fornecedores enquanto contributo para a massa global de valor. Pelo contrário, para o capital individual apenas são relevantes os preços manifestos (e  realizados) como custos ou proveitos da venda, os quais não têm qualquer relação direta com o plano do valor e, por isso, também não representam meras modificações de ''valores individuais''.

 O objetivo e o desígnio do capital individual consistem, na altura da venda no mercado, em atingir, para além da recuperação dos custos despendidos, no mínimo, um lucro igual ao lucro médio da sociedade. Este varia de ramo para ramo e está sujeito a diversas modificações que são, todas elas, determinadas pelas relações de mercado e de concorrência, não procedendo imediatamente do plano elementar do valor social global. Para o capital individual, é uma necessidade vital não ficar abaixo do lucro médio por períodos prolongados e, para alcançar esse fim, tem de se impor na concorrência que impera no mercado. Da sua perspectiva, que não deixa de ser acertada quanto a esse ponto, o resultado da venda assim alcançado não tem rigorosamente nada a ver com a quantidade da força de trabalho por ele aplicada ou com a quantidade de trabalho por esta despendida mas, aparentemente, também nada a ver com com quantidades de trabalho em termos gerais. É também esta a perspectiva da economia política, que assim assume o ponto de vista ''teórico'' do limitado capital individual,  como ainda teremos de explicar com maior precisão. E tudo isto não deixa de estar correto, mas justamente apenas para o capital individual, que nem sequer pode conhecer o seu próprio contexto social condicionante no plano de valor substancial.

 Daí também decorre claramente que -- e por que razão -- o conceito de valor de Marx é completamente diferente do da ciência econômica burguesa. Apesar da contínua determinação ''individual'' do valor em Marx, o seu conceito de valor acaba por só poder ser derivado do capital enquanto relação global total. O conceito burguês de ''criação de valor'', porém, refere-se unicamente à relação entre custos prévios e proveitos (do capital individual); e isto de um modo em tudo independente da verdadeira e substancial constituição de valor (no conjunto da sociedade) pela energia do trabalho humano. É, portanto, determinado pelo ponto de vista do capital individual. A relação de custos e proveitos é extrapolada para a soma dos capitais individuais, de onde decorre uma imagem errada da verdadeira criação de valor.

 No entanto, esta perspectiva está perfeitamente correta enquanto se aplica realmente ao capital individual, apenas estando distorcida e invertida no que diz respeito ao processo global ou à reprodução do capital global, que é o que na realidade determina a reprodução dos capitais individuais -- mas o capital individual, afinal, nem sequer pode assumir este ponto de vista, que não lhe diz respeito, e a economia política também não corresponde à sua vocação. Ora, como é que se apresenta o assunto do ponto de vista do todo, a assumir unicamente numa atitude de distanciamento teórico? A totalidade da quantidade de trabalho despendida de forma ''válida'' (correspondente ao padrão de produtividade) nos capitais individuais agrega-se, por detrás das costas dos agentes, a uma massa social total de valor ou mais-valia. E é só neste plano que os termos valor e mais-valia são válidos e reais em sentido rigoroso. O capital é aqui um todo social que, no entanto, tem de se realizar como esse todo através da mediação da produção e da concorrência de capitais individuais no mercado. A massa de valor global que é produzida pelo trabalho global é representada pela massa de mercadorias, independentemente da força de trabalho despendida nas mercadorias como únicos protagonistas reais, tal como também foi produzida por eles como contributo para a massa global.

 E eis aqui o ponto decisivo: os capitais individuais não se realizam por aquela massa de valor que foi produzida por eles de forma individual, entre quatro paredes, mas por aquela quota-parte da massa de valor agregada por toda a sociedade que arrebatam na concorrência e de que conseguem apropriar-se. Não existe nenhuma relação imediata entre o dispêndio de trabalho realizado pelo capitalista individual e o lucro desse capitalista individual e, portanto, por conseguinte, não existe essa relação entre a quantidade de trabalho despendida em uma mercadoria e a dimensão do seu valor -- que, em boa verdade, não é mais do que a dimensão do seu preço, visto que o valor nem sequer pode ser avaliado de forma individual; ele subjaz ao sistema de preços no plano da totalidade da sociedade, o que é diferente.

 Em Marx, porém, a relação apresenta-se, no primeiro livro d'O Capital, como sendo uma relação imediata entre a quantidade de trabalho e a dimensão individual do valor, porque a sua lógica de exposição trata, à moda do individualismo metodológico, a relação entre a objectualidade do valor e a dimensão do preço, na realidade mediada no plano da totalidade da sociedade, com base na mercadoria individual ideal-típica, e a relação ente a mais-valia e a dimensão do lucro com base no capital individual ideal-típico, ao passo que a real mediação entre a dimensão do valor e a dimensão do lucro apenas é tematizada no terceiro livro como a lógica do ''processo global''. É assim que surge a discrepância entre o primeiro livro (determinação do valor individual) e o terceiro (determinação do capital global). O célebre problema da transformação, a saber, a transformação de supostos ''valores individuais'' em ''preços de produção'', por princípio de uma dimensão diferente daqueles, mediados no plano da totalidade da sociedade é, deste modo, um pseudoproblema que resulta unicamente da inflexão no curso da exposição de Marx. No que diz respeito à dimensão do valor, não existe qualquer relação imediata com a quantidade individual de trabalho e o seu resultado individual, mas apenas uma dimensão total do valor do capital global, que se apresenta na mercadoria individual como uma parte da mesma não determinada de forma individual, mas unicamente através da mediação da concorrência, sob a forma do preço. Só  preço (afixado e realizado) é individual; o valor é sempre relativo à totalidade da sociedade. O preço só é empírico como resultado da concorrência; o valor é, por princípio, não empírico, como determinação essencial de toda a sociedade que apenas pode manifestar-se através da relação de mediação.

 Se assim não fosse, portanto, se a dimensão fosse realmente determinada de modo fundamentalmente linear pelo dispêndio individual de trabalho para a mercadoria individual , e se o preço apenas divergisse dessa dimensão individual ''verdadeira'' do valor devido a ''modificações'' que, no plano da totalidade da sociedade, voltariam a compensar-se, como oscilações do mercado, etc., nesse caso, a concorrência universal teria de se apresentar como totalmente supérflua e inexplicável ou até de ser atribuída a disposições subjetivas. Pelo contrário, o preço realizável é apurado por intermédio da concorrência, cujo movimento não produz o valor, mas o distribui de forma desigual.

 Todo o debate marxista, como também a crítica burguesa de Marx, nunca conseguiram ir além de tomar o ''valor individual'' por base inquestionável e depois tentar explicar a diferença relativamente ao preço de produção de alguma forma matemática, através de diversas ''tentativas de conversão'' (um exemplo típico de como a ''matematização'' no lugar errado se pode substituir à clarificação conceitual), ou querer demonstrar, precisamente por essa via, que a determinação do valor com base na substância do trabalho, feita por Marx, já estaria ferida de erro no momento da partida, tal como demonstraria o seu próprio rumo analítico incerto no terceiro livro.

 Mais uma vez: os ''valores individuais'' nem sequer existem; pelo contrário, o valor ou a mais-valia (afinal, é nisso que consiste o fim-em-si [do capital-fetiche, AM]) agregam-se objetivamente numa massa global de âmbito da metamorfose do capita global, ao passo que, no plano ''individual'', existem apenas apropriações de uma parte dessa massa global que se distinguem do contributo próprio em temos de lógica e grandeza empírica e são mediadas pela concorrência -- apropriações que se manifestam sob a forma dos preços ou da sua realização, sendo esta última, ao mesmo tempo, um momento na realização do valor ou da mais-valia do capital global. O valor constitui unicamente uma categoria do capital global, enquanto, no plano individual dos capitais individuais e dos sujeitos ''econômicos'' ou funcionais, a única coisa que existe empiricamente são os preços, cujo caráter de valor substancial ''para eles'' nem sequer se apresenta como tal, apenas se fazendo notar indiretamente nas repercussões do processo global que se desenrola por detrás das suas costas.

 Poder-se-ia que assim já não existiria nenhuma correspondência entre o valor e o preço, e que os preço seriam, a bem dizer, puramente arbitrários. No entanto, essa objeção não sai do individualismo metodológico entranhado e passa ao lado do problema. Pois, se o valor for somente uma categoria da totalidade da sociedade ou do capitalismo, deve existir, sim, a correspondência entre o valor (como massa global no singular) e os preços (como determinação individual das muitas mercadorias e capitais individuais no plural, sob forma de uma quota-parte do valor mediada pela concorrência), mas mais uma vez precisamente no plano do todo, e apenas aí. Só neste plano, a massa do valor e a massa dos preços (a soma das quotas-partes individuais da massa do valor) têm de acabar por corresponder uma à outra -- não de forma imediata e exata, mas de um modo processual e flutuante; caso contrário, a discrepância faz-se sentir, produzindo sinais de crise. Com efeito, é o que Marx acaba por dizer no terceiro livro, embora se atenha à determinação do valor individual proveniente do começo da sua exposição como um apriorismo.

 Assim sendo, a célebre equivalência não se verifica de modo algum no plano da chamada ''troca'' entre a mercadoria individual e o dinheiro; esta relação é incongruente na sua essência. Por isso, também não é uma ''troca'', mas precisamente o movimento de realização do capital, que se desenrola em atos individuais de realização desconexos e mediados pela concorrência no plano dos preços, enquanto o princípio de equivalência só é válido no plano da totalidade da sociedade. Dito isto, porém, qualquer concepção que separe este princípio do seu conteúdo material, puramente funcional e fetichista, e o transforme nu postulado de justiça subjetivo revela-se como um idealismo da troca ideológico ao mais alto grau, que reinterpreta falsamente a concorrência total no mercado como uma autonomia subjetiva de sujeitos da circulação. Esta crítica, já formulada acima, encontra agora a sua fundamentação mais circunstanciada. Que o ''sujeito automático'', no seu movimento de mediação da mediação, tenha de corresponder a si próprio em termos quantitativos constitui uma ''justiça'' e ''autonomia''  para esquecer, enquanto a ''liberdade'' e a ''autonomia'' dos agentes individuais consistem apenas em lutarem entre si, até a morte, pela massa de valor ou da mais-valia, arrancando à boca uns dos outros os nacos de valor, sem que haja nesse processo qualquer equivalência subjetiva ou individual.

 Pela ordem inversa, porém, os preços também não podem ser arbitrários do ponto de vista individual dos capitais individuais em concorrência. Desta perspectiva particular, o preço a se realizar, o preço a realizar tem de recuperar os custos despendidos, acrescidos de um determinado lucro. O preço (sobretudo enquanto preço exigido, não realizado) de um automóvel não pode, por isso, ser igual ao de uma escova de dentes. No entanto, esta relação de custos e proveitos (para o capitalista individual) não se processa diretamente no plano do valor, na medida em que o que está em causa aqui não são os custos específicos da força de trabalho, que é a única (no plano da totalidade da sociedade) a acrescentar valor, e o seu contributo para a massa de valor novo, mas apenas os custos globais empíricos (força de trabalho e capital material morto) do capital individual. Como estes custos prévios, no caso do automóvel, e mesmo num estado de desenvolvimento supremo das forças produtivas imposto pela concorrência, nunca podem ser tão baixos como no caso da escova de dentes (sem mencionar que, também no caso desta, a produtividade tem de crescer continuamente), existe aqui sempre uma diferença entre os custos de despendidos em cada caso  que tem de se repercutir nos preços. Indiretamente, esta diferença está mediada com o plano do valor, na medida em que não só o lucro enquanto resultado é uma quota-parte da massa do valor de toda a sociedade, como o mesmo também se aplica, evidentemente, aos custos prévios. Acontece que a quota-parte dos custos prévios na massa de valor de toda a sociedade é maior num carro do que numa escova de dentes. É ele que tem de ser recuperado no mínimo (mais o lucro) e, por isso, o preço não pode ser arbitrário, antes se orientando no seu cálculo pelos custos prévios respeitantes a cada mercadoria. No entanto, não existe qualquer relação direta e, por isso, uma congruência fundamental ou estrutural entre o plano do valor, por um lado, e o plano do preço ou dos custos, por outro. A relação empiricamente tangível não pressupõe nenhuma relação individual entre o trabalho individual despendido e a dimensão do valor, mas apenas aquela que existe entre os custos prévios, o preço e o lucro, e que resulta unicamente da referência, mediada pela concorrência, à massa de valor e de mais-valia de toda a sociedade. Tanto os fabricantes de automóveis como os de escovas de dentes concorrem entre si, concorrendo também os vários ramos uns com os outros pelo poder de compra da sociedade (e não custa imaginar que sujeitos capitalistas prescindam mais depressa da escova de dentes, do jantar, da roupa lavada, etc. que do automóvel).

 Por outro lado, é tudo menos garantido que o preço mínimo necessário seja realmente alcançado. Afinal, e como é sabido, existem permanentemente na concorrência perdedores que já não alcançam um lucro suficiente ou que nem sequer atingem um preço que cubra os seus próprios custos (os custos prévios). Nesse caso, têm de vender os produtos abaixo do custo, compensar temporariamente as perdas contraindo empréstimos ou acabar por ir à falência. Isso só quer dizer que já não podem participar individualmente na luta pela massa social de mais-valia, o que faz parte do dia-a-dia capitalista.

 Se este problema se exacerba para além dos habituais casos isolados, a ponto de constituir uma massa crítica, tal se deve a uma desproporção no conjunto da sociedade entre a produção real de valor e de mais-valia e a massa das mercadorias traduzidas em preços. Assim sendo, a crise não consiste, afinal, no fato de a mais-valia realmente produzida já não poder ser ''realizada'' de forma suficiente (tal como figura parcialmente em Marx e de forma continuada no marxismo tradicional) mas, pelo contrário, no fato de ter sido produzida massa de mais-valia real em consideravelmente menor quantidade que a totalidade dos preços ainda não realizados, ou de o valor real, por um lado, e o ''valor ideal'' (apenas concebido sob a forma de preços), por outro, divergirem muito no plano da totalidade da sociedade (este problema será abordado com maior pormenor nos capítulos seguintes). Da perspectiva dos capitais individuais e ainda mais dos sujeitos econômicos individuais, isto constitui um mistério, justamente porque o todo se encontra fora do seu campo de visão funcionalmente estreito, com as suas contradições.

 Ora,s e observarmos esta problemática no âmbito da histórica da economia política, verifica-se, nessa transição -- constatada por Foucault -- do paradigma (subjetivo) da circulação para o paradigma (subjetivo) do trabalho, um déficit fértil em consequências. Enquanto clássicos burgueses, tanto Adam Smith como David Ricardo, embora façam a transição da doutrina subjetiva (da circulação) do valor para a doutrina subjetiva, mantêm o ponto de vista do individualismo metodológico que, no fundo, é proveniente do paradigma ''pré-diluviano'' da circulação. O dispêndio de trabalho como determinação quantitativa é referido à mercadoria individual de forma ideal-típica e deverá reaparecer também individualmente em cada ''troca''. Este déficit dos clássicos burgueses deve-se à sua abordagem afirmativa e apologética, uma vez que o olhar sobre o todo logo poria em evidência tanto a sua constituição paradoxal como as contradições internas desta, tendo, por isso, de ser tabuizado. Deste modo, também a historicidade da explicação teórica, associada à doutrina do valor-trabalho objetivo, encalha a meio do caminho, uma vez que se comporta como objetivo o problema da crise, geralmente tabuizado.

 O individualismo metodológico constitui agora a charneira que, como demonstramos acima, faz com que a doutrina do valor objetivo do trabalha cai de novo numa teoria do valor da circulação, ou seja, na doutrina do valor subjetivo ''neoclássica''. A tematização vaga e envergonhada da relação global substancial, que ainda assim se detivera de forma contrafactual numa relação individual, é agora anulada e substituída por uma reinterpretação na circulação. O ponto de vista do limitado capital individual ou do sujeito econômico individual em geral, que em termos teóricos nunca fora abandonado, é reconduzido à sua esfera habitual, o mercado, e ao seu padrão ideológico de percepção. Por isso, o desenvolvimento da ''economia neoclássica'' radicaliza a perspectiva microeconômica da economia política até o sacrifício, hoje quase completo, da própria identidade de uma ciência do todo econômico.

 A determinação do valor como abstração funcional de uma avaliação dos benefícios subjetivos de participantes individuais no mercado mata vários coelhos com uma só cajadada: as contradições de uma determinação individual do valor são aparentemente resolvidas e o fetiche do capital, como relação social global, desaparece no cálculo do homo oeconomicus, tal como as crises, que já nem podem ser pensadas no âmbito desta lógica econômica reduzida e que supostamente resultam apenas do fator ''externo'' de atos falhos, uma vez mais subjetivos (por exemplo, intervenções políticas). E, como se tudo isso não bastasse, a abstração subjetiva e individual presta-se muito bem a ser ''matematizada'' e extrapolada na soma dos agregados sociais de avaliação dos proveitos, mesmo que essas grandezas ''sem substância'' já nada tenham a ver com a realidade capitalista, e muito menos com a empírica. A ''beleza'' matemática destes modelos é, por assim dizer, obra do esteticismo econômico irreal de uma teoria que já não o é, aproximando-se antes de uma espécie de artesanato intelectual.

Ora, em que relação com o seu objeto burguês é que se encontra, a este respeito, a crítica feita por Marx à economia política? Na exata medida em que Marx concede à doutrina do valor-trabalho objetivo de Smith e Ricardo um conteúdo ''científico'', por muito inacabado e errado que seja, esta concessão não remete apenas para um apego geral ao pensamento iluminista ou progressista burguês, mas igualmente para uma afinidade parcial com a reflexão redutora, própria do individualismo metodológico, do problema da substância, especialmente nos clássicos burgueses, tal como ela afinal também se manifesta no ''começo'' de Marx com a sua fixação conceitual analítica na mercadoria individual ideal-típica.

 No entanto, o conceito marxiano de substância já se distingue neste plano, em primeiro lugar, do dos clássicos burgueses, virando o conceito de ''trabalho abstrato'', adotado de Hegel, de forma crítico-materialista, desligando deste modo o conceito de substância como energia do trabalho humano abstrato (dispêndio de nervo, músculo e cérebro) tanto da sua definição econômica burguesa como ''trabalho'', na sua incomensurável forma sensível concreta e abstração meramente nominal, como da definição puramente ideal de Hegel, fazendo-o remontar ao seu caráter de fetiche ''realmente abstrato'' ou paradoxalmente ''sensível e abstrato''.

 Em segundo lugar, Marx, contrariamente aos clássicos burgueses, não se fica pelo conceito de circulação -- ainda assim por ele parcialmente mantido -- de uma produção universal e ''simples'' de mercadorias, desenvolvendo antes o conceito de capital como fim-em-si da ''riqueza abstrata'' e do ''sujeito automático'', embora também o fizesse sobretudo no plano do capital individual ideal-típico.

  Em terceiro lugar, Marx chega finalmente, no terceiro livro d'O Capital, ao conceito de uma relação social global dotada de uma qualidade própria e transversal, a desenrolar-se ''por detrás das costas'' dos agentes, ideia completamente alheia a Smith e Ricardo. No entanto, devido a sua lógica de exposição, Marx envolve-se em contradições entre a análise da forma de valor do ''começo'', ainda apegada ao individualismo metodológico burguês, e a reflexão final e inconsequente das categorias fundamentais de uma relação global que não se manifesta enquanto tal de imediato e está mediada em si mesma.