quarta-feira, 29 de junho de 2016

Marx e a crítica da ''economia desvinculada''




 Nas eleições presidenciais de 2014, uma fala do governador do estado do Piauí, Wellington Dias, em defesa da candidatura de Dilma Roussef me chamou bastante a atenção; ele dizia algo como ''é preciso que Dilma seja reeleita para que o país possa continuar indo bem tanto na economia quanto no social''. ''Tanto na economia quanto no social''... essa sentença me pareceu paradoxal, em virtude do fato de que a atividade econômica é, evidentemente, uma atividade social, uma atividade entre pessoas, mas, ao mesmo tempo, profundamente realista. Não é verdade que um país pode crescer economicamente a taxas altíssimas ao mesmo tempo em que sua população sofre com péssimas condições de trabalho, moradia e lazer, longuíssimas jornadas de trabalho, etc? Já não nos dizia Marx que a Holanda estava, em 1648, no seu apogeu comercial, e ao mesmo tempo possuía a população mais pobre, brutalmente oprimida e sobrecarregada de trabalho de toda a Europa?¹

 Há uma espécie de 'cisão' entra a produção das coisas necessárias e úteis às nossas vidas e as nossas necessidades. Não se produz para satisfazer necessidades humanas, mas simplesmente para obter dinheiro; o conteúdo da produção está submetido à forma de transformação de dinheiro em mais dinheiro, de valor em mais valor; o que chamamos de acumulação de capital. Isso se dá porque a sociedade está organizada sob a forma de mercado -- isto é, a produção, ao invés de coletivamente decidida e racionalmente organizada (como, por exemplo, numa aldeia), é realizada por produtores individuais formalmente independentes uns dos outros, que produzem para trocar seus produtos por outros produtos (ou seja, produzem mercadorias) -- daí desejarem obter o máximo possível da mercadoria que se converte em qualquer outra mercadoria (o que Marx chamou de ''equivalente geral''), o dinheiro. Se a produção não retornar um mínimo desejado de dinheiro -- em outras palavras, se não for ''rentável'' do ponto de vista do capitalista --, ela simplesmente não será realizada, de maneira que não só quem desejava aquele bem ou serviço ficará de mãos abanando como aqueles que não têm terras, máquinas ou outros ''meios de produção'' que lhes permitam produzir meios de subsistência ou mercadorias, mas unicamente suas forças de trabalho para vender (ou seja, que dependem de salários para sobreviver), ficarão sem emprego, sem salários e, portanto, potencialmente excluídos do processo de reprodução social. Esta é uma condição que, a bem da verdade, já afeta milhões, bilhões de pessoas ao redor de todo o mundo -- nós as vemos aos montes nas favelas, debaixo de pontes, em países africanos há muito imersos num caos de conflitos armados entre milícias etc.

 Compartilho abaixo um texto de Anselm Jappe, cuja referência será posta mais abaixo, no qual ele expõe o essencial da crítica de Marx a esta ''economia desvinculada'' da sociedade humana, autonomizada -- verdadeira máquina que já se descolou de qualquer satisfação obrigatória das necessidades de boa parte da humanidade e que nos levará (ainda mais) à barbárie, se não for substituída por um planejamento coletivo e racional da produção -- no que, por fim, deixará de ser ''economia'', um sistema-fetiche regido por leis de certa maneira independentes das vontades dos indivíduos.

Crítica da economia em geral
 A «crítica da economia política» de Marx não é apenas uma crí­tica das doutrinas económicas burguesas, antes constitui também uma crítica da existência da «economia» enquanto tal. Marx nunca usa o termo «economia» com uma significação positiva; nunca qualifica a sua teoria como «doutrina económica» ou algo de semelhante (1). À primeira vista pode parecer que isto entra em contradição com o facto de se pensar que a teoria marxiana se baseia precisamente nessa categoria. Os representantes do «materialismo histórico» sempre repetiram que o ser material determina a consciência e que a «economia» é a «base» de todos os outros aspectos da vida social. Proclamaram esta subordinação dos homens aos seus próprios produtos como uma verdade corajosa que é necessário pôr em relevo contra a transfiguração idealista burguesa da realidade. Porém, a inversão da relação entre meios e fins é característica da sociedade capitalista, na qual o conteúdo se subordina à forma. Não faz sentido transformar este facto negativo, que representa um estado de alienação, porque nessa situação o carácter social não tem consciência de si mesmo, num facto positivo. Marx analisa o capitalismo através do trabalho e da economia, mas ao fazê-lo não está a falar da sociedade humana em geral. É certo que sublinha o facto de mesmo as sociedades pré-capitalistas terem que começar sempre por assegurar a satisfação das suas necessidades vitais, e sublinha também que a maneira como o faziam determinava as outras formas sociais (2). Mas com isso Marx não pretende dizer que se trate de um dado ontológico e sempre válido, se a satisfação das necessidades assume a forma de uma esfera separada, a «economia», com regras próprias que essa esfera impõe a todas as outras esferas sociais. Se abstrairmos do facto banal de que os homens têm antes de mais que comer, vestir-se, etc., a prevalência da «economia», mesmo no sentido mais amplo, torna-se algo de muito pouco evidente nas sociedades pré-capitalistas. Em inúmeras circunstâncias, são outros critérios que prevalecem sobre os critérios «económicos»; como exemplos, podemos citar as festividades tradicionais, a dissipação de bens levada a cabo pelos nobres e as ocasiões, frequentes na história, em que uma sociedade renunciou a introduzir invenções técnicas com as quais se poderia ter economizado trabalho. O «materialismo histórico» - cuja codificação não é a obra de Marx - só é apropriado como análise do capitalismo: no capitalismo, a produção material não constitui somente a base da sociedade (o que acontece sempre), antes constitui também o principio organizador autonomizado da sociedade, o seu principio de síntese social.
E toda a distinção entre «base» e «superestrutura», o eixo do materialismo histórico, que, do ponto de vista da crítica do valor, revela ser pouco útil, sobretudo relativamente às realidades não capitalistas. O marxismo tradicional tentou muitas vezes mitigar a rigidez dessa distinção com a ideia de uma «acção recíproca» entre a base económica e a superestrutura cultural, jurídica, religiosa, etc. A acção recíproca pressupõe contudo a existência de factores separados que seria necessário reunir a posteriori e externamente. Parece então muito mais prometedor explorar a «forma total» e explicar o nascimento simultáneo, num contexto determinado, do sujeito e do objecto, da base e da superestrutura, do ser e do pensamento, da praxis material e ¡material. É preciso que nos interroguemos sobre a praxis social que se cindiu nesses dois pólos. Quanto mais se recua na história, menos sentido faz querer distinguir entre factores «materiais» e factores «ideais». O «potlatch», por exemplo, a que voltaremos no capítulo seguinte, era simultaneamente uma forma de circulação dos produtos, uma forma de fixar e de confirmar a hierarquia social, um ritual religioso, um jogo, etc. A separação entre a «utilidade» e os outros factores era desconhecida nesse contexto, e nele não é possível reconhecer uma esfera autónoma que fosse a da «economia». A «economia», baseada no «valor», é a forma moderna do fetichismo. Todas as sociedades se baseiam na apropriação da natureza, mas essa circunstância não faz ainda a «economia». Esta apropriação passa sempre por um processo de codificação simbólica pressuposto e inconsciente, que pode ser num caso a religião e noutro o valor. Na sociedade moderna, o valor é ao mesmo tempo a forma do pensamento e da acção, sem que possa deduzir-se o primeiro da segunda ou vice-versa. 
A história é afinal sobretudo uma história de fetichismos, e não tanto história da luta de classes. A luta entre as classes, enquanto estrutura dinâmica, só pode existir no capitalismo, uma vez que os antagonismos sociais das sociedades precedentes eram em grande medida estáticos. Só o valor dinamiza os antagonismos sociais, transformando-os em lutas de classes. O parentesco de sangue, o totemismo, a propriedade do solo e o valor podem ser considerados como etapas do processo por via do qual o homem se separa da natureza, tornando-se um sujeito relativamente consciente face à natureza primeira, mas não ainda face à segunda natureza, que é a sua própria conexão social criada por ele mesmo (3). Todas essas sociedades se baseiam numa constituição inconsciente. Relativamente a elas, a teoria estruturalista e a teoria dos sistemas teriam parcialmente razão, se não considerassem essa ausência de um sujeito humano como uma constante intemporal. O sujeito existe: mas actualmente não é o homem que é sujeito, mas sim o seu produto. O sujeito humano não é uma ficção, mas até agora também nunca existiu em forma completa. O sujeito humano está em devir. Não é necessário recorrer a teorias da manipulação para explicar como as classes no poder puderam impor durante milhares de anos à maioria dos homens um sistema de exploração: são as relações fetichistas que até hoje criaram as relações de produção e com elas as correspondentes formas de consciência. Rebatemos já várias vezes a asserção segundo a qual «por trás» das relações fetichistas das coisas se encontrariam «na verdade» relações humanas. Poder-nos-iam objectar que a critica marxiana do fetichismo significa precisamente desvelar a falsidade da aparência de um automovimento das coisas (económicas). Qual então o sentido da nossa crítica da interpretação habitual do fetichismo? Decerto que em última análise os homens são os criadores dos seus produtos. «Por trás» da mercadoria, enquanto forma fetichizada, encontra-se, no plano material, o homem - contudo, não o homem como sujeito consciente, o homem que controla o seu próprio carácter social, mas sim o homem fetichista. O criador do fetichismo é um homem que só é sujeito em relação à natureza, mas não no que respeita à sua própria sociabilidade. É por isso que é preciso conceber a teoria do fetichismo como teoria do nascimento histórico do sujeito e do objecto em formas alienadas desde o início. Ultrapassar o fetichismo não pode, pois, significar a restituição dos predicados a um sujeito que já existisse em si e cuja essência houvesse sido alienada. Significa, pelo contrário, criar o sujeito consciente e não fetichista e proceder à apropriação de uma parte daquilo que até agora foi produzido sob forma fetichista. O fetichismo «ultrapassável» consiste na existência da mercadoria e do valor; e enquanto a mercadoria e o valor existirem, o homem será efectivamente dominado pelos seus próprios produtos.
Pode assim imaginar-se um programa de investigação materialista e crítica que analise a história enquanto história dos fetichismos, na qual se entrelaçam sempre factores «materiais» e «ideais» (ou «simbólicos»), No fundo, Marx faz algo de semelhante quando concebe a sua critica do valor fetiche como uma continuação directa da crí­tica da religião e ao sublinhar várias vezes as semelhanças entre as duas estruturas que se baseiam sempre na «inversão». Fá-lo nas suas notas de juventude sobre Mill, já citadas, bem como na passagem do Capital em que diz que «o Cristianismo, com o seu culto do homem abstracto, designadamente no seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o Deísmo, etc., [é] a forma religiosa mais correspondente» em relação a «uma sociedade de produtores de mercadorias» (4). Numa outra passagem Marx escreve; «Não pode ser de outra maneira, num modo de produção em que o trabalhador existe para as necessidades de valorização dos valores existentes, em vez de pelo contrário ser a riqueza material a existir para as necessidades de desenvolvimento do trabalhador. Da mesma maneira que na religião é dominado por uma fabricação da sua própria cabeça, também na produção capitalista é dominado por uma fabricação da sua própria mão.» (5) 
(1) Facto que não impediu muitos marxistas de restabelecerem o uso positivo do termo «economia». Mas passa-se completamente ao lado da questão quando se escreve um Tratado de economia marxista (E. Mandei), quando se dá a designação de «Economia» a uma secção da edição francesa das obras de Marx (M. Rubel) ou ao proceder como K. Korsch que divide o seu livro Karl Marx em partes intituladas «A sociedade burguesa», «A economia política» e «A história». História e consciência de classe, de Lukács, representa uma excepção parcial: «Esta “economia” [futura, socialista] já não tem contudo a função que até então haviam tido todas as economias; ela deverá ser serva da sociedade conscientemente dirigida; deverá perder a sua imanência, a sua autonomia, que dela faziam propriamente uma economia; deverá ser suprimida enquanto economia» (Lukács, Qeschichte, págs. 396-397; Histoire, pág. 289). Infelizmente esta ideia notável acabou por não passar de uma intui­ção isolada, mesmo na obra do próprio Lukács. De qualquer modo, História e consciência de classe pôs em relevo o carácter histórico da categoria da economia: «Pelo contrário, nas sociedades pré-capitalistas as formas jurídicas têm necessariamente que intervir de maneira constitutiva nas conexões económicas. Não há aqui categorias puramente económicas [...] que surjam em formas jurídicas [...]. Antes sucede que as categorias económicas e jurídicas se encontram, pelo seu conteúdo, efectivamente entrelaçadas umas com as outras [...]. A economia, dizendo em termos hegelianos, também não atingiu objectivamente o nível do ser-para-si [...]. Nos tempos pré-capitalistas, as classes só podem ser isoladas na realidade histórica imediatamente dada por intermédio da interpretação da história operada pelo materialismo histórico» (Lukács, Qeschichte, págs. 135-137; Histoire, págs. 80-82).

(2) MEW 23/96, nota 33; Le Capital I, pág. 94; O Capital 1-1, págs. 97-98.

(3) Para Marx, o aspecto paradoxal do capitalismo reside precisamente no facto de o capitalismo, apesar de toda a dominação técnica da natureza, se apresentar sempre aos homens sob a forma de «leis naturais omnipotentes, expressão de uma dominação fatal» (MEW 25/839; Le Capital III, pág. 865; O Capital 111-2, pág. 280), que «escapa cada vez mais ao seu controlo» (MEW 25/255; Le Capital III, pág. 261; O Capital III-1, pág. 185).

(4) MEW 23/93, Le Capital I, pág. 90; O Capital l-l, pág. 95.

(5) MEW 23/649, Le Capital I, pág. 696; O Capital 1-3, pág. 707.

Referências:
[1] O Capital: crítica da economia política, livro primeiro, capítulo XXIV.
[2] JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006.

domingo, 26 de junho de 2016

É o ''neo-desenvolvimentismo'' uma verdadeira alternativa ao neoliberalismo?




Marcelo Carcanholo, economista marxista brasileiro e professor da UFF, discute a questão acima numa entrevista ao portal uruguaio ZUR.

"(...) la forma que el capitalismo encuentra para responder a los efectos de su crisis actual, tanto en el centro de la acumulación mundial como en las economías dependientes - lo que nos incluye -, es profundizar el neoliberalismo más radical. Esto porque la crisis actual implica una rebaja de las tasas de ganancia, una vez que gran parte de los capitales se especializaron meramente en apropriarse de la riqueza, sin contribuir directamente para su producción. Así, hay dos formas de resolver la situación. Una es dejar que los mercados devalúen esa cantidad enorme de capitales superacumulados, sin respaldo en la producción de la riqueza. Esa salida está descartada porque implicaría quiebra de capitales. La otra es ganar tiempo en los mercados de corto plazo para que esos capitales no se devalúen, lo que implica que el Estado tiene que entrar comprando los títulos podridos, garantizando demanda por esos títulos e impidiendo sus rebajas. La implicancia de esto es el crecimiento de la deuda pública, actual forma de manifestación de la crisis mundial. Pero eso apenas permite ganar tiempo para lo que de hecho es la salida del capital para la crisis. Se trata de aumentar la producción de riqueza, para que los derechos de apropiación tengan sostenibilidad en la producción aumentada. Y para eso hay que sobreexplotar la fuerza de trabajo. ¿Cómo se hace? Profundizando las reformas neoliberales. O sea, el ajuste que promueve el propio capital para su crisis hace que quien pague la cuenta sean los trabajadores. Esto en los marcos del capitalismo es lo normal."

Veja o resto aqui.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Tempo, etnocentrismo e ideologia

 O texto abaixo é um trecho do capítulo IV do livro ''Responsabilidade intelectual e ensino universitário: carta aberta aos que amam a ciência'', do sociólogo e professor da UFRN Alípio de Sousa Filho (que já teve outros textos publicados aqui). O livro foi publicado no ano 2000. 




<<Fala-se da data [a virada do 1999 para o ano 2000, AM] como sendo um evento histórico de valor geral: a entrada no ''terceiro milênio''. O assunto que se transformou em um tema acadêmico -- dá títulos a seminários, artigos, livros etc. -- e, curiosamente, os meios intelectuais e a imprensa vêm transformando-o em algo dado, cujo contorno é o de um evento natural (ainda que se fale em tempo!) e universal. Que os cristãos ignorem que se trata de um evento particular e que o aceitem tacitamente, é natural: submetidos a toda uma longa tradição e a mitos de alta eficácia simbólica, estão, em certa medida, impedidos de saber que se trata de algo circunscrito às suas tradições. Mas o mesmo se torna curioso quando se trata daqueles que lidam com o conhecimento histórico-científico e com a informação. Contudo, ao que parece, sob efeito do clima intelectual dominante, muitos são aqueles que, no meio universitário e na imprensa, vêm dizendo ''terceiro milênio'', ''novo milênio'', etc., como se falassem de algo que, por si só, encerasse definição independente -- independente de toda história? Inconscientemente ou não, naturalizam o que é, em sua essência, uma produção histórico-cultural particular, uma representação do tempo, um mito. Ora, como se sabe, o chamado ''terceiro milênio'' o é apenas para cristãos -- esse é ''terceiro milênio'' da chamada ''era cristã''. Porém, a aceitação tácita de periodização histórica que resulta de convenção de uma única tradição, assim como a aceitação da crença que lhe acompanha, segundo a qual o chamado ''terceiro milênio'' constituirá acontecimento que beneficiará toda a humanidade, com mudanças da maior importância, criam a ilusão de que se trata de evento imanente à história e de valor geral.

 Sabe-se que os calendários, como sendo sistemas de divisão do tempo em dias, meses e anos, são convenções que variam cultural e historicamente, sendo ainda sistemas apoiados em mitologias. Assim como existem sociedades que jamais ouviram falar de sistemas de calendários, é também fato que não existe só um calendário para toda a humanidade -- sobre o assunto, pode-se ler o interessante livro de G. J, Whitrow ''O tempo na história'' (1993), e sobre o significado mítico que os homens atribuem à passagem do tempo e com o qual organizam seus calendários, Mircea Eliade, ''O mito do eterno retorno'' (1988).

 Atualmente, porque diferentes são as tradições e os mitos, os povos se regem por diferentes calendários. Para os judeus, que adotam o sistema lunissolar, o ano 2000 (do calendário gregoriano) corresponde, em seu calendário, ao ano 5760, uma vez que ali os anos são contados a partir da data presumida, nos seus mitos, como sendo a da criação do mundo, ou seja, 3762 a.C. Para os muçulmanos, que adotam o sistema lunar, e que contam os anos considerando ''O hégira'' -- o dia mítico da fuga de Maomé de Meca para Medina em 622 --, estamos no ano 1420. Considerando que, para estas e outras tradições -- como as indianas, chinesas, etc. --, o nosso calendário -- o gregoriano -- lhes é estranho, estariam esses povos excluídos dos benefícios do chamado ''terceiro milênio''?

 O que chamamos ''terceiro milênio'' somente é válido tomando-se como referência a tradição cristã. Convém lembrar, nesta tradição, [que] o aprisionamento do tempo, na forma do calendário, apoia-se em referências não menos míticas que as das demais tradições, sendo o nosso calendário também resultado de convenção: como se sabe, o que é considerado marco, na parte cristianizada do mundo, para determinar o começo da ''era cristã'' é a data presumida do nascimento de sua personagem mítica mais importante, Jesus Cristo -- assunto em torno do qual não reinam a certeza e o consenso, mas o mito. Acrescente-se que interpretações de antropólogos e de historiadores demonstram ser o nascimento, vida e morte de Cristo eventos envoltos em representações que seguem longa tradição mítica anterior -- que vão dos povos mesopotâmicos, egípcios, gregos, celtas e romanos antigos aos índios Zunis americanos e aos indianos de hoje --, pouco podendo-se assegurar sobre datas, fatos históricos, etc. A esse respeito, a leitura de As estruturas antropológicas do imaginário (Durand, 1989: 339 e segs.) é muitíssimo interessante. 

 As fantasias em torno do ano 2000, que tomam a data como de valor universal, e a crença segundo a qual a entrada no ''terceiro milênio'' será acompanhada de mudanças decisivas para a humanidade não são apenas manifestações de etnocentrismo; elas são, principalmente, manifestações da alienação relativamente a uma cultura particular e aos seus mitos. Estamos plenamente no reino da ideologia. Como se sabe, as representações que transformam o particular em universal realizam a operação mais poderosa da ideologia, a operação que lhe dá sustentação.>>



Uma observação não feita por Alípio é a de que, embora os cristãos se assustassem com a virada do ano 1999 para o ano 2000, a chegada ao terceiro milênio só viria, de fato, com o ano 2001...

Para mais sobre a construção social do tempo, leia esse texto

A ideologia social do automóvel


por André Gorz





 O grande problema dos carros é o fato de serem como castelos ou mansões à beira-mar: são bens de luxo inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito rica, os quais em concepção e natureza nunca foram destinados ao povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio ou da bicicleta, que retêm seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à beira-mar, é somente desejável e vantajoso a partir do momento em que a massa não dispõe de um. Isso se deve ao fato de que, tanto em sua concepção quanto na sua finalidade original, o carro é um bem de luxo. E o luxo, por definição, é impossível de ser democratizado: se todos ascendem ao luxo, ninguém tira proveito dele. Ao contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e são logrados, enganados e frustrados por sua vez.



 Isso é admitido sem questionamentos pelo senso comum no caso das mansões à beira-mar. Nenhum demagogo ousou até agora dizer que democratizar o direito às férias significa aplicar o princípio uma mansão com praia particular para cada família. Todos compreendem que, se cada uma das treze ou quatorze milhões de famílias existentes na França devesse dispor mesmo que apenas de dez metros da costa, seriam necessários 140.000 km de praia para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte, seria preciso dividir as praias em tiras tão pequenas – ou amontoar tanto as mansões – que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo hoteleiro desapareceria. Em suma, a democratização do acesso às praias admite somente uma solução: a solução coletivista. E essa solução está necessariamente em guerra com o luxo que constituem as praias particulares, privilégio que uma pequena minoria se atribui à custa de todos.



 Ora, por que aquilo que é absolutamente óbvio no caso das praias não é geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Por acaso um carro também não ocupa um espaço tão escasso quanto uma mansão na praia? Não espolia os outros que usam as ruas (pedestres, ciclistas, usuários de ônibus ou bondes)? Não perde seu valor de uso quando todo mundo utiliza o seu? No entanto abundam os demagogos que afirmam que cada família tem o direito a pelo menos um carro, e que seria até mesmo encargo do “Estado” atuar de forma que todos pudessem estacionar convenientemente e viajar no feriado ou nas férias ao mesmo tempo que todos os outros a 150 km/h.
No entanto, a monstruosidade dessa demagogia salta aos olhos. Mesmo a esquerda não desdenha recorrer a ela. Por que o carro é tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens “privados”, ele não é reconhecido como um luxo anti-social? A resposta deve ser procurada nos seguintes aspectos do automobilismo:



1. A massificação do automóvel materializou um triunfo absoluto da ideologia burguesa no que tange à prática cotidiana: ela constrói e mantém em cada um a crença ilusória de que cada indivíduo pode prevalecer e tirar vantagem à custa de todos. O egoísmo cruel e agressivo do motorista que, a cada minuto, assassina simbolicamente “os outros”, que aparecem para ele meramente como obstáculos materiais à sua própria velocidade – esse egoísmo marca a chegada, graças ao automobilismo cotidiano, de um comportamento universal burguês, e tem existido desde que dirigir um carro tornou-se lugar-comum. (“Nunca se construirá o socialismo com este tipo de gente”, um amigo alemão oriental me disse, consternado ao ver o espetáculo do tráfego parisiense.)



2. O automóvel oferece o exemplo paradoxal de um objeto de luxo que foi desvalorizado por sua própria difusão. Mas essa desvalorização prática não acarretou ainda sua desvalorização ideológica: o mito do prazer e do benefício do carro persiste, apesar de que se os transportes coletivos fossem generalizados eles demonstrariam sua esmagadora superioridade. A persistência desse mito pode ser explicada facilmente: a generalização do carro particular golpeou os transportes coletivos, alterou o urbanismo e o habitát e transferiu ao carro certas funções que sua própria difusão tornou necessárias. Será preciso uma revolução ideológica (“cultural”) para quebrar esse círculo vicioso. Obviamente, não se deve esperar isso da classe dominante (de direita ou de esquerda).


 Vejamos mais de perto esses dois pontos.

 Quando foi inventado, o carro tinha a finalidade de proporcionar a alguns burgueses muito ricos um privilégio totalmente inédito: o de circular muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sequer sonhado com isso: a velocidade de todas as charretes era essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre; as carruagens dos ricos não eram muito mais velozes do que as carroças dos camponeses e os trens carregavam todos à mesma velocidade (eles não possuíam velocidades diferentes até começarem a competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava a uma velocidade diferente do povo. O automóvel iria mudar tudo isso: pela primeira vez as diferenças de classe seriam estendidas à velocidade e aos meios de transporte.


 Esse meio de transporte no início parecia inacessível às massas por ser tão diferente dos meios de transporte comuns: não havia nenhuma comparação entre o automóvel e os outros: a charrete, o trem, a bicicleta, ou o bonde a cavalo. Seres de exceção saíam em veículos com autopropulsão que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos, extremamente complicados, eram tão misteriosos quanto escondidos dos olhos. Esse foi um aspecto importante ao desenvolvimento do mito do automóvel: pela primeira vez as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de funcionamento lhes eram completamente desconhecidos, e cuja manutenção e alimentação deviam ser confiadas a especialistas. Paradoxo do automóvel: aparentemente, ele confere
aos seus proprietários uma independência ilimitada, permitindo que se desloquem quando e onde quiserem a uma velocidade igual ou maior que a do trem. Mas, na verdade, essa autonomia aparente traz no verso uma dependência radical: ao contrário do cavaleiro, do charreteiro ou do ciclista, o motorista passaria a depender, para sua alimentação energética, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e dos especialistas em carburação, lubrificação, ignição e da troca das peças-padrão. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios de locomoção, o relacionamento do motorista viria a ser aquele de usuário e consumidor – e não de possuidor e dono – com o veículo do qual, formalmente, ele era proprietário. Em outras palavras, esse veículo obriga o proprietário a consumir e usar uma gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente podem ser fornecidos por terceiros. A autonomia aparente do proprietário de automóvel esconde sua radical dependência.



 Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia ser extraído da difusão em larga escala do automóvel: se o povo pudesse ser levado a circular em carros a motor, poderia vender-lhe o combustível necessário à sua propulsão. Pela primeira vez na história as pessoas passariam a depender de uma fonte mercantilizada de energia para sua locomoção. Haveria tantos clientes para a indústria de petróleo quanto houvesse motoristas – e, uma vez que haveria tantos motoristas quanto houvesse famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos magnatas do petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se realizar: todos iriam depender, para suas necessidades diárias, de uma mercadoria monopolizada por uma única indústria.



 Tudo o que deveria ser feito era conseguir que o povo circulasse de carro. Pouca persuasão seria necessária: bastaria baixar o preço do carro através da produção em série e da linha de mon-tagem. As pessoas se precipitariam a comprá-lo. Precipitaram-se efetivamente, sem perceber que estavam sendo conduzidas pelo nariz. De fato, o que a indústria do automóvel lhes prometeu? Pura e simplesmente isso: “De agora em diante você também terá o privilégio de se deslocar, como os senhores e burgueses, mais rápido que os demais. Na sociedade do automóvel, o privilégio da elite está a seu alcance”.



 As pessoas se precipitaram sobre os carros até que, quando a classe trabalhadora começou a comprá-los também, os motoristas, frustrados, perceberam que haviam sido enganados. Foi prometido a eles um privilégio de burgueses; eles haviam se endividado para adquiri-lo, e agora viam que qualquer um alcançava o privilégio ao mesmo tempo que eles. Afinal, o que é um privilégio se todos o alcançam? É um logro monumental. Pior ainda, é o todos contra todos. É a paralisação geral criada por um engarrafamento geral. Pois, quando todos reivindicam o direito de circular na velocidade privilegiada da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego urbano cai vertiginosamente – tanto em Boston como em Paris, Roma, ou Londres – abaixo daquela do bonde a cavalo; e a velocidade média nas estradas que levam para fora da cidade, durante o fim de semana, é inferior à velocidade de um ciclista.



 E não há nada que se possa fazer: tentou-se de tudo, e não se conseguiu, afinal de contas, mais do que agravar o mal. De multiplicarem as vias radiais e as vias circulares, os viadutos, as vias expressas de seis pistas e com pedágio, o resultado é sempre o mesmo: quanto mais vias a serviço, mais carros afluem e mais paralisante se torna o congestionamento do tráfego urbano. Enquanto houver cidades, o problema permanecerá sem solução: por mais larga e rápida que seja uma via de entrada, por mais alta que seja a velocidade com que andem os veículos ao entrar na cidade, ela não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da cidade. Enquanto a velocidade média em Paris for de 10 a 20 km/h, dependendo da hora, ninguém poderá sair das vias que afluem à cidade a mais de 10 a 20 km/h. É possível, inclusive, que a velocidade média seja inferior, uma vez que os acessos estarão saturados, e esse engarrafamento se prolongará a dezenas de quilômetros assim que se produza uma saturação nas vias de acesso.



 O mesmo ocorre no interior da cidade. É impossível dirigir a mais de 20 km/h de média no emaranhado de ruas, avenidas e bulevares que atualmente caracterizam as cidades. A introdução de veículos mais rápidos atrapalha o tráfego urbano, causando gargalos e, por fim, uma paralisação completa.



 Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: suprimir as cidades, isto é, enfileire-as por centenas de quilômetros, ao longo de avenidas enormes, fazendo delas subúrbios de estradas. Isso é o que foi feito nos Estados Unidos. Ivan Illich resume o resultado nas seguintes cifras: “O americano típico dedica mais de 1.500 horas ao ano (que são 30 horas por semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro: esse cálculo inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho necessárias para pagá-lo e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro, multas e impostos. Esse americano precisa de 1.500 horas para andar (ao ano) 10.000 km. Seis quilômetros por hora. Nos países desprovidos de uma indústria de transporte, as pessoas viajam exatamente nessa velocidade a pé, com a vantagem de poder ir aonde quiserem e de não estar restritas às estradas de asfalto”.



 É verdade, Illich aponta, que em países não industrializados os deslocamentos não absorvem mais de 3 a 8% do tempo social (que seguramente correspondem em média de duas a seis horas por semana). Conclusão sugerida por Illich: uma pessoa a pé anda tantos quilômetros em uma hora destinada ao transporte quanto uma pessoa motorizada, mas dedica a seus deslocamentos um tempo de cinco a dez vezes menor. Moral: quanto mais uma sociedade difunde veículos rápidos, mais tempo – a partir de um determinado ponto – as pessoas gastarão e perderão se deslocando. É mera matemática.



 A razão? Acabamos de vê-la: as aglomerações humanas foram divididas em infinitos subúrbios de estradas, porque essa era a única maneira de evitar o congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto dessa solução é óbvio: o resultado final é que as pessoas não podem se deslocar facilmente porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as distâncias foram multiplicadas: as pessoas vivem longe de seu trabalho, longe da escola, longe do supermercado – o que requer então um segundo carro para que a “dona-de-casa” possa fazer as compras e levar os filhos à escola. Passeios? Fora de questão. Amigos? Há os vizinhos... e só. No final das contas, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 100 por hora, mas isso porque você vive a 50 km do seu trabalho e está disposto a perder meia hora para cobrir os últimos 10 km. Somando tudo: “Uma boa parte da jornada de trabalho é gasta para pagar os deslocamentos necessários para ir ao trabalho” (Ivan Illich).
Talvez você esteja dizendo: “Mas ao menos dessa maneira se pode escapar do inferno da cidade após o fim da jornada de trabalho”. Essa é a questão, justamente. “A cidade”, que por gerações inteiras foi objeto de entusiasmos e considerada o único lugar onde valia a pena viver, é considerada agora um “inferno”. Todos querem escapar dela para viver no campo. Por que tal mudança de atitude? Por uma única razão: o carro tornou a cidade grande inabitável. Tornou-a fedorenta, barulhenta, asfixiante, empoeirada, congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha. Assim, uma vez que os carros assassinaram a cidade, necessitamos carros mais rápidos para fugir em auto-estradas para zonas cada vez mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de modo que possamos escapar da devastação causada pelos carros.



 De um objeto de luxo e de fonte de privilégio, o carro transformou-se assim numa necessidade vital: ele é imprescindível para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário. Nem sequer é necessário persuadir as pessoas a quererem um carro: sua necessidade é um fato rotineiro. É certo que possam aparecer certas dúvidas quando se assiste à evasão motorizada ao longo dos eixos de fuga: entre 8h e 9h30 da manhã, entre 5h30 e 7 horas da tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas os meios de evasão se prolongam nas procissões de pára-choque-a-pára-choque que vão, na melhor das hipóteses, à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações de gasolina e chumbo. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando, inevitavelmente, a velocidade máxima nas estradas é limitada exatamente pela velocidade do veículo mais lento?



 Após ter assassinado a cidade, o carro assassina o carro. Após ter prometido a todos uma circulação mais veloz, a indústria do automóvel nos leva ao previsível resultado de que todos têm que andar tão vagarosamente quanto o mais lento, a uma velocidade determinada pelas leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: inventado para permitir que seu proprietário vá aonde deseja, à velocidade e hora que deseja, o carro acabou por se transformar no mais servil, incerto, imprevisível e incômodo de todos os veículos: mesmo se reserva uma extravagante quantidade de tempo, você nunca sabe quando os engarrafamentos o deixarão chegar lá. Você está ligado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a seus trilhos. Da mesma forma que o viajante de trem, você não pode parar de improviso e, como num trem, você deve ir a uma velocidade determinada pelos outros. Em suma, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e possui todas as suas desvantagens, além de mais algumas próprias: vibração, fadiga muscular, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo.



 No entanto, você pode estar dizendo que as pessoas não tomam trem. Claro! Como poderiam?! Você já tentou alguma vez ir de Boston a Nova York de trem? Ou de Ivry a Tréport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a l’Isle-Adam?1 Você tentou em um sábado ou domingo de verão? Bem, então tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou em tudo: tão logo o carro assassinou o carro, ele fez com que as alternativas de mudança desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim, primeiramente o Estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre as cidades, os subúrbios e os campos circunvizinhos se deteriorassem, e em seguida as suprimiu. As únicas que foram poupadas foram as conexões intermunicipais de alta velocidade que disputam com as linhas aéreas sua clientela burguesa. O aerotrem, que poderia pôr o litoral ou os lagos de Morvan ao alcance dos parisienses domingueiros, servirá para que se ganhe quinze minutos entre Paris e Pontoise e para descarregar nos terminais algumas centenas de viajantes que os transportes urbanos não estarão em condições de receber. E a isso chamam progresso!



 A verdade é que ninguém tem opção: não se é livre para ter ou não um carro uma vez que o universo dos subúrbios é projetado em função do carro – e, cada vez mais, é assim também no universo urbano. É por isso que a solução revolucionária ideal, que consistiria em suprimir o carro em favor da bicicleta, do ônibus, do bonde, e do táxi sem chofer, não é mais sequer aplicável nas cidades de auto-estradas como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes ou mesmo Bruxelas, que são modeladas por e para o automóvel. Cidades estilhaçadas, estiradas ao longo de ruas vazias nas quais se alinham edifícios idênticos e onde a paisagem (o deserto urbano) diz: “Estas ruas são feitas para se dirigir tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. São ruas para passar, não para estar. No fim do dia de trabalho todos devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do anoitecer deve ser considerado suspeito de ‘fazer o mal’”. Em algumas cidades americanas, o ato de dar uma volta a pé nas ruas à noite torna o andarilho suspeito de crime.



 Então a partida está perdida? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser global. Para que as pessoas possam renunciar a seus carros, não será suficiente lhes oferecer meios de transporte coletivos mais cômodos: é preciso que possam dispensar por completo o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas suas comunidades, nas suas cidades, construídos em escala humana, e por terem prazer em andar do trabalho para casa a pé ou, se preciso for, de bicicleta. Nenhum meio de transporte e evasão veloz jamais compensará a desgraça de viver numa cidade inabitável em que ninguém se sente em casa em lugar algum, ou de passar somente para ir trabalhar ou, ao contrário, para se isolar e dormir.



 “Os usuários”, escreve Illich, “quebrarão as correntes do transporte todo-poderoso quando voltarem a amar como se fosse seu próprio território a sua ilhota de circulação e a temer ficarem demasiado distante dela muitas vezes”. Mas, a fim de amar “seu território”, ele deve antes de qualquer coisa ser habitável, e não circulável. O bairro ou a comunidade deve novamente transformar-se em um microcosmo modelado por e para todas as atividades humanas, onde as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se conhecer, se comunicar, discutir e gerir conjuntamente o meio social de sua vida em comum. Tal como respondeu Marcuse quando lhe perguntaram como as pessoas gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista tivesse sido eliminado: “Vamos tratar de destruir as grandes cidades e construir novas e distintas. Isso nos manterá ocupados por um tempo”.



 Pode-se imaginar que essas novas cidades serão federações de comunidades (ou de bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais os cidadãos – e em especial crianças em idade escolar – passariam diversas horas da semana cultivando os alimentos frescos necessários à sua subsistência. Para seus deslocamentos cotidianos disporão de uma gama completa de meios de transporte adaptados a uma cidade de tamanho médio: bicicletas municipais, bondes ou ônibus elétricos e táxis elétricos sem motoristas. Para os deslocamentos mais importantes, por exemplo para ir ao campo, assim como para transporte de hóspedes, se disporá de um contingente de automóveis comunais que estariam repartidos pelas garagens dos diferentes bairros. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isso não virá por si só.


 Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca coloque isoladamente o problema do transporte. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho e à compartimentalização que ela introduz nas diversas dimensões da existência: um lugar para trabalhar, outro para “habitar”, um terceiro para se abastecer, um quarto para aprender, um quinto para se divertir. A maneira que o espaço é arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Ela corta uma pessoa em rodelas, corta seu tempo, sua vida, em fatias bem separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo a mercê dos negociantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: a unidade de uma vida, sustentada pelo tecido social da comunidade.