sexta-feira, 10 de junho de 2016

Tempo, etnocentrismo e ideologia

 O texto abaixo é um trecho do capítulo IV do livro ''Responsabilidade intelectual e ensino universitário: carta aberta aos que amam a ciência'', do sociólogo e professor da UFRN Alípio de Sousa Filho (que já teve outros textos publicados aqui). O livro foi publicado no ano 2000. 




<<Fala-se da data [a virada do 1999 para o ano 2000, AM] como sendo um evento histórico de valor geral: a entrada no ''terceiro milênio''. O assunto que se transformou em um tema acadêmico -- dá títulos a seminários, artigos, livros etc. -- e, curiosamente, os meios intelectuais e a imprensa vêm transformando-o em algo dado, cujo contorno é o de um evento natural (ainda que se fale em tempo!) e universal. Que os cristãos ignorem que se trata de um evento particular e que o aceitem tacitamente, é natural: submetidos a toda uma longa tradição e a mitos de alta eficácia simbólica, estão, em certa medida, impedidos de saber que se trata de algo circunscrito às suas tradições. Mas o mesmo se torna curioso quando se trata daqueles que lidam com o conhecimento histórico-científico e com a informação. Contudo, ao que parece, sob efeito do clima intelectual dominante, muitos são aqueles que, no meio universitário e na imprensa, vêm dizendo ''terceiro milênio'', ''novo milênio'', etc., como se falassem de algo que, por si só, encerasse definição independente -- independente de toda história? Inconscientemente ou não, naturalizam o que é, em sua essência, uma produção histórico-cultural particular, uma representação do tempo, um mito. Ora, como se sabe, o chamado ''terceiro milênio'' o é apenas para cristãos -- esse é ''terceiro milênio'' da chamada ''era cristã''. Porém, a aceitação tácita de periodização histórica que resulta de convenção de uma única tradição, assim como a aceitação da crença que lhe acompanha, segundo a qual o chamado ''terceiro milênio'' constituirá acontecimento que beneficiará toda a humanidade, com mudanças da maior importância, criam a ilusão de que se trata de evento imanente à história e de valor geral.

 Sabe-se que os calendários, como sendo sistemas de divisão do tempo em dias, meses e anos, são convenções que variam cultural e historicamente, sendo ainda sistemas apoiados em mitologias. Assim como existem sociedades que jamais ouviram falar de sistemas de calendários, é também fato que não existe só um calendário para toda a humanidade -- sobre o assunto, pode-se ler o interessante livro de G. J, Whitrow ''O tempo na história'' (1993), e sobre o significado mítico que os homens atribuem à passagem do tempo e com o qual organizam seus calendários, Mircea Eliade, ''O mito do eterno retorno'' (1988).

 Atualmente, porque diferentes são as tradições e os mitos, os povos se regem por diferentes calendários. Para os judeus, que adotam o sistema lunissolar, o ano 2000 (do calendário gregoriano) corresponde, em seu calendário, ao ano 5760, uma vez que ali os anos são contados a partir da data presumida, nos seus mitos, como sendo a da criação do mundo, ou seja, 3762 a.C. Para os muçulmanos, que adotam o sistema lunar, e que contam os anos considerando ''O hégira'' -- o dia mítico da fuga de Maomé de Meca para Medina em 622 --, estamos no ano 1420. Considerando que, para estas e outras tradições -- como as indianas, chinesas, etc. --, o nosso calendário -- o gregoriano -- lhes é estranho, estariam esses povos excluídos dos benefícios do chamado ''terceiro milênio''?

 O que chamamos ''terceiro milênio'' somente é válido tomando-se como referência a tradição cristã. Convém lembrar, nesta tradição, [que] o aprisionamento do tempo, na forma do calendário, apoia-se em referências não menos míticas que as das demais tradições, sendo o nosso calendário também resultado de convenção: como se sabe, o que é considerado marco, na parte cristianizada do mundo, para determinar o começo da ''era cristã'' é a data presumida do nascimento de sua personagem mítica mais importante, Jesus Cristo -- assunto em torno do qual não reinam a certeza e o consenso, mas o mito. Acrescente-se que interpretações de antropólogos e de historiadores demonstram ser o nascimento, vida e morte de Cristo eventos envoltos em representações que seguem longa tradição mítica anterior -- que vão dos povos mesopotâmicos, egípcios, gregos, celtas e romanos antigos aos índios Zunis americanos e aos indianos de hoje --, pouco podendo-se assegurar sobre datas, fatos históricos, etc. A esse respeito, a leitura de As estruturas antropológicas do imaginário (Durand, 1989: 339 e segs.) é muitíssimo interessante. 

 As fantasias em torno do ano 2000, que tomam a data como de valor universal, e a crença segundo a qual a entrada no ''terceiro milênio'' será acompanhada de mudanças decisivas para a humanidade não são apenas manifestações de etnocentrismo; elas são, principalmente, manifestações da alienação relativamente a uma cultura particular e aos seus mitos. Estamos plenamente no reino da ideologia. Como se sabe, as representações que transformam o particular em universal realizam a operação mais poderosa da ideologia, a operação que lhe dá sustentação.>>



Uma observação não feita por Alípio é a de que, embora os cristãos se assustassem com a virada do ano 1999 para o ano 2000, a chegada ao terceiro milênio só viria, de fato, com o ano 2001...

Para mais sobre a construção social do tempo, leia esse texto

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