sábado, 24 de outubro de 2015

Natureza x moralidade e a naturalização como ferramenta ideológica de dominação




 ''O que é um fundamento? Não é nem um princípio, explica Marcel Conche, nem uma causa, nem uma origem. O princípio é o ponto de partida de uma dedução. Mas como, sem fundamento, escolher entre os diferentes fundamentos possíveis e às vezes contraditórios? O fundamento não é um princípio, mas a 'justificação radical' dos próprios princípios.

 A causa explica um fato. Mas como a causa, sem fundamento, passar do fato à norma? O fundamento não é o que explica fatos, mas o que 'estabelece o direito': ele não diz o que é, mas o que deve ser.

 A origem, enfim, dá uma razão a um devir: é como uma causa histórica ou diacrônica. Mas como, sem fundamento, passar da história ao valor, da explicação ao mandamento, da gênese ao valor? O fundamento não explica o que se passa; ele permite julgá-lo absolutamente, em nome de algo que não se passa.

 Se me concederem essas distinções ou, antes, se as concederem a Marcel Conche, compreenderão que não posso encontrar, na natureza em geral e na neurobiologia em particular, nenhum fundamento, qualquer que seja, para a moral que é a nossa. Primeiro porque a neurobiologia, supõe ela mesma princípios, sempre relativos, que portanto não poderiam comandar absolutamente. Em seguida, e sobretudo, porque ela não pode estabelecer ou explicar coisa alguma além de fatos, e por outros fatos: ela pode nos fornecer, para a moral, certos números de causas ou de origens, mas um fundamento certamente não. Permanece inteira, com efeito, a objeção de Hume, que mostra que não se pode passar nunca do que é (um fato) ao que deve ser (um valor absoluto, um imperativo). Querer fundar uma moral na natureza é, inevitavelmente, cair no que Moore chamava de ''sofisma naturalista'' (naturallistic fallacy). Querer fundar uma moral nas ciências é cair num sofisma cientificista. Por que a natureza seria boa? Por que a verdade seria boa? Equivaleria transformá-las em divindades, e é o que o materialismo rejeita. A natureza é submetida unicamente a causas (unicamente a ela mesma): ela não conhece valores nem deveres. Uma ciência conhece unicamente fatos: ela sempre fala no indicativo, como dizia o matemático Henri Poincaré, nunca no imperativo, e é o que a impede de fazer as vezes de moral.

 Imaginemos, por exemplo, que nossos biólogos nos demonstrem que nosso cérebro ou nossos genes (ou aquele por estes) são 'programados' para sermos egoístas, covardes, mentirosos, crueis... O que isso nos ensinaria sobre o valor moral do egoísmo, da covardia, da mentira ou da crueldade? O que isso retiraria, inversamente,do valor da generosidade, da coragem, da boa-fé, da doçura?

 Isso me faz pensar nesses debates ridículos que às vezes ouvimos nos cafés sobre a suposta moralidade ou imoralidade  da homossexualidade. Uma pessoa diz em essência: 'A homossexualidade não é natural', e enxerga nisso uma condenação moral. O outro objeta que há casos de homossexualidade entre animais, logo tem de ser natural: por que, então, condená-la? É não ver, em ambos os casos, que tudo o que existe é natural, por definição. Mas ainda que não me concedessem esse ponto, pergunto o que a dimensão natural ou não natural (no sentido estrito: no sentido de que a natureza se opõe à cultura) que a homossexualidade muda em seu valor moral. Minha ideia, claro, é que não muda nem um pouco. Tomo por prova que não necessitamos saber dessa naturalidade ou não -- a questão é discutida pelos especialistas -- para julgar que a homossexualidade é moralmente inocente, do mesmo modo que não necessitamos saber sobre a eventual naturalidade da pedofilia para julgá-la moralmente condenável. Quanto aos bichos como poderiam nos ensinar uma moral que ignoram? É possível que a guerra seja uma especificidade humana. Isso não a torna moralmente desejável, nem sempre condenável. Tomar os animais como modelos de uma boa natureza (contra as supostas perversões da humanidade ou da civilização) seria destinar-nos a uma vida bestial. É o que se quer? Tomá-los como modelo de uma má natureza, à qual seria sempre necessário arrancar-se, seria nos fadar a um angelismo absurdo e mortífero, que seria igualmente perigoso, talvez mais. O homem não é nem anjo nem bicho? Digamos que ele é bicho primeiro, ou melhor, animal: é um animal capaz de juízo, um animal socializado, educado, civilizado, é um animal que fala, que raciocina, que ama, é o que chamamos um ser humano. A moral não lhes permite escapar de seus genes. Mas como seus genes poderiam bastar à sua moral?''

COMTE-SPONVILLE, André. ''Neurobiologia e filosofia: Existem fundamentos naturais da ética?: Por que a natureza seria boa?''. In: COMTE-SPONVILLE, André; FERRY, Luc. A sabedoria dos modernos. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 90-92.



''A maneira como a cultura opera -- e o modo como os indivíduos se tornam membros de uma sociedade -- esconde um fenômeno pela sua natureza invisível, mas capaz de manter a todos os indivíduos sob o poder de instituições sociais existentes: os homens acabam por se ver prisioneiros da vida social (dos tabus, crenças, mitos e normas nela existentes), sem que se deem conta de que se trata de produtos por eles próprios criados. Todo o processo que dá origem à cultura, e origem ao próprio homem, desaparece para dar lugar à ideia de que a realidade vivida é natural, necessária, inevitável, independente do querer e do agir humanos. A realidade social aparece como consequência da natureza das coisas, como resultado de desígnios sagrados. O homem perde a noção do processo social que está na base de sua existência histórica e da história de suas instituições.

 O que torna possível que a cultura se constitua nessa lente que condiciona o olhar humano é a ação das representações sociais, que consegue fazer com que a realidade das sociedades apareça aos homens como dada, fixa, imutável, revestida da aura da sacralidade necessária para a autolegitimação. Uma vez que aparece como coisa dada a realidade social assume a aparência de autônoma, podendo existir por si ou como resultado de leis naturais, como extensão da 'natureza' dos homens, que também é representa como decorrente de condicionamentos biológicos fixos.

(...)

A legitimação das instituições sociais -- pelo ocultamento do processo histórico-social que lhes dá origem e pelo ocultamento da dominação a que submetem os indivíduos -- é o que o simbolismo mítico-religioso-ideológico produz por seu efeito e, não sem razão, podemos dizer que não há simbólico que não seja sempre-já ideologia. Ser a dissimulação da natureza particular das convenções sociais e ser a explicação da origem do real que dota a realidade social de sentido é o que caracteriza a ideologia, no fundamento, e o que torna sua existência algo eficaz, que cabe à análise teórica do social desvendar.

 O que em tudo isso se apresenta muito claro é que a ideologia serve, em primeiro lugar, à dominação nas sociedades. Pois é da sua natureza, como ideologia, ocultar a gênese histórico-social da realidade, fazendo com que a ordem das sociedades humanas apareça como natural, necessária, inevitável e independente da ação humana. A ideologia é sempre a justificação da ordem social existente e experimentada pelos indivíduos, pois fornece a estes os fundamentos da existência nessa ordem. Seja por meio dos mitos, seja por meio dos discursos que se querem racionais, a ideologia trata sempre de fazer crer que as instituições sociais existem por razões que não se pode duvidar, pois, ora se apresentam como produtos de leis naturais, ora se apresentem como produtos da vontade de poderes sagrados. Daí a ideologia se constituir no discurso que a sociedade faz sobre si mesma sempre de maneira a tornar invisível o processo que engendra e preserva sua estrutura de sociedade.

(...)

No nível do aparecer, no que consiste a ideologia de fato, a realidade construída pelos homens passa a 'existir' como coisa natural, necessária, universal e imutável. O que torna possível que a experiência de estar submetido a uma sociedade particular não seja percebida como a experiência do particular, mas como a experiência universal. Fundamento de toda a adesão dos indivíduos às suas sociedades e, por sua vez, fundamento de toda alienação. No que temos a relação direta e imediata entre ideologia e cultura, uma vez que toda experiência de estar submetido a uma cultura ocorre simultaneamente ao seu ocultamento enquanto uma experiência particular, pois aparece, para os indivíduos, sempre-já como uma experiência única e inevitável -- os padrões culturais (como dizemos em antropologia) aparecendo como universais. Na inversão em que o particular ganha a aparência de universal e se esconde o que talvez seja a operação mais poderosa da ideologia. Segredo de todo o poder de dominação sobre os indivíduos.

(...)

É, pois, por essa razão que se pode afirmar que para a ideologia a História é um perigo, que procura evitar. Negar a historicidade da realidade, a vida social pode ser petrificada no tempo e no espaço como eterna e imutável, pois independente da prática dos homens. E como a natureza da ideologia a torna necessária à dominação, pois consegue fazer com que a dominação também apareça como eterna, imutável e independente de todo o agir e querer humanos, o perigo da História é ainda maior se for posto o problema do desvendamento da origem de todo poder de dominação. O ocultamento da historicidade da realidade é imediatamente ocultamento da origem histórico-social do poder de dominação em todas as suas formas.''

SOUSA FILHO, Alípio de. ''Mito e castigo: A cultura do medo, a cultura da dominação: 1. A cultura do medo, a cultura da dominação, ou de uma relação entre cultura e ideologia''. In: _____. Medos, mitos e castigos: notas sobre a pena de morte. São Paulo: Cortez, 2001, pp. 11-90.



''Os economistas têm uma maneira singular de proceder. Não existe para eles senão duas espécies de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições da feudalidade são as instituições artificiais, as da burguesia são as instituições naturais. Eles se parecem nisto com os teólogos que, eles também, estabelecem duas espécies de religião. Toda religião que não é a sua é uma invenção dos homens, enquanto que a sua própria religião é uma emanação de Deus. Dizendo que as relações atuais — as relações da produção burguesa — são naturais, os economistas dão a entender que se trata de relações nas quais se cria a riqueza e se desenvolvem as forças produtivas de acordo com as leis da natureza. Logo, estas relações são elas mesmas leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem reger sempre a sociedade. Assim, já existiu história, mas não existe mais. Existiu história, pois que existiram instituições de feudalidade, e que nestas instituições de feudalidade se encontram relações de produção inteiramente diferentes daquelas da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais e portanto eternas.''

MARX, Karl. ''A metafísica da economia política: 1. O método: Sétima e última observação''. In: _____. Miséria da Filosofia. São Paulo: Martin Claret, 2008, pp. 144-145.

domingo, 18 de outubro de 2015

A teoria da ''ideologia'' em Althusser


Louis Althusser (1918-1990)

 A teorização que o filósofo francês faz acerca da ''ideologia'' está, como ele bem cedo deixa claro, intima e mesmo essencialmente relacionada com a sua interpretação da ''teoria marxista da história'' (1979, p. 204). Partindo desta última, e assim definindo os '''sujeitos' da História'' como ''as sociedades humanas dadas'', ele afirma que estas são 

''(...) totalidades, cuja unidade é constituída por um certo tipo específico de complexidade, pondo em jogo as instâncias que se pode mui esquematicamente, na sequência de Engels, reduzir a três: a economia, a política e a ideologia. Em toda sociedade se constata, pois, sob formas às vezes muito paradoxais, a existência de uma atividade econômica de base, de uma organização política e de formas ''ideológicas'' (religião, moral, filosofia). A ideologia faz, pois, organicamente, parte, como tal, de uma totalidade social. [grifo do autor]'' (Idem, pp. 204-5)

 Ainda segundo ele, ''as sociedades humanas segregam a ideologia como o elemento e a atmosfera mesma indispensáveis à sua respiração'', e ''(a ideologia) é uma estrutura essencial à vida histórica das sociedades'' (Ibid, p. 205). Mas que é, exatamente, a ideologia? Diz-nos ele que 

''Uma ideologia é um sistema (possuindo a sua lógica e o seu rigor próprios) de representações (imagens, mitos, ideias ou conceitos segundo o caso) dotado de uma existência e de um papel históricos de uma sociedade dada.'' (Ibid, p. 204)


 E prossegue:

 ''Convencionou-se dizer que a ideologia pertence à região da 'consciência'. É preciso não se deixar enganar por esse epíteto, que permanece contaminado pela problemática idealista anterior a Marx. Na verdade, a ideologia pouco tem a ver com 'consciência',  ao supor-se que esse termo tenha um sentido univoco. Ela é profundamente inconsciente, mesmo quando se apresenta (como na 'filosofia' pré-marxista) sob uma forma refletida. A ideologia é, antes de tudo, um sistema de representações: mas essas representações na maior parte das vezes nada têm a ver com 'consciência': elas são na maior parte das vezes imagens, às vezes conceitos, mas é antes de tudo como estruturas que elas se impõem à imensa maioria dos homens, sem passar para a sua consciência. São objetos culturais percebidos-aceitos-suportados, e que agem funcionalmente sobre os homens por um processo que lhes escapa.'' (Ibid, p. 206)

 Compreende-se, então, que a ''ideologia'' (no entender  de Althusser) não é algo como um dado específico ou uma opinião -- dos quais se pode estar consciente --, mas algo como um ''horizonte'' de pensamento, os ''limites'' dentro dos quais as consciências dos homens concebem a realidade:

''(...) os homens vivem as suas ações... na ideologia, através e pela ideologia; ...a relação 'vivida' dos homens com o mundo, inclusive a História (na ação ou inação política), passa pela ideologia, ou melhor, é ela própria a ideologia. É nesse sentido que Marx dizia que é na ideologia (como lugar de lutas políticas) que os homens tomam consciência de seu lugar no mundo e na história: é no seio dessa inconsciência ideológica que os homens chegam a modificar as suas relações 'vividas' com o mundo, e a adquirir essa nova forma de inconsciência específica que se chama 'consciência'.'' (Ibid, idem)

 E acrescenta:

 ''A ideologia é, então, a expressão da relação dos homens com o seu 'mundo', isto é, a unidade (sobredeterminada) da sua relação com o real e da sua relação imaginária com as as suas condições reais. Na ideologia, a relação real está, inevitavelmente, investida na relação imaginária: relação que exprime mais uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionária), mesmo uma esperança ou uma nostalgia, que não descreve uma realidade.'' (Ibid, pp. 205-6)

 A ''ideologia'' é, então, um ''sistema de representações'' que ''orienta'' a realidade social (as relações entre os indivíduos) para uma formação específica, uma ''ordem'' social específica, concebida como natural, única possível ou necessária, numa espécie de ''racionalização'' -- de forma que garante sua reprodução através do tempo, dominando os indivíduos sem o uso de repressão.

''A ideologia, assim, responde a uma exigência anterior à necessidade da reprodução das relações de produção (capitalistas ou outras) e da dominação política de classe, como ainda entendem diversos autores (marxistas ou não). Anterior a qualquer outra coisa, a ideologia assegura, em todo sistema de sociedade, mesmo naqueles nos quais não há classes, que a ordem social não desabe enquanto uma ordem simbólica, ratificando-a, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e certas ideias sociais, como uma ordem natural, única, universal, imutável, divina. Resultado que a ideologia procura obter invertendo o caráter de coisa construída de toda ordem social e suas instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida sem o recurso da força. A ideologia constitui o modo de operar de qualquer cultura (enquanto sistema de sociedade), ao procurar naturalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos sociais (variando do mito à ciência moderna) que oferecem significações legitimadoras do que em cada cultura está instituído.'' (SOUSA FILHO, 2009)

 O caráter de ideologia é definido pela função que o ''sistema de representações'' específico desempenha:

''Sem entrar nos problemas das relações de uma ciência com o seu passado (ideológico) diremos que a ideologia como sistema de representações se distingue da ciência nisto em que a sua função prático-social tem preeminência sobre a função teórica (ou função de conhecimento).'' (ALTHUSSER, 1979, p. 204).

''Há, finalmente, em Gramsci, além do sentido polêmico e prático desse conceito [o de historicismo], uma verdadeira concepção 'historicista' de Marx: concepção 'historicista' da teoria da relação da teoria de Marx com a história real. Não se trata de puro acaso que Gramsci esteja constantemente perseguido pela teoria crociana da religião, pois que aceita seus termos e a estende das religiões efetivas à nova 'concepção de mundo' que é o marxismo; não faz, sob esse aspecto, diferença alguma entre essas religiões e o marxismo; classifica religiões e marxismo sob o mesmo conceito de 'concepções de mundo' ou 'ideologias'; identifica também facilmente religião, ideologia, filosofia e teoria marxista, sem ressalvar que o que distingue o marxismo dessas 'concepções ideológicas de mundo' é menos essa diferença formal (importante) de pôr fim a todo 'além' supraterrestre que a forma distintiva dessa imanência absoluta (sua 'terrestridade'): a forma da cientificidade. Essa 'ruptura' entre as antigas religiões ou ideologias inclusive 'orgânicas' e o marxismo, que é uma ciência, e que deve tornar-se ideologia 'orgânica' da história humana, produzindo nas massas uma nova forma de ideologia (uma ideologia que repousa agora numa ciência -- o que jamais se viu) -- essa ruptura não é verdadeiramente por Gramsci (...).'' (Idem, 1980, pp.74-5)


 Um exemplo de ideologia (ou de manifestação da ideologia) seria o fenômeno do ''fetichismo da mercadoria'', que Marx descreve no Livro Primeiro de O Capital:

''(A mercadoria encobre) ...as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características sociais inerentes ao produto do trabalho; (ocultando,) ...portanto, a relação social entre o trabalho individual dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho''. (2014, p. 94)
''O que é verdadeiro apenas para essa determinada forma de produção, a produção de mercadorias... parece aos produtores de mercadorias  tão natural e definitivo... quanto o ar''. (Idem, p. 96)

 Ou a ''heteronormatividade'', segundo a qual o desejo sexual na espécie humana ocorre universalmente sob o imperativo da reprodução -- uma racionalização das diferenças anatômicas entre os seres humanos:

 ''Não é a heterossexualidade uma forma inata de sexualidade; como uma prática sexual, ela é social e historicamente construída, e sua naturalização e hegemonia ocorreram por efeito de um longo trabalho de domestificação do imaginário local das sociedades humanas, que se faz invalidando, ao mesmo tempo, a prática da homossexualidade, excluída como uma 'inversão' da sexualidade 'normal'''. (SOUSA FILHO, 2009)

Referências 

ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Étienne (orgs). Ler O Capital, volume 2. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
SOUSA FILHO, Alípio de. ''Teorias sobre a gênese da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude''. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Por que o Brasil é diferente?


 O texto abaixo corresponde ao capítulo 5 do livro A persistência da raça: Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005) de Peter Fry -- famoso antropólogo inglês que trabalhou vários anos no Brasil e foi (juntamente como Edward McRae) coautor do clássico O que é homossexualidade?, parte da coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense --, cujo nome está no título deste post; nele (originalmente lançado em 1996), comentando sobre duas obras lançadas nos EUA acerca das relações raciais no Brasil, o autor tenta demonstrar a especificidade no Brasil quanto a elas e a relação disso com a conduta e o desempenho dos movimentos negros nacionais. Pretendo transcrever outras passagens do livro futuramente. 


 Em 1995, foram publicados nos Estados Unidos dois livros importantes sobre a movimentação política em torno da questão ''racial'' no Brasil, Orpheus and Power: The ''Movimento Negro'' of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1968, do cientista político norte-americano Michael Hanchard e Slave Rebellion in Brazil: The Muslim uprising of 1835 in Bahia, do historiador brasileiro João José Reis. O contraste entre os dois livros e as situações que descrevem levaram-me a pensar sobre a antiga construção argumentativa das diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos no que diz respeito à escravidão e à subsequente elaboração e administração das diferenças supostamente raciais.

 Do início do século XX até a década de 1940, negros americanos que visitavam o Brasil voltavam fazendo grandes elogios ao país. Michael George Hanchard observa, por exemplo, que líderes como Brooker T. Washington e W. E. B. DuBois descreveram de modo positivo a impressão que tiveram dos negros brasileiros, enquanto o líder nacionalista negro Henry McNeal Turner e o jornalista de esquerda Cyril Briggs chegaram a defender a ideia de imigração para o Brasil, onde encontrariam refúgio contra a opressão vivida em seu país. Mas a experiência de Hanchard cinquenta anos depois foi muito diferente. Assim que chegou ao Brasil em 1988, ao sair de um supermercado foi abordado por um empregado da loja, que lhe perguntou se havia pago suas compras. Ao fazer menção de mostrar o recibo, o gerente aproximou-se e, com um aceno das mãos, mandou que ele fosse embora. ''Foi aí que eu compreendi'', diz Hanchard, ''que a sociedade brasileira não podia estar imune ao preconceito, à discriminação e à exploração, por razões raciais, existentes em sociedades que se constituíram historicamente de modo semelhante.

 DuBois e Hanchard falam de experiências distintas em épocas diferentes. Na época de DuBois, o Brasil era conhecido como uma ''democracia racial'', onde pessoas de diferentes cores de pele conviviam de modo harmonioso e sem problemas, tanto assim que a UNESCO financiou uma série de pesquisas no país na esperança de descobrir ''soluções'' que pudessem ser exportadas para sociedades mais habituadas ao conflito racial. Mas, na realidade, o projeto da UNESCO acabou revelando que havia tanto preconceito racial no Brasil quanto em qualquer outro lugar e, desde então, tem crescido o número de estudos que comprovam a existência da desigualdade racial nos locais de trabalho, no sistema educacional, em toda parte, e constatam que o Brasil padece de um racismo profundamente insidioso, que se torna ainda mais traiçoeiro por ser oficialmente negado. O ''mito'' da democracia racial só faz piorar a situação, pois ''mascara'' o racismo e torna ainda mais difícil percebê-lo e denunciá-lo. Este é o ambiente intelectual que cerca a viagem de Hanchard ao Brasil e a base de sua argumentação no livro sobre o Movimento Negro brasileiro.

 Orpheus and Power consiste na descrição e na análise cuidadosamente circunstanciada das várias organizações negras que surgiram no Brasil dos últimos quarenta anos, utilizando dados históricos, entrevistas com cerca de duzentos militantes e contendo uma valiosa resenha da literatura acadêmica sobre relações raciais no mesmo período. Ao contrário da maioria dos pesquisadores que até então haviam feito trabalhos sobre os Movimentos Negros brasileiros, Hanchard fez uma pesquisa bastante pertinente e de difícil resposta: por que razão o movimento negro não conseguia ultrapassar um pequeno número de militantes. Colocando a questão numa perspectiva comparativa, Hanchard indaga por que no Brasil não se criou ''um movimento social afro-brasileiro que recebesse um apoio comparável ao do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos ou às rebeliões nacionalistas africanas do Sul do Saata e de outras regiões do Novo Mundo após a Segunda Guerra Mundial''.

 A resposta de Hanchard encontra-se no que ele chama de ''um processo de hegemonia racial'', que neutraliza a identificação racial entre os não-brancos. Diz ele que a ''hegemonia racial'' estimula a discriminação racial e simultaneamente nega sua existência, e, dessa maneira, ''ajuda a reproduzir as desigualdades sociais entre brancos e não-brancos''. Em outras palavras, o ''mito da democracia racial'' atua permanentemente no sentido de desativar a ''consciência'' da discriminação racial e da desigualdade.

 Se o mito da democracia racial é o principal ''impedimento'' ao sucesso do movimento negro, outros obstáculos também estão presentes, a saber, ''a carência de recursos e instituições'', o ''culturalismo'' e um forte pendor para disputas ideológicas secretas. Hanchard afirma ainda que o Movimento Negro gasta tempo demais com as questões da cultura negra e as iniquidades do passado escravista e dedica pouco atenção às verdades da discriminação contemporânea. Como Orfeu, o Movimento Negro é impelido a olhar para trás e perder sua Eurídice. Depois de fazer essas observações críticas, Hanchard passa a sugerir possibilidades de mudança. Faz uma advertência contra a criação de consciência sem atividade política e sugere que o Movimento deveria concentrar-se no trabalho de informação sobre extensão da discriminação racial e deveria dedicar-se à organização ''no nível das comunidades, por intermédio do desenvolvimento e coordenação de grupos locais e nacionais para o monitoramento  dos casos de violência racial e outras formas de discriminação (...). Isso daria ao Movimento uma base mais sólida do que a atualmente existente.''

 O livro de João José Reis, Slave Rebellion in Brazil, também é o relato de um fracasso. Trata da rebelião de escravos mais importante da Bahia, a Revolta Malê, que ocorreu em 1835 em Salvador. Em um domingo de janeiro, durante o Ramadã, cerca de seiscentos escravos e libertos, sob a inspiração dos mestres muçulmanos (chamados de malês na Bahia, naquele tempo) e carregando talismãs que continham textos sagrados do Alcorão, insurgiram-se contra o governo. Provocaram uma enorme confusão na cidade até que foram vencidos e levados a julgamento. Aterrorizados diante da perspectiva de que a Bahia se tornasse uma nova São Domingos, as autoridades apressaram-se em pronunciar as sentenças. Dos rebeldes, quatro foram condenados à morte, dezesseis à prisão, oito a trabalhos forçados, quarenta e cinco ao açoite e trinta e quatro à deportação. Como ninguém na Bahia estava apto a exercer a função de carrasco, a sentença de morte foi executada por um esquadrão de artilharia. O castigo do açoite foi tão terrível, o número de golpes prescritos variando entre cinquenta e mil, que teve de ser cumprido em etapas, para que as vítimas não morressem antes que ele terminasse.

 Graças à minúcia sociológica com que foram elaborados os autos do processo -- a investigação policial abordou as condições de trabalho, moradia, a situação conjugal e a origem étnica dos conspiradores --, Reis apresenta tamanha riqueza de informações e detalhes sobre o contexto social da rebelião e sobre os conspiradores que o próprio leitor se torna uma testemunha ocular dos acontecimentos. Para compreender as circunstâncias da rebelião, Reis vai juntando e articulando gradativamente a situação política do Brasil, dominado por revoltas logo após sua independência de Portugal, com a crise da produção de açúcar e a complexa mistura étnica e racial da sociedade baiana da época. Embora a clivagem social dominante da época fosse entre escravos e senhores, vários outros conflitos e alianças cruzavam-na de cima a baixo. Nem todos os senhores de escravos eram brancos, havia quase tantos homens libertos quanto escravos, e a população não-branca dividia-se entre os nascidos na África (os pretos), os nascidos no Brasil (os crioulos) e os nascidos de uniões inter-raciais (os mulatos). Os pretos, por sua vez, dividiam-se por linhas étnicas, recriando em Salvador as ''nações'' às quais pertenciam na África. Não surpreende, portanto, que a Revolta Malê não tenha sido apenas uma briga entre brancos e não-brancos. Ela foi um levante de escravos da África Ocidental e de libertos, principalmente homens de origem iorubá, que haviam aderido ao islamismo. Eles formavam a grande maioria das pessoas de origem africana na Bahia, pois o tráfico, embora proibido, tinha continuado a importar negros de regiões que hoje correspondem à Nigéria e ao Benin. Escravos e libertos de origem angolana não participaram da rebelião, assim como também não o fizeram os crioulos e os mulatos. Segundo Reis, os angolanos tendiam a tomar uma posição diferente, principalmente formando quilombos. Os crioulos e mulatos haviam conseguido incorporar-se à sociedade baiana e muitas vezes participavam da repressão às revoltas de escravos. ''Se os africanos se organizassem de acordo com seus 'laços nacionais''', escreve Reis, ''crioulos e mulatos não teriam mais sucesso do que os outros. Mas sua 'nação' era a Bahia, não Oio, Daomé ou o califado de Sokoto.''

 Slave Rebellion in Brazil, portanto, é muito mais que a narrativa de uma revolta, embora seu estilo denuncie a admiração de Reis pela bravura dos conspiradores. O livro contém uma descrição e uma análise da Bahia entre linhas ''raciais'', mas como uma sociedade que produziu uma multiplicidade de identidades baseadas na profissão, nas origens ''étnicas'' e nos graus de proximidade com as correntes predominantes na cultura brasileira. Analisando as consequências da revolta, Reis mostra que as autoridades empenharam-se numa campanha maciça e cruel para forçar a ''assimilação'' a qualquer preço. Como assinala Reis:

O africano que quisesse ficar deveria deixar para trás suas raízes. Do ponto de vista da elite dirigente da Bahia, esta não era só a única via possível para manter a paz em sua sociedade escravista como era também o único meio possível para um futuro mais civilizado. Os que se opusessem a esse objetivo, ainda que considerados bárbaros, deveriam ser punidos como advertência aos demais -- de acordo com leis estabelecidas de maneira civilizada.

 O que é importante notar nesta citação não é tanto o desejo das autoridades baianas de manter seu poder e posição -- isto é óbvio --, mas a lógica cultural usada para fazê-lo. O caminho para a civilização no Brasil deveria ser pavimentado não com o estabelecimento de comunidades de base ''racial'' e ''étnica'' distintas e segregadas, cada uma com seu estilo de vida particular, mas pela assimilação e integração.

 O relato histórico de Reis nos oferece instrumentos para examinar e avaliar a análise política contemporânea feita por Hanchard. Enquanto Reis interpreta a Revolta Malê pelo ângulo do contexto social e cultural em que originou, a interpretação de Hanchard fica muitas vezes prejudicada, como, aliás, acontece com boa parte dos estudos contemporâneos sobre relações raciais no Brasil, por uma linguagem analítica e uma abordagem teórica que subestimam a especificidade dessas relações.

 Como arguto observador do Brasil, Hanchard compreende perfeitamente que a sociedade brasileira é diferente da dos Estados Unidos. Mesmo assim, ele conclui que ''há mais semelhanças que diferenças entre a política racial praticada no Brasil e a que se verifica em outras sociedades que contêm uma população descendente de africanos''. Estabelecido este princípio, a ''democracia racial'', e tudo o que a acompanha, torna-se de certo modo exterior à questão fundamental, definida como a da dominação e opressão por razões raciais. Sua ''função''  é ''tolher'' a consciência e impedir a atividade política subsequente. O argumento não é muito diferente daquele que ''culpa'' a cultura pelo fracasso de tantos projetos de desenvolvimento no mundo chamado, significativamente, de ''em desenvolvimento''. A hipótese comum aos dois argumentos é a de que todos os homens e mulheres de sociedades e períodos históricos diferentes são essencialmente os mesmos, exceto pelo fato de que alguns têm de lutar contra suas ''culturas'', enquanto outros não precisam fazê-lo.

 Uma outra maneira de interpretar o problema é olhá-lo por um ângulo mais ''antropológico''. Quando Hanchard e outros descrevem a democracia racial como um mito, fazem-no porque entendem os mitos como falsos. Reúnem e organizem as indiscutíveis provas do preconceito, da discriminação e da desigualdade de base racial no Brasil com o intuito de desmascarar o ''mito'' da igualdade e da harmonia. Os antropólogos, porém, costumam ser mais benevolentes em relação aos mitos. Admitem que não são inverdades, produtos de equívocos que podem ser desmascarados e denunciados pela superioridade do saber ocidental, mas antes sistemas ordenados de pensamento social que consagram e exprimem percepções fundamentais sobre a vida social. Entender a democracia racial e seus corolários não mais como ''impedimentos'' à consciência racial, mas como fundamento do que de fato significa a raça no Brasil leva a uma radical mudança de ênfase. Não se quer saber se há mais ou menos diferenças ou semelhanças entre o Brasil e outras ''sociedades onde vivem pessoas de descendência africana'', mas quais são exatamente são essas diferenças e semelhanças. Pode-se dizer que as semelhanças estão nas correlações entre a cor e o bem-estar socioeconômico medido pelos índices padronizados de riqueza, renda, educação, mortalidade infantil e expectativa de vida. Esses fatores assinalam a universalidade da discriminação de cor. As diferenças encontram-se na maneira como a ''raça'' é construída como categoria social e no modo como funciona a discriminação racial. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ''racismo científico'' declarava que o ''sangue negro'' poluía o ''sangue branco'' e a regra de que ''uma gota é suficiente'' (''one-drop rule'') definia uma fronteira nítida entre os que se consideravam ''brancos'' e os que eram considerados ''negros''. Essa regra constituía, até o início do movimento dos direitos civis, na década de 1960, a base da segregação legal e da criação de comunidades, culturas e formas linguísticas ''negras'' separadas. Hoje, ela é invocada para regulamentar a ação afirmativa. Nesse sistema, o suposto essencial era (e ainda é para muitos) que os negros e brancos são intrinsecamente diferentes e devem ser mantidos separados. O grande anátema era (e talvez ainda seja para muitos) a miscigenação biológica e cultural. Mutatis mutandis, criaram-se sistemas semelhantes onde quer que ingleses, alemães ou holandeses estivessem no controle de sociedades de natureza multiétnica: o apartheid sul-africano é o exemplo mais extremo.

 No Brasil e em outras antigas colônias de Portugal, preferiu-se enfatizar a ''conversão'' dos diversos grupos étnicos à cultura dominante. Por volta da década de 1930, o Brasil tinha acrescentado um outro ingrediente: o elogio da miscigenação cultural e biológica. Os portugueses podem ser justamente acusados de imperialismo cultural e racismo cotidiano, mas a sociedade que seus herdeiros construíram no Brasil não inclui a raça como fator de segregação ou discriminação legal. Além disso, e como consequência desse fato, não existe no Brasil a mesma separação consensual entre ''brancos'' e ''negros'' que predomina nos Estados Unidos e na África do Sul. Pelo contrário, o neolamarckismo brasileiro é muito mais sofisticado. Enquanto os americanos acham que um único ancestral africano é suficiente para produzir um ''afro-americano'', ou ''uma pessoa de descendência africana'', os brasileiros acreditam herdar as características de todos os seus ancestrais. Um efeito disso é que os brasileiros se classificam, e são classificados pelos outros, em função de sua aparência física, o que gera um arco-íris de categorias ''raciais'' que vai do preto-azulado ao mulato-claro. Uma pesquisa realizada em 1976 revelou a existência de nada menos que 135 categorias desta natureza¹.

 Outro corolário da constituição racial do Brasil é que crenças, práticas e modos de ser de origem africana são amplamente disseminados pelo conjunto da sociedade brasileira. O samba, por exemplo, tornou-se um dos principais símbolos do orgulho da nação brasileira, justamente, segundo Hermano Vianna, por meio de alianças significativas entre intelectuais e músicos do asfalto e do morro. Estudo histórico realizado por Yvonne Maggie demonstra que o sistema de crenças do candomblé afro-brasileiro era compartilhado por advogados, promotores e juízes, quase todos brancos, encarregados de processar os ''falsos praticantes''. Como tentei argumentar alguns anos atrás, no Brasil não há nada equivalente à soul food², tanto é que a moderna movimentação negra -- e penso no Olodum e no Afro-Reggae -- produz símbolos sui generis como marca de distinção.

 Desde a década de 1970, a identity politics [política de identidades] nos Estados Unidos têm atraído muitos simpatizantes no Brasil, onde começaram a ser organizados movimentos sociais cuja retórica é quase igual à de seus equivalentes americanos, e que recebem financiamento e apoio de entidades filantrópicas sediadas nos Estados Unidos e na Europa. Os movimentos de maior ''sucesso'' são os de mulheres e o de índios. O primeiro tem tido, direta e indiretamente, muita influência sobre um grande número de mulheres e deu origem a mudanças importantes nas atitudes sociais bem como na legislação. O segundo, nascido de uma sólida aliança entre líderes índios e intelectuais não-índios muitos deles antropólogos), tem conseguido chamar atenção para as consequências negativas dos projetos de desenvolvimento em curso e para a questão da garantia dos direitos dos índios à terra. A explicação desses ''sucessos'' provavelmente está no fato de sua retórica ter caído em solo fértil, principalmente porque tanto as mulheres quanto os índios sabem quem são.

 Os movimentos de negros e homossexuais consideram-se menos ''bem-sucedidos'' exatamente porque nenhum deles sabem exatamente quem é. O conceito moderno de homossexual cai em ouvidos moucos daqueles que vivem num mundo social onde as práticas homoeróticas são generalizadas e onde a masculinidade e a feminilidade são consideradas mais importantes do que a homo ou a heterossexualidade em si e onde, por exemplo, se acredita que um parceiro ''ativo'' numa relação entre dois homens mantém sua masculinidade intacta, ou até reforçada. Por uma lógica semelhante, a noção de solidariedade negra soa esquisita numa sociedade que se acostumou a ver-se como uma coleção de indivíduos de diversas origens étnicas que se distribuem segundo linhas de classe, e não linhas raciais. A própria ideia de de um Movimento Negro supõe a existência de uma grande comunidade negra consciente de si mesma. Como no Brasil essa comunidade se restringe aos militantes negros, não é de estranhar que o primeiro objetivo do movimento seja criar uma ''consciência racial''. Para isso, é preciso convencer o povo brasileiro de que o espectro de colorações da pele não passa de uma ilusão que mascara a ''verdadeira'' divisão entre brancos e negros, tal como acontece nos Estados Unidos. Antes de mais nada, esses movimentos tinham de convencer os mulatos, os morenos e os de outras categorias do espectro de cores possíveis de que, afinal de contas, todos eram realmente negros, e que sua cultura lhes teria sido, por assim dizer, roubada pela elite branca dominante. Por isso é que o Movimento põe tanta ênfase na ''recuperação'' da cultura negra, que funcionaria como um centro aglutinador de uma identidade considerada perdida. Executar essa tarefa não tem sido fácil, porque ela vai de encontro ao mito básico da democracia racial e aos arranjos e culturais e sociais que negam o particularismo racial em nome de valores universais.

 É quase impossível não concluir, após a leitura de Orpheus and Power, que a incapacidade dos militantes negros de promover um movimento de massas tem causa ainda mais profundas do que as apresentadas por Hanchard. O ''fracasso'' do Movimento Negro na conquista de corações e mentes dos brasileiros decorre do conflito entre os principais segregacionistas que estão no cerne da ideologia do Movimento e os anseios assimilacionistas que continuam fortes no senso comum brasileiro. Pesquisa feita em São Paulo, em 1986, sobre atitudes da população em relação à raça, parece sustentar essa opinião. Perguntados sobre ''o que os negros e mulatos deveriam fazer para defender seus direitos'', 75.3% dos negros e 81.3% dos brancos responderam que preferiam a formação de um movimento composto de brancos, mulatos e negros. Menos de 10% de cada uma dessas categorias achavam que o problema deveria ser resolvido individualmente ou exclusivamente pelo Movimento Negro.

 Não estou querendo dizer com isso que o Brasil é melhor ou pior do que o resto do mundo do ponto de vista das relações de raça; apenas afirmo que ele é diferente. Pode-se dizer que o mesmo dos Estados Unidos. Nem um país nem o outro são exemplos a seguir ou mercadorias a serem exportadas. De seu confronto, fica-nos a poderosa advertência de que ''raça'' e ''relações de raça'' não têm absolutamente nada de natural. Cotejando-se um país com o outro, fica-nos a conclusão de que democracia racial e one-drop rule são ideias igualmente exóticas.

[1] SILVA, N. do V., ''Distância social e casamento inter-racial no Brasil'', Estudos afro-asiáticos, 14:54-84, 1987.
[2] Soul food é como é conhecida uma versão popular de culinária afro-americana nos EUA; enquanto a feijoada é, aqui no Brasil, um prato nacional, nos EUA ela não passa de soul food, com a qual os negros estadunidenses estão acostumados desde a infância. 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A atual onda de irracionalismo e a ciência como ferramenta de crítica social, por Alípio de Sousa Filho


''O sono da razão produz monstros'', de Francisco Goya.


A universidade e a atual onda de irracionalismo

 Embora se espere que a universidade faça a crítica dessa voga atual de misticismos e irracionalismos, ela não tem sido capaz de fazê-lo. Ao invés, alguns de seus integrantes, sob diferentes considerações e pretextos, têm embarcado de cheio na voga atual de recusa do pensamento científico-crítico. Uma parte dela, por intermédio de alguns de seus professores e alunos, tem levado para aulas, seminários, encontros, etc., visões que são ressacralização da realidade, recusa da teoria e abandono da reflexão crítica -- ainda que tudo isso seja disfarçado em relativismos, holismos etc., seguindo o que Alan Sokal, a propósito de imposturas intelectuais, chamou de ''pout-pourri de ideias, quase sempre mal-formuladas''.

 Ora, não se trata aqui de, criticando os irracionalismos atuais e a recusa da ciência na universidade, fazermos coro com um racionalismo estreito e sectário (estilo, por exemplo, Karl Popper, como em sua Conjecturas e refutações, para quem somente é científico o que se alinha aos parâmetros das ciências experimentais). Nem o esforço geral de crítica (pela iniciativa de intelectuais críticos) a toda essa onda irracionalista na ciência pode ser visto como o ''novo tribunal da inquisição'', como já se disse em alguma parte. Para o pensamento científico-crítico, não se trata de ser a ''inquisição'', mas de combater visões que revestem a realidade de uma aparência em tudo favorável à reprodução da alienação e à reprodução da dominação social-política em suas diversas formas. Pensando-se o caso da universidade e sua função cultural na sociedade, não se pode pretender outra coisa senão a prática da crítica -- trabalhos teóricos críticos, professores críticos, alunos críticos.Contudo, os irracionalismos atuais e a recusa do que é científico e crítico têm entrado na universidade pela porta da frente, com a cumplicidade de quem menos se espera.

 No ambiente universitário, os irracionalismos, os discursos anticiência e anticrítica tornaram-se a forma do palavreado fastidioso que reclama da filosofia e da ciência deixarem para trás o que se tem chamado ''velhos olhos'', ''velhos paradigmas'', etc. Entenda-se por ''velhos'' a tradição filosófica e científica ocidental, dos gregos até nossos dias. O apelo é que nós, universitários, nos integremos na ''conspiração de Aquário''-- como quer Marilyn Ferguson? --, aceitando a teologia da New Age, que reclama o fim da separação entre espírito e matéria, esta que seria uma típica criação da ciência moderna ocidental, o fim dos ''paradigmas reducionistas'' -- entenda-se Marx, Freud, Durheim, Weber, entre outros --, o fim da ''atitude intelectual'', sempre pronta a fazer a análise crítica dos fenômenos da cultura, atitude que teria produzido intolerância frente a tudo -- em certos círculos universitários, a moda é ser ''tolerante'' e, em consequência, ''ignorante'': nada sabemos sobre nada, nada podemos saber. Admiremos o mundo. Sorvemos o vinho da mediocridade. Assim, de Shirley Maclaine e suas 144 vidas, aos repetitivos programas de domingo na TV, tudo é bom e tudo se curte. O pensamento científico-crítico é que é intolerante e chato!

 Não é preciso esperar o ''milênio da paz'': podem-se perceber, entre universitários, embora mais difusas nas falas que sistematizadas, ideias do que se poderia considerar uma antropologia de senso comum -- ou é o senso comum elevado à categoria de teoria?! -- segundo as quais fatos como a acumulação, a exploração, as desigualdades econômicas, sociais e de poder, assim como as desigualdades sociais entre homens e mulheres, e os preconceitos racistas e outros, seriam de base objetiva ou biológica. Teses que não são novas, mas que, de modo impressionante, voltam pouco a pouco. Mas não se pense poder encontrá-las claramente. Aparecem aqui e ali, mais nas falas que por escrito, dissimuladas como rupturas com ''velhos paradigmas'', mas que se vêm difundindo dentro e fora das universidades.

 Por simples exemplo, a leitura de um Heinz R. Pagels, em Os Sonhos da Razão: o computador e ascensão das ciências da complexidade (1990), não deixa dúvida quanto à onda teórica conservadora que ronda a universidade. O livro é um primor de reacionarismo. As desigualdades econômicas e sociais, as hierarquias, a repartição desigual do poder, entre outros aspectos -- e, por extensão, seguindo essa ótica, certamente a existência da pobreza, da delinquência, dos preconceitos raciais e sexistas --, são vistos como resultado de tendências naturais na espécie humana e estas teriam bases biológicas, seriam hereditárias. Conforme a ótica exposta por H. Pagels, os desequilíbrios, as relações de força, as hierarquias, sendo realidades que já encontramos nos outros primatas, caracterizariam também a espécie humana -- tudo sendo bastante evidente, bastando ver que somos como os macacos; nada de humano no mundo humano!

 Não se trata aqui de negarmos nossa parte animal, mas, tratando-se de instituições sociais, hábitos, comportamentos, ideias etc., saímos do reino da natureza para o da cultura -- e isso nos ensina, desde muito cedo, uma antropologia materialista e crítica. Na ótica dos ''novos paradigmas'', contudo, as desigualdade sociais, as hierarquias e os preconceitos sexistas que marcam, por exemplo, as relações entre homens e mulheres, ou que reservam aos que praticam a homossexualidade o estigma de pertencerem a uma espécie à parte, são vistos como resultados de tendências naturais a relações de força, hierarquizações etc. (Se os animais são assim por que não os humanos?), e somente nos restaria aceitá-las -- as feministas e os homossexuais que se calem! Assim, as críticas marxistas, feministas e, em geral, das ciências modernas não teriam qualquer razão de ser, porque quase nada (ou nada), na vida social e no comportamento humano, teria origem histórico-social e cultural. Teorias da socialização do indivíduo humano e da instituição do social, como temos, por exemplo, em Norbert Elias, em A sociedade dos indivíduos, ou em Peter Berger e Thomas Luckmann, em A construção social da realidade, aos olhos destes ''novos paradigmas'', não fazem qualquer sentido. As ideias ideológicas¹ de hereditariedade, tendências inatas, impulsos biológicos e outras voltam à cena e trazem consigo velhas crenças.

 Afastando-se a crítica, passou-se a chamar de ''sociologia dura'', ''certezas'' etc. os esforços teóricos que, na verdade, correspondem à tentativa de ler criticamente a realidade. Em nome da recusa à ''sociologia dura'', muitos são os que vêm admitindo, como exatas, concepções reacionárias, produzidas por crenças sem fundamento, mas que vêm se misturando ao saber científico. Com isso, acreditam beneficiar a universidade e a ciência. Certos grupos universitários têm confundido com ''marxismo'' ou com ''marxização'' da análise da realidade, notadamente em ciências humanas, toda perspectiva crítica. Ora, muitas vezes trata-se de crítica na interpretação -- mas o que já é muito!

 Como observou Paulo Sérgio Rouanet, mais que em outros países, entre nós cresce a ''ressacralização do mundo'', e, poder-se-ia acrescentar, a biologização e a naturalização do social e do cultural. O que se quer de volta? Os deuses e as crenças banidos pela crítica teórico-filosófico-científica? O que teremos com a volta do mistério, do sagrado, da natureza, do inato, aceitos como fatores que explicariam a vida humana, o social e a história? A quem interessa a ideia, a boba ideia, segundo a qual ''a ciência não pode explicar tudo'' -- essa tolice que vem sendo repetida por muitos? Não se percebe que teremos de volta a ignorância e a superstição que, dentre outras coisas, têm condenado pobres, mulheres, homossexuais, negros, deficientes físicos, à opressão, à violência, às representações estigmatizantes, em nossa e em outras sociedades?

 Abriguemo-nos, por fim, nas reflexões do físico Francis Slakey -- a física, que os esotéricos e os adeptos das teses sobre ''crise dos paradigmas'', ''fim das certezas'', ''visão holística'' etc têm apresentado também como aliada no questionamento à ''sociologia dura'': faz-se uso de teorias da física (buraco negro, caos, etc.) para explicações de fenômenos humano-sociais, culturais, históricos --: ''A razão sofre uma morte quase todos os dias. (...) A cada crença fantástica, a objetividade é embolada e a ciência é descartada. Estas fantasias anticientíficas invadem os salões acadêmicos, até mesmo os salões da ciência. (...) Esta é a moda elegante e moderna no campo do pensamento: rejeitar a razão objetiva e questionar o valor da ciência, abraçar a subjetividade e confiar nos sentimentos''. 

A ciência enfrenta os preconceitos morais, religiosos e sociais. A ciência faz a crítica do irracionalismo e do misticismo. Ciência é crítica

 Como não reconhecer a importância do pensamento científico na produção da crítica à ideologia -- esta que se manifesta justo na forma das representações, crenças diárias, superstições infundadas, preconceitos e costumes que mascaram a dominação e a justificam? Para aqueles que têm sistematicamente acusado o pensamento científico-crítico de ''fechado'', ''reducionista'', ''linear'', ''intolerante'' etc., conviria lançar a pergunta de Carl Sagan: ''A que interesses serve a ignorância?'' A ignorância, relativamente ao pensamento científico-crítico, interessa a quais setores da sociedade?

 Até aqui, tem sido o pensamento científico-crítico que tem mantido -- contra os preconceitos e ideias ideológicas diversas, mesmo aquelas que se misturam à ciência -- uma compreensão da realidade que afasta as representações sociais segundo as quais, para ficarmos apenas em alguns exemplos, os dominados e explorados o seriam por ''leis naturais'', ''infortúnios'' ou ''desígnios sagrados'', os negros seriam, por determinações biológicas, ''inferiores'' e ''propensos à violência'', as mulheres seriam ''incapazes'' e ''frágeis'', os homossexuais, ''doentes'' e ''anormais'', etc.

 São a filosofia e as ciências modernas -- entre as quais, as ciências humanas --, insurgindo-se contra essas representações e ideias aceitas, que elaboram uma nova visão do homem, das culturas e da história e que oferecem à sociedade os instrumentos para a crítica superadora de visões que fundamentam costumes, normas, leis e preconceitos injustificáveis, que restam ainda fortes no imaginário social, em diferentes sociedades -- o que não permite aos cientistas, nos diversos domínios, descuidarem de suas responsabilidades sociais e políticas.(Curiosamente, propõe-se abandonar conquistas que, no campo das ciências humanas, por exemplo, têm apenas um século de existência, outras, um pouco mais de um século, num mundo em que boa parte das transformações sociais são recentes e outras que sequer dão sinais de vir a se produzir em tempo próximo: entre outros exemplos, a abolição da escravidão, no Brasil, data apenas do século passado²; a concessão do direito de voto às mulheres, na França, data de 1944; nos anos da Segunda Guerra Mundial, 6 milhões de judeus foram mortos em câmara de gás nos campos de concentração nazistas; a Índia se libertou da dominação inglesa faz pouco mais de cinquenta anos; atualmente, na Argélia, fanáticos, em nome do verdadeiro Islã, diariamente violentam mulheres e assassinam pessoas indefesas -- já se fala em 60000 mortos, num período de seis anos; também em nome da religião, em diferentes partes do mundo, mulheres continuam impedidas de participar da vida pública, etc. -- no Afeganistão, atualmente, as mulheres são submetidas a violências absurdas --, e, com justificativas religiosas, israelenses continuam massacrando palestinos; na maioria das sociedades, os homossexuais continuam estigmatizados pelo preconceito; sobre os negros ainda pesam representações sociais que os oprimem. Propõe-se abandonar conquistas do pensamento científico moderno num mundo em que 1/3 da população do planeta passa fome, 250 milhões de crianças são submetidas a trabalho forçado, 12 mil pessoas se suicidaram na França num só ano, 1997, e 7 mil, na Inglaterra, no mesmo ano, e num mundo em que, nas primeiras décadas deste século, no Brasil, intelectuais ainda discutiam se a miscigenação biológica entre portugueses, indígenas e africanos tinha-nos feito, nós brasileiros, ''inferiores'', ''raça inferior''. E que dizer de se colocar em questão as conquistas do pensamento científico num país, como o Brasil, em que a morte provocada de pessoas é vista como coisa natural -- mortes provocadas pela fome, por atropelamento, por ações da polícia, por ''erros'' médicos, por ações ordenadas por ricos proprietários, justificando a defesa de suas propriedades, sem contar os assassinatos e crimes que a vida cotidiana tem banalizado em muitas cidades (assassinatos de menores, travestis, mulheres, mendigos,etc.)

 Como desprezar o trabalho da crítica científica, como os paladinos dos ''novos paradigmas'' vêm fazendo, dentro e fora do ambiente universitário, trocando ciência por uma mistura de fragmentos de religiões orientais, astrologia, crenças diversas -- e há aqueles que acrescentam a isso o retorno de um enfoque biologista --, para a explicação de cultura e comportamentos humanos, pela visão de que as ciências, tal como as temos hoje, não têm conseguido explicar a realidade, dar respostas às necessidades humanas, etc., porque seriam ''racionalistas'', ''reducionistas'', ''lineares'', ''deterministas''? Mas, a propósito dessas acusações, poder-se-ia perguntar: há visão da realidade mais determinista e linear que a da astrologia, se indivíduos, nações e épocas têm suas vidas e histórias determinadas ''pela posição dos astros'' no momento do nascimento? Ou, sobre bases biológicas de instituições sociais, haverá visão mais reducionista? Ou, ainda, sobre as ideias de reencarnação, carma, etc., poderão existir crenças mais deterministas e também mais reducionistas?

 A importância da ciência para a crítica social é inegável. É o conhecimento teórico-científico que, até aqui, tem tornado possível afastar concepções que justificam a opressão político-social, enfrentado visões e antigas crenças que mantêm indivíduos e sociedades como prisioneiros de representações estigmatizantes, sistemas de poder, etc. É a visão crítico-científica que, acompanhando as transformações históricas, é responsável pela libertação dos indivíduos das cadeias que os mantêm atados, na vida cotidiana e comunitária, a normas, regras, ideias que realizam a dominação social sob diferentes formas.

 Até aqui, as lutas pela emancipação dos indivíduos e sociedades tiveram o modo científico de pensar como contra-discurso crítico ao que se fixou, como ideias, imagens, representações, etc. sobre indivíduos, grupos sociais e povos inteiros.

 A crítica do irracionalismo e do misticismo não é, pois, capricho dos cientistas. Esta é crítica que não pode deixar de ser feita pela ciência.

 Claro, não se trata de tomar o pensamento científico como a forma única da crítica. A literatura, o cinema e as outras artes, em geral, são outras formas de se produzir a crítica. Isso não é ignorado por aqueles que lidam com a ciência. Mas, que se trate de arte ou ciência, o certo é que, tratando-se de reconstruções da realidade que se oponham às representações sustentadas pela ideologia, continuamos no campo da reflexão crítica, no qual a ciência atua com vantagens. Não há, pois, razão de se destacar também que ''a ciência não é a única forma de compreensão crítica da realidade'' -- outra das bobagens que se tem repetido nos salões universitários, como se fosse coisa que já não se soubesse! --, numa espécie de lição relativista para a censura de uma suposta pretensão monopolista do saber.


SOUSA FILHO, Alípio de. Responsabilidade intelectual e ensino universitário: carta aberta aos que amam a ciência. Natal: UFRN, 2000, pp. 123-130.

 Notas

[1] Sobre o conceito de ''ideologia'' em Alípio de Sousa Filho, ver esse post.
[2] Lembro que o livro data do ano 2000 -- último ano do século XX.

domingo, 11 de outubro de 2015

Marx sobre aumento de salários e inflação





''Mas alega-se que o maior dispêndio de capital-dinheiro variável (supõe-se, naturalmente, que não varia o valor do dinheiro) significa maior massa de recursos monetários nas mãos do trabalhador, decorrendo daí maior procura de mercadorias pelos trabalhadores e, por conseguinte, elevação nos preços das mercadorias. Ou alega-se: se sobem os salários, os capitalistas elevam os preços das mercadorias. -- Nos dois casos, alta geral dos salários causa subida nos preços das mercadorias. Por isso, para fazer circular as mercadorias é necessária maior massa de dinheiro, explique-se a elevação dos preços de um modo ou outro.

 Resposta à primeira asserção: com a elevação dos salários, os trabalhadores aumentam sobretudo a procura de meios de subsistência necessários. Em menor grau aumentará sua procura de artigos de luxo ou de artigos que antes não estavam na sua área de consumo. A súbita procura mais ampla dos meios de subsistência necessários fará subir absoluta e momentaneamente os preços. Consequência: aumenta a parte do capital social aplicada na produção dos meios de subsistência necessários e diminui a empregada na produção de artigos de luxo, uma vez que os preços destes caem em virtude de reduzir-se a mais-valia e, portanto, a procura deles pelos capitalistas. Na medida em que os trabalhadores fazem compras de artigos de luxo, a elevação de seus salários, até o montante dessas compras, não tem qualquer efeito no sentido de elevar os preços de subsistência necessários, mudando apenas os compradores de artigos de luxo. No tocante a esses artigos, quantidade maior passa a entrar no consumo dos trabalhadores e quantidade relativamente menor no consumo dos capitalistas. Eis tudo. Depois de algumas oscilações, circula massa de mercadorias que tem o mesmo valor de antes. Quanto às oscilações momentâneas, não terão elas outro efeito que o de lançar na circulação interna capital-dinheiro desocupado que até então procurava aplicação nas especulações de bolsa ou no estrangeiro.

 Resposta à segunda asserção: se estivesse nas mãos dos produtores capitalistas elevar a seu bel-prazer os preços das mercadorias, teriam eles poder para fazê-lo e fazê-lo-iam mesmo sem subirem os salários. Os salários nunca subiriam ao caírem os preços das mercadorias. A classe capitalista nunca se oporia aos sindicatos, pois poderia sempre e em qualquer circunstância fazer o que na realidade faz atualmente em caráter excepcional, em circunstâncias determinadas, especiais, por assim dizer locais, a saber, utilizar-se de qualquer elevação de salários a fim de aumentar em proporção bem maior os preços das mercadorias e assim embolsar maiores lucros.

 Afirmar que os capitalistas podem elevar os preços dos artigos de luxo, por diminuir a correspondente procura (em virtude de reduzir-se a procura dos capitalistas, decrescem os meios de compra de que dispõem para esses artigos) seria aplicação extremamente original da lei da oferta e da procura. Enquanto os compradores que saem do mercado não são compensados por compradores que entram, enquanto os trabalhadores não substituem os capitalistas, caem os preços dos artigos de luxo em virtude da redução da procura: e, na medida em que ocorre essa substituição, a procura dos trabalhadores não concorre para elevar os preços dos meios de subsistência necessários, pois os trabalhadores não podem despender em meios de subsistência necessários a parte do acréscimo de salário que gastam em artigos de luxo. Em consequência, retira-se o capital da produção desses artigos até que a oferta se reduza a um nível correspondente ao diferente papel que eles passam a ter no processo social de produção. Com a produção diminuída, esses artigos voltam a ter seus preços normais, desde que não haja alterações no valor. Enquanto se dá essa contração ou esse processo de compensação, aflui para a produção dos meios de subsistência, com a elevação de seus preços, tanto capital quanto perde o outro setor de produção, até que a procura fique saturada. Restabelece-se então o equilíbrio, e o resultado final de todo o processo é o capital social, inclusive naturalmente o capital-dinheiro, repartir-se então em proporção diferente entre a produção dos meios de subsistência necessários e a dos artigos de luxo.

 Todas as objeções dos capitalistas e de seus sicofantas econômicos não passam de intimidação.''

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, pp. 384-6.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Neoliberalismo, ortodoxia e ajuste econômico: crítica da economia política brasileira

por Marcelo Dias Carcanholo* 
''E aos pobres do mundo, nós dizemos isso -- lembre -- ''nós estamos contando com vocês para nos manter ricos''. 

 Toda mistificação, a não ser que seja pura verborragia, costuma ter uma base real concreta. Se isso for verdadeiro, qual seria o sentido para um pensamento convencional que se apresenta como a única resposta possível para o enfrentamento dos impactos da atual crise econômica mundial? Por que o ajuste ortodoxo se apresenta como o único tecnicamente correto e, portanto, imprescindível e inexorável? 

 Se ele fosse puro embuste tratar-se-ia apenas de elucidá-lo como tal. No entanto, ele faz sentido (ainda que o mero sentido comum) e, o que é mais importante, suas hipóteses implícitas, e não com surpresa deliberadamente escondidas, é que devem ser elucidadas para, por um lado, entender suas incongruências enquanto argumento/proposta e, por outro, a quais interesses atende. 

 O primeiro ponto a elucidar, se o objetivo é desmistificar a inexorabilidade do ajuste ortodoxo, diz respeito à relação entre a estratégia neoliberal de desenvolvimento e o caráter (ortodoxo ou heterodoxo) da política econômica. Não são poucos os que confundem uma política econômica ortodoxa com o neoliberalismo, o que é falso. Este último, segundo seus defensores, se define por duas características.

  Em primeiro lugar, é pré-condição obter e manter a estabilização macroeconômica, isto é, o controle inflacionário e das contas públicas. O objetivo aqui é, segundo o pensamento convencional, manter a estabilidade dos principais indicadores (fundamentos) macroeconômicos, para que os capitais possam formular melhor expectativas de médio e longo prazo e, portanto, investir em prazos mais longos. Com que tipo de política econômica se obtém a estabilização? Para o neoliberalismo, não importa, desde que se consiga. Na verdade, o caráter da política econômica, se ortodoxo ou não, é definido pela conjuntura específica que se atravesse.

Em segundo lugar, obtida a pré-condição da estabilização macroeconômica, o neoliberalismo – e é isto que o define de forma característica – defende a implementação de reformas estruturais de privatização, liberalização, desregulamentação e abertura dos mercados, em especial os mais importantes para uma economia capitalista, o de trabalho e o financeiro. 

 Portanto, o neoliberalismo não pode, em hipótese alguma, ser reduzido à aplicação de políticas econômicas ortodoxas, podendo perfeitamente, dependendo da conjuntura, ser impulsionado com políticas econômicas heterodoxas. 

 Mas, a atual conjuntura da economia mundial, de profunda e duradoura recessão, de fato, colocaria o ajuste ortodoxo como a única forma de combate aos efeitos dessa crise, tanto em economias centrais como em países em desenvolvimento. O argumento convencional defende que a causa da crise é o excesso de gastos/demanda na economia, especialmente o gasto público, sem o respaldo de capacidade produtiva para ofertar. Os efeitos disso seriam o crescimento do nível geral de preços, o aumento do déficit público que, quando financiado com venda de títulos públicos, impacta na maior dívida pública, e a elevação dos déficits externos, que redundam em endividamento externo. 

 Com esse diagnóstico, a terapia ortodoxa, portanto, se resume à restrição da oferta monetária/creditícia e ao ajuste fiscal. A política monetária, operacionalizada pelo Banco Central, pode ser impulsionada por restrições de quantidade de moeda e/ou por elevação das taxas de juros. No atual regime de metas inflacionárias, que caracteriza a economia brasileira, a lógica se dá pela segunda opção, isto é, o Banco Central eleva as taxas básicas de juros, sinalizando para os mercados monetário e financeiro a restrição monetária, no intuito de controlar a inflação. O ajuste fiscal, por sua vez, ganha uma notoriedade ainda maior dentro desse pacote econômico. Ele pode ser obtido por uma combinação de maior arrecadação, com elevação de impostos, e/ou diminuição dos gastos públicos. A ortodoxia sempre prefere esta última, e o argumento é que o maior peso dos impostos reduz os gastos privados, restringindo a recuperação da economia.

 O arrocho fiscal, baseado na redução dos gastos públicos, levaria a uma redução do déficit público, mas o objetivo é que, descontadas as despesas financeiras, o Estado passe a apresentar um superávit – o conhecido superávit primário. Isto significa, por um lado, que a arrecadação estatal supera os gastos convencionais com, por exemplo, educação, saúde, habitação, funcionalismo, etc. Esta sobra de recursos permitiria o pagamento do serviço da dívida pública que, dado o esforço fiscal, poderia representar a redução do estoque da dívida pública em relação ao PIB, um dos principais fundamentos macroeconômicos para este tipo de visão. 

 Faz todo o sentido, e é algo perfeitamente inteligível para qualquer um que não tenha preconceitos ideológicos. Evidente que os seus formuladores/operadores devem ser técnicos (economistas) especializados, imunes aos apelos populistas, para que a política tenha sustentabilidade e crie confiança nos mercados. Este é o argumento convencional, incluindo aí a suave forma de nos dizer que a técnica econômica implementada deve ser imune a interferências políticas. 

 Em primeiro lugar, o arrocho fiscal recessivo, como conclusão, requer uma hipótese de partida que raramente é explicitada no argumento: as despesas do Estado são compostas por gastos correntes (não financeiros) e por despesas financeiras. Dessa forma, o déficit público que por ventura se estabeleça se define pelo excesso de gastos (financeiros e não-financeiros) em relação às receitas. Desconsiderando a hipótese de maior arrecadação para fazer frente às despesas, a pergunta é óbvia: por que a variável de ajuste são as despesas não-financeiras? Por que o ajuste fiscal não pode ser feito nas despesas financeiras, isto é, nos gastos públicos com juros e amortizações da dívida pública? Isto nos leva a dois pontos. 

 Por um lado, a explícita defesa de superávits primários para pagamento do serviço da dívida demonstra o compromisso com a manutenção do valor desses títulos públicos que constituem o estoque da dívida pública. O argumento oficial é que isto é necessário para a confiança e melhor rolagem da dívida. O que não se explicita é a real causa do aumento da dívida nos últimos tempos, saindo de R$ 1,01 trilhão em 2004 para cerca de R$ 2,5 trilhão em meados de 2015. Na verdade, o crescimento da dívida pública brasileira, e este é o segundo ponto, ocorre por várias razões, todas elas relacionadas aos reais interesses econômicos e políticos que sustentam o bloco de poder atualmente governando o país. 

 A primeira delas é a elevada taxa de juros, que corrige, em grande parte, o estoque da dívida pública. Se considerarmos que o crescimento da economia é um bom indicador do crescimento da arrecadação, e compararmos com o crescimento das taxas de juros domésticas, percebe-se que estas últimas superam em muito as primeiras, o que obriga, na lógica convencional, a elevar os superávits primários apenas para manter estável a relação estoque da dívida sobre o PIB. Logo, exatamente ao contrário da ortodoxia, as taxas de juros não são altas porque a dívida é elevada, mas exatamente o contrário. Trata-se, portanto, de reduzir as taxas de juros.

 A segunda faz parte da forma como todos os governos procuraram responder à crise econômica desde 2007. A pressão por desvalorização dos títulos no contexto da crise foi respondida pelos Estados com maior atuação destes nos mercados, procurando manter o nível da demanda por esses papéis de forma a não os desvalorizar em demasia. Como se obteve isto? Novamente, a redução dos gastos não-financeiros (ajuste fiscal recessivo) cumpriu um papel. Mas, o mais importante é que o Estado financiou esta intervenção recorrendo à tomada de empréstimos no mercado privado, oferecendo em troca títulos públicos. O curioso, para dizer o mínimo, é que boa parte do crescimento da dívida pública ocorreu simplesmente para fazer com que o setor privado trocasse papéis com tendência de desvalorização por títulos públicos com alta liquidez e rentabilidade. 

 Além disso, a dívida pública está intimamente ligada ao fluxo internacional de capitais. Em um contexto de elevadas taxas domésticas de juros, ocorre uma forte atração de recursos externos que, convertidos para a moeda doméstica, levariam a uma expansão da oferta monetária, justamente na contramão da política monetária contracionista que se aplica no momento. Assim, o Banco Central se vê na obrigação de esterilizar esses recursos, ou seja, compensar esse acréscimo monetário com retirada de moeda por outros canais. Essa compra de moeda no mercado monetário só pode ser feita oferecendo algo em troca, para vender, justamente títulos da dívida pública federal, ampliando o estoque dessa dívida. 

 Tratar-se-ia, portanto, de reduzir as taxas de juros para inverter essa ciranda. Mas isso não se obtém apenas por vontade política. Há pelo menos dois requisitos complexos para que isso seja possível. Uma redução das taxas de juros tende a expandir a demanda agregada – o  que pode, de fato, levar a uma pressão inflacionária. Esta verdade, no entanto, não ocorre pela razão propagandeada pelo oficialismo, o excesso de demanda. O que ocorre é que desde os anos 1980 a economia brasileira tem convivido com taxas de investimento (acréscimo de capacidade produtiva) pífias, o que leva a um potencial de oferta restrito. Qualquer pequeno crescimento da demanda esbarra em uma limitação estrutural da oferta, o que pressiona os preços. O problema não é de demanda, mas de oferta/custos. Como se amplia a capacidade produtiva em um contexto de altas taxas de juros? Certamente não contando com a boa vontade dos capitais privados, burguesia nacional/transnacionalizada, o termo que se queira. O Estado, historicamente, em economias capitalistas é o responsável por isso.

 A redução das taxas de juros ainda pode provocar uma fuga de capitais, ainda mais em um cenário de instabilidade mundial, que, no limite, pode levar a uma crise 5 cambial. A condição necessária para que isso não ocorra é simples: restringir a saída de capitais, através de um sério e radical controle de capitais. 

 Isto nos leva à questão de fundo, uma vez que, para que isso ocorra, é preciso que a estratégia neoliberal de desenvolvimento seja rompida/revertida. Mas isso requer outra conformação do bloco de poder, uma vez que os interesses que atualmente são privilegiados teriam que ser contrariados. Na atual conformação, o ajuste à crise econômica será - e já está sendo - pago pela classe trabalhadora. Não poderia ser diferente na atual estratégia de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Para que a conta do ajuste seja paga pelo capital, ou por algumas de suas modalidades de acumulação, requer-se outra estratégia de desenvolvimento, e não apenas “outra” política econômica. 

 E nem falamos de socialismo!


*Professor Associado da Faculdade de Economia da UFF, membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP-UFF), Presidente da Sociedade Latino-americana de Economia Política e Pensamento Crítico e Professor colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF-MST).

[Este texto está disponível no site Marxismo 21]