sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Por que o Brasil é diferente?


 O texto abaixo corresponde ao capítulo 5 do livro A persistência da raça: Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005) de Peter Fry -- famoso antropólogo inglês que trabalhou vários anos no Brasil e foi (juntamente como Edward McRae) coautor do clássico O que é homossexualidade?, parte da coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense --, cujo nome está no título deste post; nele (originalmente lançado em 1996), comentando sobre duas obras lançadas nos EUA acerca das relações raciais no Brasil, o autor tenta demonstrar a especificidade no Brasil quanto a elas e a relação disso com a conduta e o desempenho dos movimentos negros nacionais. Pretendo transcrever outras passagens do livro futuramente. 


 Em 1995, foram publicados nos Estados Unidos dois livros importantes sobre a movimentação política em torno da questão ''racial'' no Brasil, Orpheus and Power: The ''Movimento Negro'' of Rio de Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1968, do cientista político norte-americano Michael Hanchard e Slave Rebellion in Brazil: The Muslim uprising of 1835 in Bahia, do historiador brasileiro João José Reis. O contraste entre os dois livros e as situações que descrevem levaram-me a pensar sobre a antiga construção argumentativa das diferenças entre o Brasil e os Estados Unidos no que diz respeito à escravidão e à subsequente elaboração e administração das diferenças supostamente raciais.

 Do início do século XX até a década de 1940, negros americanos que visitavam o Brasil voltavam fazendo grandes elogios ao país. Michael George Hanchard observa, por exemplo, que líderes como Brooker T. Washington e W. E. B. DuBois descreveram de modo positivo a impressão que tiveram dos negros brasileiros, enquanto o líder nacionalista negro Henry McNeal Turner e o jornalista de esquerda Cyril Briggs chegaram a defender a ideia de imigração para o Brasil, onde encontrariam refúgio contra a opressão vivida em seu país. Mas a experiência de Hanchard cinquenta anos depois foi muito diferente. Assim que chegou ao Brasil em 1988, ao sair de um supermercado foi abordado por um empregado da loja, que lhe perguntou se havia pago suas compras. Ao fazer menção de mostrar o recibo, o gerente aproximou-se e, com um aceno das mãos, mandou que ele fosse embora. ''Foi aí que eu compreendi'', diz Hanchard, ''que a sociedade brasileira não podia estar imune ao preconceito, à discriminação e à exploração, por razões raciais, existentes em sociedades que se constituíram historicamente de modo semelhante.

 DuBois e Hanchard falam de experiências distintas em épocas diferentes. Na época de DuBois, o Brasil era conhecido como uma ''democracia racial'', onde pessoas de diferentes cores de pele conviviam de modo harmonioso e sem problemas, tanto assim que a UNESCO financiou uma série de pesquisas no país na esperança de descobrir ''soluções'' que pudessem ser exportadas para sociedades mais habituadas ao conflito racial. Mas, na realidade, o projeto da UNESCO acabou revelando que havia tanto preconceito racial no Brasil quanto em qualquer outro lugar e, desde então, tem crescido o número de estudos que comprovam a existência da desigualdade racial nos locais de trabalho, no sistema educacional, em toda parte, e constatam que o Brasil padece de um racismo profundamente insidioso, que se torna ainda mais traiçoeiro por ser oficialmente negado. O ''mito'' da democracia racial só faz piorar a situação, pois ''mascara'' o racismo e torna ainda mais difícil percebê-lo e denunciá-lo. Este é o ambiente intelectual que cerca a viagem de Hanchard ao Brasil e a base de sua argumentação no livro sobre o Movimento Negro brasileiro.

 Orpheus and Power consiste na descrição e na análise cuidadosamente circunstanciada das várias organizações negras que surgiram no Brasil dos últimos quarenta anos, utilizando dados históricos, entrevistas com cerca de duzentos militantes e contendo uma valiosa resenha da literatura acadêmica sobre relações raciais no mesmo período. Ao contrário da maioria dos pesquisadores que até então haviam feito trabalhos sobre os Movimentos Negros brasileiros, Hanchard fez uma pesquisa bastante pertinente e de difícil resposta: por que razão o movimento negro não conseguia ultrapassar um pequeno número de militantes. Colocando a questão numa perspectiva comparativa, Hanchard indaga por que no Brasil não se criou ''um movimento social afro-brasileiro que recebesse um apoio comparável ao do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos ou às rebeliões nacionalistas africanas do Sul do Saata e de outras regiões do Novo Mundo após a Segunda Guerra Mundial''.

 A resposta de Hanchard encontra-se no que ele chama de ''um processo de hegemonia racial'', que neutraliza a identificação racial entre os não-brancos. Diz ele que a ''hegemonia racial'' estimula a discriminação racial e simultaneamente nega sua existência, e, dessa maneira, ''ajuda a reproduzir as desigualdades sociais entre brancos e não-brancos''. Em outras palavras, o ''mito da democracia racial'' atua permanentemente no sentido de desativar a ''consciência'' da discriminação racial e da desigualdade.

 Se o mito da democracia racial é o principal ''impedimento'' ao sucesso do movimento negro, outros obstáculos também estão presentes, a saber, ''a carência de recursos e instituições'', o ''culturalismo'' e um forte pendor para disputas ideológicas secretas. Hanchard afirma ainda que o Movimento Negro gasta tempo demais com as questões da cultura negra e as iniquidades do passado escravista e dedica pouco atenção às verdades da discriminação contemporânea. Como Orfeu, o Movimento Negro é impelido a olhar para trás e perder sua Eurídice. Depois de fazer essas observações críticas, Hanchard passa a sugerir possibilidades de mudança. Faz uma advertência contra a criação de consciência sem atividade política e sugere que o Movimento deveria concentrar-se no trabalho de informação sobre extensão da discriminação racial e deveria dedicar-se à organização ''no nível das comunidades, por intermédio do desenvolvimento e coordenação de grupos locais e nacionais para o monitoramento  dos casos de violência racial e outras formas de discriminação (...). Isso daria ao Movimento uma base mais sólida do que a atualmente existente.''

 O livro de João José Reis, Slave Rebellion in Brazil, também é o relato de um fracasso. Trata da rebelião de escravos mais importante da Bahia, a Revolta Malê, que ocorreu em 1835 em Salvador. Em um domingo de janeiro, durante o Ramadã, cerca de seiscentos escravos e libertos, sob a inspiração dos mestres muçulmanos (chamados de malês na Bahia, naquele tempo) e carregando talismãs que continham textos sagrados do Alcorão, insurgiram-se contra o governo. Provocaram uma enorme confusão na cidade até que foram vencidos e levados a julgamento. Aterrorizados diante da perspectiva de que a Bahia se tornasse uma nova São Domingos, as autoridades apressaram-se em pronunciar as sentenças. Dos rebeldes, quatro foram condenados à morte, dezesseis à prisão, oito a trabalhos forçados, quarenta e cinco ao açoite e trinta e quatro à deportação. Como ninguém na Bahia estava apto a exercer a função de carrasco, a sentença de morte foi executada por um esquadrão de artilharia. O castigo do açoite foi tão terrível, o número de golpes prescritos variando entre cinquenta e mil, que teve de ser cumprido em etapas, para que as vítimas não morressem antes que ele terminasse.

 Graças à minúcia sociológica com que foram elaborados os autos do processo -- a investigação policial abordou as condições de trabalho, moradia, a situação conjugal e a origem étnica dos conspiradores --, Reis apresenta tamanha riqueza de informações e detalhes sobre o contexto social da rebelião e sobre os conspiradores que o próprio leitor se torna uma testemunha ocular dos acontecimentos. Para compreender as circunstâncias da rebelião, Reis vai juntando e articulando gradativamente a situação política do Brasil, dominado por revoltas logo após sua independência de Portugal, com a crise da produção de açúcar e a complexa mistura étnica e racial da sociedade baiana da época. Embora a clivagem social dominante da época fosse entre escravos e senhores, vários outros conflitos e alianças cruzavam-na de cima a baixo. Nem todos os senhores de escravos eram brancos, havia quase tantos homens libertos quanto escravos, e a população não-branca dividia-se entre os nascidos na África (os pretos), os nascidos no Brasil (os crioulos) e os nascidos de uniões inter-raciais (os mulatos). Os pretos, por sua vez, dividiam-se por linhas étnicas, recriando em Salvador as ''nações'' às quais pertenciam na África. Não surpreende, portanto, que a Revolta Malê não tenha sido apenas uma briga entre brancos e não-brancos. Ela foi um levante de escravos da África Ocidental e de libertos, principalmente homens de origem iorubá, que haviam aderido ao islamismo. Eles formavam a grande maioria das pessoas de origem africana na Bahia, pois o tráfico, embora proibido, tinha continuado a importar negros de regiões que hoje correspondem à Nigéria e ao Benin. Escravos e libertos de origem angolana não participaram da rebelião, assim como também não o fizeram os crioulos e os mulatos. Segundo Reis, os angolanos tendiam a tomar uma posição diferente, principalmente formando quilombos. Os crioulos e mulatos haviam conseguido incorporar-se à sociedade baiana e muitas vezes participavam da repressão às revoltas de escravos. ''Se os africanos se organizassem de acordo com seus 'laços nacionais''', escreve Reis, ''crioulos e mulatos não teriam mais sucesso do que os outros. Mas sua 'nação' era a Bahia, não Oio, Daomé ou o califado de Sokoto.''

 Slave Rebellion in Brazil, portanto, é muito mais que a narrativa de uma revolta, embora seu estilo denuncie a admiração de Reis pela bravura dos conspiradores. O livro contém uma descrição e uma análise da Bahia entre linhas ''raciais'', mas como uma sociedade que produziu uma multiplicidade de identidades baseadas na profissão, nas origens ''étnicas'' e nos graus de proximidade com as correntes predominantes na cultura brasileira. Analisando as consequências da revolta, Reis mostra que as autoridades empenharam-se numa campanha maciça e cruel para forçar a ''assimilação'' a qualquer preço. Como assinala Reis:

O africano que quisesse ficar deveria deixar para trás suas raízes. Do ponto de vista da elite dirigente da Bahia, esta não era só a única via possível para manter a paz em sua sociedade escravista como era também o único meio possível para um futuro mais civilizado. Os que se opusessem a esse objetivo, ainda que considerados bárbaros, deveriam ser punidos como advertência aos demais -- de acordo com leis estabelecidas de maneira civilizada.

 O que é importante notar nesta citação não é tanto o desejo das autoridades baianas de manter seu poder e posição -- isto é óbvio --, mas a lógica cultural usada para fazê-lo. O caminho para a civilização no Brasil deveria ser pavimentado não com o estabelecimento de comunidades de base ''racial'' e ''étnica'' distintas e segregadas, cada uma com seu estilo de vida particular, mas pela assimilação e integração.

 O relato histórico de Reis nos oferece instrumentos para examinar e avaliar a análise política contemporânea feita por Hanchard. Enquanto Reis interpreta a Revolta Malê pelo ângulo do contexto social e cultural em que originou, a interpretação de Hanchard fica muitas vezes prejudicada, como, aliás, acontece com boa parte dos estudos contemporâneos sobre relações raciais no Brasil, por uma linguagem analítica e uma abordagem teórica que subestimam a especificidade dessas relações.

 Como arguto observador do Brasil, Hanchard compreende perfeitamente que a sociedade brasileira é diferente da dos Estados Unidos. Mesmo assim, ele conclui que ''há mais semelhanças que diferenças entre a política racial praticada no Brasil e a que se verifica em outras sociedades que contêm uma população descendente de africanos''. Estabelecido este princípio, a ''democracia racial'', e tudo o que a acompanha, torna-se de certo modo exterior à questão fundamental, definida como a da dominação e opressão por razões raciais. Sua ''função''  é ''tolher'' a consciência e impedir a atividade política subsequente. O argumento não é muito diferente daquele que ''culpa'' a cultura pelo fracasso de tantos projetos de desenvolvimento no mundo chamado, significativamente, de ''em desenvolvimento''. A hipótese comum aos dois argumentos é a de que todos os homens e mulheres de sociedades e períodos históricos diferentes são essencialmente os mesmos, exceto pelo fato de que alguns têm de lutar contra suas ''culturas'', enquanto outros não precisam fazê-lo.

 Uma outra maneira de interpretar o problema é olhá-lo por um ângulo mais ''antropológico''. Quando Hanchard e outros descrevem a democracia racial como um mito, fazem-no porque entendem os mitos como falsos. Reúnem e organizem as indiscutíveis provas do preconceito, da discriminação e da desigualdade de base racial no Brasil com o intuito de desmascarar o ''mito'' da igualdade e da harmonia. Os antropólogos, porém, costumam ser mais benevolentes em relação aos mitos. Admitem que não são inverdades, produtos de equívocos que podem ser desmascarados e denunciados pela superioridade do saber ocidental, mas antes sistemas ordenados de pensamento social que consagram e exprimem percepções fundamentais sobre a vida social. Entender a democracia racial e seus corolários não mais como ''impedimentos'' à consciência racial, mas como fundamento do que de fato significa a raça no Brasil leva a uma radical mudança de ênfase. Não se quer saber se há mais ou menos diferenças ou semelhanças entre o Brasil e outras ''sociedades onde vivem pessoas de descendência africana'', mas quais são exatamente são essas diferenças e semelhanças. Pode-se dizer que as semelhanças estão nas correlações entre a cor e o bem-estar socioeconômico medido pelos índices padronizados de riqueza, renda, educação, mortalidade infantil e expectativa de vida. Esses fatores assinalam a universalidade da discriminação de cor. As diferenças encontram-se na maneira como a ''raça'' é construída como categoria social e no modo como funciona a discriminação racial. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ''racismo científico'' declarava que o ''sangue negro'' poluía o ''sangue branco'' e a regra de que ''uma gota é suficiente'' (''one-drop rule'') definia uma fronteira nítida entre os que se consideravam ''brancos'' e os que eram considerados ''negros''. Essa regra constituía, até o início do movimento dos direitos civis, na década de 1960, a base da segregação legal e da criação de comunidades, culturas e formas linguísticas ''negras'' separadas. Hoje, ela é invocada para regulamentar a ação afirmativa. Nesse sistema, o suposto essencial era (e ainda é para muitos) que os negros e brancos são intrinsecamente diferentes e devem ser mantidos separados. O grande anátema era (e talvez ainda seja para muitos) a miscigenação biológica e cultural. Mutatis mutandis, criaram-se sistemas semelhantes onde quer que ingleses, alemães ou holandeses estivessem no controle de sociedades de natureza multiétnica: o apartheid sul-africano é o exemplo mais extremo.

 No Brasil e em outras antigas colônias de Portugal, preferiu-se enfatizar a ''conversão'' dos diversos grupos étnicos à cultura dominante. Por volta da década de 1930, o Brasil tinha acrescentado um outro ingrediente: o elogio da miscigenação cultural e biológica. Os portugueses podem ser justamente acusados de imperialismo cultural e racismo cotidiano, mas a sociedade que seus herdeiros construíram no Brasil não inclui a raça como fator de segregação ou discriminação legal. Além disso, e como consequência desse fato, não existe no Brasil a mesma separação consensual entre ''brancos'' e ''negros'' que predomina nos Estados Unidos e na África do Sul. Pelo contrário, o neolamarckismo brasileiro é muito mais sofisticado. Enquanto os americanos acham que um único ancestral africano é suficiente para produzir um ''afro-americano'', ou ''uma pessoa de descendência africana'', os brasileiros acreditam herdar as características de todos os seus ancestrais. Um efeito disso é que os brasileiros se classificam, e são classificados pelos outros, em função de sua aparência física, o que gera um arco-íris de categorias ''raciais'' que vai do preto-azulado ao mulato-claro. Uma pesquisa realizada em 1976 revelou a existência de nada menos que 135 categorias desta natureza¹.

 Outro corolário da constituição racial do Brasil é que crenças, práticas e modos de ser de origem africana são amplamente disseminados pelo conjunto da sociedade brasileira. O samba, por exemplo, tornou-se um dos principais símbolos do orgulho da nação brasileira, justamente, segundo Hermano Vianna, por meio de alianças significativas entre intelectuais e músicos do asfalto e do morro. Estudo histórico realizado por Yvonne Maggie demonstra que o sistema de crenças do candomblé afro-brasileiro era compartilhado por advogados, promotores e juízes, quase todos brancos, encarregados de processar os ''falsos praticantes''. Como tentei argumentar alguns anos atrás, no Brasil não há nada equivalente à soul food², tanto é que a moderna movimentação negra -- e penso no Olodum e no Afro-Reggae -- produz símbolos sui generis como marca de distinção.

 Desde a década de 1970, a identity politics [política de identidades] nos Estados Unidos têm atraído muitos simpatizantes no Brasil, onde começaram a ser organizados movimentos sociais cuja retórica é quase igual à de seus equivalentes americanos, e que recebem financiamento e apoio de entidades filantrópicas sediadas nos Estados Unidos e na Europa. Os movimentos de maior ''sucesso'' são os de mulheres e o de índios. O primeiro tem tido, direta e indiretamente, muita influência sobre um grande número de mulheres e deu origem a mudanças importantes nas atitudes sociais bem como na legislação. O segundo, nascido de uma sólida aliança entre líderes índios e intelectuais não-índios muitos deles antropólogos), tem conseguido chamar atenção para as consequências negativas dos projetos de desenvolvimento em curso e para a questão da garantia dos direitos dos índios à terra. A explicação desses ''sucessos'' provavelmente está no fato de sua retórica ter caído em solo fértil, principalmente porque tanto as mulheres quanto os índios sabem quem são.

 Os movimentos de negros e homossexuais consideram-se menos ''bem-sucedidos'' exatamente porque nenhum deles sabem exatamente quem é. O conceito moderno de homossexual cai em ouvidos moucos daqueles que vivem num mundo social onde as práticas homoeróticas são generalizadas e onde a masculinidade e a feminilidade são consideradas mais importantes do que a homo ou a heterossexualidade em si e onde, por exemplo, se acredita que um parceiro ''ativo'' numa relação entre dois homens mantém sua masculinidade intacta, ou até reforçada. Por uma lógica semelhante, a noção de solidariedade negra soa esquisita numa sociedade que se acostumou a ver-se como uma coleção de indivíduos de diversas origens étnicas que se distribuem segundo linhas de classe, e não linhas raciais. A própria ideia de de um Movimento Negro supõe a existência de uma grande comunidade negra consciente de si mesma. Como no Brasil essa comunidade se restringe aos militantes negros, não é de estranhar que o primeiro objetivo do movimento seja criar uma ''consciência racial''. Para isso, é preciso convencer o povo brasileiro de que o espectro de colorações da pele não passa de uma ilusão que mascara a ''verdadeira'' divisão entre brancos e negros, tal como acontece nos Estados Unidos. Antes de mais nada, esses movimentos tinham de convencer os mulatos, os morenos e os de outras categorias do espectro de cores possíveis de que, afinal de contas, todos eram realmente negros, e que sua cultura lhes teria sido, por assim dizer, roubada pela elite branca dominante. Por isso é que o Movimento põe tanta ênfase na ''recuperação'' da cultura negra, que funcionaria como um centro aglutinador de uma identidade considerada perdida. Executar essa tarefa não tem sido fácil, porque ela vai de encontro ao mito básico da democracia racial e aos arranjos e culturais e sociais que negam o particularismo racial em nome de valores universais.

 É quase impossível não concluir, após a leitura de Orpheus and Power, que a incapacidade dos militantes negros de promover um movimento de massas tem causa ainda mais profundas do que as apresentadas por Hanchard. O ''fracasso'' do Movimento Negro na conquista de corações e mentes dos brasileiros decorre do conflito entre os principais segregacionistas que estão no cerne da ideologia do Movimento e os anseios assimilacionistas que continuam fortes no senso comum brasileiro. Pesquisa feita em São Paulo, em 1986, sobre atitudes da população em relação à raça, parece sustentar essa opinião. Perguntados sobre ''o que os negros e mulatos deveriam fazer para defender seus direitos'', 75.3% dos negros e 81.3% dos brancos responderam que preferiam a formação de um movimento composto de brancos, mulatos e negros. Menos de 10% de cada uma dessas categorias achavam que o problema deveria ser resolvido individualmente ou exclusivamente pelo Movimento Negro.

 Não estou querendo dizer com isso que o Brasil é melhor ou pior do que o resto do mundo do ponto de vista das relações de raça; apenas afirmo que ele é diferente. Pode-se dizer que o mesmo dos Estados Unidos. Nem um país nem o outro são exemplos a seguir ou mercadorias a serem exportadas. De seu confronto, fica-nos a poderosa advertência de que ''raça'' e ''relações de raça'' não têm absolutamente nada de natural. Cotejando-se um país com o outro, fica-nos a conclusão de que democracia racial e one-drop rule são ideias igualmente exóticas.

[1] SILVA, N. do V., ''Distância social e casamento inter-racial no Brasil'', Estudos afro-asiáticos, 14:54-84, 1987.
[2] Soul food é como é conhecida uma versão popular de culinária afro-americana nos EUA; enquanto a feijoada é, aqui no Brasil, um prato nacional, nos EUA ela não passa de soul food, com a qual os negros estadunidenses estão acostumados desde a infância. 

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