quinta-feira, 30 de julho de 2015

O assédio ideológico do deputado Rogério Marinho

por Alípio de Sousa Filho, sociólogo e professor da UFRN, para  a Carta Potiguar
Deputado Federal Rogério Marino (PSDB-RN).


 Tramita na Câmara Federal o projeto de lei 1411/2015, de inciativa do deputado federal do RN, Rogério Marinho (PSDB), que criminaliza o que o projeto chama “assédio ideológico” e que presume ser uma prática no ensino no país. Para o projeto de lei, tal assédio seria a prática de professores que visariam impor aos estudantes posicionamentos políticos, partidários, “ideológicos” ou qualquer tipo de “constrangimento” que os obriguem a adotarem posicionamentos diversos aos que sustentam. Como é concebida como uma prática a ser tratada como crime, o projeto estabelece pena de prisão e multa para professores ou outros agentes da educação que o cometerem.

 Vistos muitos projetos bizarros e folclóricos apresentados nas casas legislativas brasileiras, em todos os níveis, não é tão espantoso assim que mais um parlamentar apareça com um projeto dessa natureza. Projeto que, se aprovado, será declarado inconstitucional, logo em seguida, por tão desarrazoado.  Mas, professores e educadores não podem deixar de reagir, manifestando-se contra uma tão absurda ideia.

 Em primeiro lugar, há que se desmascarar a pretensão do deputado em chamar de “ideológico” o pensamento teórico que não difunde as ideias que ele professa e que certamente não as toma por também “ideológicas”. Ele procede como Napoleão Bonaparte: são os adversários que são os ‘ideólogos”, ele próprio, não!

 Ora, desde Marx e Engels, ao escreverem o livro “A ideologia alemã”, o sentido para o termo ideologia é totalmente um outro que essa confusão de conceber todas as ideias como “ideológicas” ou estas como sendo as ideias dos adversários ou inimigos. Esses autores bem definiram a ideologia como o fenômeno pelo qual ideias e representações sociais são capazes de produzir uma inversão na visão humana e social sobre a gênese e o caráter da realidade social e histórica, ao esta adquirir a aparência de autônoma em relação à própria sociedade e aos seus agentes. Isto é, a realidade social ganhar aspecto de algo que existe sem a participação da ação humana, sem história, uma quase-natureza, realidade transcendental ou divina.

 Analisando particularmente a sociedade capitalista, embora o fenômeno seja igual em todas as outras, os autores também destacaram uma relação intrínseca entre ideologia e as ideias e representações de uma classe social particular, a “classe dominante”. Para eles, a ideologia corresponde às ideias dominantes e, como escreveram, essas ideias são, em cada época, as ideias da classe dominante porque é essa classe que detém igualmente o monopólio dos meios de difusão das ideias na sociedade. E quais são as ideias dominantes difundidas por esses meios? São ideias negadoras das relações sociais que imperam na sociedade, por serem a expressão mascarada das relações que tornam possível que a classe que tem poder econômico seja dominante, sendo, portanto, as ideias que disfarçam a dominação social e política dessa classe.  Marx e Engels concluem que são “as ideias de sua dominação”. Assim, conceituada como as ideias da dominação, a ideologia não corresponde a quaisquer ideias e nem a todas as ideias.

 Conquanto a percepção de Marx e Engels traga algo da ideologia que é ser sempre as ideias da dominação, definição a se conservar, após suas análises pioneiras, muitos estudiosos já demonstraram, numa conceituação pós-marxiana do fenômeno da ideologia, que a dominação social e política (e suas ideias) e diversas formas de sujeição social nem sempre têm um conteúdo ou componente de classe, de dominação de classe, qualquer que seja ela ou qualquer que seja o sistema de sociedade. A sujeição social que se sustenta na ideologia adquire formas muito variadas (que vão das discriminações, apoiadas em preconceitos, às exclusões sociais, provocadas por subtração de recursos, subordinações e negação de reconhecimento, passando por sofrimentos emocionais e psíquicos, produzidos por opressões, assédios, violências, repressões e coerções morais), atingindo diferentes indivíduos, sujeitos, grupos e classes.

 A ideologia é responsável pela produção da alienação e do assujeitamento dos indivíduos a subjetividades impostas, instituições, saberes e tecnologias de produção de si, fazendo-os desconhecerem o que funda a realidade à sua volta e a realidade de si próprios. O que caracteriza a ideologia, no fundamental, é sua operação de discurso no sentido de negar a historicidade da realidade, produzindo sua naturalização e eternização.

 Um dos importantes papéis do ensino, em todos os níveis, é possibilitar a formação do pensamento teórico-filosófico-científico que dote a todos de condições intelectuais, epistemológicos e metodológicas para o conhecimento da realidade, esta concebida de modo amplo: o mundo natural, o mundo social-histórico e o mundo da realidade subjetiva humana. Toda a produção do conhecimento teórico-filosófico-científico até aqui na história do pensamento humano voltou-se para esse fim. Produção de um modo de pensar sem neutralidade, pois já lhe é intrínseco ser a crítica e a desconstrução de todas as ideias (ideológicas) que circulam na sociedade que impedem o conhecimento da realidade. Ao ser um saber que torna possível a compreensão do que funda a realidade da sociedade e do mundo, assim como a realidade dos próprios indivíduos enquanto sujeitos sociais, o conhecimento é sempre crítica, esclarecimento, lucidez, desalienação e dessujeição.  Não é por outra razão que, na história de nossas sociedades, o conhecimento conhece também uma história de sua perseguição, proibição, censura.

 Assim, embora ciências possam ser, em diversos casos e ocasiões, veículos do discurso ideológico, no seu ensino e no do modo teórico-filosófico-científico de pensar não é a ideologia, no sentido próprio do termo, que impera, como pretende fazer acreditar o deputado (no uso do termo em seu projeto, com propósito, este sim!, ideológico!), mas inteiramente o seu contrário. Nas escolas e universidades, nós, os professores, educamos para o conhecimento da realidade, para a formação de cientistas, pensadores, pesquisadores e profissionais para diversos áreas de atuação, mas sempre com a ideia que estes devem agir para modificar condições de existência que degradem a pessoa humana, que constituam realidades de exclusão, subordinação, discriminação, sujeição.

 Não são professores, nas escolas ou nas universidades, que praticam assédio ideológico, mas as mídias, as igrejas, as famílias, os discursos moral, religioso e político, ao difundirem ideias que negam o caráter construído da realidade e, por isso mesmo, o caráter revogável de todas as instituições sociais existentes. Tentando fazer crer a todos que a realidade do mundo, das sociedades e de nossas vidas são realidades naturais, universais, imutáveis, transcendentais, divinas, cabendo apenas nossa conformação ao instituído e ao existente, suas práticas tornam-se a de uma polícia dos comportamentos e pensamentos, agindo sobre crianças, jovens e adultos para a manutenção de preconceitos, hábitos e ideias que constroem, sustentam e reproduzem instituições e relações de sujeição ou dominação.

 Ao pretender que aqueles que ensinam o pensamento crítico e reflexivo nas escolas e universidades estariam praticando “assédio ideológico”, com a ameaça de sua criminalização, o deputado potiguar Rogério Marinho age, como verdadeiro capataz da ideologia, em favor de uma educação acrítica, obscurantista, retrógrada e, por isso, impeditiva da formação de verdadeiros cientistas, estudiosos e profissionais capazes de contribuírem com a construção de uma sociedade, no Brasil, culturalmente avançada, politicamente emancipada e sem as misérias que nos sufocam.

 Tomara seu projeto torne-se mais um na prateleira da Câmara Federal onde jaz a pilha do folclore parlamentar nacional!


Outros textos de Alípio Sousa Filho no blog:
Teorias sobre a origem da homossexualidade

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Sobre as pessoas trans



Bandeira do orgulho trans. 


 As normas de gênero -- i. e., as regras de comportamento (estético, erótico etc.) impostas sobre os indivíduos a partir do seu sexo -- marginalizam e punem os que a ela não se adequem ou desobedeçam (sem falar dos prejuízos que afetam aqueles que a ela submetem-se ''com sucesso''). Isso certamente não ocorre de forma semelhante entre todos os ''desviantes'': rapazes com brinco e/ou moças com cabelo curto, estilo ''garoto'', p. ex., cá e acolá recebem uns olhares repreensivos e ouvem sermões sobre o uso de brinco e o cabelo curto não serem coisa ''de homem'' e ''de mulher'', respectivamente e às vezes com a continuação 'de verdade'; nada muito grave. A coisa muda radicalmente em se tratando, p. ex., de homossexuais: se você, como eu, é do sexo masculino, muito provavelmente gastou boa parte do ensino fundamental, do médio, talvez do superior e quem sabe até hoje zoando os amigos ou outro fulano de ''viado'', ''bichinha'' etc., e talvez não consiga aceitar a ideia de que um homem que faz sexo anal na posição de passivo seja um ''homem de verdade''. Para os bissexuais, além de piadas, insinuações e até dúvidas sinceras de que eles são ''indecisos'' -- como se só se pudesse ou devesse sentir atração por um sexo... --, não é incomum a pressão para que se afastem o máximo possível das identidades homossexuais, devido à masculinidade hegemônica (e à doxa de que 'todo gay é afeminado', tão verdadeira quanto a preposição segundo a qual 2 + 2 = 5 -- e não que ser feminino seja algo mau ou condenável). 


 Há, porém, um grupo que, ao menos na visão deste que vos escreve, é objetivamente o que mais sofre com as normas de gênero: as pessoas trans, i. e., as pessoas que, para além de desejo sexual,  simplesmente não se identificam com os padrões de comportamento impostas a ela devido a seus sexos biológicos. Uma mulher trans, p. ex., é biologicamente do sexo masculino (e aqui eu relembro que a categoria de sexo biológico não é um negócio tão simples, existindo pessoas com ''par'' cromossômico sexual X0, XXX, XXY etc., além de outras formas de mosaico genético), mas identifica-se com as características atribuídas ao gênero feminino -- coisas como vestimenta, ''modo de agir'', sexo objeto de desejo etc. Por romperem de forma radical com aquilo que é tido como 'normal' e 'natural', as formas exclusivas de ser humano, a população trans (chuto aqui que mais as mulheres trans do que os homens trans, porque não chegam a mim notícias de violência simbólica ou física contra homens trans -- embora com certeza hajam --, na verdade quaisquer dados, e já excluindo os chamados 'trans não binários', pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros) é desumanizada, posta ainda mais abaixo das pessoas cis-hétero do que já o são as pessoas homo/bissexuais -- e isso sem fazer o recorte de raça, classe social, idade etc.

 Sabemos, a motivos de ilustração, que a maior parte da população feminina trans emprega-se, em nosso país e em sociedades culturalmente parecidas (como a Argentina), na prostituição. Somos idiotas o suficiente para achar que isso é porque essa é uma profissão especialmente agradável ou atrativa para elas? Que estaria envolvida com hipotéticas ''causas'' da transgeneridade (biológicas ou de socialização -- na medida em que essa dicotomia é válida [1])? Uma análise verdadeiramente rigorosa, científica e crítica só pode concluir que isso tem relação com a profunda transfobia enraizada em nossa cultura, que impede o acesso das pessoas trans aos empregos formais: por preconceito pessoal ou por temor que os clientes não se agradem com isso, os patrões não dão oportunidades de emprego a elas. Uma consequência disso é a baixíssima expectativa média de vida dessa parcela da população: 35 a 40 anos, segunda uma pesquisa [2].

 Mas a coisa é terrivelmente mais profunda: em muitos casos, as travestis -- que a grande maioria de nós persiste em chamar pelo nojento e desumanizante termo ''travecos'' -- saem do ambiente doméstico tragicamente cedo. Segundo uma pesquisa realizada na Argentina com 498 pessoas trans, ''a maioria de nós fomos expulsas de nossas casas ou fugimos com 11 ou 12 anos porque não aceitavam que nos vestíssemos de mulher'' [3]. O horror também existe no ambiente escolar:
Foram mencionadas várias situações de exclusão e discriminação no âmbito educacional. As ridicularizações, o maltrato, o desamparo e a burocracia administrativa vinham tanto dos colegas quando do pessoal docente e diretores. (...) "Uma professora me deu um tapa porque queria que eu fosse jogar bola". Assim, são vários os testemunhos que relatam situações de abuso sexual e agressão física nos banheiros e da falta de ação por parte do pessoal docente para impedir essa situação. Essas experiências tiveram como consequência o abandono do sistema escolar majoritariamente no momento em que as pessoas trans começam o processo de construção de sua identidade. (...)

"Se você era mariquita, os colegas roubavam suas coisas, rasgavam suas roupas, lhe pegavam no recreio... Mijavam em cima de você... E nos banheiros... Os colegas lhe obrigavam a ter relações com eles e você fazia isso por medo".


Discriminação contra as meninas trans na escola (p. 28)


Discriminação contra os meninos trans na escola (p. 47)




21% das mulheres trans (p. 29) e 38% dos homens trans (p. 48) afirmaram que foram ridicularizados ou agredidos pelos professores. 21% das mulheres e 25% dos homens trans foram proibidos de usaram o banheiro. 34% das mulheres e 26% dos homens não tiveram seu nome social respeitado. Como consequência de toda essa discriminação, 49% das mulheres e 47% dos homens abandonaram o sistema educacional. Entre as mulheres trans menores de 18 anos, metade delas não estava estudando [4].


  Sabemos também que o Brasil é o país que mais mata travestis em todo o mundo [5], e não é de se duvidar que dados referentes à discriminação sofrida pela população T em nossa nação sejam similares aos do supracitada vizinho latino (para uma análise da condição dessa população no Brasil, com uma análise mais focada no ambiente escolar, ver o artigo ''Cenas de exclusões anunciadas: travestis, transsexuais, transgêneros e a escola brasileira'' nesse livro). Segundo o GGB, dos assassinatos documentados de LGBTs em 2013, 35% eram travestis. A estimativa do GGB de 2011 é que existem 50 mil travestis e 2 mil transexuais no Brasil. Ou seja, ano passado, cerca de uma travesti a cada 460 foi assassinada em 2013. Comparando os dados do GGB de forma relativa à população (considerando que 7,8% dos homens se declararam homossexuais num estudo do Instituto de Psiquiatria do HC da USP em 2009), concluímos que a probabilidade de uma travesti ser vítima fatal de um crime de ódio é cerca de 90 vezes maior que a de um homem gay. 

 Nós, que desejamos uma humanidade emancipada, livre de toda exploração e opressão, declaramos guerra à transfobia, e também à homofobia e bifobia. Ou ainda: nós declaramos guerra às normas de gênero e a outras formas de regular os corpos e impor-lhes comportamentos específicos mediante ''marcadores'', como raça, idade e classe social, denominando 'anormais' e desumanizando os que desses estereótipos fugirem. 




Páginas e blogs indicados sobre o tema:

T de revolução 
Travesti reflexiva
Travesti marxista 

Posts anteriores relacionados ao tema aqui no blog:

Racismo, misoginia e LGBTfobia no capitalismo
Notas sobre transsexualidade 
Esboços dos rudimentos de uma crítica ao gênero
Sobre a ideologia de gênero 
Heteronormatividade e homofobia 

Notas

[1] http://www.academia.edu/3025322/Diferen%C3%A7as_entre_homens_e_mulheres_biologia_ou_cultura
[2] http://www.brasildefato.com.br/node/28082
[3] http://travestimarxista.blogspot.com.br/2015/07/a-violencia-policial-e-criminalizacao.html
[4] Idem.
[5] http://super.abril.com.br/comportamento/o-recorde-que-nao-queremos-ter-somos-o-pais-que-mais-mata-transexuais


sábado, 25 de julho de 2015

China, aumento de salários e militância operária


Artigo de Deirdre Griswold, publicado originalmente no workers.org, em 21 de julho de 2015; tradução de Gabriel Duccini





 Em termos de poder de compra, os salários dos trabalhadores nos Estados Unidos têm estado estagnados desde os anos 70. É de conhecimento comum que agora se necessita de salários altos na maior parte das famílias trabalhadoras para suprir despesas básicas. Enquanto isso, trabalhadores mal remunerados estão se mobilizando, lutando arduamente por um maior salário mínimo e representatividade sindical.


 Os salários em muitos países da Europa também estão congelados. E a crise econômica capitalista mundial que teve início em 2008 devastou as economias de países apanhados pelo estrangulamento da dívida imperialista, desde a Grécia até grande parte da África, Ásia e América Latina.


 Mas existe uma luz no túnel para os salários dos trabalhadores— embora você dificilmente saberá se confia na mídia burguesa para se informar. E é a China.


Aumento constante de salários


 Ao tudo que nos consta, os salários nas fábricas na China, que obviamente começaram em um nível muito abaixo dos salários em países capitalistas avançados, mais do que triplicaram na última década. Alguns dizem que os salários dos trabalhadores urbanos de colarinho branco aumentaram cinco vezes nesse mesmo espaço de tempo. Não é isso que está acontecendo em outros países em desenvolvimento. Além disso, a inflação na China é baixa— a atual taxa anual é de 1,4%, valorizando o aumento salarial.

 Aqui estão algumas fontes ocidentais desse ano:

 The Economist em 4 de Março: “Desde 2001, o pagamento pela hora trabalhada nas fabricas aumentou na média de 12 por cento ao ano.” Imagine se os trabalhadores daqui [Estados Unidos] estivessem ganhando aumento de 12% todo ano nos últimos 15 anos! Mesmo com contratos negociados através dos sindicatos, o aumento de salários nos Estados Unidos quase não acompanhou o ritmo da inflação.

 Na seção de tecnologia da revista New York Times de 24 de Abril: “Ondas de trabalhadores que migraram do campo tem preenchido as fábricas chinesas pelas últimas três décadas e a ajudaram a tornar a maior nação produtora do mund, Mas muitas empresas agora se encontram na luta para contratar um número suficiente de trabalhadores. E para os poucos trabalhadores que encontram, a remuneração mais do que quintuplicou na última década, para mais de $500 por mês em províncias costeiras.”.

 Essas matérias são dirigidas para investidores dos E.U.A., os alertando que se eles querem fazer negócios explorando os trabalhadores na China, irá custar mais do que custava no passado.



 Os salários chineses não têm variado de maneira irregular— eles têm aumentado a um ritmo muito constante mesmo quando a força de trabalho aumentou, especialmente com pessoas oriundas do campo. Caminhando junto a isso, tem sido o crescimento planejado de grandes cidades, com novas moradias, transporte, escolas, etc.


Luta de classes segue viva e trilhando seu caminho


 Há duas coisas a se considerar nessas mudanças notáveis. Uma é a luta dos trabalhadores chineses por uma vida melhor, e a outra é a resposta do governo chinês, dirigido pelo Partido Comunista. A luta de classes protagonizada por esses trabalhadores contra seus patrões, muitos deles de corporações estrangeiras, segue viva e caminhando na China. Mobilização por parte dos trabalhadores tem crescido tremendamente.


 Nada merece mais o rótulo de propaganda do governo dos Estados Unidos do que o Voice of America. E eis aqui o que o VOA teve a dizer recentemente sobre as greves na China:


"O Boletim do Trabalho da China - que rastreia conflitos - constatou que houve cerca de 1.400 greves em 2014, e o número de protestos aumentou ainda mais nos dois primeiros meses de 2015. ‘Nós registramos greves e protestos de trabalhadores à medida e quando eles acontecem, e ao longo dos últimos meses estamos registrando 200 casos por mês, em média’, explicou Jeffrey Crothall, um pesquisador do escritório de Hong Kong do Boletim do Trabalho da China’. O grupo registrou 569 protestos no quarto trimestre do ano passado— três vezes mais greves que durante a mesma época em 2013. O número também indica um aumento acentuado a partir de 2011, quando havia apenas 185 protestos trabalhistas documentados durante o ano todo… ‘A maior parte dos manifestantes reivindicam maiores salários, salários atrasados e maiores benefícios e pensões’. ‘Em 1995, a China promulgou uma lei trabalhista que garantia a todos os trabalhadores o direito a um salário, períodos de descanso, sem horas extras excessivas e o direito de realizar negociações coletivas. O rápido crescimento econômico nos anos seguintes, tirou milhões de pessoas da pobreza, mas ao passo que a economia fica estagnada, os salários poderiam congelar e o desemprego pode subir, e muitos poderiam começar a culpar o governo.

Autoridades em Pequim, na esperança de pressionar as autoridades locais a resolverem a situação, no mês passado emitiram uma nota para os governos locais fazerem da melhoria das relações de trabalho uma “tarefa urgente”. A diretriz disse que os funcionários vão trabalhar para garantir que os empregados sejam pagos plenamente e sem atrasos, lançar programas para providenciar melhor proteção laboral para trabalhadores oriundos do campo, e chamar os empregadores a reforçar a segurança nos locais de trabalho.(Voice of America, 9 de Abril).


 Colocando sob uma perspectiva, o Departamento de Estatísticas Trabalhistas nos Estados Unidos mantém um registro de grandes greves envolvendo mais de 1.000 trabalhadores. No ano passado houve 11 dessas greves nos Estados Unidos, com um total de apenas 34.000 trabalhadores. Costumava haver centenas de tais grandes greves por ano, chegando a números como 424 em 1974 e envolvendo 1,8 milhão de trabalhadores. Mas os números começaram a diminuir na década de 1980.

Empresário assassinado, Estado ficou ao lado dos trabalhadores

  VOA também pontuou: “Embora muitos desses manifestantes que participavam de protestos trabalhistas tenham sido detidos, poucos foram processados criminalmente." Para entender a frase “poucos foram processados criminalmente", aqui um dos exemplos mais radicais: Em 2009, ocorreu um caso envolvendo metalúrgicos na fábrica de Tonghua Iron & Steel Works na Província de Jilin, no norte da China. Após uma reunião coletiva chamada pelo executivo que iria assumir o comando da fábrica, os trabalhadores se rebelaram e o espancaram até a morte.


“Chen Guojun, o empresário que foi espancado até a morte, havia ameaçado 3000 metalúrgicos da Tongshua com demissões, as quais ele afirmou que poderiam acontecer dentro de três dias. Também havia assinalado que cortes maiores seriam prováveis nas dificuldades da fábrica” (New York Times, 26 de Julho de 2009)

O que o Governo Chinês fez em relação a isso? “O Governo provincial de Jilin ordenou que o Jianlong Group of China abandonasse a compra da estatal Tonghua Iron & Steel Group após os protestos contra as perdas de empregos terem matado um diretor, disse a estatal “Beijing News” na Segunda-Feira. A orientação, anunciada através da rede de televisão de Jilin na noite passada também ordenou que o grupo Jianlong, com sede em Pequim, nunca mais tomasse parte em qualquer plano reorganizativo de Tonghua, disse Bloomberg News.” (New York Times, 27 de Julho de 2009).


E foi isto. A privatização havia sido interrompida. Nenhuma prisão, nenhum processo. Não é esse tipo de poder que os trabalhadores deveriam ter em todo o mundo?

Crescimento da classe operária

 À época da vitória da Revolução em 1949, a China era um país de 542 milhões de pessoas, empobrecido e devastado pela guerra. A vasta maioria era de camponeses quase morrendo de fome, recentemente libertados dos latifundiários, que os davam tratamento um pouco melhor que o dado a escravos.


Hoje é um país de 1,3 bilhões em rápido desenvolvimento. Mas foi apenas em 2012 que a população urbana da China pela primeira vez excedeu a população rural. Hoje a parcela urbana da população é algo entre 60%.

A classe operária que cresce rapidamente possui diversas reclamações e não é passiva. Os operários são militantes, organizados e reivindicam o que eles sabem ser corretos: uma vida estável com pagamento e condições de trabalho decentes.

Desde a virada à direita dentro da liderança do Partido Comunista da China no final dos anos 1970, liderada por Deng Xiaoping, a China se abriu para a propriedade capitalista. Mas a recente queda das ações da bolsa de lá, que custou a muitos chineses as suas poupanças, mostrou que ilusões acerca de um enriquecimento imediato sob o capitalismo podem vir contra a irracionalidade básica do sistema capitalista.

O resultado do crash, assim como os grandes ganhos produzidos pelos trabalhadores, mostra outra coisa, também. O Estado na China não age da mesma maneira que Estados Capitalistas agem no resto do mundo. Chamar a China de um país capitalista é errado.

Tendo a modernização em vista, o PCCh permitiu que diversos aspectos do capitalismo existissem ali, e os capitalistas fizeram coisas desprezíveis como não pagar operários, submetê-los à longas horas de trabalho e condições perigosas de trabalho, etc. O surgimento de milionários e até bilionários alimentou a corrupção de funcionários do governo e antagonizou os trabalhadores.

Mas juntamente com as empresas de propriedade de capitalistas existe uma infra-estrutura estatal cada vez mais poderosa e moderna, através da qual o planejamento socialista a longo prazo é realizado.

O Governo foi capaz de estabilizar os mercados financeiros no último crash —algo que governos capitalistas não podem fazer sem tirar do suor das massas. Quantos países capitalistas poderiam sobreviver a uma queda no mercado de ações de mais de um terço, sem recorrer a medidas draconianas?

Ainda mais importante, o Estado controla o desenvolvimento planejado do país tanto em termos econômicos quanto sociais.

As organizações que lutam por um acordo internacional sobre emissões de dióxido de carbono para neutralizar o aquecimento global se entusiasmaram quando, no final de junho, a China tornou público o seu plano detalhado para o desenvolvimento econômico ao longo das próximas décadas. Enquanto ainda permitindo o crescimento da China, é definido exatamente como o país vai se afastar dos combustíveis fósseis, bem como, por exemplo, vastas áreas de reflorestamento para sequestro de carbono na atmosfera agora.

Nenhum país capitalista apresentou sequer qualquer comprometimento com o futuro. Como poderiam, quando as corporações e bancos estão em concorrência feroz entre si para controlar e usar todas as alavancas de seus governos para aumentar seus próprios lucros, acima de tudo?



O conservadorismo e a História


por Bertone Sousa, para o seu blog


Edmund Burke, eminente pensador do conservadorismo britânico no século XVIII.

 Declarar-se abertamente conservador tem sido uma ação cada vez mais difícil na era da informação em que vivemos. Além do viés quixotesco que norteia suas ações, um conservador também possui um sério problema cognitivo: ele precisa rejeitar o caráter dialético da história e aceitar as mudanças apenas naquilo que mantêm de aparente, isto é, na medida em que não alteram a estrutura da pirâmide social. Por isso as revoluções e os movimentos sociais são a própria antítese da alma conservadora.


 Historicamente, o conservadorismo nasceu como reação à Revolução Francesa e aos ideais de liberdade e igualdade que a nortearam. A Revolução trouxe ao palco da História a expectativa do progresso, a crença na possibilidade humana na realização do futuro através da ciência, da razão e da luta social; a Revolução cristianizou a escatologia cristã, transferindo para o homem e a sociedade as responsabilidades por seu próprio destino, instituindo o planejamento no lugar da espera, a razão no lugar da fé, o Estado no lugar da Igreja, o desejo de poder no lugar da obediência à autoridade e o indivíduo no lugar de Deus.

 Com isso a história passou a ter um sentido fora do conteúdo estritamente religioso que a tradição cristã lhe atribuía. Agora, como sujeito da história o homem assume o controle do seu próprio devir, com o domínio da ciência e a técnica pode mudar a natureza e, com isso mudar a própria sociedade e a si mesmo. A Revolução também traz ao palco a laicização do pensamento político, iniciado na modernidade com Maquiavel e consolidado com os pensadores pós-iluministas do século 19. Nesse sentido, a Revolução Francesa passou a dividir o pensamento político do ocidente em conservador e progressista.

 O progressista acredita na capacidade do espírito humano para reorganizar a sociedade, dissolvendo privilégios seculares e instituindo a noção de direitos humanos. O progressita acredita que a pobreza não resulta da vontade divina ou da indolência dos indivíduos, mas é deliberadamente forjada para manter os privilégios de uma casta ou de um grupo social. Para reverter essa situação, é necessário a institucionalização de outra compreensão da história e o uso da razão e de uma hermenêutica laicista para esquadrinhar as intenções e ações dos agentes no passado e no presente.

 Como reação a esse paradigma, o pensamento conservador veio reafirmar a imutabilidade da natureza humana, a necessidade da sujeição do indivíduo à doutrina religiosa e às classes aristocráticas tradicionais; em nome destas últimas, contesta-se a capacidade do Estado moderno de conceder bem-estar. O progressista tem o olhar voltado para o futuro, o conservador para o passado, para o culto dos antepassados. O conservador teme a liberdade e somente pode conceber uma sociedade “livre” com rédeas. Para isso não bastam as leis, é preciso a imposição do culto à tradição.

 Desse modo o pensamento conservador não pode apelar apenas à História, pois como disse, precisa negar seu caráter dialético e fechar-se no apelo à tradição e à autoridade contra o que consideram o caos, isto é, a reorganização da sociedade pelo espírito revolucionário. Por isso o conservadorismo é mais uma indisposição para com a mudança do que propriamente uma ideologia. Além disso, o conservador precisa recorrer à religião revelada, justamente porque suas verdades são consideradas atemporais  é que a sociedade deve bastar-se nelas. Como a religião revelada não aceita a historicidade dos valores morais, precisa continuamente silenciar aqueles em seu interior que não se conformam a essa visão.

 Por seu fechamento o pensamento conservador tende a ser pouco reflexivo e crítico, mas nunca crítico em relação a si mesmo. Somente pode vicejar em sociedades eminentemente agrárias, com baixa mobilidade social e pouco acesso a informações. Por isso o conservador é uma espécie em extinção, seus clamores contra a mudança em geral não visam ao bem comum mas ao medo que possui de perder privilégios e de que outros tenham acesso a lugares que historicamente não tiveram.

 Mesmo em nossa sociedade urbana, o receio das antigas elites agora é a ocupação daqueles que se acomodaram ao poder e a privilégios. É a jornalista da Folha que protesta num artigo de jornal porque encontrou o porteiro do prédio em Paris ou Nova York. É o empresário que acha ruim porque as pessoas agora querem trabalhar de carteira assinada e não mais por qualquer salário; há quinze ou vinte anos não era assim. São aqueles que vociferam contra cotas para negros na universidade porque, numa sociedade onde os negros têm acesso às piores instituições de ensino, apelar à meritocracia é manter a aristocracia branca nos cursos superiores; é a defesa do latifúndio agroexportador e seu peso na economia do país, razão pela qual não se deve dar ouvidos a “baderneiros invasores”. É o ódio ao presidente que foi operário, à presidente que foi guerrilheira, às políticas de transferência de renda aos mais pobres… Os exemplos não faltam.

 Contra o conservadorismo das elites contemporâneas que odeiam dividir o poder e a renda, somente um pensamento progressista crítico e autocrítico pode erguer a voz em denúncia e em favor dos desfavorecidos e de minorias. A história é fluxo e mudança, mas em favor de quem os eventos vão mudar vai sempre depender da ação dos atores sociais no presente e da consciência de que o passado não é útil apenas aos que querem manter o status quo, mas também a quem quer abrir uma perspectiva de futuro.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Esboço dos rudimentos de uma crítica ao gênero


 Eu pertenço ao sexo masculino. Em nossa língua, isso significa dizer que possuo um determinado conjunto de características morfofisiológicas – dentre elas um par cromossômico sexual XY e um par pênis-testículos como genitália – que me distinguem, enquanto ser humano, do que se chama de sexo feminino. Essa categoria, a de sexo biológico, é importante, dentre outros motivos, porque, uma vez que se refere ao funcionamento de nossos corpos, fornece informações sobre como tratamentos médicos, cirurgias etc. devem ser feitos em nós. É, em suma (e apesar de certas complicações acerca de pessoas que possuem ‘’par’’ cromossômico sexual XXX, XXY ou X0, p. ex.), utilíssima.


 Entretanto, o que se espera da minha pessoa – tendo-se a informação de que sou um macho da espécie humana – não é apenas que tenha um pomo-de-Adão, um par pênis-testículos, uma concentração de testosterona no organismo maior que a dos espécimes fêmeas e outras características morfofisiológicas; espera-se que eu seja um homem, ou ainda um ‘’homem de verdade’’. Na sociedade brasileira, de forma geral (as noções variam entre os brasileiros, e ainda mais entre localidades espaço-temporais que fogem de nosso espaço territorial e da contemporaneidade), isso significa que se espera que eu goste de futebol, que seja corajoso, sexualmente viril e que me relacione eroticamente de forma exclusiva com mulheres, dentre outras coisas (como não usar maquiagem e nem vestidos, não rebolar, etc.). Em outras palavras, espera-se todo um complexo comportamental, o qual constitui a identidade masculina. Trata-se do gênero masculino, do gênero ‘’homem’’. E as ‘regras’ supracitadas são as normas de gênero, i.e., as regras que qualificam o indivíduo de um sexo como também pertencente ao seu gênero – relação de pertencimento essa que seria o desenvolvimento normal dos seres humanos –, e, portanto, plenamente humano. Tais normas de gênero são impostas aos indivíduos humanos num longo processo pedagógico, que começa no seio familiar (pela seleção de roupas, brinquedos e até pelas brincadeiras e formas de tratar a criança), continua na escola (permanece a seleção de brinquedos e brincadeiras pautada no sexo; mais à frente ainda se tem a construção das masculinidades e feminilidades dentro dos grupos de crianças mais velhas ou adolescentes, baseada em atitudes que reforcem a identidade de gênero do indivíduo) [1] e na verdade permanece por toda a vida.

 Algumas das normas de gênero parecem ser ‘’resultado’’ de simples observação da realidade: embora eu não possa afirmar que em todas as sociedades humanas os machos como um todo sempre foram mais agressivos que as fêmeas como um todo (certamente que há fêmeas mais agressivas que certos machos) – afinal de contas, é virtualmente impossível ter conhecimento de todas as sociedades humanas que existem e já existiram –, é um chute que realizo, e tenho certeza que a maior parte da população mundial o faz junto a mim. Idem no que se refere aos relacionamentos sexuais e eróticos que os machos mantêm. Isso, claro, deve estar relacionado com a nossa constituição biológica – nossos genes, o processo de ‘’hormonização’’ pelo qual passamos ainda no ventre de nossas mães, etc [2]. Outras, claramente culturais, não (ou você acha que há qualquer ligação entre os elementos que determinam o sexo masculino e o hábito de usar calças?). Há ainda que se dizer que muito provavelmente há relações profundas entre o patriarcado (e a consolidação e transmissão das propriedades ao longo da descendência) e as normas de gênero. 

 As normas de gênero, entretanto, não são universais, ou melhor: não são ‘’obedecidas’’ por todos os corpos sexuados. Há crianças do sexo masculino que gostam não de ‘’lutinha’’ e/ou de esportes, mas de bonecas, e adultos (e jovens) que sentem atração por pessoas do mesmo sexo, que gostam de se maquiar e que trabalham em profissões como cabeleireiro e estilista; e o sexo feminino tem seus similares. As causas disso parecem ser de natureza biológica e/ou ‘’social’’/’’cultural’’; certas pesquisas revelam que os cérebros de machos humanos heterossexuais guardam certas semelhanças com o cérebro de fêmeas homossexuais que não o fazem em relação aos de fêmeas heterossexuais, e coisa similar envolvendo os de fêmeas heterossexuais e machos homossexuais; diferenças essas que estariam em especial nas regiões do cérebro que são ‘’responsáveis’’ pelo raciocínio lógico e pela ‘’dimensionalização’’ mental do espaço físico, de forma que machos heterossexuais se dariam melhor nas duas coisas, seguidos pelos machos homossexuais, as fêmeas homossexuais e por fim as fêmeas heterossexuais [3]. E que os machos homossexuais são mais sensíveis à androstenona – um hormônio do odor masculino – que seus camaradas heterossexuais [4]. E (ou quem sabe ‘’mas’’) sabe-se ainda que, na Grécia antiga, era comum (na verdade era institucionalizado) que os jovens mantivessem relacionamentos eróticos com um homem mais velho, que agiria como uma espécie de introdutor do rapaz ao mundo dos machos adultos. 

 Imagino eu que as conclusões da pesquisa envolvendo cérebro não sejam biologicamente deterministas, afinal ao menos um grande lógico do século XX, o físico britânico Alan Turing (que, ao decodificar mensagens de comunicação dos generais nazistas, pode ter contribuído bem mais para a vitória dos Aliados sobre o Eixo do que boa parte dos generais de sua nação, além de realizado uma contribuição indispensável para que hoje eu e você possamos usar um computador), era gay, e suspeita-se que o grande economista também britânico John Maynard Keynes, outro grande lógico e tido como a maior figura de sua área profissional no século passado, tenha sido bissexual ou mesmo também homossexual. De alguma forma isto fortalece em mim a hipótese de que não há uma causa universal para as orientações sexuais; haveria então, p. ex., homossexualidades, e também heterossexualidades e bissexualidades, que embora se expressem da mesma maneira (atração e relacionamento com pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto e de ambos os sexos, respectivamente), têm natureza diferente, vieram a ser por fatores diferentes. A mesma coisa, quem sabe, para as identidades de gênero (ou melhor, os comportamentos tipicamente classificados como 'masculinos' ou 'femininos'). 

 O fato é que as normas de gênero incidem negativamente (ou melhor, causam efeitos maléficos) sobre os que dela ‘’divirjam’’, seja por causas biológicas ou socioculturais. Um exemplo: partindo-se de certos pressupostos da metafísica judaico-cristã, a saber os de que Deus criou o homem e a mulher e deu-lhes o dever de se reproduzir, só se pode concluir que os homossexuais são doentes/seres humanos incompletos ou imorais subversivos. Em ambos os casos, as pessoas que sentem atração por pessoas do mesmo sexo são postas como algo abaixo do ser humano pleno, digno, podendo-se descambar em tentativas de pesquisa para impedir a formação da homossexualidade no indivíduo ou terapias para curá-la [5]. Há dados e mais dados sobre a expressão prática dessa desumanização de homossexuais (e também de bissexuais e pessoas T); segundo dados colhidos por Rogério Diniz Junqueira (mas também de outras fontes), p. ex.,

 - acreditam ser a homossexualidade uma doença cerca de 12% dos professores(as) em Belém, Recife e Salvador, entre 14 e 17% em Brasília, Maceió, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Goiânia e mais de 20% em Manaus e Fortaleza; 
- não gostariam de ter colegas de classe homossexuais 33,5% dos estudantes do sexo masculino de Belém, entre 40 e pouco mais de 42% no Rio de Janeiro, em Recife, São Paulo, Goiânia, Porto Alegre e Fortaleza e mais de 44% em Maceió e Vitória; 
- pais de estudantes do sexo masculino que não gostariam que homossexuais fossem colegas de seus filhos: 17,4% no Distrito Federal, entre 35 e 39% em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, 47.9% em Belém e entre 59 a 60% em Fortaleza e Recife;

- entre 1963 e 2001, 2092 pessoas foram assassinadas porque eram homossexuais ou transgêneros. Em 2000, foram 130 assassinatos, dos quais 69% gays, 29% travestis e 2% lésbicas. Em 2003 goram registrados 125 assassinatos homofóbicos e 169 no ano seguinte. Em 2007, foram 90 os assassinatos até o mês de julho (são dados subestimados, visto que há ausência de divulgação de casos do tipo na mídia);

- nos EUA, 62,5% dos adolescentes que tentam suicídio são homossexuais. Ali e no Canadá, pessoas homossexuais entre 15 e 34 anos têm de 4 a 7 vezes mais riscos de se suicidarem de que seus colegas heterossexuais. Este risco é acrescido de 40% no caso de jovens lésbicas. Na França, onde o suicídio é a segunda principal causa de morte de pessoas entre 15 e 34 anos, as possibilidades de um homossexual terminar com sua vida é 13 vezes maior do que as de um seu coetâneo heterossexual de mesma condição social. De cada 3 indivíduos que cometem suicídio, um é homossexual. Ali, já tentaram suicídio pelo menos uma vez cerca de 27% dos jovens menores de 20 anos que se declaram homossexuais. Todas estas cifras sofrem um incremento nos casos em que se verifica rejeição familiar e, ainda mais, naqueles em que o/a jovem tenha sido vítima de agressão homofóbica. Afasta-se, assim, de qualquer vínculo causal entre homossexualidade e comportamento suicida: ao contrário, o que se observa é o impacto da homofobia na definição dos índices de suicídio [6];

- a expectativa média de vida das travestis na Argentina é de 35 anos (suspeita-se que seja similar aqui no Brasil) [7], e a maior parte delas (aqui) emprega-se na prostituição, dada a dificuldade que têm em achar empregos formais, seja por preconceito dos empregadores ou do temor desses de que a empregada travesti possa prejudicar seus lucros indiretamente, pela rejeição da clientela.


 Expressões ‘’ideológicas’’, por assim dizer, são a confusão entre identidade de gênero e orientação sexual (e a consequente crença de que todo gay é afeminado, de que toda lésbica é masculina e que deve haver um ‘’homem’’ e uma ‘’mulher’’ nas relações homossexuais) e a designação das mulheres trans pela alcunha de ‘’traveco’’. Oras, sabemos que o 'sufixo' ‘’eco’’ é praticamente sempre jocosa e cheia de desprezo – pensemos em ‘’livreco’’, por exemplo (certas palavras tem 'eco' por sufixo 'natural' e sem tom de desprezo, como ''boteco''); que há gays másculos, assim como lésbicas femininas (embora não se possa dizer a proporção em que ambos estão no total das populações gay e lésbica), e que a sexualidade homossexual não se rege pelo binarismo de gênero, com um(a) ativo(a) másculo(a) e um(a) afeminado(a) passivo(a), como numa imitação tosca da reprodução tradicional [8].

 Acrescente-se que, como diz Junqueira, 

‘’a homofobia opera por meio da atribuição de um ‘gênero prejudicado’, ‘defeituoso’, ‘falho’, ‘nojento’ às pessoas homossexuais. (...) a matriz heterossexual regula a sexualidade mediante a vigilância e a humilhação do gênero, de sorte que a homofobia pode se expressar ainda numa espécie de terror em relação à ‘perda do gênero’, ou seja, no terror de não ser mais considerado como um homem ou uma mulher ‘reais’ ou ‘autênticos’ (‘’de verdade’’ – A.M.). (...) Neste sentido, as normas de gênero parecem operar aí com toda a força, fazendo com que o sexismo e a homofobia se configurem como componentes necessários do regime binário das sexualidades, de modo com que a homofobia acaba por aí se converter em uma guardiã das fronteiras sexuais (hetero/homo) e das de gênero (masculino/feminino)’’ [9].

 O sexo, talvez deva se acrescentar, não é o único ''marcador''/regulador social de comportamentos subjetivos:

''Na construção social dos corpos, a ordem da sexualidade não se constitui isoladamente, mas ao sabor das dinâmicas das posições e das oposições que organizam todo o mundo social. Desse modo, marcadores identitários relativos a 'sexo', 'gênero', 'orientação sexual' não se constroem separadamente e sem fortes pressões sociais concernentes a outros marcadores sociais, como 'cor', 'raça', 'etnia', 'idade', 'classe' etc. Por isso, tanto estes como aqueles não poderiam ser tomados de maneira isolada e sem levar com consideração os contextos de produção de seus significados, os múltiplos nexos e entrecruzamentos que estabelecem entre si e os mútuos efeitos que produzem. (...) considerados conjunto, os marcadores do corpo agem uns sobre os outros de maneira que se afigurem se afiguram imprevisíveis e surpreendentes.


Assim, não se pode descurar que processos de construção de identidades étnicas ou racializadas tendem a se darem torno da produção e da circulação de representações sociais naturalizadoras não apenas acerca ou a partir das noções de etnia e de raça, mas de corpo, gênero, sexualidade, entre outras. Ou seja, sexismo, homofobia e racismo encontram-se, reforçam-se e (con)fundem-se.'' [10]

 As normas de gênero devem ser eliminadas porque, ao estabelecer um padrão comportamental arbitrário, excluem e marginalizam fragmentos da população pelo próprio ser destas pessoas (caso das pessoas LGBT), e porque, sobre aqueles a quem ela aplica-se com sucesso, causa efeitos desnecessários e prejudiciais (é o caso do descaso masculino com a saúde, com certeza conectado com alguma característica biológica ligada ao cromossomo Y, mas também – quem sabe, principalmente – com o elemento da identidade masculina que prescreve a ‘’fortaleza corporal’’ masculina e a ausência de medo; ou nossa rejeição à formação de laços de afeto – ou expressões de afeto – mais estreitos(as) com outros indivíduos do mesmo sexo). Isso não exclui, entretanto, a possibilidade de qualquer normatização ligada de alguma forma ao sexo biológico: concordando com um colega que reclama da demasiada atenção dada aos direitos humanos, em relação aos deveres, creio, p. ex., que, no caso de uma invasão de nosso território por uma potência estrangeira, é dever de nós, machos biológicos, apresentar-nos aos quarteis, realizar treinamento militar e defender o país (e não porque isso é o que ‘’homens de verdade’’ devem fazer, ou por um nacionalismo estúpido que ignora as divergências dos interesses das classes nacionais, mas porque somos membros de uma comunidade nacional que nos forneceu direitos e outros benefícios e somos dotados de resistência e força física maiores, em média, que as das fêmeas biológicas) [11]. Certos valores morais cuja 'institucionalização' ocorre de forma sexualizada também não necessariamente deixarão de ser transmitidos ou pregados (como a de que nós, machos, devemos ser corajosos e proteger aos mais frágeis, sejam outros machos ou fêmeas [e as pessoas intersex também?]); o que aconteceria, penso, é a sua transmissão universal.

 A destruição das normas de gênero é necessária, para novamente citar Junqueira, ‘’na invenção de sociabilidades e subjetividades mais livres e, ainda, comprometidas com o avanço dos direitos humanos em uma perspectiva intransigentemente emancipatória’’ [12].

Ver também:

Sobre a ideologia de gênero 
Notas sobre a transgeneridade 
Racismo, misoginia e homolesbotransfobia no capitalismo 
Teorias sobre a origem da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude
Heteronormatividade e homofobia 

Notas 


[1] Ver os artigos ‘’Construção de comportamentos homofóbicos no cotidiano da educação infantil’’ e ‘’As ‘diferenças’ na literatura infantil e juvenil nas escolas: para entende-las e aceita-las’’ em JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009 (clique aqui para acessar o livro).

[2] O que não significa que as coisas não possam mudar no decorrer do processo evolucionário de nossa espécie.

[3] http://ciencia.folhadaregiao.com.br/2012/02/o-homossexualismo-sob-lupa-da-ciencia.html

[4] Lübke, Katrin, Sylvia Schablitzky, and Bettina M. Pause. "Male Sexual Orientation Affects Sensitivity to Androstenone." Chemosensory Perception 2, no. 3 (September 1, 2009): 154--160. doi:10.1007/s12078-009-9047-3.

[5] O darwinismo – enquanto teoria que explica o fato da evolução mediante os mecanismos de seleção natural, dentre outros –, por eliminar a teleologia, i.e., afirmar que os seres vivos não têm um propósito, mas que vieram a ser o que são por meio de um complicado processo dialético de perpetuação de genes, é ao menos em tese mais ‘’gentil’’ com os homossexuais, e já rendeu hipóteses que buscam explicar como a homossexualidade – que per se não faz sentido na lógica de reprodução – pôde se perpetuar na humanidade (ver essa matéria).

[6] JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia na escola: um problema de todos. In: ______ (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

[7] http://travestimarxista.blogspot.com.br/2014/07/nao-transfobia-venha-de-quem-vier.html

[8] ‘’Ao buscar o prazer, a sexualidade humana escapa à ordem da natureza e age a serviço próprio ‘pervertendo’ seu suposto objetivo natural: a procriação. Subordinar a sexualidade à função reprodutora é um critério demasiadamente limitado. Isto vem a mostrar (...) [que] a sexualidade humana é, em si, perversa – entendida aqui em seu sentido primeiro: desvio de uma finalidade específica. Ou seja, em se tratando de sexualidade, não existe ‘natureza humana’, pois a pulsão sexual não tem um objeto específico, único e muito menos pré-determinado biologicamente.’’ CECCARELLI, Paulo Roberto. Homossexualismo e preconceito. Disponível em: http:ceccarelli.psc.br, 2000. Acesso em 30/01/2007.

‘’Qual a vantagem de se limitar a uma determinada posição? Aqueles que bradam ser 100% ativos se mantêm presos a uma imagem que construíram para si próprios e, quando confrontados com a possibilidade de usufruir de prazer anal, padecem de uma dor insuportável cuja origem está na própria cabeça. Tudo não passaria de uma brutal dificuldade de assumir o próprio prazer, aliada a uma negação de entrega ao outro? Pura viadagem. Mesmo em momentos de entrega total, não conseguem relaxar a musculatura e desfrutar de todas as possibilidades da divina anatomia humana. Por outro lado, aqueles que fecham questão e se tomam por totalmente passivos de certa forma renegam a virilidade que buscam frequentemente no próximo. É claro que sempre vale a máxima 'cada um, cada um', sobretudo quando o assunto é tesão.’’ FISCHER, André. Anais da história. In: ______. Como o mundo virou gay? Crônicas sobre a nova ordem sexual. São Paulo: Ediouro, 2008, pp. 39-40.

[9] JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Educação e homofobia: o reconhecimento da diversidade sexual para além do multiculturalismo liberal. In: ______ (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

[10] Idem, pp. 377-384.

[11] Essa superioridade, lembro, é espaço-temporal. As fêmeas humanas da período paleolítico eram mais fortes que Arnold Schwarzenegger, e há povos africanos nos quais o próprio estilo de vida torna as fêmeas de lá bem mais ‘’osso duro’’ que boa parte de nossos playboys de academia ou atletas.

[12] JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia na escola: um problema de todos. In: ______ (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

domingo, 12 de julho de 2015

Sobre a ideologia de gênero


 O termo ''ideologia de gênero'' parece ter caído nas graças (e nos discursos) dos conservadores, que aparentam estar revoltados com uma suposta aplicação dela nas escolas, e mais: determinados a abolir tal coisa. Oras, eu também me oponho a algo que, a meu ver, só pode se chamar ''ideologia de gênero'', e de forma ainda mais radical que os conservadores: não quero abolir a aplicação dela nas escolas, mas em todo e qualquer espaço de socialização dos indivíduos. 

 Mas o que é a ideologia de gênero? Bem, façamos uma análise do termo, a começar pela palavra ''ideologia''. Esta, numa compreensão marxista, difere muito do significado cotidiano de ''conjunto de ideias'' -- tão amplo que se desdobra no termo ''ideologia política'', da qual o socialismo seria um exemplo. Para nós, ideologia distingue-se de ciência e programa político, sendo a primeira um estudo metodificado (e sistemático) da realidade e o segundo um conjunto de propostas acerca das práticas e relações interindividuais/sociais que devemos manter/realizar; ideologia, na verdade, é todo discurso produzido tendo por finalidade legitimar, nas consciências individuais e no imaginário coletivo, certos programas políticos (que, como é possível presumir, vão muito além do Estado). 

 Que é, por sua vez, o gênero? Bem, a maior parte de nós nasce com o par cromossômico sexual  sendo XX ou XY (há pessoas XXX, XXY, X0...), e então é designada como pertencente ao sexo masculino ou feminino. Observe bem: ''sexo masculino'' e ''sexo feminino'' são categorias referentes a um conjunto de características biológicas. No cotidiano, porém, as palavras ''homem'' e ''mulher'' (ou ''homem de verdade'' e ''mulher de verdade'') não são usadas só -- talvez nem principalmente -- como sinônimo de ''sexo masculino'' e ''sexo feminino'', mas também para descrever um determinado comportamento (que envolve gostos e atitudes)  a ser apresentado pelas pessoas de cada sexo. na sociedade brasileira, p. ex., a identidade masculina ''exige'' virilidade, coragem e relacionamentos eróticos exclusivamente heterossexuais, além de gosto pelo futebol.

 A ideologia de gênero (a verdadeira, não as elucubrações dos conservadores) nada mais é que a imposição, compulsória, das normas de gênero, disfarçada sob argumentos envolvendo uma suposta natureza, ordens divinas ou outra coisa que envolva moralidade. Uma consequência dela é que toda pessoa que ''desobedeça'' às normas de gênero será considerada inferior (o que explica bem a violência verbal e física que sofre a população LGBT). Judith Butler (2002: 134), p. ex., observa que a homofobia opera por meio da atribuição de um ''gênero prejudicado'', ''defeituoso'', ''falho'', ''abjeto'' às pessoas homossexuais. Segundo ela, a matriz heterossexual regula a sexualidade ''mediante a vigilância e a humilhação do gênero'', de sorte que a homofobia ''pode se expressar ainda numa espécie de 'terror em relação à perda do gênero', ou seja, no terror de não ser mais considerado como um homem ou uma mulher 'reais' ou 'autênticos(as)''' (LOURO, 2004a: 28-9). Neste sentido, as normas de gênero (BUTLER. 1999, 2002 e 2006) parecem operar aí com toda a sua força, fazendo com que o sexismo e a homofobia se configurem ''como componentes necessários do regime binário das sexualidades'', de modo que a homofobia acaba por aí se converter em uma guardiã das fronteiras sexuais (hetero/homo) e das de gênero (masculino/feminino)'' (BORRILLO, 2001: 16).

 As normas de gênero também requerem uma afirmação constante de itens cuja falta coloca em risco a honra do gênero, construída em oposição a certas características do gênero oposto que o indivíduo, para ser um ''homem/mulher de verdade'' jamais deve dar indícios de ter, o que configura-se, no caso da masculinidade, como um processo de altas doses de cerceamento, fazendo com que a parte dominante (o elemento ''masculino'') seja ironicamente ''dominado por sua própria dominação''. 

 O privilégio masculino (em relação às mulheres -- A.M.) é também uma cilada e encontra sua contraposição na tensão e na contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe ao homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade.[...] A virilidade, entendida aqui como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de tudo, uma carga (BOURDIEU, 1999: 64).


 Um exemplo lógico do que fala Bourdieu não poderia deixar de ser o desprezo que os homens brasileiros é a demonstração de resistência e vigor, de cuja uma das consequência é o desprezo para com os cuidados em relação à saúde. Confesso estar com preguiça de pesquisar as fontes e pôr aqui (em parte devido a uma internet vacilante, haha), mas já tive contato -- e tenho certeza que o leitor provavelmente também já teve -- com dados que expunham que nós fazemos bem menos consultas médicas e seguimos bem menos à risca aquilo que os profissionais da saúde do que o fazem as mulheres. Não é à toa que temos uma expectativa de vida menor. 

 Claro, nem todos os elementos inclusos nas identidades de gênero são (ou são de todo) ruins. Eu me agrado com a sugestão de que todas as pessoas do sexo masculino devam ser corajosas, ou que todas as do sexo feminino devam ser afetuosas; mas, na verdade, acho que todas as pessoas devam ser corajosas e afetuosas, e também que a exigência compulsória de que sejamos uma coisa ou outra, sem levar em conta as particularidades individuais (um trauma de infância ou algum outro fator neuropsicológico e quiçá hormonal) pode causar constrangimentos e humilhações que não passam de injustiça. Idem para ''ter -- ou tentar ter -- um porte físico forte'' (nesse caso apenas para o sexo masculino, e bem, vamos precisar de músculos na revolução socialista, não vamos?). 

 A ideologia de gênero deve ser eliminada porque impede-nos de aproveitar tudo o que é possível fazê-lo sem prejudicar aos outros (como ser uma liderança, no caso feminino, ou manter relações de afeto mais estreitas, no caso masculino) e também condena pessoas, por sua própria natureza, à subumanidade, à estigmatização e à ausência de cidadania -- como hoje sofre a população LGBT. A ideologia de gênero deve ser eliminada porque é uma ofensa à dignidade humana. 



Bibliografia

BORRILLO, Daniel. Homofobia. Barcelona: Bellaterra, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BUTLER, Judith. Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do ''sexo''. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
______________. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del ''sexo''. Buenos Aires: Paidós, 2002.
______________. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2004a.

Ver também

http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/05/heteronormatividade-e-homofobia.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/02/notas-sobre-transsexualidade.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/05/teorias-sobre-genese-da.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/02/racismo-misoginia-e-lgbtfobia-no.html

terça-feira, 7 de julho de 2015

Por que Dilma não faz um governo de esquerda?


por Marcelo Dias Carcanholo* para o Jornal de Economistas (CORECON e SINDECON-RJ) do mês de maio de 2015



 Muitos se assustam com o caráter ortodoxo da política econômica aplicada pelo governo nestes primeiros meses do segundo mandato de Dilma Rousseff . Outros tantos chegam a se mobilizar para tentar resgatar um mandato que, presumivelmente, teria que ser de esquerda e, portanto, não deveria implementar um ajuste ortodoxo recessivo para combater os efeitos da crise da economia mundial, algo tipicamente de direita. 

 Várias questões emergem deste tipo de percepção. O que é uma política econômica de direita ou esquerda? Qual a relação disso com a ortodoxia/heterodoxia em sua formulação? Por que o segundo governo Dilma teria guinado à direita? Comecemos respondendo o último, e de maneira provocativa. Dilma não faz um governo de esquerda porque essa nunca foi a proposta. E essa nunca foi a proposta porque não se adéqua à estratégia de desenvolvimento dos governos do PT desde 2003!

  Lula se elege em 2002 por conta da crise da estratégia neoliberal de desenvolvimento que havia levado a economia brasileira a pífias taxas de crescimento econômico, crescentes déficits e vulnerabilidades externas e concentração de renda e riqueza nos governos anteriores. Dever-se-ia, portanto, reverter essa estratégia. Mas, o que é uma estratégia neoliberal de desenvolvimento? Aqui reside o centro da incompreensão que leva aqueles muitos a se assustarem com a ortodoxia econômica dos governos do PT. 

 Ao contrário do que se imagina, a estratégia neoliberal de desenvolvimento não é sinônimo de uma política econômica (monetária, fiscal e cambial) ortodoxa e, de alguma forma, é até independente. O neoliberalismo, segundo seus formuladores, se define em um maior nível de abstração, o da estratégia de desenvolvimento. Segundo seus defensores, duas seriam suas características: (i) é necessário obter a estabilização macroeconômica (inflacionária e das contas públicas), como uma precondição, e; (ii) dado (i), são necessárias reformas estruturais (liberalização, desregulamentação e abertura de mercados, junto com amplos processos de privatização) que elevem o papel do mercado na determinação dos preços e quantidades de equilíbrio, retirando as possíveis distorções introduzidas por mecanismos populistas. Com os corretos sinais fornecidos pelo mercado e a elevação do ambiente competitivo, a promessa sempre é a de que crescerá a produtividade e, portanto, a economia, assim como ocorrerá uma redistribuição da renda que for produzida.

 A estratégia neoliberal de desenvolvimento se define, portanto, no âmbito dos marcos estruturais da economia. E como se obtém a estabilização macroeconômica (i), pré-requisito para a retomada do crescimento? Com uma política ortodoxa ou heterodoxa? A resposta é direta: pouco importa. Tudo dependerá do ambiente conjuntural. Daí entende- -se como a mais pura ortodoxia econômica tinha poucos problemas nos anos 90 do século passado para defender o controle de um preço-chave em qualquer economia, a taxa de câmbio, desde que ela servisse como âncora para a estabilização dos preços. Nesse momento, a economia brasileira convivia com uma política econômica de bandas cambiais, política monetária restritiva de combate à inflação e política fiscal também restritiva, no intuito de obter superávits primários necessários para garantir o pagamento do serviço da dívida pública.

  A crise de janeiro de 1999, ainda nos marcos do governo FHC, modificou a conjuntura e, portanto, o caráter da política econômica (regime de câmbio flutuante, com intervenção do Banco Central, regime de metas inflacionárias, manutenção/aprofundamento da política de superávits primários), mas ainda dentro da mesma agenda neoliberal de desenvolvimento.

 Quando Lula assume o governo em 2003, o que se modifica? Nada. A política econômica – sob o discurso de manutenção da credibilidade – mantém o mesmo caráter do segundo governo FHC e as reformas estruturais pró-mercado são ampliadas.

  Por que os resultados foram diferentes? Por que a economia passou a crescer mais e houve algum tipo de redistribuição desse crescimento? Porque a política econômica mudou? Não. Porque a estratégia de desenvolvimento guinou à esquerda? Tampouco. Simplesmente o que se modificou foi o cenário conjuntural externo, com grande crescimento das economias para as quais a economia brasileira exportava, e com um favorável comportamento dos mercados internacionais de crédito. Isso permitiu ao governo, mesmo sem nenhuma modificação de estratégia, elevação das taxas de crescimento, sem pressões inflacionárias, e maiores arrecadações do governo, que permitiram algum tipo de política social compensatória. 

 Mesmo durante esse período do cenário externo favorável (2002-2007) é preciso ressaltar que: (i) a economia brasileira cresceu mais do que em períodos anteriores, mas se comparados com nossos pares da América Latina, só crescemos mais do que a economia haitiana; (ii) por conta do aprofundamento das reformas liberais, os problemas estruturais de nossa economia se agravaram (a reprimarização das exportações, relativa desindustrialização e forte crescimento do passivo externo). Assim, qualquer reversão do cenário conjuntural externo e esses problemas estruturais crescentes se manifestariam de forma agravada. 

 Esse cenário externo favorável se modifica radicalmente com a crise da economia mundial em 2007/2008. A partir desse momento, desconsiderando alguns vacilos iniciais, o governo tentou conter os impactos da crise com desoneração tributária de alguns setores, expansão do crédito para fi nanciar o consumo das famí- lias e, com isso, garantir mercado para a produção que procurava ser mantida. Tratou-se de uma tímida política econômica anticíclica, não-ortodoxa, mas ainda dentro da mesma estratégia liberal de desenvolvimento. 

 Com a longa duração da crise econômica mundial, essa política mostrou seus limites: (i) ampliação dos déficits fiscais; (ii) superendividamento das famílias, que restringe o avanço do consumo e compromete grande parcela de suas rendas com mero pagamento de serviços de dívida. Já em 2014, mesmo antes da campanha eleitoral, estava claro que, independente de quem ganhasse a eleição e dos discursos proferidos na campanha, a resposta aos efeitos da crise seria um ajuste ortodoxo, retirando aquele leve ar de heterodoxia que a política econômica anticíclica tinha sustentado até aquele momento. 

 A razão disso não é – como alguns podem imaginar – que, no final das contas, a teoria econômica ortodoxa tem razão e, portanto, a forma correta de responder aos efeitos de uma crise é aplicando um ajuste recessivo, como, aliás, o atual governo – em outras palavras – quer nos fazer crer. A resposta para isso é que o ajuste recessivo, uma resposta ortodoxa de política econômica para a atual crise, é a única forma conjuntural de garantir os compromissos necessários e assumidos pela atual estratégia de desenvolvimento. Portanto, só é possível entender porque o governo Dilma não faz um governo de esquerda se entendermos a economia política de seu governo, que, aliás, mantém a economia política de seu mentor político. Nesta conjuntura, outra política pressupõe outra estratégia de desenvolvimento, o que, por sua vez, pressupõe outra conformação do poder econômico e político. 

 Um governo realmente de esquerda seria aquele que rompesse – de fato – com a estratégia neoliberal de desenvolvimento e, por conta disso, ao reduzir a vulnerabilidade externa estrutural de sua economia, promovesse uma verdadeira modificação estrutural da concentração de renda e riqueza, que ampliasse os mercados internos – que ainda poderiam ser expandidos com uma verdadeira integração regional, para além dos acordos de livre comércio. Políticas sociais e públicas muito além do mero compensatório dos problemas estruturais que decorrem, justamente, da ampliação das reformas estruturais liberalizantes. 

 Por que não se faz isso? Porque isso seria alterar os marcos estruturais do desenvolvimento e, portanto, as classes e/ou frações de classe que são beneficiadas pela atual estratégia. Sendo assim, as conclusões não poderiam ser outras. Por um lado, Dilma não faz um governo verdadeiramente de esquerda porque essa nunca foi a proposta. Por outro lado, essa nunca foi a proposta porque, dada a aliança política e de classes que os governos do PT construíram, nunca poderia ter sido diferente.



*Presidente da Sociedade Latino- -americana de Economia Política e Pensamento Crítico (Sepla), professor associado da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP-UFF) e professor colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF-MST).

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Terceirização e ajuste fiscal: uma dupla ofensiva contra os direitos do trabalho



por Graça Druck, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora do CRH/UFBa e do CNPq, estudiosa na área de Sociologia do Trabalho, autora do livro Terceirização: desfordizando a fábrica (Editora Boitempo e Edufba) e co-organizadora do livro A Perda da Razão Social do Trabalho: terceirização e precarização (Editora Boitempo).




 A atual conjuntura do trabalho no país se caracteriza por uma acirrada disputa de classe. As escolhas dos que detém o poder – o executivo, a maioria do legislativo e a mais alta cúpula do judiciário (o STF) – estão em sintonia com os interesses dos setores mais conservadores da sociedade.

 Vive-se um momento em que o histórico e permanente ataque das classes dominantes ao direito do trabalho brasileiro, consubstanciado na CLT – Consolidação das Leis do Trabalho – nunca esteve tão perto de sair vitorioso, pondo fim a um conjunto de direitos reivindicados pelos trabalhadores desde os anos 1910 e incorporados progressivamente à legislação social e trabalhista desde os anos 1920, cuja consolidação só ocorreu em 1943.

 É isto que está em questão hoje no Brasil, com a votação do PL 4330 na Câmara dos Deputados, que o aprovou por 230 votos a 203, sem discussão no plenário. E qual é o cerne deste projeto? O fim de qualquer limite à terceirização, ou seja, abolir a frágil regulação existente até hoje, através do enunciado 331, que proíbe a terceirização da atividade-fim das empresas. 

Os argumentos favoráveis do empresariado e de seus representantes no Congresso Nacional são falaciosos, voláteis e insustentáveis. Segundo eles, não é mais a focalização ou especialização da empresa – que já foi a principal justificativa para a defesa da terceirização – mas agora se trata de regulamentar os 12 milhões de terceirizados existentes no país. Ora, nada mais falso, pois este número se refere aos trabalhadores que já estão sob a proteção da CLT, ou seja, que têm carteira assinada e que, em tese, deveriam estar recebendo todos os seus direitos, sistematicamente desrespeitados. Não existem estatísticas de terceirizados informais, sem carteira, sem contrato ou mediados por cooperativas ou organizações sociais e que estão sem proteção social e trabalhista. E, portanto, não é a esses que se dirige o PL 4330. 

Ao contrário, ao liberar a terceirização para todas as atividades, permitir as redes de subcontratação e condicionar a responsabilidade solidária das empresas, cujo objetivo é rebaixar o custo da força de trabalho, as condições de precariedade em que trabalham os terceirizados hoje serão difundidas para todos os trabalhadores brasileiros. 

 Afirmar sobre a precarização que a terceirização impõe não é retórica. Os resultados de mais de 20 anos de pesquisas demonstram essa realidade. Os estudos realizados em nosso grupo de pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da UFBa, publicados como teses, dissertações, artigos e livros – que pesquisaram os segmentos de petroquímicos, petroleiros, complexo automotivo, call centers, trabalhadores dos serviços de limpeza e vigilância da UFBA, construção civil e temáticas em que a terceirização aparece destacadamente, como assédio moral, saúde do trabalhador, processos na Justiça do Trabalho, trabalho análogo ao escravo – evidenciam que é uma prática de gestão que invariavelmente precariza.

 No país, os estudos acadêmicos e de instituições sindicais testemunham os malefícios da terceirização. É o caso da desigualdade salarial, em que terceirizados chegam a ganhar 30% menos que os contratados diretamente. Encontramos uma situação nos petroquímicos da Bahia, em que terceirizados chegavam a ganhar cinco vezes menos que os empregados diretos. Os indicadores de acidentes de trabalho e mortes, como no caso dos petroleiros, revelam que os terceirizados mortos representam 90% do total; na construção civil, o número de mortes dos terceirizados é de 2,3 a 4,9 vezes maior do que a média de acidentes fatais em todo o mercado de trabalho; o alto grau de adoecimento dos trabalhadores de call centers, por LER/DORT; o desrespeito a direitos elementares, caso dos trabalhadores terceirizados de limpeza da UFBA, que ficam 10 anos sem férias, por conta da troca de empresas que não completam um ano prestando serviços e se vão sem pagar seus empregados, sendo substituídas por outras do mesmo naipe. É o caso das redes de subcontratação no complexo automotivo do Nordeste, em que na ponta do processo estão trabalhadores sem carteira e por “empreita”. E é também uma das formas mais desumanas de trabalho encontrada em empresas modernas, nacionais e multinacionais, a condição de trabalho análogo ao escravo: do total de trabalhadores resgatados nos últimos três anos, 81% eram terceirizados.

 É essa realidade que o PL 4330 quer legalizar, generalizando-a para o conjunto dos trabalhadores brasileiros. É por isso que a votação na Câmara dos Deputados gerou uma mobilização nacional, com manifestações de rua, paralisações, manifestos de instituições do direito do trabalho, pesquisadores e sindicalistas. E a terceirização passou a ser pauta central da grande imprensa e das redes sociais.

 Assiste-se um processo de votações no Congresso Nacional e de decisões do STF que reforçam, sustentam e ampliam tudo o que o PL 4330 representa. Ou seja, a retirada de direitos e conquistas, a liberalização de formas de contrato e de relações de trabalho que amplifi carão a precarização social e estrutural do trabalho no Brasil.

 Assim, a supressão no PL 4330 da liberação da terceirização no setor público, teve como contra-medida a recente decisão do STF sobre uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta em 1998, em relação à Lei editada pelo Governo Fernando Henrique, que estabelecia que o Estado pode contratar organizações sociais para prestação de serviços nas áreas de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, ciência e tecnologia e meio ambiente. Ou seja, a terceirização através da intermediação das chamadas organizações sociais (fundações, ONGs, cooperativas, etc.) nas atividades-fim do serviço público. A decisão de que tal medida não é inconstitucional, tomada pela Suprema Corte, libera a terceirização para todos esses setores. Trata-se da vitória de uma concepção neoliberal de Estado, que irá transferir recursos públicos para essas organizações de caráter privado, que estarão livres para contratar trabalhadores sem concurso público e sem licitação, o que implicará no progressivo fim do serviço público, da carreira de servidor, cuja função social é fundamental num Estado democrático.

 O ajuste fiscal determinado pelo governo, com os cortes de despesas nas áreas sociais, como é o caso da educação, e com contingenciamento no repasse de recursos impôs uma crise nas universidades e institutos federais em todo o país, levando ao fechamento de unidades, adiamento de início de aulas por falta de condições de funcionamento em vista de greves de trabalhadores terceirizados dos serviços de limpeza, vigilância, portaria, manutenção, dentre outros, por estarem sem receber salários, chegando a atrasos de três meses em alguns segmentos. Estas ocorreram em quase todas as instituições federais de ensino, pois seus reitores não estão conseguindo pagar as despesas de custeio, em que a prestação de serviços terceirizados é a principal e mais cara despesa. Esse exemplo é paradigmático para se entender a quem penaliza o ajuste fiscal em curso no país.

 As demais medidas de ajuste fiscal propostas pelo governo federal, a exemplo das MPs 664 e 665, representam, segundo especialistas, o maior retrocesso em política de seguridade social nas últimas décadas, qualificada como uma minirreforma da Previdência, ao reduzir o acesso dos trabalhadores ao seguro desemprego, a pensões por morte e ao auxílio-doença. Segundo cálculos do DIEESE, em torno de 4,8 milhões de trabalhadores não poderiam acessar o seguro desemprego e 9,94 milhões perderiam o abono salarial, numa conjuntura em que o desemprego está crescendo, fruto da desaceleração do crescimento econômico.

 Elas têm exatamente a mesma natureza do PL 4330. Em nome de uma suposta grave crise econômica no país, em parte criada e propagandeada pela grande imprensa, pois os indicadores econômicos ainda não sinalizam para a gravidade que é anunciada diariamente pelos meios de comunicação, o governo Dilma propõe que sejam realizados cortes em direitos dos trabalhadores, diminuindo a proteção social e trabalhista. Estima-se que o governo vai economizar 10 bilhões de reais com essas medidas, enquanto cálculos de especialistas em finanças preveem que a taxação de grandes fortunas poderia recolher até 100 bilhões por ano. Sem dúvida, um ajuste que tem uma clara natureza de classe, tornando-se parte da ofensiva do capital sobre o trabalho, sob a hegemonia neoliberal, na qual o governo federal tem sido cada vez mais um agente fundamental.

 Uma infeliz escolha do governo Dilma, que se encontra refém de uma base de apoio esfacelada, que não encontra unanimidade em seu partido, o Partido dos Trabalhadores, e que perde rapidamente apoio dos movimentos sociais e centrais sindicais, a exemplo da CUT. É o que indica o “Manifesto pela mudança na política econômica e contra o ajuste”, lançado em 20 de maio e assinado por mais de 30 organizações e movimentos, dentre eles a CUT, o MST, a CPT, além de intelectuais, acadêmicos, dirigentes políticos de movimentos e do Partido dos Trabalhadores, que qualifica o ajuste como recessivo e afirma:

 “O quadro de desequilíbrio fiscal das contas do governo não é responsabilidade dos mais pobres, trabalhadores, aposentados e pensionistas. As causas desse desequilíbrio foram a desoneração fiscal de mais 100 bilhões concedida pelo governo às grandes empresas, as elevadas taxas de juros Selic, que transferem recursos para o sistema financeiro, e a queda da arrecada- ção devido ao baixo crescimento no ano passado. Não é justo, agora, colocar essa conta para ser paga pelos mais pobres que precisam de políticas públicas, trabalhadores, aposentados e pensionistas. Enquanto o andar de baixo perde direitos, não está em curso nenhuma medida do governo para tornar o nosso sistema tributário mais progressivo.”

Sem dúvida, o PL 4330, a decisão do STF de liberar a terceirização das atividades-fim no serviço público e as medidas de “arrocho fiscal” representam uma violenta ofensiva do capital sobre a classe trabalhadora. Resta saber se a mobilização nacional em curso terá forças para impedir esse desastre.



Texto originalmente publicado no ''Jornal dos Economistas'' do CORECON-RJ e SINDECON-RJ.