quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Aspectos Políticos do Pleno Emprego, por Michael Kalecki

(Enviado e ''prefaciado'' por Gustavo Souto de Noronha ao Jornal GGN)





Muitos colegas economistas, mesmo alguns mais à esquerda, ignoram algumas questões políticas associadas a gestão e condução da política econômica. Vejo muita gente boa defendendo que o ajuste fiscal é inevitável. Será? Até mesmo setores progressistas defendem algum tipo de ajuste ainda que em grau menor que o proposto pela nova equipe econômica. No fim, mesmo os que criticam acabam se enrolando na argumentação e se veem reféns do tal do tripé...

Pois bem, nestes tempos confusos, resolvi traduzir um texto (talvez um pouco longo para este espaço, mas relativamente curto em outros contextos) de Kalecki, o maior economista do século XX. Na verdade é uma adaptação de uma palestra dada por ele na Sociedade Marshall em Londres, o título é bem sugestivo (Aspectos Políticos do Pleno Emprego). Perdoem os eventuais erros do tradutor, segue o texto:




ASPECTOS POLÍTICOS DO PLENO EMPREGO (i)


Por Michal Kalecki

I

1.    Uma maioria consolidada dos economistas já é da opinião de que, mesmo em um sistema capitalista, o pleno emprego pode ser assegurado por um programa de gastos do governo, desde que haja um plano adequado para empregar toda a força de trabalho existente, e desde que a oferta de matérias-primas estrangeiras necessárias possa ser obtida em troca de exportações.

    Se o governo assume o investimento público (por exemplo, constrói escolas, hospitais e estradas) ou subsidia o consumo de massa (por transferências às famílias, pela redução dos impostos indiretos, ou subsídios para manter baixos os preços dos bens de primeira necessidade), e se, além disso, essas despesas são financiadas pelo endividamento e não pela tributação (o que poderia afetar negativamente o investimento privado e o consumo), a demanda efetiva por bens e serviços pode ser aumentada até um ponto em que o pleno emprego seja alcançado. Este gasto governamental aumenta o emprego, note-se, não só diretamente, como também indiretamente, uma vez que os rendimentos mais elevados dele resultantes implicam em um segundo aumento na demanda por bens de consumo e de investimento.

2.    Pode-se perguntar, de onde o público vai tirar o dinheiro para emprestar para o governo se não reduzir o seu investimento e consumo. Para entender esse processo, é melhor, penso eu, imaginar por um momento que o governo paga seus fornecedores em títulos públicos. Os fornecedores, em geral, não reterão esses títulos, mas os colocarão em circulação enquanto compram outros bens e serviços, e assim por diante, até que finalmente esses títulos atingirão pessoas ou empresas que os manterão como ativos remunerados. Em qualquer período de tempo, o aumento total de títulos públicos em poder (transitório ou definitivo) de pessoas e empresas será igual ao dos bens e serviços vendidos ao governo. Assim, o que a economia empresta ao governo são bens e serviços cuja produção é “financiada” por títulos do governo. Na realidade, o governo paga pelos serviços, não em títulos, mas em dinheiro, mas ele emite títulos simultaneamente e assim retira de circulação o dinheiro; e isto é equivalente ao processo imaginário descrito acima.

    O que acontece, no entanto, se o público não estiver disposto a absorver todo o aumento de títulos públicos? O governo os oferecerá, por fim, para os bancos para obter dinheiro (papel-moeda ou depósitos) em troca. Se os bancos aceitarem essas ofertas, a taxa de juros será mantida. Se não, os preços dos títulos vão cair, o que significa um aumento na taxa de juros, e isso vai incentivar o público a deter mais títulos em relação aos depósitos. Segue-se que a taxa de juros depende da política bancária, da do banco central em particular. Se esta política visa manter a taxa de juros em um determinado nível, isto pode ser facilmente alcançado, independente do endividamento do governo. Essa foi e é a posição na presente guerra. Apesar dos deficits orçamentários astronômicos, a taxa de juros não mostrou qualquer aumento desde o início de 1940.

3.    Pode-se objetar que os gastos públicos financiados pelo endividamento causarão inflação. Para isso, pode ser respondido que a demanda efetiva criada pelo governo age como qualquer outro aumento de demanda. Se há oferta suficiente de trabalho, plantas e matérias-primas estrangeiras, o aumento da demanda é atendido por um aumento na produção. Mas, se o ponto de pleno emprego dos recursos é atingido e a demanda efetiva continua a aumentar, os preços subirão, de modo a equilibrar a demanda e a oferta de bens e serviços. (No estado de sobre-emprego de recursos, como o que testemunhamos atualmente na economia de guerra, um aumento inflacionário dos preços tem sido evitado apenas na medida em que a demanda efetiva por bens de consumo é contida pelo racionamento e pela taxação direta). Segue-se que, se a intervenção governamental tem como objetivo atingir o pleno emprego, mas freia um pouco antes da demanda efetiva ultrapassar a marca de pleno emprego, não há necessidade de ter medo da inflação. (ii)

II

1.    A descrição acima é uma definição muito simples e incompleta da doutrina econômica de pleno emprego. Mas é, penso eu, suficiente para familiarizar o leitor com a essência da doutrina e assim permitir-lhe acompanhar a discussão posterior dos problemas políticos envolvidos na realização do pleno emprego.

    Em primeiro lugar deve se afirmar que embora a maioria dos economistas agora concordem que o pleno emprego pode ser alcançado pelos gastos do governo, este de modo algum foi o caso, mesmo no passado recente. Entre os opositores dessa doutrina existiam (e ainda existem) proeminentes e autointitulados “especialistas econômicos” estreitamente ligados à banca e à indústria. Isso sugere que há um fundo político na oposição à doutrina do pleno emprego, mesmo que os argumentos apresentados sejam econômicos. Isso não quer dizer que as pessoas que desenvolvem essas teorias não acreditam em sua economia, por mais lamentável que isso seja. Mas a ignorância obstinada geralmente é uma manifestação de motivações políticas subjacentes.

    Há, no entanto, indicações ainda mais diretas de que uma questão política de primeira categoria está em jogo aqui. Na grande depressão na década de 1930, as grandes empresas sempre se opuseram aos experimentos de aumento do emprego pelos gastos do governo em todos os países, exceto a Alemanha nazista. Isto pôde ser visto claramente nos EUA (oposição ao New Deal), na França (o experimento Blum), e na Alemanha antes de Hitler. A atitude não é fácil de explicar. Claramente, uma maior produção e emprego beneficia não só os trabalhadores, mas também os empresários porque seus lucros aumentarão. E a política de pleno emprego descrita acima não colide com os lucros, porque não envolve nenhuma tributação adicional. Os empresários diante de uma recessão anseiam por uma retomada; porque é que eles não aceitam de bom grado a retomada sintética que o governo é capaz de oferecer-lhes? É esta questão difícil e fascinante que pretendemos tratar neste artigo.

    As razões para a oposição dos “líderes industriais” ao pleno emprego alcançado via gastos do governo podem ser subdivididos em três categorias: (i) não gostam da interferência do governo no problema do emprego como tal; (ii) não gostam da direção dos gastos do governo (o investimento público e o consumo subsidiado); (iii) não gostam das mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego. Vamos examinar em detalhe cada uma dessas três categorias de restrições a uma política governamental expansionista.

2.    Vamos lidar primeiro com a relutância dos “capitães da indústria” em aceitar a intervenção do governo na questão do emprego. Cada alargamento da atividade estatal é encarado pelo mercado com suspeita, mas a criação de emprego via gastos públicos tem um aspecto especial que faz com que a oposição seja particularmente intensa. Sob um sistema de livre mercado, o nível de emprego depende, em grande medida, do chamado estado de confiança. Se isso se deteriora, reduz-se o investimento privado, o que resulta numa queda da produção e do emprego (tanto diretamente como através do efeito secundário da diminuição dos rendimentos sobre consumo e investimento). Isto dá aos capitalistas um poderoso controle indireto sobre a política governamental: tudo o que pode abalar o estado de confiança deve ser evitado porque isso causaria uma crise econômica. Mas uma vez que o governo descobre o truque de aumentar o emprego por suas próprias compras, este dispositivo de controle poderoso perde a sua eficácia. Daí déficits orçamentários necessários para realizar a intervenção do governo devem ser considerados perigosos. A função social da doutrina das “finanças saudáveis” é fazer com que o nível de emprego dependa do estado de confiança.

3.    A antipatia de líderes empresariais para uma política de gastos do governo se torna ainda mais aguda quando eles consideraram o objeto em que o dinheiro seria gasto: o investimento público e o subsídio ao consumo de massas.

    Os princípios econômicos da intervenção governamental exigem que o investimento público deva limitar-se a objetos que não concorram com os equipamentos das empresas privadas (por exemplo, hospitais, escolas, autoestradas). Caso contrário, a rentabilidade do investimento privado pode ser prejudicada, e os efeitos positivos do investimento público sobre o emprego neutralizados pelo efeito negativo do declínio do investimento privado. Essa concepção se adapta muito bem aos empresários. Mas o espaço para o investimento público deste tipo é bastante estreito, e há o perigo de que o governo, na prossecução desta política, pode, eventualmente, ser tentado a nacionalizar os transportes ou serviços de utilidade pública, de modo a ganhar uma nova esfera de investimento. (iii)

    Poderia se esperar, portanto, que os líderes empresariais e seus especialistas fossem mais favoráveis aos subsídios ao consumo de massa (por meio de transferências às famílias, subsídios para manter baixo os preços dos bens de primeiras necessidades, etc.) do que ao investimento público; uma vez que subsidiando o consumo o governo não embarcaria em qualquer tipo de empreendimento. Na prática, no entanto, este não é o caso. Na verdade, a oposição feita por esses especialistas ao subsídio ao consumo de massa é muito mais violenta que ao investimento público. Por aqui um princípio moral da maior importância está em jogo. Os fundamentos da ética capitalista requerem que “você deve ganhar o seu pão no suor”, a menos que você tenha meios privados.

4.    Nós consideramos as razões políticas para a oposição à política de criação de emprego vias gastos governamentais. Mas, mesmo que esta oposição fosse superada – como pode muito bem ocorrer sob a pressão das massas – a manutenção do pleno emprego causaria mudanças sociais e políticas que dariam um novo impulso para a oposição dos líderes empresariais. Com efeito, sob um regime de pleno emprego permanente, a demissão deixaria de desempenhar o seu papel enquanto “medida disciplinar”. A posição social do patrão seria prejudicada, e a autoconfiança e consciência de classe da classe trabalhadora cresceria. As greves por aumentos salariais e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão política. É verdade que os lucros seriam mais elevados sob um regime de pleno emprego do que são, em média, nos termos do livre mercado, e até mesmo o aumento dos salários decorrente do maior poder de barganha dos trabalhadores é menos propenso a reduzir os lucros do que para aumentar preços, e, portanto, afeta negativamente apenas os interesses rentistas. Mas a “disciplina nas fábricas” e a “estabilidade política” são mais apreciadas do que os lucros pelos líderes empresariais. Seu instinto de classe lhes diz que um pleno emprego duradouro é inaceitável a partir do seu ponto de vista, e que o desemprego é uma parte integrante do sistema capitalista “normal”.

III

1.    Uma das funções importantes do fascismo, como tipificado pelo sistema nazista, foi remover as objeções capitalistas ao pleno emprego.

    A aversão a política de gastos do governo, como tal, é superada sob o fascismo pelo fato de que a máquina do Estado está sob o controle direto de uma parceria das grandes empresas com o fascismo. A necessidade do mito das “finanças saudáveis”, que servira para impedir o governo de causar uma crise de confiança devido aos gastos públicos, é removida. Em uma democracia, não se sabe como será o próximo governo. Sob o fascismo não há próximo governo.

    A antipatia aos gastos do governo, seja em investimento público ou consumo, é superada pela concentração dos gastos governamentais em armamentos. Finalmente, a “disciplina nas fábricas” e a “estabilidade política” sob o pleno emprego são mantidas pela “nova ordem”, que varia de supressão dos sindicatos aos campos de concentração. A pressão política substitui a pressão econômica do desemprego.

2.    O fato dos armamentos serem a espinha dorsal da política de pleno emprego fascista tem uma profunda influência sobre o caráter desta política econômica. Armamentos em larga escala são inseparáveis da expansão das forças armadas e da preparação de planos para uma guerra de conquista. Eles também induzem o rearmamento competitivo de outros países. Isso faz com que o objetivo principal do dispêndio mude gradualmente do pleno emprego para maximizar o rearmamento. Como resultado, o emprego se torna excedente. Não só é o desemprego abolido, mas uma aguda escassez de mão de obra prevalece. Gargalos surgem em todas as esferas, e estes devem ser tratados através da criação de inúmeros de controles. Tal economia tem muitas características de uma economia planificada, e às vezes é comparada, ainda que ignorantemente, com o socialismo. No entanto, este tipo de planejamento tende a aparecer sempre que uma economia se estabelece uma alta meta de produção numa esfera particular, quando se torna uma economia especializada da qual a economia armamentista é um caso especial. Uma economia armamentista envolve uma redução do consumo em comparação com o que poderia ocorrer sob o pleno emprego.

    O sistema fascista começa a partir da superação do desemprego, desenvolve-se numa economia de armamentista de escassez, e termina, inevitavelmente, em guerra.

IV

1.    Qual será o resultado prático da oposição a uma política de pleno emprego pelos gastos do governo em uma democracia capitalista? Vamos tentar responder a esta questão com base na análise das razões para essa oposição dadas na seção II. Nós discutimos lá que podemos esperar a oposição dos líderes do setor em três planos: (i) a oposição por princípio aos gastos do governo com base em um déficit orçamentário; (ii) a oposição ao direcionamento deste dispêndio tanto para o investimento público – o que pode prenunciar a intromissão do Estado em novas esferas da atividade econômica – ou no sentido de subsidiar o consumo de massa; (iii) a oposição a manutenção do pleno emprego e não apenas a prevenção de depressões profundas e prolongadas.

    Agora deve-se reconhecer que a fase em que “os líderes empresariais” poderiam se dar ao luxo de ser oposição a qualquer tipo de intervenção do governo para aliviar a depressão é mais ou menos passado. Três fatores contribuíram para isso: (i) muito pleno emprego durante a presente guerra; (ii) desenvolvimento da doutrina econômica do pleno emprego; (iii) em parte como resultado desses dois fatores, o slogan “O desemprego nunca mais” agora está profundamente enraizado na consciência das massas. Esta posição reflete-se nos recentes pronunciamentos dos “capitães da indústria” e seus especialistas. A necessidade de que “algo deve ser feito na depressão” é consensual; mas a luta continua, em primeiro lugar, quanto ao que deve ser feito na depressão (ou seja, o que deveria ser a direção da intervenção do governo) e em segundo lugar, que isso deveria ser feito apenas na depressão (ou seja, apenas para aliviar recessões em vez de garantir permanentemente o pleno emprego).

2.    Nas discussões atuais destes problemas surge, uma vez ou outra, a concepção de se combater a depressão estimulando o investimento privado. Isto pode ser feito através da redução da taxa de juros, pela redução do imposto de renda, ou subsidiando o investimento privado diretamente nesta ou em outra forma. Que tal esquema deva ser atraente para o mercado não é surpreendente. O empresário continua a ser o meio através do qual a intervenção é conduzida. Se ele não sentir confiança na situação política, ele não vai ser subornados para investir. E a intervenção não envolve o governo, seja na “brincadeira com” o investimento (público), seja no “desperdício de dinheiro” com subsídios ao consumo.

    Pode ser demonstrado, no entanto, que o estímulo ao investimento privado não fornece um método adequado para evitar o desemprego em massa. Há duas alternativas a serem consideradas aqui. (i) Ou a taxa de juros ou o imposto de renda (ou ambos) são reduzidos drasticamente na recessão e aumentados no crescimento. Neste caso, tanto o período quanto a amplitude do ciclo de negócios serão reduzidos, mas o pleno emprego pode estar distante não só na depressão, mas mesmo durante o crescimento, ou seja, a média de desemprego pode ser considerável, embora suas flutuações sejam menos notadas. (ii) Ou a taxa de juros ou o imposto de renda são reduzidos em uma recessão, mas não aumentam no crescimento subsequente. Neste caso, o crescimento vai durar mais tempo, mas deverá acabar em uma nova crise: uma redução na taxa de juros ou de imposto de renda não eliminam, é claro, as forças que causam as flutuações cíclicas em uma economia capitalista. Na nova recessão será necessário reduzir novamente a taxa de juros ou o imposto de renda e assim por diante. Assim, em um futuro não muito distante, a taxa de juros teria que ser negativa e o imposto de renda teria de ser substituído por um subsídio de renda. O mesmo ocorreria se se tentasse manter o pleno emprego estimulando o investimento privado: a taxa de juros e imposto de renda teriam de ser reduzidos de forma contínua. (iv)

    Além dessa fraqueza fundamental da luta contra o desemprego através do estímulo ao investimento privado, há uma dificuldade prática. A reação dos empresários às medidas descritas é incerta. Se a desaceleração é aguda, eles podem ter uma visão muito pessimista do futuro, e a redução da taxa de juros ou do imposto de renda pode, então, por um longo tempo, ter pouco ou nenhum efeito sobre o investimento e, portanto, sobre o nível de produção e emprego.

3.    Mesmo aqueles que defendem o incentivo ao investimento privado para enfrentar a recessão frequentemente não confiam exclusivamente nisso, mas preveem que este incentivo deve ser feito conjuntamento com o investimento público. Olha-se para o presente como se os líderes empresariais e seus especialistas (pelo menos alguns deles) tendessem a aceitar como um mal menor o investimento público financiado pelo endividamento do Estado como forma de aliviar recessões. Eles parecem, no entanto, ainda se oporem consistentemente à criação de emprego através de subsídios ao consumo e à manutenção do pleno emprego.

    Este estado das coisas é talvez sintomático do futuro regime econômico das democracias capitalistas. Na recessão, quer sob a pressão das massas, ou até mesmo sem ela, o investimento público financiado por endividamento do Estado serão realizados para evitar o desemprego em grande escala. Entretanto, se forem feitas tentativas de aplicar este método com o propósito de manter o alto nível de emprego alcançado com a retomada do crescimento posterior, é bem provável que seja encarada uma forte oposição dos líderes empresariais. Como já foi discutido, pleno emprego duradouro não é de todo o seu grado. Os trabalhadores sairiam do “controle” e os “capitães da indústria” ficariam ansiosos para “ensinar-lhes uma lição”. Ademais, o aumento de preços na retomada é uma desvantagem dos pequenos e grandes rentistas, e torna-os “cansados de crescimento”.

    Nesta situação, uma poderosa aliança é provável de se formar entre as grandes corporações e os interesses rentistas, e que provavelmente há de se encontrar mais de um economista para declarar que a situação era manifestamente frágil. A pressão de todas essas forças, e em particular das grandes corporações – como regra, influentes em setores do governo – muito provavelmente induzirá o governo a voltar para a política ortodoxa de reduzir o deficit orçamentário. A recessão se seguiria quando a política de gastos do governo voltaria a ser valorizada.

    Este padrão de um ciclo de negócios político não é totalmente conjuntural; algo bastante similar ocorreu nos EUA em 1937-8. A derrubada do crescimento na segunda metade de 1937 foi na realidade causada pela drástica redução do deficit orçamentário. Por outro lado, na recessão aguda que se seguiu, o governo imediatamente reverteu para uma política de gastos.

    O regime do ciclo de negócios político seria uma restauração do artificial da posição existente no capitalismo do século dezenove. O pleno emprego só seria alcançado no topo do crescimento, porém as recessões seriam relativamente suaves e curtas.

V

1.    Deveria um progressista ficar satisfeito com o ciclo de negócios político da forma como descrito na seção anterior?  Acho que a isto deveríamos nos opor em dois níveis: (i) que isto não assegura um pleno emprego duradouro; (ii) que esta intervenção governamental está associada ao investimento público que não abarca o subsídio ao consumo.  O que as massas demandam agora não é a mitigação da recessão, mas sua abolição total.  Nem deveria a consequente utilização mais completa dos recursos ser feita em investimentos públicos não desejados apenas para gerar emprego. O programa de gastos governamentais deveria estar dedicado apenas ao investimento público de fato necessário. O resto do gasto público necessário para manter o pleno emprego deveria ser usado para subsidiar o consumo (através de transferências às famílias, pensões e aposentadorias, redução dos impostos indiretos e subsídios aos bens de primeira necessidade).  Os opositores deste tipo de gasto governamental alegam que o governo não terá, então, nenhuma contrapartida ao seu dinheiro. A resposta é que a contrapartida deste dispêndio é o maior padrão de vida das massas. Este não é propósito de toda a atividade econômica?

2.    “O capitalismo do pleno emprego” claramente evoluirá para novas instituições políticas e sociais que refletirão o crescente poder da classe trabalhadora. Se o capitalismo puder se ajustar ao pleno emprego, uma reforma fundamental terá sido incorporada nele. Caso contrário, se mostrará um sistema ultrapassado que deverá ser descartado.

    Entretanto, lutar pelo pleno emprego pode levar ao fascismo? Talvez o capitalismo se ajuste ao pleno emprego no caminho? Isto parece extremamente improvável. O fascismo surgiu na Alemanha diante de um cenário de desemprego tremendo, e se manteve no poder assegurando o pleno emprego enquanto a democracia capitalista fracassou neste objetivo. A luta das forças progressistas pelo emprego de todos é ao mesmo tempo uma maneira de se prevenir a reincidência do fascismo.


Notas:

(i) Este artigo corresponde aproximadamente a uma palestra dada à Sociedade Marshall em Cambridge na primavera de 1942.

(ii) Outro problema de natureza mais técnica é o da dívida nacional. Se o pleno emprego é mantido por gastos do governo financiados por empréstimos, a dívida nacional aumentará continuamente. Isso não precisa, no entanto, envolver quaisquer perturbações na produção e no emprego se os juros da dívida forem financiados por um imposto anual sobre o capital. A renda corrente, após o pagamento do imposto sobre o capital, de alguns capitalistas será menor, e de outros maior, do que se a dívida nacional não tivesse aumentado, mas o seu rendimento global permanecerá inalterado e seu consumo agregado não será suscetível a mudanças significativas. Além disso, a propensão para investir em capital fixo não é afetada por um imposto sobre o capital, porque ele é pago sobre qualquer tipo de riqueza. Se uma determinada quantia está em dinheiro ou títulos do governo ou investida na construção de uma fábrica, o mesmo imposto sobre o capital é pago sobre ela e, assim, a vantagem comparativa é inalterada. E se o investimento é financiado por empréstimos é evidente que não é afetado por um imposto sobre o capital se não significar um aumento da riqueza do empresário investidor. Assim, nem o consumo capitalista nem o investimento é afetado pelo aumento da dívida nacional se seus juros forem financiados por um imposto anual sobre o capital. (Veja mais em Kalecki, M. “A Theory of Commodity, Income, and Capital Taxation” in: Kalecki, M. Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy 1933-1970, Cambridge University Press, 1971)

(iii) Deve-se notar aqui que o investimento em uma indústria nacionalizada pode contribuir para a solução do problema do desemprego apenas se for realizada em princípios de retorno diferentes daqueles da iniciativa privada, ou deve deliberadamente temporizar o seu investimento de modo a mitigar aqueles da iniciativa privada. O governo deve estar satisfeito com uma menor taxa líquida de falências.

(iv) Uma demonstração rigorosa encontra-se no artigo publicado em Kalecki, M., “Full Employment by Stimulating Private Investment?” In: Oxford Economic Papers. (1945) os-7 (1): 83-92

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Causas e tendências da crise econômica brasileira


Nada de texto(s) original(is) aqui, apenas links (de gente muito mais capacitada para falar sobre isso).

Franklin Serrano e Ricardo Summa: ''Demanda agregada e a desaceleração do crescimento econômico de 2011 a 2014''
Franklin Serrano: ''A súbita guinada neoliberal do Brasil''
Matías Vernengo: ''As estranhas e mal-compreendidas causas da crise brasileira''¹ (em inglês)
Franklin Serrano e Luiz Eduardo Melin: ''Aspectos políticos do desemprego: a guinada neoliberal do Brasil''²³ (em inglês)

 Matías Vernengo é economista formado pela UFRJ, mestre pela mesma instituição, e doutor pela New School for Social Research. Sua pesquisa é na área de macroeconomia, economia brasileira e história do pensamento. Foi consultor da OIT e do PNUD, e professor em universidades no Brasil e nos EUA. Atualmente é professor adjunto na Bucknell University.

Franklin Serrano é  Professor Associado no Instituto de Economia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Brasil e pesquisador associado sênior do Center for Economic and Policy Research.

Ricardo Summa é Professor Adjunto do Instituto de Economia da Universidade Federal de
Rio de Janeiro, Brasil.

Luiz Eduardo Melin ensina História Política e Desenvolvimento Econômico na Pontífice Universidade Católica do Rio de Janeiro -- PUC-RJ.


[1] Fiz uma tradução aqui.
[2] O título é uma referência ao clássico artigo de 1943 do grande economista marxista polonês Michael Kalecki, ''Aspectos políticos do pleno emprego''.
[3] O artigo foi traduzido: http://www.excedente.org/wp-content/uploads/2016/04/Aspectos-Pol%C3%ADticos-do-Desemprego-_MELIN-SERRANO-_12-2015_.pdf

sábado, 19 de dezembro de 2015

Crítica do neoliberalismo ou crítica do capitalismo?






 Não é necessário estabelecer aqui o balanço dos horrores produzidos pela sociedade mercantil na sua atual fase neoliberal. São bem conhecidos. A tão elogiada «mão invisível» começou a desferir golpes por toda a parte. Todos nós estamos em vias de nos tornarmos «não rentáveis». Presentemente as crises já não derivam das imperfeições do sistema produtor de mercadorias, mas, pelo contrário, do seu desenvolvimento integral. Já não há lugar para oposições ou soluções imanentes ao sistema. Não é por preconceito favorável ao radicalismo ou à «utopia», mas sim por realismo que é preciso encarar agora saídas radicalmente anticapitalistas. É necessário abandonar a ilusão de que os problemas colocados pelo mercado possam encontrar ainda solução no terreno da própria economia de mercado. Será mais fácil acabar de uma vez por todas com a besta. Durante mais de cento e cinquenta anos o movimento operário e democrático aceitou a existência dela para lhe aplicar mil grilhetas e rodeá-la de mil paliçadas. O que se verificou foi que a primeira crise da valorização ou a primeira contestação mais séria são suficientes para que a besta esqueça que está prisioneira e rompa todas as cadeias. O capitalismo - tornado «social», «democrático», «humano» e mesmo «ecológico» à custa de esforços seculares - pode de um dia para o outro passar a ser o capitalismo sem mais adjetivos: um sistema fetiche cego, pronto para tudo devorar de modo a assegurar a sua sobrevivência.

 Mas como sair da sociedade mercantil? Depois do esgotamento dos movimentos dos anos sessenta e setenta e depois da acalmia absoluta dos anos oitenta, assistiu-se ao longo dos anos noventa a um recrudescimento progressivo de novos movimentos que contestam a ordem mundial existente. A luta contra os efeitos perversos da «mundialização» (ou «globalização») neoliberal constitui o denominador comum desses movimentos. Sendo assim, a nossa apresentação da crítica do valor conclui-se com uma análise breve de algumas das ideias mais divulgadas na «rede» da anti-globalização.

 De entre as reações às «misérias do mundo» provocadas pelo capitalismo contemporâneo, a que prevaleceu até agora é a condenação dos políticos neoliberais que lhes contrapõe - explícita ou implicitamente - o regresso às receitas keynesianas e a um papel prevalecente do Estado. Este discurso não contesta a mercadoria enquanto tal, mas somente a sua ação sobre os diferentes aspectos da vida. O objectivo é então o de «voltar a enquadrar» a economia na sociedade por intermédio de reformas corajosas levadas a cabo por amplas coligações de homens de boa vontade. Como expressões típicas deste movimento, representado a nível mundial pelas cimeiras alternativas de Porto Alegre, podemos citar, em França, a associação Attac, que nasceu para exigir a aplicação de taxas sobre as transações financeiras, o jornal Le Monde diplomatique, os escritos do sociólogo Pierre Bourdieu e as ações de José Bové, dirigentes da Confederação Camponesa. Este último fala da situação nos seguintes termos: «Se todas as atividades humanas passam a ser de ordem mercantil, o conflito dá-se entre duas concepções da sociedade. Uma, que deixa o mercado, com as suas próprias regras, organizar a sociedade, integrar todas as atividades humanas, a saúde, a cultura, a educação, etc., e que tem do seu lado a lei do dinheiro, sendo o seu estádio último [...] a mercantilização da vida. A outra, em que quem tem o poder de organizar a sociedade são os cidadãos, as instituições políticas, o espaço de vida e outras vertentes, como o ambiente e a cultura.» [1] Pergunta-se: será que a crítica radical da mercadoria e do mercado desenvolvido pela via da crítica do valor encontra a sua realização prática num movimento baseado em tais princípios e que tem entre os seus textos fundadores um escrito intitulado O mundo não é uma mercadoria?

 Em primeiro lugar é preciso sublinhar que este movimento se propõe lutar contra o «flagelo neoliberal» [2] e não contra o capitalismo em geral, e menos ainda contra a mercadoria, o dinheiro, o valor e o Estado. É verdade que os seus representantes proclamam que querem ultrapassar a mera descrição dos sintomas e as análises superficiais. Segundo Bourdieu, «é preciso evidentemente recuar até às verdadeiras determinações econômicas e sociais» [3] dos problemas, na perspectiva de «ajudar as vítimas da política neoliberal a descobrir os efeitos diversos de uma mesma causa em acontecimentos e experiências que à primeira vista são radicalmente diferentes» [4]. O que falta, porém, é precisamente uma crítica capaz de indicar a raiz comum dos diferentes problemas: o neoliberalismo constitui o único alvo dessa crítica redutora. Esta perspectiva pretende que a política e o Estado libertem o capitalismo dos seus «excessos» - antes de mais do poder da especulação financeira - para restabelecer um verdadeiro Estado-providência. Aliás, a lógica da mercadoria nem chega a ser aflorada. Este tipo de contestação propõe-se somente impedir que a educação, a saúde, a cultura, a arte, a agricultura e outros domínios específicos se tornem também mercadorias (pressupondo, evidentemente, que não o são já).

 Como é natural, podemos perguntar se é verdadeiramente desejável um tal regresso ao fordismo keynesiano. Em face das desgraças produzidas em cadeia pelo neoliberalismo, pode parecer compreensível que se alimente alguma nostalgia pelo «capitalismo social».

 Deste modo, Bourdieu insiste com frequência em problemas atuais (segregação social e étnica, etc.) decorrentes da política neoliberal de habitação iniciada nos anos setenta [5]. Perguntar-se-á, porém, se eram agradáveis os HLM dos anos sessenta e se De Gaulle tinha começado a construir um verdadeiro Estado de justiça social. Mas é mais útil demonstrar que esse regresso é simplesmente impossível. Àqueles que, em desespero de causa, seriam capazes de se contentar com um capitalismo de rosto humano, teremos que demonstrar que o tempo dessa opção está decididamente ultrapassado.

 Essa ilusão baseia-se na convicção de que a mundialização neoliberal não é o resultado inevitável da lógica capitalista e ao mesmo tempo um sinal da sua extrema fraqueza, mas sim o resultado de uma espécie de conspiração preparada há muito tempo [6]. Segundo esse discurso, com a mundialização, os detentores do poder econômico e sobretudo do poder financeiro procuram anular todas as conquistas obtidas durante um século de lutas pela «democratização» e pelos «direitos sociais». Autores como Bourdieu não vêem a ambiguidade profunda de tais «conquistas», que, mesmo tendo sido arrancadas às classes burguesas contra sua vontade, nem por isso deixaram de ser úteis e inclusivamente indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo. Se Bourdieu escreve em dado momento que, «pelo fato de os dominadores deste jogo serem dominados pelas regras do jogo que dominam, a regra do lucro, este campo funciona como uma máquina infernal sem sujeito que impõe a sua lei aos Estados e às empresas» [7], tal não representa mais do que uma afirmação isolada. No seu discurso, a evolução do capitalismo não é governada pelas respectivas contradições internas, a concorrência e o sujeito autômato. Cada melhoramento da condição dos «dominados» ficar-se-ia a dever a uma ação política e social, concebida como sendo o contrário do capitalismo, e não como parte integrante dele mesmo. Tudo se reduz então às relações de forças e à boa vontade ou má vontade dos atores [8]. A mundialização «econômica não é um efeito mecânico das leis da técnica ou da economia, mas sim o produto de uma política posta em ação» [9]: tal política teria sido imposta pelo esforço constante dos think tanks neoliberais. Tratar-se-ia de um processo de involução, de uma verdadeira «revolução conservadora»: «Começa-se assim a suspeitar de que a precariedade é produto não de uma fatalidade econômica, identificada com a famosa “mundialização”, mas de uma vontade política.» [10] Contudo, se a introdução do capitalismo não foi uma fatalidade, e se não somos obrigados a aceitar a sua existência como se fosse um destino, não se pode, por outro lado, desejar que o capitalismo seja diferente da sua própria natureza e que se mantenha mesmo nas suas épocas de crise um capitalismo simpático, «de rosto humano». A «vontade política» mais não fez do que dar execução às leis que regem a derradeira fase do capitalismo, numa circunstância em que este esgotou já a sua vida natural e procura desesperadamente manter uma aparência de produção de valor. A mundializa­ção neoliberal não é um «retrocesso» contra o qual fosse necessário defender as aquisições da democracia social. A mundialização é antes o estádio que se segue logicamente ao Estado-providência. Não há abuso no fato de os neoliberais se apresentarem a si mesmos como os representantes do «progresso» e das «reformas»: eles constituem a melhor expressão do que são o progresso e as reformas na sociedade capitalista.

 Aos olhos destes defensores do Estado social democrático, a «economia» não é a forma total da vida social moderna, mas sim um sector à parte contra cujo imperialismo se poderia mobilizar a arte, a ciência, etc., que pertenceriam a um outro mundo. Mas o que esta escola de pensamento pretende ressuscitar é sobretudo o Estado regulador da época keynesiana. Os escritos de Bourdieu testemunham-no à saciedade. Para ele, «o Estado é uma realidade ambígua. Não podemos contentar-nos em dizer que é um instrumento ao serviço dos dominantes, [...] ele tem uma autonomia tanto maior quanto mais antigo e mais forte for» [11]. Ora, isto concede evidentemente uma dignidade particular ao Estado francês, apesar de todas as proclamações em prol de um «novo internacionalismo» ou de um «Estado social europeu», concebido por seu turno como etapa para se alcançar um Estado mundial. Para Bourdieu, o Estado é algo que os dominados podem opor ao capital: «O Estado, em todos os países, é, por um lado, um sinal que as conquistas sociais deixam impresso na realidade» [12], A existência do Estado seria algo de inaceitável por parte do capital: «Os neoliberais não querem nem Estados nacionais, nos quais vêem meros obstáculos ao livre funcionamento da economia, nem a fortiori Estado supranacional» [13]. Segundo Bourdieu, é portanto necessário defender o Estado, traído precisamente pela «grande nobreza de Estado»: «Na situação atual, as lutas críticas dos intelectuais, dos sindicatos, das associações, têm que se voltar prioritariamente contra o definhamento do Estado [...]. Penso que os dominados têm interesse em defender o Estado.» [14] Bourdieu lamenta-se de hoje em dia o Estado já não exigir dos cidadãos «devoção, entusiasmo» [15]: acusa os socialistas do fato de terem «levado até ao fim a destruição da crença no Estado» [16]. Quer «descobrir uma verdadeira política», mesmo nos termos mais tradicionais, desde que se seja uma política «sem concessões para com as quimeras anti-institucionais» [17]. Bourdieu vai ao ponto de desejar o regresso dos honestos chefes carismáticos: lamenta o fato de os partidos já não produzirem «personalidades inspiradas» [18] e de serem «cada vez mais raros [...] os grandes tribunos, os homens políticos capazes de compreender e explicar as grandes expectativas e reivindicações dos seus eleitores» [19].

 Na submissão da política à economia, Bourdieu não reconhece um resultado do fato - por nós já mencionado - de ao Estado faltar estruturalmente um meio autônomo de intervenção, mas tão- -somente a consequência de uma cegueira ideológica. Indigna-se, pois, por ver «todos esses altos representantes do Estado que rebaixam a sua dignidade estatutária prodigalizando vênias diante dos patrões das multinacionais» [20], e assegura com frequência que a margem de manobra dos dirigentes é muito menos reduzida do que se pretende fazer crer. Naturalmente, Bourdieu tem reservas em relação ao Estado, tal como este se encontra hoje em dia. Contudo, é preciso recordar-lhe que não é suficiente dizer-se que «este movimento social deve apoiar-se no Estado, mas mudando o Estado» [21]: o problema não reside apenas nos conteúdos concretos do Estado, mas na própria forma Estado. Quando Bourdieu julga divisar a particularidade negativa da mundialização neoliberal no fato de esta, «diferentemente do que sucedeu com a que noutros tempos ocorreu na Europa ao nível do Estado nacional, ocorrer agora sem Estado» [22], negligencia o que foi o papel do Estado durante séculos: obrigar as populações, a ferro e fogo, à «integração no mercado». Deveria ser suficiente recordar que o Estado continua a ser desde as infra-estruturas até à repressão, o garante indispensável da valorização capitalista. Para além do mais, o reformista estatista não é sequer «realista»: a tentativa contraditória de planificar e regular por intermédio do Estado aquilo que nos seus próprios fundamentos é algo de cego e inconsciente - a economia mercantil - levou já à desarticulação do socialismo nos países de Leste. Se um governo nacional tomasse verdadeiramente medidas radicais contra o grande capital, seria punido pela retirada imediata dos capitais internacionais e por uma derrocada das Bolsas e dos investimentos. O que não seria necessariamente uma catástrofe, se se quiser gerir os recursos de maneira diferente. Mas seria efetivamente uma catástrofe no quadro da economia de mercado que estes reformistas não põem em causa.

 Quando estes neokeynesianos falam em «crise», pensam somente nas «bolhas especulativas». A ideia de uma crise estrutural do sistema capitalista é coisa que não lhes aflora ao espírito, e muitas vezes identificam a mundialização com uma fase de prosperidade capitalista acrescida. Segundo eles, reforçar o papel do Estado e combater o poder financeiro e a lógica do lucro a curto prazo terá como consequência o regresso do pleno emprego. Das suas intenções não faz parte nem a crítica do trabalho, nem a compreensão das razões do efetivo desaparecimento do trabalho. Na sua óptica, a diminuição contínua da força de trabalho empregue é o resultado de uma escolha deliberada, ditada por uma avidez míope; seria portanto possível inverter esta tendência por meio de uma decisão política. Na verdade, são as novas tecnologias que reduziram consideravelmente o trabalho necessário à produção, pondo assim termo ao crescimento fordista que pôde alimentar as políticas keynesianas. O simples fato de, apesar do desemprego e do seu crescimento, a produção continuar a existir e inclusivamente aumentar demonstra só por si não ser verdade que «sem trabalho deixar-se-á de produzir», a menos que se esteja a utilizar o termo «trabalho» abusivamente como sinônimo de toda e qualquer atividade. Em vez de procurar inutilmente voltar atrás e recriar artificialmente trabalho fictício em «ateliers de forma­ção» ou em «empresas de inserção», mais valeria libertar o indivíduo da necessidade de vender a sua força de trabalho para poder viver. É algo de tanto mais urgente quanto essa força de trabalho se revela cada vez mais um bem invendável, e os que não conseguem vender-se são convidados a atribuir a culpa a si mesmos - porque não se «adaptam» suficientemente ao mercado - e a considerar-se parasitas supérfluos. E mesmo que o regresso ao «pleno emprego» fosse possível, só seria desejável aos olhos daqueles que conservassem uma apreciação moral favorável ao trabalho.

 Opor as realidades «sólidas» e «honestas» do Estado e da nação, do trabalho e dos «investimentos produtivos» ao capital financeiro e à especulação burguesa arrisca-se a ser, independentemente das intenções de quem defende tais ideias, um jogo bastante perigoso, mais útil para mobilizar sentimentos de ódio do que para criar um movimento de emancipação social. Este último não pode de modo algum limitar-se a escolher um pólo da abstração mercantil (o Estado, o trabalho) para o opor ao outro (o dinheiro, a finança). Porém, em vez de opor a emancipação social ao capitalismo, o que está em moda é opor a «democracia» ao «mundo descontrolado da finança». O que acontece é que a polêmica contra a especulação é perfeitamente compatível com o elogio do «capitalismo são», relativamente ao qual os «excessos financeiros» seriam uma espécie de doença. Com efeito, em 1995, o presidente Jacques Chirac chamava à especulação monetária «a AIDS das nossas economias». Como é evidente, esta argumentação confunde a causa e o efeito da crise. Como dissemos já, não é o peso da finança parasitária que esmaga uma economia capitalista que em caso contrário pudesse estar de boa saúde, antes é a economia do valor que, tendo atingido o seu ponto de esgotamento, continua a sobreviver provisoriamente graças à especulação.

 Quase desde o início do capitalismo tem existido um falso anticapitalismo que não critica o trabalho e a transformação do trabalho em valor, sendo que, pelo contrário, esse falso anticapitalismo vê numa coisa e na outra o lado positivo e «concreto» da relação capitalista e quer eliminar o capital «monopolizador», que seria o lado negativo, «abstrato», do capital. Este lado mau depressa passa a ser identificado com um grupo social determinado e não tarda que se descubra que a culpa é dos «judeus». O papel central desempenhado por esta demagogia durante o nazismo tornou difícil utilizá-la abertamente nos dias que correm. Mas ela continua a espalhar-se, por vezes nas ocasiões mais inesperadas [23]. Esta forma de anticapitalismo não é uma «meia verdade»; pelo contrário, ela contribui para canalizar o descontentamento social para objetivos secundários ou falsos que não colocam em perigo o modo de produção capitalista. De acordo com esta lógica, seria preciso sacrificar uns quantos especuladores e um punhado de políticos corruptos para salvar o essencial.

 O movimento Attac, bem como as organizações que se empenham na luta pelo perdão da dívida dos países do terceiro mundo, peia reforma do Banco Mundial e por outros objetivos do mesmo tipo, tomaram em alguma medida o lugar dos partidos sociais-democratas europeus a partir do momento em que estes passaram completamente para o campo neoliberal [24]. Apesar de uma certa retórica anticapitalista em algumas ocasiões, compreende-se facilmente que a perspectiva deste movimento é totalmente reformista. A única promessa que faz - aliás, irrealizável - vai no sentido de que tudo fique na mesma e de que se evite o pior. Este movimento permanece fechado dentro do universo da política tradicional, e a sua verdadeira vocação é dar voz aos «cidadãos» e à «sociedade civil». Dirige-se em permanência aos «eleitos», dando assim legitimidade à cobertura democrática da sociedade mercantil. Mesmo os críticos mais acérrimos da Organização Mundial do Comércio (OMC), como a Confederação Camponesa, afirmam que essa organização internacional, uma vez que foi criada por governos e que é constituída por Estados aderentes, «é, portanto [!], a priori, um organismo mundial legítimo»; se «rapidamente se transformou num instrumento autônomo ao serviço do comércio» é porque os Estados «se acantonaram num papel de caucionamento» [25]. Estes críticos acreditam que os «representantes dos países, designadamente no plano mais elevado que seria a ONU (a propósito da qual circulam enormes ilusões, como se uma assembleia de Estados fosse melhor do que os Estados particulares, ou como se a «cúpula» da Mafia fosse preferível a cada um dos mafiosos em particular), têm condições para estabelecer o «primado da política sobre o mercado» [26]. E nem sequer se referem a uma política que seja fruto dos seus sonhos, mas muito simplesmente à política efetivamente existente que é um dos pilares do sistema que pretensamente combatem

 Mas esta tentativa de «voltar a credibilizar a política» não consiste apenas na eterna evocação dos ideais da sociedade burguesa para os opor à realidade dessa mesma sociedade. É pior do que isso. Tal como historicamente sucedeu com a social-democracia, os porta-vozes deste movimento estão prontos para participar na gestão do que existe - o que na prática só pode significar participar na administração da urgência contínua e da repressão. Apresentam-se como uma elite de substituição, mais sólida do que a brigada dos ladrões neoliberais: «É preciso voltar a dar sentido à política; para tanto é necessário propor projetos para o futuro capazes de dar sentido a um mundo econômico e social que ao longo das últimas décadas conheceu transformações enormes» [27]. Com efeito, estão convencidos de que conhecem melhor do que os atuais governantes as verdadeiras necessidades da economia: «Na lógica do interesse devidamente compreendido, a política estritamente econômica não é necessariamente econômica - [se se leva em conta] a insegurança das pessoas e dos bens, consequentemente a polícia, etc» [28]. Prometem, caso as suas propostas obtenham realização, possibilidades de lucro superiores às atuais: «É conveniente acabar com a aceitação monocelular da mundialização, para que se possa compreender o que ela, na realidade, tem a ganhar com o florescimento dos territórios locais» [29]. Nem sequer têm a intenção de contestar as multinacionais enquanto tal, antes seriam capazes de se contentar se «as grandes firmas passarem de uma atitude de predador dos recursos locais [...] para a de cooperantes na construção desses mesmos recursos» [30].

 Este reformismo transforma-se definitivamente em inimigo de toda a emancipação social quando declara abertamente querer restabelecer nos seus direitos o trabalho, tão maltratado pelos economistas neoliberais que nada sabem «do mundo econômico e social, tal como ele efetivamente é» [31]. O movimento quer salvar a sociedade do trabalho ameaçada pelas loucuras neoliberais: «Para que o sistema econômico funcione, é preciso que os trabalhadores para ele contribuam com as suas próprias condições de produção e de reprodução, mas também as condições de funcionamento do próprio sistema econômico, a começar pela sua capacidade de acreditar na empresa, no trabalho, na necessidade do trabalho, etc» [32]. Ou seja, trabalhadores que amem apaixonadamente o trabalho, a empresa e o Estado, que os desejem democraticamente por iniciativa própria: afinal, toda a evolução da sociedade mercantil ao longo dos séculos tinha exatamente por objectivo a criação desta personagem, aliás perfeitamente conseguida na Rússia de Stalin. Assim sendo, o trabalho é naturalmente proclamado o primeiro de todos os «direitos» [33]. Mas sabe-se que o direito ao trabalho significa na prática, como foi o caso nos países do «socialismo real», o dever - pago ou não pago - de trabalhar. Tendo em vista esta solução, deixa de ser propriamente espantoso o fato de num dos seus programas o movimento Attac exigir a criação de uma «polícia de proximidade», uma «polícia de educação cívica» [34]. É essa, e há-de continuar a ser, a última palavra dos reformistas democráticos.

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JAPPE, Anselm. ''Sobre alguns falsos amigos: crítica do neoliberalismo ou crítica do capitalismo?''. In: _____. As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006, pp. 243-253.

Referências do texto:

1 Bové, Le Monde, pág. 244.
2 Bourdieu, Contre-feux, pág. 7.
3 Bourdieu, La Misére du monde, pág. 944.
4 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 37.
5 Bourdieu, La Misére du monde, págs. 219-221.
6 Como é evidente a globalização neoliberal foi posta em marcha de maneira cuidadosamente planeada e com objetivos precisos, mas essa estratégia só foi bem sucedida por ter sido capaz de extrair as consequências do processo de extinção da fase fordista-keynesiana, o qual aliás havia já começado.
7 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 45.
8 Não é surpreendente, portanto, que para Bourdieu o marxismo seja «a mais economista das tradições», e que o marxismo e o neoliberalismo sejam por ele tratados como instancias do mesmo «fatalismo econômico» fundado na «fetichização das forças produtivas» (citado em Callinicos, La Théorie sociale, pág. 73). Bourdieu escreve: «E talvez não seja por acaso que tanta gente da minha geração passou sem problemas de um fatalismo marxista para um fatalismo neoliberal: nos dois casos o economismo desresponsabiliza e desmobiliza anulando a política e impondo toda uma série de fins não discutidos, crescimento máximo, competitividade, produtividade» (Bourdieu, Contrefeux, pág. 56). Como é natural, Bourdieu tem razão em relação a um certo marxismo tradicional, mas renuncia a priori a fazer uso da crítica marxiana da economia política. Com efeito, a crítica da economia política recordar-lhe-ia que na sociedade mercantil a tirania econômica está inscrita nas estruturas do social, em vez de ser resultado de uma imposição exterior.
9 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 95.
10 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 98.
11 Bourdieu, Contre-feux, pág. 39.
12 Bourdieu, Contre-feux. pág. 38.
13 Bourdieu, Contre-feux, pág. 68.
14 Bourdieu, Contre-feux, pág. 46.
15 Bourdieu, Contre-feux, pág. 12.
16 Bourdieu, Contre-feux, pág. 14.
17. Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 10.
18 Bourdieu, Contre-feux, pág. 13.
19 Bourdieu, La Misère du monde, pág, 941.
20 Bourdieu, Contre-feux, pág. 116.
21 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 63.
22 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 107.
23 Cf. Moishe Postone, «Anti-Semitism and National Socialism», in: E. Rabinbach e J. Zipes (orgs.), Qermans and Jews since the Holocaust, Holmes & Meier, New York, 1986. Postone analisa nesse trabalho os mecanismos projetivos do anti-semitismo moderno que constrói a figura do «judeu» como incarna­ção do valor abstrato. Correspondentemente, Auschwitz seria a «fábrica» destinada a um tresloucado empreendimento de aniquilação do valor. Porém, se é necessário denunciar o anti-semitismo latente de muitas teorias que se pretendem anticapitalistas, é preciso opormo-nos igualmente àqueles que denunciam como anti-semita toda e qualquer crítica do capitalismo. A crítica do valor conduz precisamente a uma crítica dos mecanismos estruturais do capitalismo que não atribui os respectivos males às ações de grupos humanos particulares.
24 Uma ideia muito popular neste contexto é a de «comércio equitativo», definido como o fato de «os bens serem pagos pelo preço real da sua produção» (José Bové, Le Monde, pág. 255). Porém, no interior da lógica do valor - que já está tacitamente pressuposta neste discurso -, as trocas comerciais entre os países ricos e os países pobres não são simplesmente «injustas». É precisamente o seu caráter equitativo, designadamente o fato de o parâmetro ser o mesmo para o conjunto dos diferentes agentes econômicos, que oprime os países pobres. Com efeito, no mercado mundial, os países não recebem a massa de valor que corresponde ao trabalho efetivamente empregue, mas sim a massa de valor que corresponde à sua produtividade. São precisamente os países e as empresas que utilizam menos trabalho - porque a sua produtividade é mais elevada - que podem apropriar-se na concorrência de uma parte maior do valor global. A partir do momento em que se aceitou a produção abstrata de riqueza, é absurdo reclamar uma distribuição mais «justa» dessa riqueza abstrata: só a riqueza concreta pode ser distribuída segundo um critério de justiça, ou seja, segundo princípios que a sociedade estabeleça de forma consciente. O valor, como dissemos já, tem necessariamente que se tornar mais-valia; de outro modo cessaria igualmente toda a produção de valor.
25 José Bové, Le Monde, pág. 263.
26 José Bové, Le Monde, pág. 274.
27 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 44.
28 Bourdieu, Contre-feux, pág. 45.
29 Attac, Agir local, pág. 11.
30 Attac, Agir local, pág. 32.
31 Bourdieu, Contre-feux, pág. 115. Com efeito, esses economistas ingratos não compreendem que são «as reservas de capital social que protegem toda uma parte da ordem social presente de cair na anomia» (Contre-feux, pág. 117); noutro local Bourdieu fala dos «valores de serviço obscuro em benefício do interesse colectivo por parte do funcionário e do militante» (Contre-feux, pág. 12).
32 Bourdieu, Contre-feux, pág. 101.
33 Bourdieu, Contre-feux, pág. 30.
34 Attac, Agir local, pág. 104.

Bibliografia usada no texto:

Attac, Agir global, penser global. Les citoyens face à la mondialisation, Paris, Éditions Mille et Une Nuits, 2001.
Bourdieu, Pierre, Contre-feux. Propos pour servir à la résistance contre l'invasion néolibérale, Paris, Éditions Raisons d’Agir, 1998. Trad. port.: Contrafogos, Oeiras, Celta, 1998.
Bourdieu, Pierre, Contre-feux 2. Pour un mouvement social européen, Paris, Éditions Raison dAgir, 2001. Trad. port.: Contrafogos 2. Por um movimento social europeu, Oeiras, Celta, 2001.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Crise fiscal ou financeira?


Por Nildo Ouriques para o site do IELA - Instituto de Estudos Latino-Americanos



A classe dominante brasileira produziu um consenso perigoso para o país: segundo afirmam os principais jornais, TVs, rádios, deputados e senadores (dos principais partidos), professores de economia e governadores, o país vive uma grave crise fiscal. A produção ideológica deste consenso se recusa a ver a causa fundamental de todos nossos males atuais: a imensa crise financeira do Estado, produto do mega-endividamento público (interno e externo) organizado desde 1994, quando entrou em vigor o Plano Real.

Em junho de 1994, quando o ex-presidente Itamar Franco anunciou o Plano Real, a dívida interna não superava os 64 bilhões de reais. Fernando Henrique Cardoso venceu as eleições naquele ano e, ao término de seu segundo mandato, a dívida alcançou 720 bilhões de reais. A multiplicação da dívida não tem segredo: os economistas decidiram controlar a inflação com a brusca elevação da taxa de juros em patamares superiores aos 50%!

Nas duas últimas décadas, o Brasil foi quase sempre o campeão mundial de juros, alimentando inédita república rentista, onde todas as frações de capitais (multinacionais, banqueiros, latifundiários, comerciantes e fundos de pensão) alimentam-se à custa da dívida pública. O governo Lula (2003-2010) dobrou a aposta, razão pela qual a dívida chegou a 1,5 trilhão de reais. O governo petista de Dilma Rousseff não amoleceu na generosidade ao rentismo: a dívida alcançou a estratosférica cifra de 3 trilhões de reais.

Qual a consequência mais importante do fenômeno? O governo destina a metade do orçamento público, ou seja, quase a metade de tudo que arrecada em impostos para o pagamento dos juros da dívida que, não obstante, segue crescendo em ritmo vertiginoso. Em 2014, por exemplo, o governo destinou 45,11% de toda a arrecadação fiscal para o pagamento de juros e amortização parcial da dívida. É como se o país funcionasse no ritmo de uma economia de guerra, tal como Nicarágua nos anos 1980. No entanto, a dívida segue crescendo todos os meses, alimentando o rentismo dos detentores dos títulos da dívida pública.

Os números deixam claro que não sofremos uma crise fiscal, ou seja, originada pelo suposto de que o “governo arrecada muito e gasta pior”. De fato, existe superávit fiscal se excetuamos da conta o gasto financeiro do governo com os juros da dívida. A constituição de 1988 em vigor prevê a auditoria da dívida, mas a maioria parlamentar composta pelos dois principais partidos do país (o governista PT e o oposicionista PSDB) impede qualquer movimento nesta direção.

Assim, os partidos se digladiam em questões menores (redução da maioridade penal, sistema de cotas etc.), enquanto mantém sólida aliança nas questões econômicas de fundo. Da mesma forma, qualquer tentativa séria de reformar o sistema político termina em pequenas alterações no sistema eleitoral, que, de fato, são incapazes de outorgar representatividade ao sistema político, cada dia mais distante das maiorias populares e ainda do eleitor médio, a caricatura moderna do cidadão.

Há que observar o essencial: o consórcio ‘petucano’ maneja bem a situação política. A despeito das acusações mútuas sobre corrupção e pequenas desavenças no Congresso, a verdade é que, no terreno da economia e das questões centrais, tanto o PT quanto o PSDB estão basicamente de acordo. É o sistema ‘petucano’, mistura de petistas e tucanos que, para quantidade expressiva de eleitores, não possuem diferença alguma, razão pela qual o abstencionismo, o voto nulo e o branco, alcançou 37 milhões de pessoas no segundo turno de uma eleição considerada como “a mais disputada da democracia brasileira”. Trata-se de cifra considerável quando levamos em conta que a presidente reeleita levou 54 milhões e o senador Aécio Neves, candidato derrotado, chegou aos 51 milhões.

Neste contexto, mais importante que a existência dos programas sociais do petismo, é a continuidade desta regra de ouro da estabilidade monetária no país: o pagamento religioso dos juros do sistema de dívida. É verdade que as últimas medidas votadas no parlamento tiram direitos dos trabalhadores e, também neste caso, podemos ver como petistas e tucanos votam conjuntamente nas questões centrais. Ambos possuem o mesmo enfoque e discurso público: o país “precisa” buscar o superávit fiscal primário para honrar o custo financeiro da dívida interna e os custos adicionais da dívida externa.

No debate público, este assunto medular é, sempre, ocultado do grande público. A imprensa, exibindo inabalável compromisso com a liberdade de imprensa, atua como se estivesse, de fato, submetida à ordem unida que podemos ver nos desfiles militares. Em consequência, simplesmente ignoram o fenômeno como se não existisse. Ninguém escreve ou debate o mega-endividamento público do Estado, que garante lucros extraordinários para todas as frações de capitais e destina aos setores mais empobrecidos da população míseros 0,47% do PIB para o programa Bolsa Família, considerado o principal programa social do governo. Enfim, enquanto o governo gasta quase 10% do PIB com o aumento anual da dívida, não reserva sequer 0,5% para o programa social que tem sido considerado o mais importante da história do país.

Portanto, não podem existir dúvidas sobre o futuro imediato. As ilusões liberais segundo as quais a “questão social” estaria sendo resolvida por políticas sociais chegaram ao fim. A abissal desigualdade de renda – produto da super-exploração da força de trabalho – não pode ser resolvida sem tocar na propriedade e no poder dos ricos. O sistema ‘petucano’ vivia comodamente mantendo os pobres na situação de pobreza sem matá-los de fome.

As migalhas orçamentárias (0,47% do PIB) constituíam caridade católica e passavam a agradável impressão para os ricos e poderosos de que era possível enfrentar a violência e miséria de milhões de brasileiros com programas que rapidamente encontraram o apoio dos dois principais partidos do país. A crise econômica, derivada da ação corrosiva e silenciosa dos juros da dívida e da queda dos preços dos produtos agrícolas e minerais exportados pelo Brasil, limitou drasticamente as possibilidades do consenso e, em consequência, o sistema ‘petucano’ concordou que o ajuste era mesmo inevitável.

Qual será o resultado da política econômica aplicada no país? Será possível sair da crise econômica e política? É muito pouco provável. As medidas orientadas pelo Fundo Monetário Internacional – incapazes de tirar os pequenos países periféricos da Europa da violência da crise financeira – tampouco funcionarão na periferia capitalista latino-americana. A quantidade de pobres e miseráveis já voltou a crescer e não existe qualquer programa de privatização – estradas, portos, aeroportos etc. – capaz de elevar a taxa de investimento na economia, pois a elevação contínua da taxa de juros torna sempre mais atrativo o investimento rentista ao produtivo.


Neste ano, há clara redução do setor industrial e o sustento de taxas de crescimento do PIB próximas ao zero somente é possível porque a agricultura – turbinada com agrotóxicos e destinada à exportação – segue crescendo. Em resumo, o país sofre grave regressão industrial e fortalece sua posição na divisão internacional do trabalho como mero exportador de produtos agrícolas e minerais. No entanto, os acadêmicos, o jornalismo dominante e os políticos e empresários exitosos seguirão afirmando seu otimismo no país enquanto o Brasil aprofunda as características essenciais de qualquer país subdesenvolvido e dependente.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A vida em outro planeta

Do blog de Luiz Lima:

 Um álbum da vida no Estado proletário. Há, sem dúvida, as imagens de filas para comprar pão e carne, tão caras aos olhos dos anticomunistas militantes (talvez porque nós nunca tenhamos dado a resposta certa: só havia fila porque o povo tinha dinheiro e o que comprar...). Há um belíssimo exemplo do internacionalismo proletário -- que falta anda fazendo, não? -- no apoio ao povo vietnamita em sua luta pela libertação. Há uma foto emblemática de Leonid Brejnev, o burocrata quintessencial, incapaz de compreender que a URSS teria, mais uma vez, de se reinventar para fazer frente aos desafios de (mais uma) ofensiva do capital. Há, ainda, a dolorosa imagem dos veteranos de guerra, em muletas, penando para levar adiante suas vidas nos corpos mutilados pelo agressor fascista. Há o estudante em seu quarto, inspirado, quem sabe, pelo olhar vigilante de Lenin, na parede. E há crianças. Muitas crianças, às quais se ensinava que o futuro - que nunca chegou - a elas, e aos pequenos de todo o mundo, pertenceria. Um futuro em que a Humanidade seria enfim única -- e livre.

 As fotos são todas familiares -- e ao mesmo tempo parecem irreconhecíveis. São ecos de um mundo distante, não no tempo nem no espaço -- mas no espírito.



terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O movimento LGBT não deve ser um ''movimento por liberdade sexual''

''She keeps me warm'', de Wes Nunes. Até onde a ideologia do individualismo e do hedonismo realmente corresponde às necessidades afetivas, emocionais, sociais e psicológicas dos LGBTs?


''Todos contra a homofobia, a lesbofobia e a transfobia'' é o maior grupo sobre o tema LGBT na comunidade lusófona do facebook. Tempos atrás, um membro publicou lá um texto do Coletivo LGBT Comunista - SP que, apresentando a organização, tratava da relação entre LGBTs e a dinâmica de uma economia capitalista -- mais precisamente a questão do exército industrial de reserva e a exploração agressiva da força de trabalho de LGBTs (eu mesmo escrevi um texto sobre isso; você pode conferir aqui). Alguns comentadores, bem... comentaram furiosamente, com palavras de ordem contra os terríveis comunistas -- os quais deveriam ser mantidos bem longe ''do nosso movimento por liberdade sexual''. Eu discuti com um deles. E fui bloqueado.

 O que não foi bloqueado, porém, é a lembrança disso, a tal ''liberdade sexual'', na qual consistiria a própria essência do movimento LGBT. E isso provavelmente se deu porque é exatamente sob a bandeira dela que se proclamam, por parte de inúmeros heterossexuais cisgêneros, milhares de mensagens de ''apoio'' à comunidade gay (e as lésbicas? e os(as) bissexuais? e as pessoas trans?) na forma de um ''cada um faz o que quiser com seu c*''. Indivíduos desprezíveis como Marco Feliciano e Silas Malafaia, conhecidos por sua perseguição e preconceito notável contra LGBTs, são chamados por esses paladinos do direito de se ''fazer o que quiser com o seu...'' de ''fiscalizadores de...'' -- às vezes até mesmo pelos próprios LGBTs. O negócio, talvez essa nossa vanguarda do progressismo e da liberalidade comportamental não consiga observar, é que o problema que existe para as pessoas LGBTs (insisto: ''problema que existe para as pessoas LGBTs'', não ''das pessoas LGBTs''; não se trata de algo relacionado a uma essência imutável da ontologia LGBT, mas sim de algo referente à sua socialização) é muito mais profundo, delicado e doloroso.

 No mínimo já há 3 décadas cada um pode ''fazer (quase tudo) o que quiser com seu...'' no Brasil; a perseguição e o extermínio de LGBTs não é política de Estado e membros das forças de segurança (assim como civis comuns) que sejam descobertos tendo essa atitude são -- se o caso for resolvido -- punidos. Sobrevive, porém, a violência física contra LGBTs, e sobrevive porque se mantém a sua base: a violência simbólica. Tal coisa nada mais é que a significação negativa (a dano, portanto, dos próprios LGBTs, embora não só deles) das práticas e outros critérios que definem uma determinada identidade.

 Pensemos no ensino fundamental II, ou no ensino médio. Quantas e quantas vezes você chamou um colega de ''viado'' ou ''viadinho'' pra irritar, ou da mesma forma íntima como se chama um amigo de ''filho da puta'' ou coisa que o valha? Eu posso lembrar de incontáveis momentos nos quais tive essa atitude. Quantas vezes, sugerindo ou ordenando a alguém que deixasse de fazer isso ou aquilo, você se referiu àquilo como ''coisa de gay''? Quão comum e corriqueiro é o hábito de mandar alguém ir ''tomar no...'' como forma de xingamento, de ofensa à honra (e das mais sérias)?

 Esses costumes, que nos parecem tão naturais, e nos dois primeiros casos até mesmo inofensivos, são uma terrível forma de violência simbólica contra milhões de LGBTs Brasil e mundo afora. O que se sente ao perceber que aquilo que te caracteriza é sinônimo de piada, de nojento, de desonra -- enfim, do que não se deve ser nem fazer? Não especulemos: um artigo outrora publicado aqui traz dados vitais sobre isso (embora focado em jovens, e sobretudo estudantes).

 Essa violência simbólica, essa significação negativa da(s) identidade(s) LGBT a dano dos próprios LGBTs inclui ainda formas muito mais terríveis de discriminação e de sofrimento. LGBTs, como quaisquer outros seres humanos, têm família. Aprendem a amar aqueles que lhes criaram e com quem conviveram. Depositam neles suas confianças e contam com eles como fonte de estabilidade, de carinho, de conforto e de ajuda. E entretanto, no despertar da orientação sexual (se estivermos falando de LGBs), descobrem ser coisas que essas pessoas detestam, repugnam, condenam. Enfrentam o pequeno drama da heterossexualidade presumida [1] até os níveis mais drásticos da invenção de todo tipo de desculpa ou artifício para encobrir suas identidades, seus desejos e práticas. Quando chegam ao ponto de não conseguir mais ocultar quem são, muitos veem seus mundos desabarem, na forma de uma rejeição monstruosa de suas famílias. Foi o caso de um rapaz de minha cidade, Teresina-PI, que se suicidou jogando-se do edifício em que morava. Estudava no melhor colégio da cidade (um dos melhores do Brasil), era rico e talvez bem-aparentado, mas era gay. Já não é coisa alguma a não ser uma memória e um número numa triste estatística.

 LGBTs também têm, como quaisquer outros seres humanos, de trabalhar para comer, beber, vestir-se, ter um teto etc., e assim sobreviver. Mas que dignidade de trabalho há para LGBTs em nossa sociedade? Depois de um ensino fundamental e médio difíceis, cheios de pressões e complicações extras, não raro tem de enfrentar novos ocultamentos da própria orientação sexual (no caso de LGBs ''discretos''), trabalhos mal-remunerados e/ou relativamente estigmatizados (caso de LGBs que desviam mais das normas de gênero, como os vários gays afeminados e lésbicas masculinas que têm de ir para profissões como cabeleireiro ou motorista não porque queiram ou gostem, mas pela falta de oportunidades melhores), ou mesmo (no caso de muitas, senão quase todas as mulheres trans) a ''profissão'' mais estigmatizada, fetichizada e precarizada de todas: a prostituição.

 O movimento LGBT, ao menos dentro de nossas fronteiras, não tem por que ter como foco ou objetivo uma ''liberdade sexual'' abstrata, mas sim o combate à violência simbólica de que são vítimas homossexuais, bissexuais e transgêneros todos os dias neste país -- violência esta que se transforma em agressão física, em exclusão afetiva, em precarização laboral e em todo um conjunto de fatores que são fonte de dor e sofrimento para milhões de LGBTs. Este duro combate, que só poderá ser realizado com o auxílio da maioria cisgênera e heterossexual de nossa população e que precisará pôr o Estado em ação militante, precisará da conscientização dessa mesma maioria e de certos LGBTs, que, infectados pela ideologia liberal-burguesa, só conseguem enxergar uma vontade hedonista de fazer sexo sem maiores reclamações alheias num grupo de pessoas que, heterogêneas e dotadas, cada uma, de sua própria história e condições particulares, anseiam serem enfim reconhecidas em plenitude como seres humanos.

 Finalizo esse texto com as palavras de um amigo, que por acaso também concluem uma nota do mesmo sobre o caso da frase homofóbica de Levy Fidélix nos últimos debates eleitorais para a presidência e como aqueles que se veem como ''pró-gays'' o enxergaram:


Um homossexual é uma pessoa como você. Ele tem sonhos, ambições, gostos e desgostos. O que ele gosta em sua prática sexual é tão estranho como o que a maioria das pessoas gostaria de fazer ou não. Mas o mais importante: assim como você, ele ama. E assim como você, ele gostaria de ter o seu direito de amar resguardado e protegido. Ele gostaria que a sociedade celebrasse a sua união e o seu amor. Porque ele, assim como você, pensa que o amor move montanhas, que esse é um sentimento nobre e que deve ser sempre cultivado. Melhor do que o termo "fiscais de bunda" ou "fiscais de cu" para quem é anti-gay, seria "fiscais de coração". Porque eu já conheci muitos homossexuais que não gostam de sexo anal. Mas eu nunca conheci um que nunca amou na vida.




 [1] Dois ou três anos atrás, uma grande amiga me disse que estava irritada com a forma pela qual a Rede Globo estava ''forçando'', ''empurrando'' a homossexualidade sobre os telespectadores. À época eu só ri, não me veio à mente sequer o comentário de que, para começar, ninguém é ou era obrigado a assistir as novelas da emissora ou os seus trechos em que apareciam os personagens homossexuais. Hoje eu talvez pudesse perguntar: ''E quanto aos e às homossexuais, muitos deles até boa parte de suas vidas só conhecendo pessoas heterossexuais, sendo vistos como heterossexuais e socializados de forma a se adequar à prática erótico-afetiva heterossexual? Também eles não são vítimas de uma coerção compulsória?''

sábado, 28 de novembro de 2015

A ciência econômica num mundo repleto

O autor do texto abaixo, Herman E. Daily*, não é marxista, mas tem uma obra relevante no campo da economia ecológica e sustentável.


A economia global é hoje tão vasta que a sociedade certamente já não pode pretender que ela opera dentro de um ecossistema ilimitado. Desenvolver uma economia que possa ser sustentável dentro da biosfera finita exige novos modos de pensar. 

O crescimento é encarado de um modo geral como a panaceia para todos os grandes males econômicos do mundo moderno. Pobreza? Basta fazer com que a economia cresça (isto é, aumente a produção de bens e serviço e estimule os gastos do consumidor) e observe a riqueza a gotejar. Não tente redistribuir a riqueza dos ricos para os pobres, porque isto arrefece o crescimento. Desemprego? Aumente a procura por bens e serviços através do rebaixamento das taxas de juro sobre empréstimos e do estímulo ao investimento, o qual conduz a mais empregos e a mais crescimento. Super população? Basta promover o crescimento econômico e confiar na resultante transição demográfica para reduzir as taxas de nascimento, tal como o fizeram os países industriais durante o século XX. Degradação ambiental? Confie na curva ambiental de Kuznets, uma relação empírica tendo em vista mostra que, prosseguindo o crescimento do produto interno bruto (PIB), a poluição a princípio aumenta mas a seguir atinge um máximo e declina. 

Confiar no crescimento desta maneira poderia ser ótimo se a economia global existisse num vazio, mas isto não acontece. Ela é, antes, um subsistema da biosfera finita que a suporta. Quando a expansão da economia ultrapassa demasiado os limites do ecossistema que a rodeia, começaremos a sacrificar o capital natural (tais como a pesca, os minerais e os combustíveis fósseis) que é mais valioso do que o capital fabricado pelo homem (tais como estradas, fábricas e aparelhos) acrescentado pelo crescimento. Teremos então aquilo a que chamo crescimento deseconômico, a produzir "males" mais rapidamente do que bens — tornando-nos mais pobres e não mais ricos. Uma vez ultrapassada a escala ótima, o crescimento torna-se estúpido no curto prazo e de manutenção impossível no longo prazo. A evidência sugere que os EUA podem já ter entrado na fase do crescimento deseconômico 

Não é fácil reconhecer e evitar o crescimento deseconômico. Um dos problemas é que há beneficiários dele e estes não querem mudar. Além disso, as contabilidades nacionais não registam explicitamente os custos de crescimento, por isso não os vemos claramente. A humanidade precisa fazer a transição para uma economia sustentável — que respeite os limites físicos inerentes ao ecossistema mundial e garanta que este continue a funcionar no futuro. Se não fizermos tal transição, poderemos ser punidos não apenas com crescimento deseconômico, mas com uma catástrofe ecológica que reduziria sensivelmente nosso padrão de vida. 

A maioria dos economistas contemporâneos discorda de que alguns países caminhem rumo à deseconomia. Muitos ignoram a questão da sustentabilidade e confiam que, como já fomos tão longe com crescimento, poderemos continuar assim para todo o sempre. A preocupação com a sustentabilidade, porém, tem longa história, remontando a textos de John Stuart Mill na década de 1840. A abordagem contemporânea baseia-se em estudos realizados nas décadas de 1960 e 1970 por Kenneth Boulding, Ernst Schumacher e Nicholas Georgescu-Roegen . Essa tradição é continuada pelos denominados economistas ecológicos, como eu, e em certa medida por subdivisões da corrente econômica principal chamada economia de recursos e ambiental. De um modo geral, contudo, a tendência dominante, os economistas neoclássicos, considera a sustentabilidade um modismo e defende o crescimento. 

Mas há factos evidentes e incontestáveis: a biosfera é finita, não cresce, é fechada (com excepção do constante afluxo de energia solar) e obrigada a funcionar de acordo com as leis da termodinâmica. Qualquer subsistema, como a economia, em algum momento deverá necessariamente cessar de crescer e adaptar-se a um equilíbrio dinâmico, algo semelhante a um estado estacionário. As taxas de nascimento devem ser iguais às de mortalidade, e as de produção de mercadorias devem igualar as de obsolescência. 

Durante a minha vida (67 anos), a população humana triplicou, e o número de objetos fabricados cresceu muito mais. O total de energia e material necessário para manter e substituir os artefatos humanos na Terra também aumentou enormemente. À medida que o mundo torna-se repleto com seres humanos e com os seus objetos, esvazia-se daquilo que continha antes. Para enfrentar esse novo padrão de escassez os cientistas precisaram desenvolver uma economia de "mundo cheio" para substituir a tradicional, de "mundo vazio". 

Na microeconomia, as pessoas e as empresas percebem claramente quando devem cessar a expansão de uma atividade. Quando se expande atinge um ponto em que ocupa o lugar de outros empreendimentos, e essa substituição é contabilizada como custo. As pessoas param no ponto em que o custo marginal é igualado pelo benefício marginal. Ou seja, não vale a pena gastar um dólar a mais num gelado quando esse dá menos satisfação do que o equivalente a um dólar de outra coisa. A macroeconomia, porém, não dispõe de uma regra análoga que avise "a hora de parar". 

Como a manutenção de uma economia sustentável repousa numa enorme mudança racional e emocional por parte de técnicos, políticos e eleitores, poderíamos ser tentados a afirmar que tal projeto é impossível. Mas a alternativa a uma economia sustentável, que mantenha permanente crescimento, é biofisicamente impossível. Ao escolher entre enfrentar uma impossibilidade política e uma impossibilidade biofísica, eu escolheria a primeira opção. 

SUSTENTAR O QUÊ? 

Até agora descrevi a "economia sustentável", apenas em termos gerais, como aquela capaz de ser mantida indefinidamente em face de limites biofísicos. Para por em prática esse tipo de economia precisamos especificar exatamente o que deve ser sustentado de um ano para o outro. Os economistas têm discutido cinco grandezas possíveis: PIB, "utilidade", rendimento, capital natural e capital total (a soma de capital natural e capital produzido pelo homem). 

Algumas pessoas julgam que uma economia sustentável deveria manter a taxa de crescimento do PIB. Segundo essa visão, a economia sustentável é equivalente à de crescimento, e isso torna a colocar a questão de o crescimento sustentado ser biofisicamente possível. 

Tentar definir sustentabilidade em termos de taxa constante de PIB é até mesmo problemático. Isso acontece porque o PIB confunde melhoria qualitativa (desenvolvimento) com incremento quantitativo (crescimento). A economia sustentável deve, em algum ponto, parar de crescer, embora isso não signifique, necessariamente, parar de se desenvolver. Não há razão para limitar a melhoria qualitativa no que se refere ao projeto de produtos, o que pode fazer crescer o PIB sem incrementar a quantidade de recursos utilizados. A principal ideia por trás da sustentabilidade é mudar a trajetória de progresso — de crescimento não sustentável para desenvolvimento, presumivelmente sustentável. 

A possibilidade seguinte a ser sustentada é a "utilidade". Ela refere-se ao nível de "satisfação de necessidades", ou nível de bem-estar da população. Teóricos neoclássicos defendem a definição de sustentabilidade como a manutenção (ou incremento) de utilidade no decurso de gerações. Mas essa definição é inútil na prática. A utilidade é uma experiência e não uma coisa. Não há unidade de medida para utilidade, e ela não pode ser legada de uma geração a outra. 

Recursos naturais, em contraste, são coisas: podem ser medidos e transferidos. Em especial, pode-se medir seu rendimento, ou seja, a taxa na qual a economia os utiliza, retirando-os de fontes de baixa entropia no ecossistema, transformando-os em produtos úteis e, por fim, descartando-os de volta ao ambiente como resíduos de alta entropia. Sustentabilidade pode ser definida em termos de rendimento pela capacidade de o meio ambiente suprir cada recurso natural e absorver os produtos finais descartados. 

Para os economistas, recursos são uma forma de capital, ou riqueza, abrangendo desde stocks de matérias-primas a produtos acabados e fábricas. Existem dois grandes tipos de capital: natural e artificial. A maioria dos economistas neoclássicos acredita que o capital criado pelo homem é um bom substituto do natural e, portanto, defendem a manutenção da soma dos dois, abordagem denominada sustentabilidade fraca. 

A maioria dos economistas ecológicos, eu inclusive, acredita que capital natural e artificial são, frequentemente, mais complementos do que substitutos, e que o natural deveria ser mantido separado, porque tornou-se fator limitante. Essa abordagem é denominada sustentabilidade forte. 

Por exemplo, a quantidade anual de peixe capturado é atualmente limitada pelo capital natural das populações do mar, e não mais pelo capital artificial representado pelos barcos pesqueiros. A sustentabilidade fraca sugeriria que a escassez de peixes poderia ser enfrentada com a construção de mais barcos. A sustentabilidade forte conclui pela inutilidade de mais pesqueiros, se há escassez de peixes, e insiste que a pesca deve ser limitada para garantir a manutenção de populações adequadas para as gerações futuras. 

A política mais adequada à manutenção do capital natural é o sistema do limitar-e-negociar (cap-and-trade): define-se um limite para o total de rendimento permitido, conforme a capacidade do meio ambiente de regenerar recursos ou absorver poluição. O direito de esgotar fontes como os oceanos ou de poluir "dissipadores", como a atmosfera, deixa de ser um bem gratuito, passando a ser um ativo escasso que pode ser negociado — comprado e vendido em um mercado livre —, após decidir a quem pertencem inicialmente. Entre os sistemas cap-and-trade já implementados está o criado pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) que institui o comércio do direito de poluir com dióxido de enxofre (que causa chuva ácida). Outro, na Nova Zelândia, estabelece a redução da pesca excessiva mediante a definição de cotas transferíveis. 

O sistema "limitar-e-negociar" é um exemplo dos papéis distintos de livres mercados e de políticas governamentais. Tradicionalmente, a teoria econômica tratou mais da distribuição (de recursos escassos entre usos concorrentes). Não tratou da questão da escala (a dimensão física da economia em relação ao ecossistema). Mercados que funcionam de forma adequada distribuem recursos eficientemente, mas não podem determinar a escala sustentável. Isso pode ser feito apenas mediante políticas governamentais. 

AJUSTES NECESSÁRIOS 

A transição para uma economia sustentável exigirá muitos ajustes na política econômica. Algumas dessas mudanças já são evidentes. O sistema de segurança social americano, por exemplo, encontra dificuldades com a transição demográfica para uma média populacional mais idosa. O ajuste exige impostos mais altos, aumento na idade de aposentadoria ou pensões menores. O sistema não está propriamente em crise, mas são necessários uns poucos ajustes para que se sustente. 

Vida útil de produtos. Uma economia sustentável requer uma "transição demográfica" não apenas de pessoas, mas também de bens — as taxas de produção deveriam ser iguais às taxas de depreciação, em níveis elevados ou baixos. Taxas mais baixas são melhores, tanto em termos de durabilidade dos bens quanto para ter sustentabilidade. Produtos de vida mais longa podem ser substituídos mais lentamente, com uso menor de recursos. A transição é análoga a um evento de sucessão ecológica. 

Ecossistemas jovens, em crescimento, têm tendência a maximizar a manutenção da eficiência do crescimento, medida em produção por unidade de biomassa existente. Nos maduros, a ênfase desloca-se para a maximização da eficiência da manutenção, ou por quanto da biomassa existente é mantida por unidade de nova produção — o inverso de eficiência produtiva. Precisamos de um ajuste similar para viabilizar a sustentabilidade. Uma adaptação nessa direção são os contratos de serviços de bens alugados — desde fotocopiadoras a tapetes. Nesse cenário, o fabricante permanece como proprietário, presta manutenção, recolhe e recicla o produto no fim de sua vida útil. 

Crescimento do PIB. Devido a melhoras qualitativas e ao aumento de eficiência, o PIB pode continuar a crescer, mesmo com rendimento constante. Os ambientalistas ficariam satisfeitos porque a quantidade processada não aumentaria; os economistas ficariam felizes porque o PIB aumentaria. Essa forma de "crescimento" — na realidade, desenvolvimento —, conforme definido anteriormente, deveria ser incrementada ao máximo, mas há vários limites. Sectores considerados mais qualitativos, como o de tecnologia da informação, quando examinados mais de perto, revelam uma substancial base física. Por outro lado, para beneficiar os pobres, a expansão deve consistir em bens que lhes sejam necessários — vestuário, abrigo, comida, e não 10 mil receitas na Internet. Mesmo os ricos gastam a maior parte do seu rendimento em automóveis, casas e viagens, mais do que em bens intangíveis. 

Sector financeiro. Em uma economia sustentável, a ausência de crescimento muito provavelmente faria os juros caírem. É possível que o sector financeiro encolhesse, porque juros e taxas de crescimento baixos não poderiam sustentar a enorme superestrutura de transações financeiras — baseada sobretudo em endividamento e expectativas de crescimento econômico futuro — apoiada precariamente sobre a economia física. Numa economia sustentável, investimentos seriam feitos principalmente para substituição e melhoria qualitativa (não para especulação sobre a expansão quantitativa) e ocorreriam com menos frequência. 

Comércio. O livre comércio não seria viável em um mundo contendo simultaneamente economias sustentáveis e insustentáveis, porque as primeiras com certeza contabilizariam muitos custos relativos ao meio ambiente e ao futuro, que seriam ignorados naquelas em crescimento. Economias insustentáveis, nesse caso, poderiam praticar preços inferiores aos das suas rivais sustentáveis, não por serem mais eficientes, mas apenas por não pagarem o custo da sustentabilidade. 

Poderia existir um comércio regulamentado para compensar essas diferenças, assim como um comércio livre entre países igualmente comprometidos com a sustentabilidade. Considera-se que tais restrições são onerosas ao comércio, mas na verdade ele já é bastante regulamentado de maneira prejudicial ao meio. 

Impostos. Que tipo de sistema tributário seria o mais adequado? Um governo preocupado com o uso mais eficiente dos recursos naturais mudaria o alvo de seus impostos. Em vez de taxar o rendimento auferido por trabalhadores e empresas (o valor acrescentado), tributaria o fluxo produtivo (aquele ao qual é adicionado valor), de preferência no ponto em que os recursos são apropriados da biosfera, o ponto de "extração" da Natureza. 

Muitos países aplicam impostos de "extração". Esse tipo induz um uso mais eficiente dos recursos, tanto na produção como no consumo, e tem monitoração e cobrança relativamente fáceis. Parece razoável aplicar impostos ao que queremos evitar (esgotamento de recursos e poluição) e deixar de aplicar ao que mais desejamos (rendimento). 

A regressividade desse imposto sobre o consumo (os pobres pagariam uma porcentagem maior do seu rendimento do que os ricos) poderia ser compensada como gasto progressivo do imposto recolhido (isto é, para ajudar os pobres), instituindo um imposto sobre artigos de luxo ou cobrando mais impostos sobre rendimentos elevadas. 

Emprego. É possível manter o pleno emprego? Essa é uma pergunta difícil, e a resposta, provavelmente será não. Entretanto, por uma questão de justiça, também devemos questionar se o pleno emprego é possível numa economia de crescimento movida pela livre comércio, exportação de serviços, imigração facilitada de mão-de-obra barata e adoção de tecnologias que eliminam empregos. Em uma economia sustentável, manutenção e consertos tornam-se mais importantes. Como exigem trabalho mais intenso e são relativamente protegidos de terceirização estrangeira, esses serviços poderão criar mais empregos. 

Entretanto, será necessário repensar a maneira como as pessoas obtêm rendimento. Se a automação e a exportação de postos de trabalho resultar numa maior parte do produto total agregado ao capital (ou seja, empresas e seus donos a lucrarem mais com o produto), e portanto menor para os trabalhadores, então o princípio da distribuição do rendimento através do emprego torna-se menos justificável. Uma alternativa prática poderia ser a participação mais ampla na propriedade das empresas, para que os indivíduos obtivessem rendimento através da participação proprietária nas empresas, em vez de obtê-la mediante empregos a tempo inteiro. 

Felicidade. Uma das forças motrizes do crescimento insustentável tem sido o axioma da insaciabilidade: as pessoas serão sempre mais felizes consumindo mais. Entretanto, pesquisas de economistas experimentais e psicólogos levam à rejeição desse axioma. Cada vez mais evidências, como o trabalho de 1990 de Richard A. Easterlin, da Universidade do Sul da Califórnia, sugerem que o crescimento nem sempre incrementa a felicidade (nem a utilidade ou o bem-estar). Ao invés disso, a correlação entre o rendimento absoluto e a felicidade é válida apenas até um limiar de "suficiência"; além desse ponto, apenas o status relativo influencia a auto-percepção de felicidade. 

O crescimento não é capaz de incrementar o rendimento relativo de todos. As pessoas que conseguirem isso em consequência de crescimento adicional seriam compensadas por outras cujo rendimento relativo cairia. Além disso, se o rendimento de todos aumentasse proporcionalmente, não haveria modificação do rendimento relativo e ninguém se sentiria mais feliz. O crescimento torna-se como uma corrida armamentista em que os dois lados vêem os seus ganhos cancelarem-se mutuamente. 

É muito provável que os países ricos tenham atingido o "limite de futilidade", ponto além do qual o crescimento não incrementa a felicidade. Isso não significa que a sociedade de consumo tenha morrido — apenas que o aumento do consumo além do limiar de suficiência, seja ele fomentado pela publicidade agressiva ou por uma compulsão inata por compras, simplesmente não está a tornar as pessoas mais felizes, segundo a sua própria avaliação. 

Um corolário acidental é que a sustentabilidade poderá custar pouco em termos de felicidade para as sociedades que atingiram a suficiência. A "impossibilidade política" de uma economia sustentável pode ser menos impossível do que parecia. 

Se não fizermos os ajustes necessários para atingir uma economia sustentável, condenaremos nossos descendentes a uma situação infeliz em 2050. O mundo tornar-se-á cada vez mais poluído e mais despojado de peixes, combustíveis fósseis e de outros recursos naturais. Durante algum tempo, essas perdas poderão continuar a ser mascaradas pela enganosa contabilidade baseada no PIB, que mede o consumo de recursos como se fosse rendimento. Mas, em determinado momento, o desastre manifestar-se-á. Será difícil evitar essa calamidade. Quanto mais cedo começarmos a agir, melhor. 

ENCRUZILHADA ECONÔMICA 

O problema: O status quo econômico não poderá ser mantido por muito tempo. Se não forem efetuadas mudanças radicais, correremos o risco de perda de bem-estar e de possível catástrofe ecológica. 

O plano: A economia precisa ser sustentada no longo prazo e obedecer a três regras: 
1. Limitar o uso de todos os recursos a fim de que os resíduos possam ser absorvidos pelo ecossistema. 
2. Explorar recursos renováveis de um modo que não exceda a capacidade do ecossistema para regenerá-los. 
3. Exaurir recursos não-renováveis a um ritmo que não exceda a taxa de desenvolvimento dos seus substitutos renováveis. 

QUANDO CRESCER É MAU 

Crescimento deseconômico ocorre quando aumentos na produção se dão à custa do uso de recursos e sacrifícios do bem-estar que valem mais do que os bens produzidos. Isso decorre de um equilíbrio indesejável de grandezas denominadas utilidade e desutilidade. Utilidade é o nível de satisfação das necessidades e demandas da população; grosso modo, é o nível de seu bem-estar. Desutilidade refere-se aos sacrifícios impostos pelo aumento de produção e consumo. Podem incluir o uso de força de trabalho, perda de lazer, esgotamento de recursos, exposição à poluição e concentração populacional. 

Uma maneira de conceptualizar o equilíbrio entre utilidade e desutilidade é com um gráfico mostrando utilidade marginal  e desutilidade marginal. Utilidade marginal é a quantidade de necessidades que são satisfeitas quando se incrementa em uma unidade o consumo de determinada quantidade de bens e serviços. Ela diminui com o aumento do consumo, porque inicialmente satisfazemos nossas necessidades mais prementes. A desutilidade marginal é a quantidade de sacrifício adicional necessária para realizar cada unidade adicional de consumo. A desutilidade marginal cresce com o consumo porque as pessoas, em princípio, fazem antes os sacrifícios mais fáceis. Por exemplo, para comprar mais coisas, podemos trabalhar dez horas a mais por semana, uma opção que vale, digamos, dez pontos de desutilidade. Para consumir ainda mais, podemos abrir mão de outras dez horas, e não dedicar tempo algum a nossos filhos. Isso poderia representar 20 pontos de desutilidade, além dos dez de que já abrimos mão. 

A escala ótima de consumo é o ponto no qual a utilidade marginal e a desutilidade marginal se igualam. Nesse ponto, uma sociedade desfruta da utilidade líquida máxima . Incrementar o consumo além desse ponto faz com que a sociedade perca mais do que ganhe, por causa do crescimento das desutilidades, conforme representado pela área de desutilidade líquida. O crescimento torna-se deseconômico. 

Em determinado momento, uma população em crescimento deseconômico atinge o limite de futilidade, o ponto no qual deixa de acumular qualquer utilidade com o aumento de consumo. O limiar de futilidade pode já estar próximo para os países ricos. Além disso, uma sociedade pode ser levada ao colapso por uma catástrofe ecológica, resultando em enorme aumento de desutilidade. Essa devastação poderá acontecer tanto antes como depois de atingido o limiar de desutilidade.


[*] Professor na Escola de Políticas Públicas da Universidade de Maryland. De 1988 a 1994 foi economista sénior do departamento de meio ambiente do Banco Mundial, onde colaborou na formulação de políticas relativas ao desenvolvimento sustentável.   Autor de numerosos livros e editor associado da revista Ecological Economics.