segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Paul Krugman, Steve Keen e o misticismo da economia keynesiana

*Artigo de Michael Roberts, economista marxista britânico, originalmente publicado em seu blog.

 Como prometido, deixe-me voltar ao debate dentro do keynesianismo entre Paul Krugman, ganhador do prêmio nobel e guru do keynesianismo ortodoxo e Steve Keen, o iniciante 'minsky-keynesiano' radical, sobre quais são os processos chave do capitalismo moderno e as causas da Grande Recessão.

 Steve Keen recentemente revisou e expandiu seu excelente livro, Debunking Economics , e seus ataques à economia mainstream, a natureza da crise capitalista e o que fazer acerca disso provocaram o grande colunista do New York Times e flagelo dos republicanos, Paul Krugman, a respondê-lo. Krugman não perdeu tempo em descartar as ideias de Keen em seu blog como sendo ''misticismo''. Keen respondeu de maneira agressiva e então um longo debate seguiu-se com participações de outros economistas em seus respectivos blogs entrando na briga. Você pode acompanhar as voltas e reviravoltas aqui.

 Acho que agora é minha vez de fazê-lo. Mas, primeiro: esse debate é importante e interessante? Bem, eu acho que sim, porque as diferenças demonstradas ajudam a demonstrar o esforço que a economia mainstream tem para tentar explicar a recessão que o capitalismo mundial acaba de atravessar e o porquê de a recuperação ser tão fraca. Esse debate em particular não é entre keynesianos e partidários da austeridade (veja meu post, O debate sobre a austeridade). É entre o que chamo de keynesianismo ortodoxo e uma variedade mais radical que considera a maioria dos keynesianos ainda presos em muitos teoremas neoclássicos que não lhes permitem entender o moderno capital financeiro e o sistema bancário. Se os keynesianos ortodoxos entendessem, dizem os heterodoxos, então eles veriam mais claramente por que o capitalismo entra em crise e o que fazer quanto a isso. Steve Keen se inclina sobre as ideias desses keynesianos radicais, como um seguidor de Hyman Minsky e a Teoria Monetária Moderna (MMT, Modern Monetary Theory), que tenta explicar o papel do comércio bancário como a causa-mór das crises econômicas.

 Então, quais são os temas em debate? Bem, depois de ler milhares e milhares de palavras dos participantes, eu creio que são 3: A primeira é a de saber se, em uma economia capitalista moderna, o dinheiro é criado de forma endógena, ou seja, a demanda por dinheiro dirige a sua oferta, em vez de exógena, pela impressão ou absorção de dinheiro por um banco central. A segunda é se a expansão da dívida, particularmente de crédito privado, acrescenta à demanda em uma economia, de forma que ele pode ficar fora de sincronia com a expansão da produção de coisas e serviços; e se essa é a chave para a crise capitalista. Em terceiro lugar, se é a instabilidade inerente do sistema financeiro que é o 'kernel' da crise e não apenas a falta de 'demanda efetiva', como keynesianos ortodoxos argumentam. 

 Vamos começar com o primeiro tema: dinheiro exógeno, isto é, a necessidade de fazer empréstimos por parte de empresas, famílias, instituições financeiras e governo dirige os empréstimos bancários, e não o contrário. A MMT diz que os bancos emprestam em primeiro lugar e que isso gera depósitos, um simples processo de escrituração de casal [a simple double bookkeeping process]. Assim, bancos podem criar dinheiro do nada. Bancos não esperam por depósitos de clientes e dinheiro do banco central antes de realizar empréstimos. Keynesianos ortodoxos como Krugman não reconhecem isso, dizem os caras da MMT (e Keen). Os bancos podem conduzir quantias de empréstimo, ou criar dinheiro por empréstimo, mas eles estão restrito em tanto por 3 fatores: as taxas de juros (os custos de seus empréstimos, em parte definidos pelo Banco Central), as reservas necessárias de dinheiro que eles devem manter (como imposta por um regulamento do BC) e da quantidade de capital próprio que deve ter (mais uma vez uma questão de regulação). Mas essas restrições de crédito afetam a rentabilidade dos empréstimos para os bancos, não a quantidade que eles podem fazer.

 A questão em debate aqui é saber se os bancos centrais têm qualquer controle real sobre a oferta de dinheiro e crédito em uma economia. Com efeito, os caras da MMT sugerem que (o controle) é pouco e que os keynesianos ortodoxos estão enganando a si mesmos de que a economia pode ser controlada pelos bancos centrais, ao tentarem estes controlar exogenamente a oferta de dinheiro ou mesmo manipulando as taxas de juros. Eles [the MMT guys] estão afirmando que as autoridades não podem controlar o ''ciclo de negócios'', o ciclo de expansão e recessão, pela política monetária, porque o dinheiro é criado de forma endógena. Os keynesianos ortodoxos gostam de pensar que eles podem e assim a sua política de restrição das taxas de juros ou aperto de reservas bancárias vão funcionar na regulação do capitalismo.

 O que Marx diz sobre isso? Embora ele não tenha detalhado sua teoria da moeda e do crédito claramente em um livro (como sempre!), é evidente a partir de seus escritos que ele achava que a oferta de crédito é endógena ao sistema capitalista e que os bancos podem criar crédito como exigido pela produção capitalista, sem esperar por algum agente exógeno para fornecê-la. Diz ele:

''O crédito dado por um banqueiro pode assumir várias formas, por exemplo, letras e cheques contra outro banco ou aberturas de crédito a outro banco, e por fim bilhetes de banco, no caso de bancos emissores. O bilhete de banco nada mais é que uma letra contra o banqueiro, pagável ao portador a qualquer momento, e que para o banqueiro faz as vezes de letra de câmbio particular. Tal forma de crédito impressiona o leigo e lhe parece de grande importância, primeiro porque essa espécie de dinheiro de crédito sai da mera circulação comercial e entra na circulação geral, funcionando aí como dinheiro; depois, porque, na maioria dos países, os principais bancos, emissores de bilhetes -- estranha mistura de banco nacional e banco privado -- na verdade têm o crédito nacional para apoiá-los, e seus bilhetes têm curso mais ou menos legal. Assim, fica evidente que a função do banqueiro é negociar com o crédito mesmo, pois o bilhete de banco somente simboliza crédito em circulação.'' (Marx, 1984, pp.403-404)

 O que dirige o crédito bancário não é a oferta de dinheiro, mas as demandas da produção capitalista:

''A quantidade de notas em circulação é regulada pelos requisitos do volume de negócios (de acumulação do capital - MR), e cada bilhete supérfluo segue seu caminho de volta imediatamente ao emitente.'' (Marx, 1984, p.524)

 Crédito gera depósitos.

 Mas a teoria marxista do dinheiro faz uma importante distinção para com os caras da MMT. O capitalismo é uma economia monetária. Capitalistas começam com um capital em dinheiro para investir na produção e capital comercial, que, por sua vez, por meio do dispêndio de força de trabalho, eventualmente oferece um novo valor que se realiza em mais capital monetário. Assim a demanda por capital monetário impulsiona a demanda por crédito. Os bancos criam dinheiro ou crédito como parte deste processo de acumulação capitalista, não como algo que faz o capital financeiro separado da produção capitalista.

 Ambos Marx e os caras da MMT concordam que a chamada teoria quantitativa da moeda, tal como exposta pelo economista de Chicago Milton Friedman e outros, que dominou a política dos governos nos anos 1980, está errada. Os governos e os bancos centrais não podem melhorar as expansões e recessões no capitalismo tentando controlar a oferta de moeda. Os péssimos desempenhos dos atuais programas de flexibilização quantitativa (QE) adotadas pelos principais bancos centrais para tentar impulsionar a economia confirmam isso. Os balanços do banco central dispararam desde a crise de 2008, mas o crescimento do crédito bancário não o fez.





 E, no mesmo período, o chamado multiplicador monetário (proporção da massa monetária na economia para o dinheiro no banco central), sobre o qual os teóricos da quantidade se confiam para julgar se a quantidade de dinheiro é a correta (M3/M1), afundou. Em outras palavras, os bancos centrais têm tentado aumentar a oferta de dinheiro por impressão de dinheiro, mas isso teve o mínimo ou nenhum efeito sobre a economia real, porque a demanda por empréstimos caiu longe.




 Os keynesianos ortodoxos como Krugman diriam que o colapso do multiplicador monetário comprova o fenômeno da ''armadilha de liquidez''. Isto acontece quando a demanda agregada em uma economia é tão fraca que as pessoas acumulam o seu dinheiro e os bancos deixam de emprestar, por isso ainda que as taxas de juro são reduzidas a zero (mais ou menos como elas estão agora), isso não desencadeia uma recuperação econômica. Logo, precisamos de políticas exógenas para lançá-lo. Os caras da MMT diriam que, porque a criação de moeda é endógena, políticas puramente monetárias como flexibilização quantitativa nunca vão funcionar. Marxistas concordarão, desde que seja reconhecida que enquanto os bancos podem criar dinheiro do nada, eles não o farão se a acumulação de capital declinou. O crescimento do crédito depende da acumulação de capital, mesmo que este nunca esteja alinhado (portanto a moeda nunca é neutra).

 Isso me leva à segunda questão: de crédito ou endividamento excessivo. Um dos argumentos principais da escola austríaca é que o crédito pode se tornar excessivo porque ele é criado artificialmente pelos bancos centrais. Se não existissem bancos centrais, o ''livre mercado'' acabaria por trazer crédito alinhado com a produção através de uma mudança para uma taxa de juros equilibrada. O dinheiro teria um efeito neutro sobre a produção e não poderia haver crises monetárias, se não fosse pela intervenção do banco central.

 Steve Keen também argumenta que a chave para as crises no capitalismo é o excesso de crédito ou débito privado. Mas não se trata da explicação austríaca. Em vez disso, ele se inclina sobre as ideias de Hyman Minsky, o keynesiano radical da década de 1980. Keen-Minsky argumenta que o sistema financeiro moderno está inerentemente tentando expandir o crédito para obter retornos mais elevados. Isto leva a uma categoria ''minskyana'' de especulação financeira (para mais detalhes acerca da visão de Minsky sobre a especulação, veja meu artigo The causes of the Great Recession). O crédito privado dispara quando bancos especulam em formas cada vez mais arriscadas de ativos (ações, títulos de propriedade). Isso cria demanda extra em uma economia, que pode eventualmente não ser satisfeita. Cada vez mais, o endividamento é gerado apenas para cobrir empréstimos anteriores, tal como em um esquema de Ponzi. Eventualmente, todo o baralho de cartas desmorona em um ''momento Minsky'' e capitalismo tem uma recessão.

 Keen diz que a melhor maneira de olhar para a 'demanda agregada' ao modo keynesiano em uma economia moderna é adicionar ao rendimento nacional o montante da dívida ou empréstimo privado. Se você alterar Keynes desta forma, obtém um melhor indicador de quando a crise está chegando. Keen ganhou o prêmio Real Economics Review por prever a crise de crédito. Ele diz que isto veio a ele como uma revelação, porque de repente percebeu como o aumento da dívida privada norte-americana estava preparando uma crise. Keen disse que o gráfico da dívida privada dos EUA em relação ao seu produto interno bruto parecia o gráfico ''bastão de hóquei'' para o aquecimento global.




 Os keynesianos ortodoxos não consideram isto e Krugman descarta a ideia em seu debate com Keen. Para ele, a crise, um ''colapso na 'demanda efetiva''', é devido ao término do que Keynes chamou de ''espíritos animais'', uma perda de confiança de empresários que se alimenta através de um colapso dos investimentos e uma ausência de vontade de gastar. Não é devido à dívida privada excessiva. A recessão segue e pode ficar por um longo tempo, se a economia está bloqueada por uma armadilha de liquidez. Ela precisa de uma intervenção do governo para sair.

 O que Marx diz? A teoria marxista concorda com Keen que o crédito privado pode se tornar excessivo. Na verdade, isto flui a partir da visão marxista de que a moeda não é neutra na economia capitalista, mas central para ela. O crédito pode e irá se desalinhar com a produção capitalista. Crédito é, realmente, capital fictício, isto é, capital dinheiro adiantado para títulos de propriedade de capital produtivo e improdutivo, isto é, ações, obrigações [shares, bonds], derivados etc. O preço de tais ativos antecipa futuros retornos sobre o investimento em ativos reais e financeiros. Mas a realização destes retornos depende, em última análise, da criação de um novo valor e de mais-valia no setor capitalista produtivo. Assim, grande parte desse capital dinheiro pode facilmente vir a ser fictício.

 O ponto-chave para os marxistas aqui é o lucro. O enorme aumento da dívida privada (medida contra o PIB) é claramente um bom indicador de que uma bolha de crédito está se desenvolvendo. Mas isso por se só não é um bom indicador de quando ela irá se romper. Alguns economistas da escola austríaca tentaram quando pode ser o ponto de inflexão através da medição da divergência entre o crescimento do crédito e o crescimento do PIB (ver Borio and White, Asset prices, financial and monetary stability, BIS 2002). Mas a teoria marxista oferece um guia muito melhor. É quando a taxa de lucro começa a cair; em seguida, mais imediatamente, quando a massa de lucros vira para baixo. Em seguida a enorme expansão do crédito projetada para manter a rentabilidade [profitability] já não pode remerter [deliver].

 Esse é o modelo de crise que adotei em 2006 para o meu livro, The Great Recession. Levou-me a prever uma recessão maior para 2009-10 (eu estava errado, uma vez que veio um ano antes). A evidência estava lá para os EUA, onde a recessão global estourou. A taxa de lucro média nos EUA atingiu o pico em 1997. No início de 2006, a massa de lucros começou a cair e o mercado imobiliário caiu [turned down].

 Uma forma de demonstrar como a queda na taxa de lucro combinou-se com o endividamento para trazer o capitalismo estadunidense abaixo é medir a taxa de lucro não apenas convencionalmente contra ativos corporativos tangíveis, mas também contra os ativos financeiros (capital fictício), que havia subido tanto. Eu tenho feito isso em vários lugares (incluindo o meu artigo The profit cycle and economic recession e vários posts). Aqui está o gráfico novamente para enfatizar o ponto.




 Isso mostra que a taxa de lucro corporativa dos EUA, medida contra todos os ativos, foi menor em 2002 do que era em 1982, enquanto subiu contra ativos apenas físicos. Uma vez que a rentabilidade convencional também caiu [turned down] em 2006, a crise começou e o impacto foi muito maior por causa do tamanho do capital fictício. Agora, em todos os lugares, o capitalismo continuar a tentar 'desalavancar' [try and 'deleverage'] para limpar não somente o capital morto da economia real, mas também para se livrar do capital fictício.

 Isso me leva à questão final: a causa da crise. Para os keynesianos ortodoxos, é devido ao colapso da demanda agregada ou efetiva na economia (como expresso em uma queda do investimento e do consumo). Esta queda do investimento leva a uma queda do emprego e, assim, a menos renda. A demanda efetiva é a variável independente e os rendimentos e emprego são as variáveis dependentes. Não há menção ao lucro ou à rentabilidade [profit or profitability] neste esquema. Esta é a visão de Keynes:
''Nada, obviamente, pode restaurar o emprego, que não primeiro restaurar os lucros das empresas. No entanto nada, na minha visão, pode restaurar os lucros das empresas sem antes restaurar o volume de investimento.'' (Collected Writing Vol 13, p.343)

 Como argumentei anteriormente (veja meu post, Double dips, deficit and debt, 24  de agosto de 2011), esses esquemas estão ''de trás para frente'' para explicar as leis de movimento do capitalismo. O esquema de Marx é o oposto. Uma mudança nos lucros produz uma mudança nos investimentos, o que, por sua vez, afeta emprego e renda e portanto demanda efetiva.

 Mas se o investimento é a variável independente, de acordo com Keynes, Krugman e Minsky-Keen, o que provoca uma queda no investimento? É o encerramento do 'espírito animal' entre os empresários ou a 'falta de confiança'. Como Minsky coloca-o, o investimento depende da ''natureza subjetiva das expectativas sobre o curso futuro dos investimentos, bem como a determinação subjetiva de banqueiros e seus clientes de negócios da estrutura de responsabilidade apropriada para o financiamento de posições em diferentes tipos de bens de capital''. Assim, os lucros depende de expectativas e as crises são o resultado de mudanças de expectativas por especuladores financeiros. Investimento e crédito crescem enquanto houver confiança: o que outros têm chamado de 'pó mágico da fada Sininho', uma crença de que as coisas só vão melhorar.

 Este é o verdeiro misticismo da economia keynesiana. Para Keen e os seguidores de Minsky, a identidade entre ortodoxos keynesianos e Kalecki ainda se aplica. Instabilidade em finanças e/ou crédito excessivo leva a um colapso do investimento ou da 'demanda efetiva', e em seguida do emprego e dos rendimentos/lucros. Para os marxistas, a instabilidade no setor financeiro não seria suficiente para causar uma grande crise se a rentabilidade [profitability] está aumentando. A abordagem Keynes/Minsky é subjetiva, com base em expectativas. A abordagem marxista é objetiva e baseada na lei do valor.

 Dependendo do seu ponto de vista, as políticas para a recuperação econômica também são diferentes. Keen defende controlar o nível de dívida privada como solução principal. Krugman defende regulação das finanças e dinheiro fácil. Se isso falhar, ele quer intervenção fiscal para estimular o setor privado. Marxistas atentam para a substituição do sistema de lucro.

 A explicação marxista é a mais abrangente, uma vez que integra dinheiro e crédito no modo de produção capitalista. Ela reconhece que a moeda e o crédito não são neutros, como os austríacos acreditam, e  argumenta que o dinheiro pode ser fator-chave na instabilidade e crise, como os keynesianos acreditam, mas também mostra que não é a falha decisiva no modo de produção capitalista e que lançar fora o capital financeiro não é suficiente [and that sorting out finance is not enough]. Assim, pode explicar por que as soluções keynesianos também não funcionam.












domingo, 25 de janeiro de 2015

Reprodução do capital e papel da mais-valia no processo



 Antes de qualquer outra, é preciso definir capital. Este é uma determinada quantidade de valor que, por seu próprio modus operandi, converte-se em mais valor. Na forma de capital produtivo -- que é a que trataremos aqui --, o capital é ''uma concentração maior ou menos de meios de produção, com o comando correspondente sobre um exército maior ou menor de trabalhadores'' (O Capital, tomo I, capítulo XXIII), e seu processo de reprodução é descrito no ciclo D-M-D'. Examinemos tal processo mais acuradamente.

 O capitalista desembolsa determinada quantidade de valor -- cuja origem não importa agora -- e   emprega-o na forma de capital primitivo (C). Este divide-se em capital constante (c) e capital variável (v), sendo o primeiro empregado na compra de instrumental de trabalho, matéria-prima e despesas similares e o segundo, na compra de força de trabalho, isto é, para pagar salários. Suponhamos que o capital primitivo seja de 2000 reais, e que se reparta na proporção de 1600 (4/5) para c e 400 (1/5) para v. Como os meios de produção simplesmente transmitem seu valor ao produto, isto é, não criam nenhum novo valor, o capitalista precisa extrair seu lucro da mercadoria força de trabalho, a única capaz de gerar mais valor ao ser consumida do que o encerrado nela. Esse valor da força de trabalho, que entra nas contas do capitalista como preço da força de trabalho, é a quantidade de trabalho socialmente necessário pra reproduzir a própria força de trabalho, ou seja, de tempo necessário para produzir valor que permita comprar os meios de subsistência do trabalhador.

 Suponhamos que um trabalhador trabalhe 10 horas por dia, recebendo um salário de 50 reais por dia (que suporemos aqui como sendo a quantia necessária para comprar seus meios de subsistência) e produzindo valor correspondente a 10 reais por hora de trabalho. Nas primeiras 5 horas de trabalho de cada dia, portanto, ele reproduzirá o valor da própria força de trabalho (é o que chamamos tempo de trabalho necessário), enquanto que, nas 5 horas seguintes, trabalhará gratuitamente para o capitalista (é o tempo de trabalho excedente). O valor produzido nessas 5 horas de trabalho excedente é o que chamamos mais-valia.

 Para calcular a massa de mais-valia (que chamaremos aqui de m), precisamos multiplicar a soma do capital variável adiantado (v) pela razão entra a mais-valia diariamente fornecida, em média, pelo trabalhador individual (m') e o preço diário da força de trabalho (v') -- razão esta chamada de taxa de mais-valia --, de forma que m = (m'/v') x v.  Seguindo as condições definidas nos dois parágrafos anteriores, conclui-se que a massa de mais-valia produzida pelo conjunto de trabalhadores será de 400 x (50/50) = 400 reais. A taxa de lucro do nosso capitalista será calculada por meio de m/C = 400/2000, 20%, enquanto a taxa de mais-valia, i. e., o grau de exploração do trabalho será de 100%. Esses 400 reais -- que o capitalista adquire ao vender o produto global pela soma c + v + m -- poderão ser dedicados ao seu consumo pessoal ou capitalizados, reinvestidos no próprio capital. Se o capitalista optar pela 2ª via, seu novo capital será de 2400 reais, os quais, seguindo a proporção anterior, se repartiriam em 1920 reais de capital constante e 480 reais de capital variável.

 Caso queira aumentar sua taxa de lucro, o capitalista precisará aumentar o tempo de trabalho excedente, ou seja, a produção de mais-valia. Suponhamos que o valor da força de trabalho caia pela metade, e com ele os salários, sem variar a quantidade diária de valor produzida por cada trabalhador individual ou a quantidade de horas da jornada de trabalho. A massa de mais-valia produzida a partir de agora será de 240 x (75/25) = 720 reais; a taxa de lucro, 720/2160 = aprox. 33%, e a taxa de mais-valia, 300%. Caso estenda a jornada de trabalho, sem pagar nada, em, digamos, 2 horas, a massa de mais-valia subirá para 240 x (95/25) = 912; a taxa de mais-valia, para 380%, e a de lucro, para aprox. 42%.

 Com aumento do grau de exploração do trabalho, mais mais-valia acumulará o capitalista, permitindo-lhe investir somas sempre maiores no próprio capital. Esse processo de acumulação constante é o que se chama de reprodução ampliada do capital, em contraposição à reprodução simples, na qual a mais-valia tem outro destino que não o de incrementar valor ao seu capital de origem.