segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Gayle Rubin sobre o conceito de ''patriarcado''


Rubin.

 O uso que pude observar, por parte de muitas feministas e/ou outros progressistas, do conceito de ''patriarcado'' muitas vezes me pareceu desleixado —o tipo de explicação que, por servir para explicar qualquer coisa, não explica nada, e isso por uma falta de rigor em sua definição. Pois bem, eis um trecho do artigo clássico de 1975 da antropóloga, feminista marxista (ou paramarxista) e teórica da sexualidade, Gayle Rubin, chamado ''The traffic in women: notes on the 'political economy' of sex'' [1] exatamente sobre isso:

The term patriarchy was introduced to distinguish the forces maintaining sexism from other social forces, such as capitalism. But the use of patriarchy obscures other distinctions. Its use is analogous to using capitalism to refer to all modes of production, whereas the usefulness of the term capitalism lies precisely in that it distinguishes between the different systems by which societies are provisioned and organized. Any society will have some system of "political economy." Such a system may be egalitarian or socialist. It may be class stratified, in which case the oppressed class may consist of serfs, peasants, or slaves. The oppressed class may consist of wage laborers, in which case the system is properly labeled "capitalist." The power of the term lies in its implication that, in fact, there are alternatives to capitalism.

Similarly, any society will have some systematic ways to deal with sex, gender, and babies. Such a system may be sexually egalitarian, at least in theory, or it may be "gender stratified," as seems to be the case for most or all of the known examples. But it is important—even in the face of a depressing history—to maintain a distinction between the human capacity and necessity to create a sexual world, and the empirically oppressive ways in which sexual worlds have been organized. Patriarchy subsumes both meanings into the same term. Sex/gender system, on the other hand, is a neutral term that refers to the domain and indicates that oppression is not inevitable in that domain, but is the product of the specific social relations which organize it.  


 Uma outra obra da autora que achei bastante interessante foi o artigo de 1984 intitulado ''Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality''.


Notas

[1] Outra opção de leitura está disponível aqui.


domingo, 21 de fevereiro de 2016

Da falsidade das ideias monetaristas


Milton Friedman (o segundo da esquerda para a direita), pai do monetarismo e um dos principais nomes do chamado ''neoliberalismo'', em visita assistencial ao ditador chileno Augusto Pinochet (o terceiro no mesmo sentido).


 Matías Vernengo, em seu excelente blog Naked Keynesianism, sobre o irrealismo da teoria monetarista da economia: aqui, aqui e aqui. 


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Nildo Ouriques e a colonização das ciências sociais no Brasil


 Prefácio do professor Nildo Ouriques a seu livro O colapso do figurino francês: crítica às ciências sociais no Brasil.

O professor Nildo Ouriques.
 O golpe cívico-militar de 1964 interrompeu a crescente consciência sobre a natureza específica de um país dependente no capitalismo contemporâneo que até então se desenvolvia nos marcos do reformismo nacionalista representado pelo governo de João Goulart. Na época, as ciências sociais ainda não estavam dominadas pelo espírito bandeirante que sofremos na atualidade; em consequência, a experiência da UnB em Brasília e o acumulo propiciado a partir do ISEB no Rio de Janeiro ditavam em grande medida o ritmo e a intensidade do debate Intelectual entre nós. Naquele período, o Rio de Janeiro organizava, em grande medida, os programas de pesquisa em torno da Revolução Brasileira e não era pequeno o impacto de sua produção nas universidades. Não resta dúvida que se tratava de época menos acadêmica, razão pela qual a universidade era também indiscutivelmente mais culta e admitia mais pessoas comprometidas com a transformação revolucionária da sociedade brasileira.


 A ditadura (1964-1985) cortou pela raiz o processo de amadurecimento político do povo, especialmente dos trabalhadores, e impôs crescente isolamento social ao mundo universitário com a reforma presidida pelo acordo MEC/USAID aplicada a partir de 1968. Enfim, uma boa dose de terrorismo de Estado e transformações institucionais redefiniram a universidade funcional para o aprofundamento da dependência. É espantoso que a maioria dos universitários tenha perdido de vista esta crucial questão, em particular aqueles estudantes, professores r técnicos que se situam no mundinho acadêmico desde uma perspectiva potencialmente crítica. Todos os programas de pesquisa, as linhas de financiamento, os seminários turbinados por generosas verbas oficiais, os convênios “internacionais” e outras tantas iniciativas estão, agora mais do que nunca, marcadas por dupla função. A primeira delas é a redução da universidade a mera formadora de mão de obra, ou seja, sua plena identificação com a posição do país na divisão internacional do trabalho cujos cursos de engenharia ou economia constituem expressão máxima. Em poucas palavras, é necessário produzir ensino de qualidade, suficientemente bom para reproduzir a força de trabalho em abundância para as empresas nacionais e principalmente para as multinacionais. A segunda é a redução da universidade a instrumento de colonialismo mental, cultural e científico a que, de fato, está quase to-talmente limitada. Ambas funções devem ser bem compreendidas: não considero que exista - contra esta universidade que sofremos - outra universidade marcada pelo “universalismo”, a eterna casa do saber, ex-pressão do conhecimento desinteressado que alguns liberais ilustrados e a maioria dos socialistas ingênuos defendem. Tal universidade jamais existiu! Uma universidade a serviço da cultura, da busca do conhecimento, entregue a conquistas científicas e culturais da Humanidade é apenas expressão de um mito, sob o qual se ocultam todas as misérias de uma instituição a serviço da classe dominante, especialmente graves na periferia do sistema capitalista.


 Portanto, considero insuficiente a crítica que denuncia a “universidade operacional” sem observar as diferenças decisivas da produção do conhecimento entre um país central e outro dependente. A crítica realizada por Michel Freitag - no Brasil Marilena Chauí é responsável por sua reprodução - termina por tangenciar a especificidade da produção de conhecimento na periferia capitalista. O reconhecimento de que o ideal de universidade colide com a universidade atual induz o analista à reivindicação daquela substância mítica que parece alimentar o professor universitário fora do mundo atual e seus terríveis condicionamentos. Não é preciso recordar com muitos exemplos o fato de que a universidade é fruto da divisão social do trabalho e somente possui importância quando está a serviço do estado-nação. É verdadeiramente espantoso que alguns intelectuais brasileiros e também aqueles acadêmicos que buscam certa ilustração quando permanecem por algum tempo nos países metropolitanos ignorem este fato elementar na vida universitária experimentada naquelas instituições estatais. Não desconheço que o estatuto da autonomia poderia ser diferente entre nós, mas no fundo, a despeito de processos e formas legais, impõe-se uma questão decisiva: a universidade francesa ou estadunidense, ainda que ilustradas, existem exclusivamente para a grandeza nacional e o poderio imperialista daqueles países. Em consequência, o discurso que entre nós, na periferia capitalista, reproduz aquela imagem mítica da universidade universal e do saber desinteressado como norma da vida institucional é, no mínimo, uma ideologia que merece ácida crítica. A propósito, ainda quando encontramos companheiros muito bem intencionados lutando por um ideal de universidade, não podemos desconhecer que eles também estão alimentando as ilusões inauguradas pelos liberais, segundo a qual “sem educação nenhum país poderá superar seus problemas”.


 Ora, o desconhecimento do caráter dependente do capitalismo la-tino-americano representa um obstáculo imperceptível para a maioria das pessoas de esquerda ou com alguma militância no ambiente universitário. Ainda que possa parecer heresia, é preciso dizer com clareza que uma “universidade pública, totalmente gratuita, de qualidade e socialmente referenciada” ainda pode ser uma universidade inserida nas duas reduções anteriormente indicadas, de tal forma que o sindicalismo combativo e o movimento estudantil ao apresentarem suas reivindicações podem, mesmo sem intenções, fortalecer o caráter colonial e a divisão social do trabalho que finalmente justificam a existência da universidade brasileira.

 Diante desta situação, um programa de pesquisa dedicado a superação do subdesenvolvimento e da dependência encontra imensa resistência. Nos tempos em que a lei do valor funciona sem constrangimento estatal algum, ou seja, aquela época chamada neoliberalismo, a universidade adquire um caráter mercantil mais acentuado e, em decorrência, fica também mais próxima dos empresários e/ou do Estado por meio de políticas públicas. No entanto, também nos marcos do keynesianismo envergonhado que sofremos - quando supostamente os neoliberais sofreram certa derrota política - a tematização do subdesenvolvimento e da dependência passou a ser um formidável obstáculo. Afinal, um keynesianismo com dentes para morder, capaz de enfrentar a “república rentista”, destinado a colocar a universidade a serviço de um projeto nacional, supõe a existência de uma burguesia nacional capaz de liderar grandes transformações como de certa forma ocorreu nos países metropolitanos. Mas o que podemos dizer de uma burguesia dependente, cujo projeto não tem sido outro senão a venda da nação como a principal mercadoria no mercado mundial? Esta é a razão pela qual os neoliberais e desenvolvimentistas se revelam incapazes de avançar na direção da universidade necessária, ou seja, aquela universidade cuja função é participar organicamente do esforço nacional pela superação do subdesenvolvimento e da dependência ao exibir as limitações estruturais do capitalismo dependente, tanto na versão neoliberal quanto na desenvolvimentista.

 Neste contexto, não é preciso muito esforço para perceber que estamos diante de grande disputa intelectual no terreno das ciências sociais. Na verdade, esta disputa implica todas as áreas do conhecimento científico, mas é, por óbvias razões, particularmente saliente na economia, na sociologia, na antropologia, na psicologia, na ciência política... Nas ciências sociais é preciso superar o programa atualmente dominante, marcadamente eurocêntrico, alimentado por imensa carga colonial, cuja função fundamental é a mera imitação na periferia do sistema capitalista de certa mentalidade e comportamento satelizado, destinado unicamente a justificar o subdesenvolvimento e à reprodução ampliada da dependência. O programa de pesquisa implícito na grade curricular da graduação, e especialmente evidente no sistema de pós-graduação nacional, é expressão acabada do colonialismo científico e cultural, cuja existência está garantida basicamente para manter os interesses dominantes. Na aparência, este programa rejeita a perspectiva crítica, pois a considera “política”, portanto, supostamente sem compromisso com o “espírito científico” que as instituições universitárias dizem exigir. Mas já se tornou impossível ocultar que precisamente este comportamento e perspectiva acadêmica que se impôs no campus universitário é profundamente e, antes de tudo, essencialmente político! Ora, um currículo ou programa de pós-graduação afastado dos grandes problemas nacionais, típicos de um país subdesenvolvido, dependente, garante como prioridade o ocultamento dos mecanismos pelos quais a dependência se reproduz entre nós como se outro destino histórico não fosse possível.

 Esta é a razão fundamental que impulsiona a permanente “modernização” dos planos de estudo, do sistema de pós-graduação, dos currículos, dos programas governamentais, do intercâmbio acadêmico, sem, contudo, inaugurar um tempo em que os universitários brasileiros estivessem efetivamente pensando com cabeça própria e com rigor científico, virtudes necessárias para enfrentar o colonialismo cultural e a dependência econômica. Assim, antes da curiosidade intelectual e do compromisso com a superação do subdesenvolvimento (únicos motivos para a existência da universidade na América Latina), sofremos a lobotomia acadêmica e a mera reprodução de programas que a imensa maioria sequer logra dominar, pois o “império do efêmero” joga nossos estudantes - e especialmente os professores - para a necessidade colonial de estar atualizado com a última moda acadêmica emanada de Paris ou Nova Iorque, movimento que por sua própria natureza não permite acúmulo de conhecimento e experiência de pesquisa, mas meros reprodutores de um programa de pesquisa que jamais dominarão por completo. Quando logram certo êxito no domínio do programa importado, as convicções adquiridas são logo abaladas pela aparição de novo modismo e novas estrelas acadêmicas, sempre ultra-festejada pelos monopólios de comunicação, que cancelam o esforço de alguns anos e indicam um “novo” caminho de Sísifo para o acadêmico impotente que vive na periferia e sonha com uma vida nas metrópoles.

 O esforço para elaborar e manter um programa de pesquisa destinado a superação do subdesenvolvimento e da dependência é, em consequência, subalternizado, quando não completamente esquecido. Contudo, as condições políticas do país - e de toda a América Latina - estão mudando, ainda que sem a velocidade necessária. Assim, este novo e incerto cenário atualizou nossa perspectiva analítica, abrindo um imenso campo de possibilidades para maior desenvolvimento da teoria marxista da dependência. Não se trata de mera recuperação daquele notável esforço intelectual, entre outras razões porque o programa de pesquisa aqui reivindicado também requer sua atualização, não somente pelas deficiências inerentes aos condicionamentos políticos sob os quais nasceu e se desenvolveu, mas, sobretudo, porque existem novas exigências sociais para sua aplicação.

 Mas sobre algo não pode existir dúvidas: a novidade consiste no fato de que a tendência à imitação, à cópia de tudo que vem de fora, enfim, o surrado figurino francês colapsou. Não se trata de otimismo desmedido. A hegemonia liberal que sofremos é incapaz de resolver os problemas elementares das maiorias em nosso país. Esta hegemonia foi, de certa forma, eficaz durante a ditadura, pois os liberais progressistas reivindicavam o “retorno à democracia” como uma premissa para as transformações que julgavam necessárias tanto na economia quanto no sistema político. Após décadas de funcionamento da democracia restringida, o sistema político já não possui os antigos encantos e a “teoria” econômica revela cada dia de maneira mais acentuada seu conteúdo ideológico. As novas exigências sociais derivam do cansaço com o sistema político e com a constatação de que a “concentração da renda” não se move substancialmente, a despeito do “vigor” dos programas sociais. 
  
 Agora é cada dia mais claro que a superexploração da força de trabalho é um mecanismo tão eficaz na ditadura quanto na democracia e os liberais progressistas já não podem explicar sua permanência em função dos limites do sistema político. Em consequência, se defrontam com o capitalismo dependente, com as estruturas profundas do subdesenvolvimento. Neste contexto, revelam sua miséria analítica e impotência política, razão pela qual a teoria marxista da dependência conta agora com novas condições para seu desenvolvimento. O processo de reconstrução da esquerda radical no Brasil não pode prescindir desta perspectiva analítica e os novos partidos - ainda muito presos à antiga correlação de forças e, sobretudo, submetidos aos ícones intelectuais criados pela USP - não terão futuro se seguirem ignorando os aportes da teoria marxista da dependência.

 Na universidade - como sempre - tudo é muito mais lento. O academicismo que ali domina é, como indiquei, ainda muito forte, ainda que igualmente insustentável. O academicismo é profundamente anti-intelectual, colonizante, eurocêntrico. Ainda que esnobe, não faz menos do que simular produção intelectual; é esterilizante e inútil do ponto de vista das maiorias, das necessidades sociais e nacionais num país dependente. Ainda que estimulado pelos centros metropolitanos, o academicismo é intolerável nas universidades, que são aqui consideradas como modelo de centros de ensino e pesquisa (“centros de excelência” no jargão ideológico), pois nos países centrais estão a serviço do interesse nacional e da expansão imperialista. Nos países dependentes, ao contrário, funcionam como mera simulação intelectual, ou seja, como academicismo nocivo que merece denúncia e combate.

 Contudo, também sobre a universidade a pressão social existirá com mais força. Não sou demasiadamente otimista em pensar que está próximo o dia em que o atual sistema de avaliação - cuja triste metáfora é o Lattes - será reconhecido como um tempo em que o cinismo, a indiferença, a covardia intelectual e a ignorância alcançaram seu apogeu. No momento, é necessário combater energeticamente este sistema de extração colonial que alimenta a distância dos universitários em relação ao seu povo e a realidade de seu país e do mundo. É necessário denunciá-lo como uma forma de alienação e grave limitação da capacidade de todos aqueles que ainda depositam suas esperanças na construção da universidade necessária. É precisamente via pós-graduação onde mais avançou o sistema alienante, ainda que também se alimente das energias que não são menores na graduação. Insisto em algo elementar: não se trata apenas de rechaçar o caráter “operacional” da universidade e/ou denunciar o Currículo Lattes como um “horror”. Ora, o academicismo anti-intelectual que sofremos é essencialmente colonizante, uma peça para garantir a ideologia segundo a qual um país dependente - porém democrático e com algumas moléculas de justiça social - é tudo o que podemos conquistar.

 Neste sentido, os textos aqui reunidos constituem em grande medida um capítulo de história intelectual, especialmente importante para as novas gerações de estudantes e professores, de militantes sociais e sindicalistas, que poderão compreender de maneira crítica uma parte do debate das ideias que, conscientes ou não, de maneira direta ou indireta, influenciou sua formação político-intelectual. Contudo, este resgate não está voltado com os olhos para o passado; ao contrário, observa o presente e o futuro imediato como um tempo em disputa, de crescente radicalização, ainda que sob o ritmo político brasileiro, onde todas as transformações ocorrem, de fato, de maneira muito lenta.

 Em minha perspectiva, nem a democracia - certamente restringida - nem o desenvolvimento - a ideologia por excelência na periferia capitalista - pode limitar a avanço deste programa de pesquisa que não somente recupera antigas contribuições teóricas iniludíveis para explicar o desenvolvimento capitalista no Brasil, mas amplia novos temas de estudo apenas sugeridos na década de sessenta e setenta quando ganharam certa visibilidade em nosso continente e influenciaram em grande medida o mundo universitário dos países centrais. Ao contrário, é precisamente pelas restrições que o regime político democrático liberal adquire entre nós e sua íntima relação com a reprodução ampliada da dependência que os estudos sobre a teoria marxista da dependência retomam vitalidade teórica e ganham visibilidade social.

 Não tenho dúvidas a respeito; as graves limitações que sofremos nas universidades brasileiras expressam as condições dominantes na sociedade, razão pela qual somente a retomada do movimento de massas recolocará questões teóricas ainda incipientes entre nós e permitirá o pleno desenvolvimento da perspectiva analítica aqui defendida. O fim das ilusões semeadas pela “alternativa petista” criada na década de oitenta e o impacto da crise inaugurada em 2007/2008 são acontecimentos importantes que abalam fortemente o minguado neo-desenvolvimentismo, que se apresenta entre nós como espécie de representação do “melhor dos mundos possíveis”. O superendividamento estatal, a superexploração da força de trabalho, o fortalecimento da economia exportadora, o raquitismo do mercado interno quando o país exibe a menor taxa de desemprego da história recente, fenômenos aliados à virtual desaparição de uma burguesia industrial produtora de máquinas e equipamentos - crescentemente importados da China - demonstram que as bases materiais para uma política de corte desenvolvimentista simplesmente não existem em nosso país.

 Enfim, se as limitações da ditadura já não mais existem e o esgotamento do sistema político brasileiro exige das classes subalternas novo esforço teórico-político, também diminuem os obstáculos para atender esta demanda social desde a universidade. A covardia intelectual agora está ainda mais desprotegida, quando comparada com a época da ditadura. Não há razão para negar que as condições são mesmo favoráveis para novo impulso do marxismo no país. No entanto, este novo esforço terá que reconhecer a importância da teoria marxista da dependência e a superação do academicismo não poderá surgir senão do estabelecimento de inabaláveis vínculos dos intelectuais com as forças sociais efetivamente interessadas na transformação revolucionária da sociedade brasileira.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Da enorme utilidade dos conservadores, esses seres de existência dispensável


''Nunca subestime o poder de gente idiota em grandes grupos.'' O elefante da imagem é o símbolo do Partido Republicano (Republican Party), um dois maiores partidos estadunidenses e representa-mór da variação direitista do espectro político nos EUA.

 O abastecimento de água potável em Flint, Micihgan (EUA) está ameaçado devido à contaminação de seus reservatórios. Há oito mil crianças sob risco na cidade. A alimentação de água de Flint vinha do Lago Huron, não do Rio Flint, porque este foi transformado em esgoto químico pela GM durante as décadas em que a companhia lá operou. A poluição do Rio chegou a tal ponto que a fábrica fechou: porque a água era tão contaminada que prejudicava as peças dos carros!


 O abastecimento à cidade foi transferido do rio para o lago.

 Recentemente, para "economizar" tostões no galão de água nos pontos de consumo ("economia" da companhia privada, bem entendido), o governador republicano Snyder autorizou que uma parte do abastecimento da cidade fosse retornada para o Rio Flint, por meio das antigas tubulações enterradas. As áreas cujo abastecimento foi alterado são as mais pobres. A companhia de águas garantiu que a água era potável, o governador -- provavelmente comprado -- acedeu. A mudança foi feita.

 Logo apareceram sintomas de envenenamento por chumbo em dezenas de milhares de pessoas.
O caso foi abafado, o governador e a companhia passaram a mentir sistematicamente no sentido de que tudo estava no melhor dos mundos.

 Até que... a merda bateu no ventilador.

 Ah, sim: as pessoas atingidas chegam a 88.000.
 A esse momento, talvez você deva estar pensando que os ''responsáveis'', ''pragmáticos'' e ''nacionalistas'' políticos ianques, em especial os conservadores, trataram de cuidar em resolver um tamanho problema para seu povo...

  Só que não. Os senadores estaduais do Partido Republicano, em um gesto louvável, fazem aprovar uma lei... proibindo o sexo anal (você pode verificar a notícia aqui)

 Eis a utilidade dos conservadores.

(Agradeço aos camaradas Luiz Lima e Frederico pelas informações presentes no texto, e inclusive por boa parte de sua redação).

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A mulher trabalhadora

Rosa Luxemburgo (1871-1919) entrou para o movimento revolucionário ainda estudante. Em 1893, colaborou na fundação do Partido Social Democrata Polaco. Entrou para o Partido Social Democrata Alemão em 1898. Em 1907, em Londres, na conferência do Partido Social Democrata Russo, apoiou os bolcheviques contra os mencheviques em todos os problemas mais importantes da Revolução russa. No mesmo ano, no Congresso de Stuttgart da II Internacional, juntamente com Lenin, apresentou a proposta revolucionária contra a guerra e que foi adotada, na essência, pelo Congresso. Após a Revolução de Novembro de 1918 na Alemanha, juntou-se a Karl Liebknecht e fundaram o Partido Comunista Alemão. Seu texto ''A proletária'' (que significa trabalhadora assalariada) foi escrito em 1914, ano da 1ª guerra mundial.


 O dia da trabalhadora assalariada inaugura a semana da Social-Democracia [1]. O partido dos deserdados coloca a sua coluna feminina no front ao partir para a dura luta pela jornada de oito horas, a fim de espalhar a semente do socialismo sobre novas terras. E a igualdade de direitos políticos das mulheres é o primeiro mote que ela levanta, ao se prestar a recrutar novas seguidoras em prol das reivindicações de toda a classe trabalhadora.

 Hoje, a trabalhadora assalariada moderna pisa no palco público tanto como a protagonista da classe trabalhadora quanto, ao mesmo tempo, de todo o gênero feminino, a primeira protagonista em milhares de anos.

 A mulher do povo teve de trabalhar pesado desde sempre. Na horda bárbara ela carrega o peso, coleta alimentos; no povoado primitivo, planta e mói o cereal, faz panelas; na Antiguidade, como escrava, serve os senhores e amamenta os rebentos; na Idade Média, fiava para o senhor feudal. Mas, desde que existe a propriedade privada, na maioria das vezes a mulher do povo trabalha separada da grande oficina na produção social, ou seja, separada também da cultura, encurralada na estreiteza doméstica de uma pobre existência familiar. Foi apenas capitalismo que a arrancou da sua família e a colocou sob o fardo da produção social, empurrou-a para as lavouras de outrem, para as oficinas, construções, escritórios e lojas. Como mulher burguesa, a mulher é uma parasita da sociedade, sua função consiste apenas em auxiliar no consumo dos frutos da exploração; como pequeno-burguesa, ela é o animal de carga da família. E apenas na trabalhadora moderna que a mulher se toma um ser humano, pois é apenas a luta que produz o ser humano, a participação no trabalho cultural, na história da humanidade.

 Para a mulher burguesa proprietária, sua casa é o mundo. Para trabalhadora, todo o mundo é a sua casa, o mundo com o seu sofrimento e sua alegria, com sua atrocidade fria e seu tamanho. A trabalhadora vaga com o trabalhador do túnel que liga a Itália a Suíça, acampa em barracas e seca, enquanto cantarola, a roupa dos bebês ao lado de rochas explodindo. Como trabalhadora sazonal do campo, no início do ano, ela encontra-se no barulho das estações de trem, sentada sobre os seus humildes pertences, um lencinho cobrindo o penteado simples aguarda pacientemente para ser transportada do leste para o oeste No deque do navio a vapor ela se desloca com as ondas que levam a mi séria da crise da Europa para a América, em um amontoado de e idiomas de proletários famintos, para, quando a onda de ref1uxo uma crise americana se fizer presente, retomar para a miséria familiar da Europa, para novas esperanças e decepções, para uma nova caça por trabalho e pão.

 A mulher burguesa não tem nenhum interesse real em direitos políticos pois não exerce uma função econômica na sociedade, pois usufrui dos frutos acabados da dominação de classe. A reivindicação, por igualdade de direitos femininos é, onde ela se manifesta nas mulheres burguesas, mera ideologia de alguns grupos fracos, sem raízes materiais, um fantasma da oposição entre a mulher e o homem, uma esquisitice. Por isso, o caráter anedótico do movimento das sufragistas [2].

 A trabalhadora precisa de direitos políticos, pois exerce a mesma função econômica que o proletário masculino na sociedade, se sacrifica igualmente para o capital, mantém igualmente o Estado, e igualmente sugada e subjugada por ele. Ela tem os mesmos interesses e, precisa, para sua defesa, das mesmas armas. Suas reivindicações políticas estão profundamente enraizadas no abismo social que separa a classe dos explorados da classe dos exploradores; não na oposição entre o homem e a mulher, mas na oposição entre o capital e o trabalho.

 Formalmente, o direito político da mulher insere-se harmonicamente no Estado burguês. O exemplo da Finlândia, dos Estados americanos, de comunidades isoladas, prova que a igualdade de direitos das mulheres ainda não derruba o Estado, não toca na dominação do capital. Mas como o direito político da mulher é, hoje, uma reivindicação de classe puramente proletária, então, para a atual Alemanha capitalista, ele é como o sopro do juízo final. Como a república, como a milícia, como a jornada de oito horas, o direito de voto das mulheres apenas pode vencer ou sucumbir junto com toda a luta de classes do proletariado, apenas pode ser defendido com os métodos proletários de luta e os seus meios de poder.

 Defensoras burguesas dos direitos das mulheres querem adquirir direitos políticos para então tomarem parte na vida política. A mulher trabalhadora apenas pode seguir o caminho da luta trabalhadora, que, inversamente, conquista cada palmo de poder efetivo para, apenas assim, adquirir os direitos escritos. No princípio de toda ascensão social era a ação. As mulheres trabalhadoras precisam fincar pé na vida política por meio de sua participação em todos os domínios, apenas assim e que elas criam um fundamento para os seus direitos. A sociedade dominante lhes recusa o acesso aos templos de seus fóruns deliberativos, outra potência dessa época lhes escancara as portas — o Partido Social-Democrata. Aqui, em fileiras e membros da organização, estende-se diante da mulher trabalhadora um campo incalculável de trabalho político e poder político. Apenas aqui a mulher e um fator no que se refere a igualdade de direitos. Ela é introduzida na oficina da história por meio da social-democracia, e aqui, onde agem forças ciclópicas, ela alcança a igualdade de direitos efetiva, ainda que o direito escrito de uma constituição burguesa lhe seja negado. Aqui, ao lado do homem, a mulher trabalhadora sacode as colunas da ordem social vigente e, antes que esta lhe conceda um direito aparente, ela irá ajudar a pôr em ruínas essa ordem social.

 A oficina do futuro necessita de muitas mãos e de bastante fôlego. Um mundo de lamúria feminina aguarda libertação. A mulher do pequeno camponês suspira à beira do colapso sob o fardo da vida. Ali, na África alemã, no deserto do Kalahari, permanecem os ossos de mulheres Hereros indefesas, que foram levadas pelos soldados alemães a pavorosa morte de fome e sede. Do outro lado do oceano, nos altos rochedos de Putumayo, perdem-se, inaudíveis para o mundo, gritos de morte de mulheres indígenas torturadas nas plantações de borracha de capitalistas internacionais.

 Trabalhadora, a mais pobre dos pobres, a mais injustiçada dos injustiçados, vá a luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital. A social-democracia concedeu a você um lugar de honra. Corra para o front, para a trincheira!

Notas
[1] No ano de 1914 o Dia Internacional da Mulher, 8 de março esteve sob o signo da luta pelo direito de voto e pela igualdade de direitos da mulher. Com esse dia da mulher social-democrata, foi inaugurada a "Semana Vermelha" do partido de 8 a 15 de março de 1914, que serviu à agitação da social-democracia e da sua imprensa. Como resultado, pôde ser registrado um crescimento significativo de membros e de um aumento do número de assinantes da imprensa. (retornar ao texto)

[2] Como "sufragistas" ficaram conhecidas, na Grã-Bretanha, em primeiro lugar, as lutadoras pela igualdade politica de direitos das mulheres e, também, as seguidoras do movimento de direito de voto das mulheres. (retornar ao texto)