domingo, 12 de julho de 2015

Sobre a ideologia de gênero


 O termo ''ideologia de gênero'' parece ter caído nas graças (e nos discursos) dos conservadores, que aparentam estar revoltados com uma suposta aplicação dela nas escolas, e mais: determinados a abolir tal coisa. Oras, eu também me oponho a algo que, a meu ver, só pode se chamar ''ideologia de gênero'', e de forma ainda mais radical que os conservadores: não quero abolir a aplicação dela nas escolas, mas em todo e qualquer espaço de socialização dos indivíduos. 

 Mas o que é a ideologia de gênero? Bem, façamos uma análise do termo, a começar pela palavra ''ideologia''. Esta, numa compreensão marxista, difere muito do significado cotidiano de ''conjunto de ideias'' -- tão amplo que se desdobra no termo ''ideologia política'', da qual o socialismo seria um exemplo. Para nós, ideologia distingue-se de ciência e programa político, sendo a primeira um estudo metodificado (e sistemático) da realidade e o segundo um conjunto de propostas acerca das práticas e relações interindividuais/sociais que devemos manter/realizar; ideologia, na verdade, é todo discurso produzido tendo por finalidade legitimar, nas consciências individuais e no imaginário coletivo, certos programas políticos (que, como é possível presumir, vão muito além do Estado). 

 Que é, por sua vez, o gênero? Bem, a maior parte de nós nasce com o par cromossômico sexual  sendo XX ou XY (há pessoas XXX, XXY, X0...), e então é designada como pertencente ao sexo masculino ou feminino. Observe bem: ''sexo masculino'' e ''sexo feminino'' são categorias referentes a um conjunto de características biológicas. No cotidiano, porém, as palavras ''homem'' e ''mulher'' (ou ''homem de verdade'' e ''mulher de verdade'') não são usadas só -- talvez nem principalmente -- como sinônimo de ''sexo masculino'' e ''sexo feminino'', mas também para descrever um determinado comportamento (que envolve gostos e atitudes)  a ser apresentado pelas pessoas de cada sexo. na sociedade brasileira, p. ex., a identidade masculina ''exige'' virilidade, coragem e relacionamentos eróticos exclusivamente heterossexuais, além de gosto pelo futebol.

 A ideologia de gênero (a verdadeira, não as elucubrações dos conservadores) nada mais é que a imposição, compulsória, das normas de gênero, disfarçada sob argumentos envolvendo uma suposta natureza, ordens divinas ou outra coisa que envolva moralidade. Uma consequência dela é que toda pessoa que ''desobedeça'' às normas de gênero será considerada inferior (o que explica bem a violência verbal e física que sofre a população LGBT). Judith Butler (2002: 134), p. ex., observa que a homofobia opera por meio da atribuição de um ''gênero prejudicado'', ''defeituoso'', ''falho'', ''abjeto'' às pessoas homossexuais. Segundo ela, a matriz heterossexual regula a sexualidade ''mediante a vigilância e a humilhação do gênero'', de sorte que a homofobia ''pode se expressar ainda numa espécie de 'terror em relação à perda do gênero', ou seja, no terror de não ser mais considerado como um homem ou uma mulher 'reais' ou 'autênticos(as)''' (LOURO, 2004a: 28-9). Neste sentido, as normas de gênero (BUTLER. 1999, 2002 e 2006) parecem operar aí com toda a sua força, fazendo com que o sexismo e a homofobia se configurem ''como componentes necessários do regime binário das sexualidades'', de modo que a homofobia acaba por aí se converter em uma guardiã das fronteiras sexuais (hetero/homo) e das de gênero (masculino/feminino)'' (BORRILLO, 2001: 16).

 As normas de gênero também requerem uma afirmação constante de itens cuja falta coloca em risco a honra do gênero, construída em oposição a certas características do gênero oposto que o indivíduo, para ser um ''homem/mulher de verdade'' jamais deve dar indícios de ter, o que configura-se, no caso da masculinidade, como um processo de altas doses de cerceamento, fazendo com que a parte dominante (o elemento ''masculino'') seja ironicamente ''dominado por sua própria dominação''. 

 O privilégio masculino (em relação às mulheres -- A.M.) é também uma cilada e encontra sua contraposição na tensão e na contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe ao homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade.[...] A virilidade, entendida aqui como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de tudo, uma carga (BOURDIEU, 1999: 64).


 Um exemplo lógico do que fala Bourdieu não poderia deixar de ser o desprezo que os homens brasileiros é a demonstração de resistência e vigor, de cuja uma das consequência é o desprezo para com os cuidados em relação à saúde. Confesso estar com preguiça de pesquisar as fontes e pôr aqui (em parte devido a uma internet vacilante, haha), mas já tive contato -- e tenho certeza que o leitor provavelmente também já teve -- com dados que expunham que nós fazemos bem menos consultas médicas e seguimos bem menos à risca aquilo que os profissionais da saúde do que o fazem as mulheres. Não é à toa que temos uma expectativa de vida menor. 

 Claro, nem todos os elementos inclusos nas identidades de gênero são (ou são de todo) ruins. Eu me agrado com a sugestão de que todas as pessoas do sexo masculino devam ser corajosas, ou que todas as do sexo feminino devam ser afetuosas; mas, na verdade, acho que todas as pessoas devam ser corajosas e afetuosas, e também que a exigência compulsória de que sejamos uma coisa ou outra, sem levar em conta as particularidades individuais (um trauma de infância ou algum outro fator neuropsicológico e quiçá hormonal) pode causar constrangimentos e humilhações que não passam de injustiça. Idem para ''ter -- ou tentar ter -- um porte físico forte'' (nesse caso apenas para o sexo masculino, e bem, vamos precisar de músculos na revolução socialista, não vamos?). 

 A ideologia de gênero deve ser eliminada porque impede-nos de aproveitar tudo o que é possível fazê-lo sem prejudicar aos outros (como ser uma liderança, no caso feminino, ou manter relações de afeto mais estreitas, no caso masculino) e também condena pessoas, por sua própria natureza, à subumanidade, à estigmatização e à ausência de cidadania -- como hoje sofre a população LGBT. A ideologia de gênero deve ser eliminada porque é uma ofensa à dignidade humana. 



Bibliografia

BORRILLO, Daniel. Homofobia. Barcelona: Bellaterra, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BUTLER, Judith. Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do ''sexo''. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
______________. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del ''sexo''. Buenos Aires: Paidós, 2002.
______________. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2004a.

Ver também

http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/05/heteronormatividade-e-homofobia.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/02/notas-sobre-transsexualidade.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/05/teorias-sobre-genese-da.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/02/racismo-misoginia-e-lgbtfobia-no.html

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