domingo, 18 de outubro de 2015

A teoria da ''ideologia'' em Althusser


Louis Althusser (1918-1990)

 A teorização que o filósofo francês faz acerca da ''ideologia'' está, como ele bem cedo deixa claro, intima e mesmo essencialmente relacionada com a sua interpretação da ''teoria marxista da história'' (1979, p. 204). Partindo desta última, e assim definindo os '''sujeitos' da História'' como ''as sociedades humanas dadas'', ele afirma que estas são 

''(...) totalidades, cuja unidade é constituída por um certo tipo específico de complexidade, pondo em jogo as instâncias que se pode mui esquematicamente, na sequência de Engels, reduzir a três: a economia, a política e a ideologia. Em toda sociedade se constata, pois, sob formas às vezes muito paradoxais, a existência de uma atividade econômica de base, de uma organização política e de formas ''ideológicas'' (religião, moral, filosofia). A ideologia faz, pois, organicamente, parte, como tal, de uma totalidade social. [grifo do autor]'' (Idem, pp. 204-5)

 Ainda segundo ele, ''as sociedades humanas segregam a ideologia como o elemento e a atmosfera mesma indispensáveis à sua respiração'', e ''(a ideologia) é uma estrutura essencial à vida histórica das sociedades'' (Ibid, p. 205). Mas que é, exatamente, a ideologia? Diz-nos ele que 

''Uma ideologia é um sistema (possuindo a sua lógica e o seu rigor próprios) de representações (imagens, mitos, ideias ou conceitos segundo o caso) dotado de uma existência e de um papel históricos de uma sociedade dada.'' (Ibid, p. 204)


 E prossegue:

 ''Convencionou-se dizer que a ideologia pertence à região da 'consciência'. É preciso não se deixar enganar por esse epíteto, que permanece contaminado pela problemática idealista anterior a Marx. Na verdade, a ideologia pouco tem a ver com 'consciência',  ao supor-se que esse termo tenha um sentido univoco. Ela é profundamente inconsciente, mesmo quando se apresenta (como na 'filosofia' pré-marxista) sob uma forma refletida. A ideologia é, antes de tudo, um sistema de representações: mas essas representações na maior parte das vezes nada têm a ver com 'consciência': elas são na maior parte das vezes imagens, às vezes conceitos, mas é antes de tudo como estruturas que elas se impõem à imensa maioria dos homens, sem passar para a sua consciência. São objetos culturais percebidos-aceitos-suportados, e que agem funcionalmente sobre os homens por um processo que lhes escapa.'' (Ibid, p. 206)

 Compreende-se, então, que a ''ideologia'' (no entender  de Althusser) não é algo como um dado específico ou uma opinião -- dos quais se pode estar consciente --, mas algo como um ''horizonte'' de pensamento, os ''limites'' dentro dos quais as consciências dos homens concebem a realidade:

''(...) os homens vivem as suas ações... na ideologia, através e pela ideologia; ...a relação 'vivida' dos homens com o mundo, inclusive a História (na ação ou inação política), passa pela ideologia, ou melhor, é ela própria a ideologia. É nesse sentido que Marx dizia que é na ideologia (como lugar de lutas políticas) que os homens tomam consciência de seu lugar no mundo e na história: é no seio dessa inconsciência ideológica que os homens chegam a modificar as suas relações 'vividas' com o mundo, e a adquirir essa nova forma de inconsciência específica que se chama 'consciência'.'' (Ibid, idem)

 E acrescenta:

 ''A ideologia é, então, a expressão da relação dos homens com o seu 'mundo', isto é, a unidade (sobredeterminada) da sua relação com o real e da sua relação imaginária com as as suas condições reais. Na ideologia, a relação real está, inevitavelmente, investida na relação imaginária: relação que exprime mais uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionária), mesmo uma esperança ou uma nostalgia, que não descreve uma realidade.'' (Ibid, pp. 205-6)

 A ''ideologia'' é, então, um ''sistema de representações'' que ''orienta'' a realidade social (as relações entre os indivíduos) para uma formação específica, uma ''ordem'' social específica, concebida como natural, única possível ou necessária, numa espécie de ''racionalização'' -- de forma que garante sua reprodução através do tempo, dominando os indivíduos sem o uso de repressão.

''A ideologia, assim, responde a uma exigência anterior à necessidade da reprodução das relações de produção (capitalistas ou outras) e da dominação política de classe, como ainda entendem diversos autores (marxistas ou não). Anterior a qualquer outra coisa, a ideologia assegura, em todo sistema de sociedade, mesmo naqueles nos quais não há classes, que a ordem social não desabe enquanto uma ordem simbólica, ratificando-a, por meio de representações imaginárias, crenças coletivas e certas ideias sociais, como uma ordem natural, única, universal, imutável, divina. Resultado que a ideologia procura obter invertendo o caráter de coisa construída de toda ordem social e suas instituições, e cujo efeito é a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida sem o recurso da força. A ideologia constitui o modo de operar de qualquer cultura (enquanto sistema de sociedade), ao procurar naturalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos sociais (variando do mito à ciência moderna) que oferecem significações legitimadoras do que em cada cultura está instituído.'' (SOUSA FILHO, 2009)

 O caráter de ideologia é definido pela função que o ''sistema de representações'' específico desempenha:

''Sem entrar nos problemas das relações de uma ciência com o seu passado (ideológico) diremos que a ideologia como sistema de representações se distingue da ciência nisto em que a sua função prático-social tem preeminência sobre a função teórica (ou função de conhecimento).'' (ALTHUSSER, 1979, p. 204).

''Há, finalmente, em Gramsci, além do sentido polêmico e prático desse conceito [o de historicismo], uma verdadeira concepção 'historicista' de Marx: concepção 'historicista' da teoria da relação da teoria de Marx com a história real. Não se trata de puro acaso que Gramsci esteja constantemente perseguido pela teoria crociana da religião, pois que aceita seus termos e a estende das religiões efetivas à nova 'concepção de mundo' que é o marxismo; não faz, sob esse aspecto, diferença alguma entre essas religiões e o marxismo; classifica religiões e marxismo sob o mesmo conceito de 'concepções de mundo' ou 'ideologias'; identifica também facilmente religião, ideologia, filosofia e teoria marxista, sem ressalvar que o que distingue o marxismo dessas 'concepções ideológicas de mundo' é menos essa diferença formal (importante) de pôr fim a todo 'além' supraterrestre que a forma distintiva dessa imanência absoluta (sua 'terrestridade'): a forma da cientificidade. Essa 'ruptura' entre as antigas religiões ou ideologias inclusive 'orgânicas' e o marxismo, que é uma ciência, e que deve tornar-se ideologia 'orgânica' da história humana, produzindo nas massas uma nova forma de ideologia (uma ideologia que repousa agora numa ciência -- o que jamais se viu) -- essa ruptura não é verdadeiramente por Gramsci (...).'' (Idem, 1980, pp.74-5)


 Um exemplo de ideologia (ou de manifestação da ideologia) seria o fenômeno do ''fetichismo da mercadoria'', que Marx descreve no Livro Primeiro de O Capital:

''(A mercadoria encobre) ...as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características sociais inerentes ao produto do trabalho; (ocultando,) ...portanto, a relação social entre o trabalho individual dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho''. (2014, p. 94)
''O que é verdadeiro apenas para essa determinada forma de produção, a produção de mercadorias... parece aos produtores de mercadorias  tão natural e definitivo... quanto o ar''. (Idem, p. 96)

 Ou a ''heteronormatividade'', segundo a qual o desejo sexual na espécie humana ocorre universalmente sob o imperativo da reprodução -- uma racionalização das diferenças anatômicas entre os seres humanos:

 ''Não é a heterossexualidade uma forma inata de sexualidade; como uma prática sexual, ela é social e historicamente construída, e sua naturalização e hegemonia ocorreram por efeito de um longo trabalho de domestificação do imaginário local das sociedades humanas, que se faz invalidando, ao mesmo tempo, a prática da homossexualidade, excluída como uma 'inversão' da sexualidade 'normal'''. (SOUSA FILHO, 2009)

Referências 

ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
ALTHUSSER, Louis; BALIBAR, Étienne (orgs). Ler O Capital, volume 2. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
SOUSA FILHO, Alípio de. ''Teorias sobre a gênese da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude''. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.


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