segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A atual onda de irracionalismo e a ciência como ferramenta de crítica social, por Alípio de Sousa Filho


''O sono da razão produz monstros'', de Francisco Goya.


A universidade e a atual onda de irracionalismo

 Embora se espere que a universidade faça a crítica dessa voga atual de misticismos e irracionalismos, ela não tem sido capaz de fazê-lo. Ao invés, alguns de seus integrantes, sob diferentes considerações e pretextos, têm embarcado de cheio na voga atual de recusa do pensamento científico-crítico. Uma parte dela, por intermédio de alguns de seus professores e alunos, tem levado para aulas, seminários, encontros, etc., visões que são ressacralização da realidade, recusa da teoria e abandono da reflexão crítica -- ainda que tudo isso seja disfarçado em relativismos, holismos etc., seguindo o que Alan Sokal, a propósito de imposturas intelectuais, chamou de ''pout-pourri de ideias, quase sempre mal-formuladas''.

 Ora, não se trata aqui de, criticando os irracionalismos atuais e a recusa da ciência na universidade, fazermos coro com um racionalismo estreito e sectário (estilo, por exemplo, Karl Popper, como em sua Conjecturas e refutações, para quem somente é científico o que se alinha aos parâmetros das ciências experimentais). Nem o esforço geral de crítica (pela iniciativa de intelectuais críticos) a toda essa onda irracionalista na ciência pode ser visto como o ''novo tribunal da inquisição'', como já se disse em alguma parte. Para o pensamento científico-crítico, não se trata de ser a ''inquisição'', mas de combater visões que revestem a realidade de uma aparência em tudo favorável à reprodução da alienação e à reprodução da dominação social-política em suas diversas formas. Pensando-se o caso da universidade e sua função cultural na sociedade, não se pode pretender outra coisa senão a prática da crítica -- trabalhos teóricos críticos, professores críticos, alunos críticos.Contudo, os irracionalismos atuais e a recusa do que é científico e crítico têm entrado na universidade pela porta da frente, com a cumplicidade de quem menos se espera.

 No ambiente universitário, os irracionalismos, os discursos anticiência e anticrítica tornaram-se a forma do palavreado fastidioso que reclama da filosofia e da ciência deixarem para trás o que se tem chamado ''velhos olhos'', ''velhos paradigmas'', etc. Entenda-se por ''velhos'' a tradição filosófica e científica ocidental, dos gregos até nossos dias. O apelo é que nós, universitários, nos integremos na ''conspiração de Aquário''-- como quer Marilyn Ferguson? --, aceitando a teologia da New Age, que reclama o fim da separação entre espírito e matéria, esta que seria uma típica criação da ciência moderna ocidental, o fim dos ''paradigmas reducionistas'' -- entenda-se Marx, Freud, Durheim, Weber, entre outros --, o fim da ''atitude intelectual'', sempre pronta a fazer a análise crítica dos fenômenos da cultura, atitude que teria produzido intolerância frente a tudo -- em certos círculos universitários, a moda é ser ''tolerante'' e, em consequência, ''ignorante'': nada sabemos sobre nada, nada podemos saber. Admiremos o mundo. Sorvemos o vinho da mediocridade. Assim, de Shirley Maclaine e suas 144 vidas, aos repetitivos programas de domingo na TV, tudo é bom e tudo se curte. O pensamento científico-crítico é que é intolerante e chato!

 Não é preciso esperar o ''milênio da paz'': podem-se perceber, entre universitários, embora mais difusas nas falas que sistematizadas, ideias do que se poderia considerar uma antropologia de senso comum -- ou é o senso comum elevado à categoria de teoria?! -- segundo as quais fatos como a acumulação, a exploração, as desigualdades econômicas, sociais e de poder, assim como as desigualdades sociais entre homens e mulheres, e os preconceitos racistas e outros, seriam de base objetiva ou biológica. Teses que não são novas, mas que, de modo impressionante, voltam pouco a pouco. Mas não se pense poder encontrá-las claramente. Aparecem aqui e ali, mais nas falas que por escrito, dissimuladas como rupturas com ''velhos paradigmas'', mas que se vêm difundindo dentro e fora das universidades.

 Por simples exemplo, a leitura de um Heinz R. Pagels, em Os Sonhos da Razão: o computador e ascensão das ciências da complexidade (1990), não deixa dúvida quanto à onda teórica conservadora que ronda a universidade. O livro é um primor de reacionarismo. As desigualdades econômicas e sociais, as hierarquias, a repartição desigual do poder, entre outros aspectos -- e, por extensão, seguindo essa ótica, certamente a existência da pobreza, da delinquência, dos preconceitos raciais e sexistas --, são vistos como resultado de tendências naturais na espécie humana e estas teriam bases biológicas, seriam hereditárias. Conforme a ótica exposta por H. Pagels, os desequilíbrios, as relações de força, as hierarquias, sendo realidades que já encontramos nos outros primatas, caracterizariam também a espécie humana -- tudo sendo bastante evidente, bastando ver que somos como os macacos; nada de humano no mundo humano!

 Não se trata aqui de negarmos nossa parte animal, mas, tratando-se de instituições sociais, hábitos, comportamentos, ideias etc., saímos do reino da natureza para o da cultura -- e isso nos ensina, desde muito cedo, uma antropologia materialista e crítica. Na ótica dos ''novos paradigmas'', contudo, as desigualdade sociais, as hierarquias e os preconceitos sexistas que marcam, por exemplo, as relações entre homens e mulheres, ou que reservam aos que praticam a homossexualidade o estigma de pertencerem a uma espécie à parte, são vistos como resultados de tendências naturais a relações de força, hierarquizações etc. (Se os animais são assim por que não os humanos?), e somente nos restaria aceitá-las -- as feministas e os homossexuais que se calem! Assim, as críticas marxistas, feministas e, em geral, das ciências modernas não teriam qualquer razão de ser, porque quase nada (ou nada), na vida social e no comportamento humano, teria origem histórico-social e cultural. Teorias da socialização do indivíduo humano e da instituição do social, como temos, por exemplo, em Norbert Elias, em A sociedade dos indivíduos, ou em Peter Berger e Thomas Luckmann, em A construção social da realidade, aos olhos destes ''novos paradigmas'', não fazem qualquer sentido. As ideias ideológicas¹ de hereditariedade, tendências inatas, impulsos biológicos e outras voltam à cena e trazem consigo velhas crenças.

 Afastando-se a crítica, passou-se a chamar de ''sociologia dura'', ''certezas'' etc. os esforços teóricos que, na verdade, correspondem à tentativa de ler criticamente a realidade. Em nome da recusa à ''sociologia dura'', muitos são os que vêm admitindo, como exatas, concepções reacionárias, produzidas por crenças sem fundamento, mas que vêm se misturando ao saber científico. Com isso, acreditam beneficiar a universidade e a ciência. Certos grupos universitários têm confundido com ''marxismo'' ou com ''marxização'' da análise da realidade, notadamente em ciências humanas, toda perspectiva crítica. Ora, muitas vezes trata-se de crítica na interpretação -- mas o que já é muito!

 Como observou Paulo Sérgio Rouanet, mais que em outros países, entre nós cresce a ''ressacralização do mundo'', e, poder-se-ia acrescentar, a biologização e a naturalização do social e do cultural. O que se quer de volta? Os deuses e as crenças banidos pela crítica teórico-filosófico-científica? O que teremos com a volta do mistério, do sagrado, da natureza, do inato, aceitos como fatores que explicariam a vida humana, o social e a história? A quem interessa a ideia, a boba ideia, segundo a qual ''a ciência não pode explicar tudo'' -- essa tolice que vem sendo repetida por muitos? Não se percebe que teremos de volta a ignorância e a superstição que, dentre outras coisas, têm condenado pobres, mulheres, homossexuais, negros, deficientes físicos, à opressão, à violência, às representações estigmatizantes, em nossa e em outras sociedades?

 Abriguemo-nos, por fim, nas reflexões do físico Francis Slakey -- a física, que os esotéricos e os adeptos das teses sobre ''crise dos paradigmas'', ''fim das certezas'', ''visão holística'' etc têm apresentado também como aliada no questionamento à ''sociologia dura'': faz-se uso de teorias da física (buraco negro, caos, etc.) para explicações de fenômenos humano-sociais, culturais, históricos --: ''A razão sofre uma morte quase todos os dias. (...) A cada crença fantástica, a objetividade é embolada e a ciência é descartada. Estas fantasias anticientíficas invadem os salões acadêmicos, até mesmo os salões da ciência. (...) Esta é a moda elegante e moderna no campo do pensamento: rejeitar a razão objetiva e questionar o valor da ciência, abraçar a subjetividade e confiar nos sentimentos''. 

A ciência enfrenta os preconceitos morais, religiosos e sociais. A ciência faz a crítica do irracionalismo e do misticismo. Ciência é crítica

 Como não reconhecer a importância do pensamento científico na produção da crítica à ideologia -- esta que se manifesta justo na forma das representações, crenças diárias, superstições infundadas, preconceitos e costumes que mascaram a dominação e a justificam? Para aqueles que têm sistematicamente acusado o pensamento científico-crítico de ''fechado'', ''reducionista'', ''linear'', ''intolerante'' etc., conviria lançar a pergunta de Carl Sagan: ''A que interesses serve a ignorância?'' A ignorância, relativamente ao pensamento científico-crítico, interessa a quais setores da sociedade?

 Até aqui, tem sido o pensamento científico-crítico que tem mantido -- contra os preconceitos e ideias ideológicas diversas, mesmo aquelas que se misturam à ciência -- uma compreensão da realidade que afasta as representações sociais segundo as quais, para ficarmos apenas em alguns exemplos, os dominados e explorados o seriam por ''leis naturais'', ''infortúnios'' ou ''desígnios sagrados'', os negros seriam, por determinações biológicas, ''inferiores'' e ''propensos à violência'', as mulheres seriam ''incapazes'' e ''frágeis'', os homossexuais, ''doentes'' e ''anormais'', etc.

 São a filosofia e as ciências modernas -- entre as quais, as ciências humanas --, insurgindo-se contra essas representações e ideias aceitas, que elaboram uma nova visão do homem, das culturas e da história e que oferecem à sociedade os instrumentos para a crítica superadora de visões que fundamentam costumes, normas, leis e preconceitos injustificáveis, que restam ainda fortes no imaginário social, em diferentes sociedades -- o que não permite aos cientistas, nos diversos domínios, descuidarem de suas responsabilidades sociais e políticas.(Curiosamente, propõe-se abandonar conquistas que, no campo das ciências humanas, por exemplo, têm apenas um século de existência, outras, um pouco mais de um século, num mundo em que boa parte das transformações sociais são recentes e outras que sequer dão sinais de vir a se produzir em tempo próximo: entre outros exemplos, a abolição da escravidão, no Brasil, data apenas do século passado²; a concessão do direito de voto às mulheres, na França, data de 1944; nos anos da Segunda Guerra Mundial, 6 milhões de judeus foram mortos em câmara de gás nos campos de concentração nazistas; a Índia se libertou da dominação inglesa faz pouco mais de cinquenta anos; atualmente, na Argélia, fanáticos, em nome do verdadeiro Islã, diariamente violentam mulheres e assassinam pessoas indefesas -- já se fala em 60000 mortos, num período de seis anos; também em nome da religião, em diferentes partes do mundo, mulheres continuam impedidas de participar da vida pública, etc. -- no Afeganistão, atualmente, as mulheres são submetidas a violências absurdas --, e, com justificativas religiosas, israelenses continuam massacrando palestinos; na maioria das sociedades, os homossexuais continuam estigmatizados pelo preconceito; sobre os negros ainda pesam representações sociais que os oprimem. Propõe-se abandonar conquistas do pensamento científico moderno num mundo em que 1/3 da população do planeta passa fome, 250 milhões de crianças são submetidas a trabalho forçado, 12 mil pessoas se suicidaram na França num só ano, 1997, e 7 mil, na Inglaterra, no mesmo ano, e num mundo em que, nas primeiras décadas deste século, no Brasil, intelectuais ainda discutiam se a miscigenação biológica entre portugueses, indígenas e africanos tinha-nos feito, nós brasileiros, ''inferiores'', ''raça inferior''. E que dizer de se colocar em questão as conquistas do pensamento científico num país, como o Brasil, em que a morte provocada de pessoas é vista como coisa natural -- mortes provocadas pela fome, por atropelamento, por ações da polícia, por ''erros'' médicos, por ações ordenadas por ricos proprietários, justificando a defesa de suas propriedades, sem contar os assassinatos e crimes que a vida cotidiana tem banalizado em muitas cidades (assassinatos de menores, travestis, mulheres, mendigos,etc.)

 Como desprezar o trabalho da crítica científica, como os paladinos dos ''novos paradigmas'' vêm fazendo, dentro e fora do ambiente universitário, trocando ciência por uma mistura de fragmentos de religiões orientais, astrologia, crenças diversas -- e há aqueles que acrescentam a isso o retorno de um enfoque biologista --, para a explicação de cultura e comportamentos humanos, pela visão de que as ciências, tal como as temos hoje, não têm conseguido explicar a realidade, dar respostas às necessidades humanas, etc., porque seriam ''racionalistas'', ''reducionistas'', ''lineares'', ''deterministas''? Mas, a propósito dessas acusações, poder-se-ia perguntar: há visão da realidade mais determinista e linear que a da astrologia, se indivíduos, nações e épocas têm suas vidas e histórias determinadas ''pela posição dos astros'' no momento do nascimento? Ou, sobre bases biológicas de instituições sociais, haverá visão mais reducionista? Ou, ainda, sobre as ideias de reencarnação, carma, etc., poderão existir crenças mais deterministas e também mais reducionistas?

 A importância da ciência para a crítica social é inegável. É o conhecimento teórico-científico que, até aqui, tem tornado possível afastar concepções que justificam a opressão político-social, enfrentado visões e antigas crenças que mantêm indivíduos e sociedades como prisioneiros de representações estigmatizantes, sistemas de poder, etc. É a visão crítico-científica que, acompanhando as transformações históricas, é responsável pela libertação dos indivíduos das cadeias que os mantêm atados, na vida cotidiana e comunitária, a normas, regras, ideias que realizam a dominação social sob diferentes formas.

 Até aqui, as lutas pela emancipação dos indivíduos e sociedades tiveram o modo científico de pensar como contra-discurso crítico ao que se fixou, como ideias, imagens, representações, etc. sobre indivíduos, grupos sociais e povos inteiros.

 A crítica do irracionalismo e do misticismo não é, pois, capricho dos cientistas. Esta é crítica que não pode deixar de ser feita pela ciência.

 Claro, não se trata de tomar o pensamento científico como a forma única da crítica. A literatura, o cinema e as outras artes, em geral, são outras formas de se produzir a crítica. Isso não é ignorado por aqueles que lidam com a ciência. Mas, que se trate de arte ou ciência, o certo é que, tratando-se de reconstruções da realidade que se oponham às representações sustentadas pela ideologia, continuamos no campo da reflexão crítica, no qual a ciência atua com vantagens. Não há, pois, razão de se destacar também que ''a ciência não é a única forma de compreensão crítica da realidade'' -- outra das bobagens que se tem repetido nos salões universitários, como se fosse coisa que já não se soubesse! --, numa espécie de lição relativista para a censura de uma suposta pretensão monopolista do saber.


SOUSA FILHO, Alípio de. Responsabilidade intelectual e ensino universitário: carta aberta aos que amam a ciência. Natal: UFRN, 2000, pp. 123-130.

 Notas

[1] Sobre o conceito de ''ideologia'' em Alípio de Sousa Filho, ver esse post.
[2] Lembro que o livro data do ano 2000 -- último ano do século XX.

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