quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Neoliberalismo, ortodoxia e ajuste econômico: crítica da economia política brasileira

por Marcelo Dias Carcanholo* 
''E aos pobres do mundo, nós dizemos isso -- lembre -- ''nós estamos contando com vocês para nos manter ricos''. 

 Toda mistificação, a não ser que seja pura verborragia, costuma ter uma base real concreta. Se isso for verdadeiro, qual seria o sentido para um pensamento convencional que se apresenta como a única resposta possível para o enfrentamento dos impactos da atual crise econômica mundial? Por que o ajuste ortodoxo se apresenta como o único tecnicamente correto e, portanto, imprescindível e inexorável? 

 Se ele fosse puro embuste tratar-se-ia apenas de elucidá-lo como tal. No entanto, ele faz sentido (ainda que o mero sentido comum) e, o que é mais importante, suas hipóteses implícitas, e não com surpresa deliberadamente escondidas, é que devem ser elucidadas para, por um lado, entender suas incongruências enquanto argumento/proposta e, por outro, a quais interesses atende. 

 O primeiro ponto a elucidar, se o objetivo é desmistificar a inexorabilidade do ajuste ortodoxo, diz respeito à relação entre a estratégia neoliberal de desenvolvimento e o caráter (ortodoxo ou heterodoxo) da política econômica. Não são poucos os que confundem uma política econômica ortodoxa com o neoliberalismo, o que é falso. Este último, segundo seus defensores, se define por duas características.

  Em primeiro lugar, é pré-condição obter e manter a estabilização macroeconômica, isto é, o controle inflacionário e das contas públicas. O objetivo aqui é, segundo o pensamento convencional, manter a estabilidade dos principais indicadores (fundamentos) macroeconômicos, para que os capitais possam formular melhor expectativas de médio e longo prazo e, portanto, investir em prazos mais longos. Com que tipo de política econômica se obtém a estabilização? Para o neoliberalismo, não importa, desde que se consiga. Na verdade, o caráter da política econômica, se ortodoxo ou não, é definido pela conjuntura específica que se atravesse.

Em segundo lugar, obtida a pré-condição da estabilização macroeconômica, o neoliberalismo – e é isto que o define de forma característica – defende a implementação de reformas estruturais de privatização, liberalização, desregulamentação e abertura dos mercados, em especial os mais importantes para uma economia capitalista, o de trabalho e o financeiro. 

 Portanto, o neoliberalismo não pode, em hipótese alguma, ser reduzido à aplicação de políticas econômicas ortodoxas, podendo perfeitamente, dependendo da conjuntura, ser impulsionado com políticas econômicas heterodoxas. 

 Mas, a atual conjuntura da economia mundial, de profunda e duradoura recessão, de fato, colocaria o ajuste ortodoxo como a única forma de combate aos efeitos dessa crise, tanto em economias centrais como em países em desenvolvimento. O argumento convencional defende que a causa da crise é o excesso de gastos/demanda na economia, especialmente o gasto público, sem o respaldo de capacidade produtiva para ofertar. Os efeitos disso seriam o crescimento do nível geral de preços, o aumento do déficit público que, quando financiado com venda de títulos públicos, impacta na maior dívida pública, e a elevação dos déficits externos, que redundam em endividamento externo. 

 Com esse diagnóstico, a terapia ortodoxa, portanto, se resume à restrição da oferta monetária/creditícia e ao ajuste fiscal. A política monetária, operacionalizada pelo Banco Central, pode ser impulsionada por restrições de quantidade de moeda e/ou por elevação das taxas de juros. No atual regime de metas inflacionárias, que caracteriza a economia brasileira, a lógica se dá pela segunda opção, isto é, o Banco Central eleva as taxas básicas de juros, sinalizando para os mercados monetário e financeiro a restrição monetária, no intuito de controlar a inflação. O ajuste fiscal, por sua vez, ganha uma notoriedade ainda maior dentro desse pacote econômico. Ele pode ser obtido por uma combinação de maior arrecadação, com elevação de impostos, e/ou diminuição dos gastos públicos. A ortodoxia sempre prefere esta última, e o argumento é que o maior peso dos impostos reduz os gastos privados, restringindo a recuperação da economia.

 O arrocho fiscal, baseado na redução dos gastos públicos, levaria a uma redução do déficit público, mas o objetivo é que, descontadas as despesas financeiras, o Estado passe a apresentar um superávit – o conhecido superávit primário. Isto significa, por um lado, que a arrecadação estatal supera os gastos convencionais com, por exemplo, educação, saúde, habitação, funcionalismo, etc. Esta sobra de recursos permitiria o pagamento do serviço da dívida pública que, dado o esforço fiscal, poderia representar a redução do estoque da dívida pública em relação ao PIB, um dos principais fundamentos macroeconômicos para este tipo de visão. 

 Faz todo o sentido, e é algo perfeitamente inteligível para qualquer um que não tenha preconceitos ideológicos. Evidente que os seus formuladores/operadores devem ser técnicos (economistas) especializados, imunes aos apelos populistas, para que a política tenha sustentabilidade e crie confiança nos mercados. Este é o argumento convencional, incluindo aí a suave forma de nos dizer que a técnica econômica implementada deve ser imune a interferências políticas. 

 Em primeiro lugar, o arrocho fiscal recessivo, como conclusão, requer uma hipótese de partida que raramente é explicitada no argumento: as despesas do Estado são compostas por gastos correntes (não financeiros) e por despesas financeiras. Dessa forma, o déficit público que por ventura se estabeleça se define pelo excesso de gastos (financeiros e não-financeiros) em relação às receitas. Desconsiderando a hipótese de maior arrecadação para fazer frente às despesas, a pergunta é óbvia: por que a variável de ajuste são as despesas não-financeiras? Por que o ajuste fiscal não pode ser feito nas despesas financeiras, isto é, nos gastos públicos com juros e amortizações da dívida pública? Isto nos leva a dois pontos. 

 Por um lado, a explícita defesa de superávits primários para pagamento do serviço da dívida demonstra o compromisso com a manutenção do valor desses títulos públicos que constituem o estoque da dívida pública. O argumento oficial é que isto é necessário para a confiança e melhor rolagem da dívida. O que não se explicita é a real causa do aumento da dívida nos últimos tempos, saindo de R$ 1,01 trilhão em 2004 para cerca de R$ 2,5 trilhão em meados de 2015. Na verdade, o crescimento da dívida pública brasileira, e este é o segundo ponto, ocorre por várias razões, todas elas relacionadas aos reais interesses econômicos e políticos que sustentam o bloco de poder atualmente governando o país. 

 A primeira delas é a elevada taxa de juros, que corrige, em grande parte, o estoque da dívida pública. Se considerarmos que o crescimento da economia é um bom indicador do crescimento da arrecadação, e compararmos com o crescimento das taxas de juros domésticas, percebe-se que estas últimas superam em muito as primeiras, o que obriga, na lógica convencional, a elevar os superávits primários apenas para manter estável a relação estoque da dívida sobre o PIB. Logo, exatamente ao contrário da ortodoxia, as taxas de juros não são altas porque a dívida é elevada, mas exatamente o contrário. Trata-se, portanto, de reduzir as taxas de juros.

 A segunda faz parte da forma como todos os governos procuraram responder à crise econômica desde 2007. A pressão por desvalorização dos títulos no contexto da crise foi respondida pelos Estados com maior atuação destes nos mercados, procurando manter o nível da demanda por esses papéis de forma a não os desvalorizar em demasia. Como se obteve isto? Novamente, a redução dos gastos não-financeiros (ajuste fiscal recessivo) cumpriu um papel. Mas, o mais importante é que o Estado financiou esta intervenção recorrendo à tomada de empréstimos no mercado privado, oferecendo em troca títulos públicos. O curioso, para dizer o mínimo, é que boa parte do crescimento da dívida pública ocorreu simplesmente para fazer com que o setor privado trocasse papéis com tendência de desvalorização por títulos públicos com alta liquidez e rentabilidade. 

 Além disso, a dívida pública está intimamente ligada ao fluxo internacional de capitais. Em um contexto de elevadas taxas domésticas de juros, ocorre uma forte atração de recursos externos que, convertidos para a moeda doméstica, levariam a uma expansão da oferta monetária, justamente na contramão da política monetária contracionista que se aplica no momento. Assim, o Banco Central se vê na obrigação de esterilizar esses recursos, ou seja, compensar esse acréscimo monetário com retirada de moeda por outros canais. Essa compra de moeda no mercado monetário só pode ser feita oferecendo algo em troca, para vender, justamente títulos da dívida pública federal, ampliando o estoque dessa dívida. 

 Tratar-se-ia, portanto, de reduzir as taxas de juros para inverter essa ciranda. Mas isso não se obtém apenas por vontade política. Há pelo menos dois requisitos complexos para que isso seja possível. Uma redução das taxas de juros tende a expandir a demanda agregada – o  que pode, de fato, levar a uma pressão inflacionária. Esta verdade, no entanto, não ocorre pela razão propagandeada pelo oficialismo, o excesso de demanda. O que ocorre é que desde os anos 1980 a economia brasileira tem convivido com taxas de investimento (acréscimo de capacidade produtiva) pífias, o que leva a um potencial de oferta restrito. Qualquer pequeno crescimento da demanda esbarra em uma limitação estrutural da oferta, o que pressiona os preços. O problema não é de demanda, mas de oferta/custos. Como se amplia a capacidade produtiva em um contexto de altas taxas de juros? Certamente não contando com a boa vontade dos capitais privados, burguesia nacional/transnacionalizada, o termo que se queira. O Estado, historicamente, em economias capitalistas é o responsável por isso.

 A redução das taxas de juros ainda pode provocar uma fuga de capitais, ainda mais em um cenário de instabilidade mundial, que, no limite, pode levar a uma crise 5 cambial. A condição necessária para que isso não ocorra é simples: restringir a saída de capitais, através de um sério e radical controle de capitais. 

 Isto nos leva à questão de fundo, uma vez que, para que isso ocorra, é preciso que a estratégia neoliberal de desenvolvimento seja rompida/revertida. Mas isso requer outra conformação do bloco de poder, uma vez que os interesses que atualmente são privilegiados teriam que ser contrariados. Na atual conformação, o ajuste à crise econômica será - e já está sendo - pago pela classe trabalhadora. Não poderia ser diferente na atual estratégia de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Para que a conta do ajuste seja paga pelo capital, ou por algumas de suas modalidades de acumulação, requer-se outra estratégia de desenvolvimento, e não apenas “outra” política econômica. 

 E nem falamos de socialismo!


*Professor Associado da Faculdade de Economia da UFF, membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP-UFF), Presidente da Sociedade Latino-americana de Economia Política e Pensamento Crítico e Professor colaborador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF-MST).

[Este texto está disponível no site Marxismo 21]

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