sexta-feira, 10 de junho de 2016

A ideologia social do automóvel


por André Gorz





 O grande problema dos carros é o fato de serem como castelos ou mansões à beira-mar: são bens de luxo inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito rica, os quais em concepção e natureza nunca foram destinados ao povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio ou da bicicleta, que retêm seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à beira-mar, é somente desejável e vantajoso a partir do momento em que a massa não dispõe de um. Isso se deve ao fato de que, tanto em sua concepção quanto na sua finalidade original, o carro é um bem de luxo. E o luxo, por definição, é impossível de ser democratizado: se todos ascendem ao luxo, ninguém tira proveito dele. Ao contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e são logrados, enganados e frustrados por sua vez.



 Isso é admitido sem questionamentos pelo senso comum no caso das mansões à beira-mar. Nenhum demagogo ousou até agora dizer que democratizar o direito às férias significa aplicar o princípio uma mansão com praia particular para cada família. Todos compreendem que, se cada uma das treze ou quatorze milhões de famílias existentes na França devesse dispor mesmo que apenas de dez metros da costa, seriam necessários 140.000 km de praia para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte, seria preciso dividir as praias em tiras tão pequenas – ou amontoar tanto as mansões – que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo hoteleiro desapareceria. Em suma, a democratização do acesso às praias admite somente uma solução: a solução coletivista. E essa solução está necessariamente em guerra com o luxo que constituem as praias particulares, privilégio que uma pequena minoria se atribui à custa de todos.



 Ora, por que aquilo que é absolutamente óbvio no caso das praias não é geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Por acaso um carro também não ocupa um espaço tão escasso quanto uma mansão na praia? Não espolia os outros que usam as ruas (pedestres, ciclistas, usuários de ônibus ou bondes)? Não perde seu valor de uso quando todo mundo utiliza o seu? No entanto abundam os demagogos que afirmam que cada família tem o direito a pelo menos um carro, e que seria até mesmo encargo do “Estado” atuar de forma que todos pudessem estacionar convenientemente e viajar no feriado ou nas férias ao mesmo tempo que todos os outros a 150 km/h.
No entanto, a monstruosidade dessa demagogia salta aos olhos. Mesmo a esquerda não desdenha recorrer a ela. Por que o carro é tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens “privados”, ele não é reconhecido como um luxo anti-social? A resposta deve ser procurada nos seguintes aspectos do automobilismo:



1. A massificação do automóvel materializou um triunfo absoluto da ideologia burguesa no que tange à prática cotidiana: ela constrói e mantém em cada um a crença ilusória de que cada indivíduo pode prevalecer e tirar vantagem à custa de todos. O egoísmo cruel e agressivo do motorista que, a cada minuto, assassina simbolicamente “os outros”, que aparecem para ele meramente como obstáculos materiais à sua própria velocidade – esse egoísmo marca a chegada, graças ao automobilismo cotidiano, de um comportamento universal burguês, e tem existido desde que dirigir um carro tornou-se lugar-comum. (“Nunca se construirá o socialismo com este tipo de gente”, um amigo alemão oriental me disse, consternado ao ver o espetáculo do tráfego parisiense.)



2. O automóvel oferece o exemplo paradoxal de um objeto de luxo que foi desvalorizado por sua própria difusão. Mas essa desvalorização prática não acarretou ainda sua desvalorização ideológica: o mito do prazer e do benefício do carro persiste, apesar de que se os transportes coletivos fossem generalizados eles demonstrariam sua esmagadora superioridade. A persistência desse mito pode ser explicada facilmente: a generalização do carro particular golpeou os transportes coletivos, alterou o urbanismo e o habitát e transferiu ao carro certas funções que sua própria difusão tornou necessárias. Será preciso uma revolução ideológica (“cultural”) para quebrar esse círculo vicioso. Obviamente, não se deve esperar isso da classe dominante (de direita ou de esquerda).


 Vejamos mais de perto esses dois pontos.

 Quando foi inventado, o carro tinha a finalidade de proporcionar a alguns burgueses muito ricos um privilégio totalmente inédito: o de circular muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sequer sonhado com isso: a velocidade de todas as charretes era essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre; as carruagens dos ricos não eram muito mais velozes do que as carroças dos camponeses e os trens carregavam todos à mesma velocidade (eles não possuíam velocidades diferentes até começarem a competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava a uma velocidade diferente do povo. O automóvel iria mudar tudo isso: pela primeira vez as diferenças de classe seriam estendidas à velocidade e aos meios de transporte.


 Esse meio de transporte no início parecia inacessível às massas por ser tão diferente dos meios de transporte comuns: não havia nenhuma comparação entre o automóvel e os outros: a charrete, o trem, a bicicleta, ou o bonde a cavalo. Seres de exceção saíam em veículos com autopropulsão que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos, extremamente complicados, eram tão misteriosos quanto escondidos dos olhos. Esse foi um aspecto importante ao desenvolvimento do mito do automóvel: pela primeira vez as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de funcionamento lhes eram completamente desconhecidos, e cuja manutenção e alimentação deviam ser confiadas a especialistas. Paradoxo do automóvel: aparentemente, ele confere
aos seus proprietários uma independência ilimitada, permitindo que se desloquem quando e onde quiserem a uma velocidade igual ou maior que a do trem. Mas, na verdade, essa autonomia aparente traz no verso uma dependência radical: ao contrário do cavaleiro, do charreteiro ou do ciclista, o motorista passaria a depender, para sua alimentação energética, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e dos especialistas em carburação, lubrificação, ignição e da troca das peças-padrão. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios de locomoção, o relacionamento do motorista viria a ser aquele de usuário e consumidor – e não de possuidor e dono – com o veículo do qual, formalmente, ele era proprietário. Em outras palavras, esse veículo obriga o proprietário a consumir e usar uma gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente podem ser fornecidos por terceiros. A autonomia aparente do proprietário de automóvel esconde sua radical dependência.



 Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia ser extraído da difusão em larga escala do automóvel: se o povo pudesse ser levado a circular em carros a motor, poderia vender-lhe o combustível necessário à sua propulsão. Pela primeira vez na história as pessoas passariam a depender de uma fonte mercantilizada de energia para sua locomoção. Haveria tantos clientes para a indústria de petróleo quanto houvesse motoristas – e, uma vez que haveria tantos motoristas quanto houvesse famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos magnatas do petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se realizar: todos iriam depender, para suas necessidades diárias, de uma mercadoria monopolizada por uma única indústria.



 Tudo o que deveria ser feito era conseguir que o povo circulasse de carro. Pouca persuasão seria necessária: bastaria baixar o preço do carro através da produção em série e da linha de mon-tagem. As pessoas se precipitariam a comprá-lo. Precipitaram-se efetivamente, sem perceber que estavam sendo conduzidas pelo nariz. De fato, o que a indústria do automóvel lhes prometeu? Pura e simplesmente isso: “De agora em diante você também terá o privilégio de se deslocar, como os senhores e burgueses, mais rápido que os demais. Na sociedade do automóvel, o privilégio da elite está a seu alcance”.



 As pessoas se precipitaram sobre os carros até que, quando a classe trabalhadora começou a comprá-los também, os motoristas, frustrados, perceberam que haviam sido enganados. Foi prometido a eles um privilégio de burgueses; eles haviam se endividado para adquiri-lo, e agora viam que qualquer um alcançava o privilégio ao mesmo tempo que eles. Afinal, o que é um privilégio se todos o alcançam? É um logro monumental. Pior ainda, é o todos contra todos. É a paralisação geral criada por um engarrafamento geral. Pois, quando todos reivindicam o direito de circular na velocidade privilegiada da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego urbano cai vertiginosamente – tanto em Boston como em Paris, Roma, ou Londres – abaixo daquela do bonde a cavalo; e a velocidade média nas estradas que levam para fora da cidade, durante o fim de semana, é inferior à velocidade de um ciclista.



 E não há nada que se possa fazer: tentou-se de tudo, e não se conseguiu, afinal de contas, mais do que agravar o mal. De multiplicarem as vias radiais e as vias circulares, os viadutos, as vias expressas de seis pistas e com pedágio, o resultado é sempre o mesmo: quanto mais vias a serviço, mais carros afluem e mais paralisante se torna o congestionamento do tráfego urbano. Enquanto houver cidades, o problema permanecerá sem solução: por mais larga e rápida que seja uma via de entrada, por mais alta que seja a velocidade com que andem os veículos ao entrar na cidade, ela não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da cidade. Enquanto a velocidade média em Paris for de 10 a 20 km/h, dependendo da hora, ninguém poderá sair das vias que afluem à cidade a mais de 10 a 20 km/h. É possível, inclusive, que a velocidade média seja inferior, uma vez que os acessos estarão saturados, e esse engarrafamento se prolongará a dezenas de quilômetros assim que se produza uma saturação nas vias de acesso.



 O mesmo ocorre no interior da cidade. É impossível dirigir a mais de 20 km/h de média no emaranhado de ruas, avenidas e bulevares que atualmente caracterizam as cidades. A introdução de veículos mais rápidos atrapalha o tráfego urbano, causando gargalos e, por fim, uma paralisação completa.



 Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: suprimir as cidades, isto é, enfileire-as por centenas de quilômetros, ao longo de avenidas enormes, fazendo delas subúrbios de estradas. Isso é o que foi feito nos Estados Unidos. Ivan Illich resume o resultado nas seguintes cifras: “O americano típico dedica mais de 1.500 horas ao ano (que são 30 horas por semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro: esse cálculo inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho necessárias para pagá-lo e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro, multas e impostos. Esse americano precisa de 1.500 horas para andar (ao ano) 10.000 km. Seis quilômetros por hora. Nos países desprovidos de uma indústria de transporte, as pessoas viajam exatamente nessa velocidade a pé, com a vantagem de poder ir aonde quiserem e de não estar restritas às estradas de asfalto”.



 É verdade, Illich aponta, que em países não industrializados os deslocamentos não absorvem mais de 3 a 8% do tempo social (que seguramente correspondem em média de duas a seis horas por semana). Conclusão sugerida por Illich: uma pessoa a pé anda tantos quilômetros em uma hora destinada ao transporte quanto uma pessoa motorizada, mas dedica a seus deslocamentos um tempo de cinco a dez vezes menor. Moral: quanto mais uma sociedade difunde veículos rápidos, mais tempo – a partir de um determinado ponto – as pessoas gastarão e perderão se deslocando. É mera matemática.



 A razão? Acabamos de vê-la: as aglomerações humanas foram divididas em infinitos subúrbios de estradas, porque essa era a única maneira de evitar o congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto dessa solução é óbvio: o resultado final é que as pessoas não podem se deslocar facilmente porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as distâncias foram multiplicadas: as pessoas vivem longe de seu trabalho, longe da escola, longe do supermercado – o que requer então um segundo carro para que a “dona-de-casa” possa fazer as compras e levar os filhos à escola. Passeios? Fora de questão. Amigos? Há os vizinhos... e só. No final das contas, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 100 por hora, mas isso porque você vive a 50 km do seu trabalho e está disposto a perder meia hora para cobrir os últimos 10 km. Somando tudo: “Uma boa parte da jornada de trabalho é gasta para pagar os deslocamentos necessários para ir ao trabalho” (Ivan Illich).
Talvez você esteja dizendo: “Mas ao menos dessa maneira se pode escapar do inferno da cidade após o fim da jornada de trabalho”. Essa é a questão, justamente. “A cidade”, que por gerações inteiras foi objeto de entusiasmos e considerada o único lugar onde valia a pena viver, é considerada agora um “inferno”. Todos querem escapar dela para viver no campo. Por que tal mudança de atitude? Por uma única razão: o carro tornou a cidade grande inabitável. Tornou-a fedorenta, barulhenta, asfixiante, empoeirada, congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha. Assim, uma vez que os carros assassinaram a cidade, necessitamos carros mais rápidos para fugir em auto-estradas para zonas cada vez mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de modo que possamos escapar da devastação causada pelos carros.



 De um objeto de luxo e de fonte de privilégio, o carro transformou-se assim numa necessidade vital: ele é imprescindível para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário. Nem sequer é necessário persuadir as pessoas a quererem um carro: sua necessidade é um fato rotineiro. É certo que possam aparecer certas dúvidas quando se assiste à evasão motorizada ao longo dos eixos de fuga: entre 8h e 9h30 da manhã, entre 5h30 e 7 horas da tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas os meios de evasão se prolongam nas procissões de pára-choque-a-pára-choque que vão, na melhor das hipóteses, à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações de gasolina e chumbo. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando, inevitavelmente, a velocidade máxima nas estradas é limitada exatamente pela velocidade do veículo mais lento?



 Após ter assassinado a cidade, o carro assassina o carro. Após ter prometido a todos uma circulação mais veloz, a indústria do automóvel nos leva ao previsível resultado de que todos têm que andar tão vagarosamente quanto o mais lento, a uma velocidade determinada pelas leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: inventado para permitir que seu proprietário vá aonde deseja, à velocidade e hora que deseja, o carro acabou por se transformar no mais servil, incerto, imprevisível e incômodo de todos os veículos: mesmo se reserva uma extravagante quantidade de tempo, você nunca sabe quando os engarrafamentos o deixarão chegar lá. Você está ligado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a seus trilhos. Da mesma forma que o viajante de trem, você não pode parar de improviso e, como num trem, você deve ir a uma velocidade determinada pelos outros. Em suma, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e possui todas as suas desvantagens, além de mais algumas próprias: vibração, fadiga muscular, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo.



 No entanto, você pode estar dizendo que as pessoas não tomam trem. Claro! Como poderiam?! Você já tentou alguma vez ir de Boston a Nova York de trem? Ou de Ivry a Tréport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a l’Isle-Adam?1 Você tentou em um sábado ou domingo de verão? Bem, então tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou em tudo: tão logo o carro assassinou o carro, ele fez com que as alternativas de mudança desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim, primeiramente o Estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre as cidades, os subúrbios e os campos circunvizinhos se deteriorassem, e em seguida as suprimiu. As únicas que foram poupadas foram as conexões intermunicipais de alta velocidade que disputam com as linhas aéreas sua clientela burguesa. O aerotrem, que poderia pôr o litoral ou os lagos de Morvan ao alcance dos parisienses domingueiros, servirá para que se ganhe quinze minutos entre Paris e Pontoise e para descarregar nos terminais algumas centenas de viajantes que os transportes urbanos não estarão em condições de receber. E a isso chamam progresso!



 A verdade é que ninguém tem opção: não se é livre para ter ou não um carro uma vez que o universo dos subúrbios é projetado em função do carro – e, cada vez mais, é assim também no universo urbano. É por isso que a solução revolucionária ideal, que consistiria em suprimir o carro em favor da bicicleta, do ônibus, do bonde, e do táxi sem chofer, não é mais sequer aplicável nas cidades de auto-estradas como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes ou mesmo Bruxelas, que são modeladas por e para o automóvel. Cidades estilhaçadas, estiradas ao longo de ruas vazias nas quais se alinham edifícios idênticos e onde a paisagem (o deserto urbano) diz: “Estas ruas são feitas para se dirigir tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. São ruas para passar, não para estar. No fim do dia de trabalho todos devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do anoitecer deve ser considerado suspeito de ‘fazer o mal’”. Em algumas cidades americanas, o ato de dar uma volta a pé nas ruas à noite torna o andarilho suspeito de crime.



 Então a partida está perdida? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser global. Para que as pessoas possam renunciar a seus carros, não será suficiente lhes oferecer meios de transporte coletivos mais cômodos: é preciso que possam dispensar por completo o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas suas comunidades, nas suas cidades, construídos em escala humana, e por terem prazer em andar do trabalho para casa a pé ou, se preciso for, de bicicleta. Nenhum meio de transporte e evasão veloz jamais compensará a desgraça de viver numa cidade inabitável em que ninguém se sente em casa em lugar algum, ou de passar somente para ir trabalhar ou, ao contrário, para se isolar e dormir.



 “Os usuários”, escreve Illich, “quebrarão as correntes do transporte todo-poderoso quando voltarem a amar como se fosse seu próprio território a sua ilhota de circulação e a temer ficarem demasiado distante dela muitas vezes”. Mas, a fim de amar “seu território”, ele deve antes de qualquer coisa ser habitável, e não circulável. O bairro ou a comunidade deve novamente transformar-se em um microcosmo modelado por e para todas as atividades humanas, onde as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se conhecer, se comunicar, discutir e gerir conjuntamente o meio social de sua vida em comum. Tal como respondeu Marcuse quando lhe perguntaram como as pessoas gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista tivesse sido eliminado: “Vamos tratar de destruir as grandes cidades e construir novas e distintas. Isso nos manterá ocupados por um tempo”.



 Pode-se imaginar que essas novas cidades serão federações de comunidades (ou de bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais os cidadãos – e em especial crianças em idade escolar – passariam diversas horas da semana cultivando os alimentos frescos necessários à sua subsistência. Para seus deslocamentos cotidianos disporão de uma gama completa de meios de transporte adaptados a uma cidade de tamanho médio: bicicletas municipais, bondes ou ônibus elétricos e táxis elétricos sem motoristas. Para os deslocamentos mais importantes, por exemplo para ir ao campo, assim como para transporte de hóspedes, se disporá de um contingente de automóveis comunais que estariam repartidos pelas garagens dos diferentes bairros. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isso não virá por si só.


 Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca coloque isoladamente o problema do transporte. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho e à compartimentalização que ela introduz nas diversas dimensões da existência: um lugar para trabalhar, outro para “habitar”, um terceiro para se abastecer, um quarto para aprender, um quinto para se divertir. A maneira que o espaço é arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Ela corta uma pessoa em rodelas, corta seu tempo, sua vida, em fatias bem separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo a mercê dos negociantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: a unidade de uma vida, sustentada pelo tecido social da comunidade.

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