sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Do protesto justo à cretinice

 Certa vez critiquei duramente um camarada pelo fato de o mesmo defender que as ordens de assassinato e trabalho forçado aos kulaks por parte de Stalin fossem válidas, justificáveis. Disse-me ele que isso o era devido ao fato de que tais camponeses ricos se opunham à estratégia de implementação do comunismo, o que precisava de punição. Como fiel defensor do humanismo que sou, em especial do humanismo marxista,  repliquei que, como Marx havia dito, ''o comunismo não constitui em si o objetivo da evolução humana'', ele é um meio para atingir a emancipação humana. Como poderia o execrável feito de Stalin, que não era senão um retorno das antigas teocracias, ser o caminho para a emancipação humana?

 Essa atitude autoritária e anti-humanista (de apoiar algo como os maus feitos de Stalin - porque ele também não foi exclusivamente um demônio), porém, não está apenas entre defensores da burocracia stalinista ou do fascismo; para meu pesar, uma versão dele se engendrou até na esquerda cultural, e é disso que esse texto tratará.

 Como todos sabemos, no dia 13 desse mês o presidenciável Eduardo Campos, candidato pelo PSB, sofreu um terrível acidente de avião e faleceu, um evento trágico sobre o qual a mídia-urubu brasileira não deixou de tripudiar. Seja dita a verdade: Campos não era santo, e não o é agora. No governo de Pernambuco, privatizou partes do setor público de serviços, reprimiu as manifestações de 2013, reduziu o volume de investimentos na UPE e manteve sua oposição à legalização do aborto; trata-se de um candidato que não teria meu voto. Entretanto, Campos era humano, e deixou família e amigos. Por mais canalha que sejamos (e suponho que  ele não conseguiu o feito de ser o pior Homo sapiens sapiens a caminhar sobre a Terra), muito provavelmente haverá alguém - mais de um alguém - que amemos profundamente. Nesse momento de dor por uma perda tão trágica, o mínimo a se fazer é prestar condolências à família e, sem esquecer de que milhões de brasileiros enfrentam condições quase ou tão lastimáveis quanto, apiedar-se para com tal interrupção brutal de uma vida...

 Mas não. Certas moças, oriundas de uma corrente mais radical e, graças aos deuses, minoritária (espero eu) do feminismo, fizeram questão de expôr sua torta e desrespeitosa visão do falecimento de Campos:

Se o leitor tiver uma índole mais ou menos parecida com a minha,  leves náuseas, vergonha alheia e um tanto de ira já devem ter começado a aparecer, misturados.
  Tais moças se dizem adeptas da ''misandria'', que numa tradução literal significa ''ódio aos homens''; uma reação à misoginia (ódio às mulheres, ao que é feminino)solidificada na nossa sociedade. Este que vos escreve não tem um juízo formado sobre haver ou não de fato uma misoginia estrutural (dado o forte sentido do termo ''ódio''), mas tem convicção de que há um machismo institucional, rigidamente estabelecido, devido ao histórico de patriarcalismo em nossa civilização.

 Existem, parece-me, duas ''misandrias'': uma é a rejeição forte ao ''modelo de macho'' moldado ao longo da nossa existência, responsável pela opressão sistemática de mulheres, homo/bi/transsexuais e outras minorias sociológicas; tal rejeição está acompanhada de uma militância que pretende dar fim ao mesmo (é mais ou menos o que se pode ler aqui). Há, também, um ódio irracional, declarado, à todo e qualquer homem, que reduz os membros do sexo masculino à pura e simples causa de todos os males do mundo, cujas mortes deveriam ser motivo de comemoração para todas as mulheres. Servindo de ponte entre as duas, está uma ''teoria da opressão'' que põe todos os homens como sujeitos ativos da opressão infligida às mulheres,  tendo análogos nas relações héteros-'sexodiversos', brancos-negros, ricos-pobres etc. Já fiz uma crítica dessa teoria da opressão em outra postagem, e embora eu tenha que fazer revisões naquele texto - creio que os indivíduos podem sim, obviamente, cometer opressão, mas só se estiverem uma posição favorável em determinada relação ou estrutura de poder e se for sua intenção subjugar o oprimido -, ainda acho que há considerações relevantes lá.

 A luta pelo empoderamento das mulheres tem de ser realizada, e sob o protagonismo das mulheres; mas se essa luta se pautar em conceitos e atitudes absurdas como as das moças que fizeram escárnio da morte de Campos, a contrarreação que se voltará para ela virá não somente dos típicos machos-cis-héteros-opressores, mas de mulheres que, mantendo suas visões conservadoras ou progressistas críticas e o afeto que sentem por amigos ou parentes  do sexo masculino, rejeitarão essa onda feminista, beirando o risco de um retraso na emancipação feminina.

 E não há acusação de ''macho-cis'', ''omisplicanista'' ou coisa do tipo que vá me fazer abandonar esse julgamento, assim como não há atitude de Campos que justifique tamanho mau-caratismo.

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