sábado, 24 de maio de 2014

A esquerda estadunidense x a esquerda brasileira

Estava eu lendo um livro do Richard Rorty sobre o pensamento americano de esquerda no século XX (o subtítulo da versão traduzida do livro é quase esse) quando percebi que o Brasil tem um diferencial em relação aos EUA, a meu ver uma vantagem: a nossa esquerda é, de certa forma, completa.

 Explicando melhor: a esquerda dos EUA, nos 2 primeiros terços do século passado, era basicamente trabalhista. Havia uma relação muito forte entre os sindicatos, os intelectuais e os políticos do partido democrata. Conquistas muito importantes foram conseguidas nesse período. Entretanto, na sua devoção à luta contra o egoísmo econômico, os esquerdistas estadunidenses, basicamente brancos heterossexuais de classe média (e isso não é um ad hominem, ok?), esqueciam da causa negra, feminina e LGBT.

 Rorty diz, por exemplo, que ''por volta dos anos sessenta, homens de esquerda nas agências de emprego e nos saguões das faculdades frequentemente falavam das mulheres com o mesmo tom jocoso, e dos homossexuais com o mesmo descaso grosseiro, com que falavam os homens de direita nos clubes de campo. A situação dos afro-americanos era lastimada, mas não transformada, por esta esquerda predominantemente branca. O Partido Democrata dependia do sólido sul, e Franklin D. Roosevelt não tinha intenção de perder os eleitores brancos sulistas para ajudar os negros. Líderes sindicais como os irmãos Reuther, que quiseram desesperadamente integrar os sindicatos, não podiam fazer muito para eliminar o preconceito racial entre seus membros. Os negros americanos começaram a ter um indício de tratamento decente somente nos anos cinquenta, quando começaram a tomar as questões em suas próprias mãos. A maioria dos reformistas de esquerda desse período estavam felizes, ignorando que os americanos morenos no sudoeste estavam sendo linchados, segregados e humilhados do mesmo modo que os afro-americanos do sul. Quase ninguém da esquerda anterior aos anos sessenta pensou em protestar contra a homofobia, e assim esquerdistas como F.O. Matthiessen e Bayard Rustin tiveram de ocultar sua homossexualidade.''

 O filósofo então nos introduz à onda de radicalismo político que tomou conta da juventude estadunidense pós-68, que deixou sua marca principalmente no meio acadêmico. Ele a denomina de ''esquerda cultural'', devido ao modelo de ativismo da mesma: nas universidades, especialmente nos cursos de ciências sociais, abriram-se departamentos de ''estudos culturais'', notadamente estudos das ''vítimas'': as mulheres e as minorias latinas eram alguns de seus objetos de pesquisa. Os professores passaram a recomendar para leitura extra-classe nas aulas de literatura do ensino médio livros como 'Beloved', de Toni Morrison, e indicar textos sobre o suicídio de adolescentes homossexuais nas aulas de redação. Tudo com o objetivo de tornar mais difícil para seus alunos serem sádicos do que havia sido para seus pais. ''Com esta substituição parcial de Marx por Freud como uma fonte para a teoria social'' - diz Rorty - ''o sadismo, ao invés do egoísmo, tornou-se o principal alvo da esquerda. (...)Muitos dos membros desta esquerda especializaram-se no que eles chamaram de 'política da diferença' ou 'da identidade' ou 'do reconhecimento'. Esta esquerda cultural pensa mais sobre estigma do que sobre dinheiro, mais sobre motivações psicossexuais profundas e ocultas do que sobre a superficial e evidente ganância.''

 ''Oras'', o jovem gafanhoto pode estar pensando, ''o que diabos isso tem a ver com a nossa própria esquerda?''. É simples: exceto pelo governismo petista e sua  tímida socialdemocracia, que alia-se a todo tipo de reacionário (haja visto a deprimente sensação que foi ver Marco Feliciano usando uma camisa com ''100% Dilma, 100% 13'' ou algo assim num evento recente), as nossas esquerdas são simultaneamente trabalhistas e culturais. Partidos como PCO e PSOL combinam agendas de justiça econômica e defesa do trabalhador com um progressismo moral que visa a emancipação dos grupos que eu citei acima. Nas universidades acha-se um clima parecido, ao menos nos departamentos de ciências humanas: jovens intelectuais politizados que integram as duas áreas de ativismo. Mesmo em centros de discussão na internet - grupos como ''Debates Políticos: Diálogos do Socialismo'' ou páginas como Meu Professor de História, Bule Voador e Histórias da Esquerda - essa tendência é facilmente perceptível.

 Esse fato representa um potencial enorme para o país. Num momento tão crucial como este - quando o Brasil será sede de um dos maiores eventos globais - e com tantas divergências de opinião mesmo dentro da direita e da esquerda, o caráter misto do pensamento esquerdista nacional fornece esperança para o futuro da política brasileira, principalmente em questão de organização de manifestações ou, quem sabe, futuros candidatos e partidos. O que falta para a esquerda tupiniquim é, ao meu ver, uma integração maior ao movimentos sindical, que perdeu a força que tinha no fim dos anos 90, e mais participação nas grandes mídias e ambiente escolar secundarista. De resto, estamos prontos: a economia política de Marx, o racionalismo científico de Carl Sagan, a ética feminista emancipadora de Simone de Beavoir, o antitotalitarismo de Hannah Arendt, a historiografia de Eric Hobsbawm e a sociologia anticapitalista de Florestan Fernandes são algumas de nossas armas contra o conservadorismo moral, fundamentalismo religioso e ganância por lucro que tentam matar de vez o país.

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