terça-feira, 6 de maio de 2014

Uma breve consideração sobre o marxismo e a religião

Me assusta perceber as comparações bem-fundamentadas que podem ser feitas entre o marxismo e o cristianismo. Ambos, cristianismo e marxismo, nasceram das ideias de um dissidente da sociedade e tiveram muita aceitação nas camadas mais pobres da sociedade, porque eram em si um protesto contra sua realidade. Entretanto, foram cooptados por uma autoridade central que roubou seus caráteres previamente populares para manipulá-los e transformá-los em dogma e doutrina de Estado (isso embora a URSS se esforçasse em alfabetizar seus membros e divulgar a obra de Marx entre eles, enquanto a igreja de Roma enxergava no analfabetismo do povo uma vantagem, e lutava para eliminar aqueles que, como Tyndale e Wycliff, tentavam tornar acessível sua escritura sagrada para os leigos - cristãos defendendo impiedosamente o cristianismo, impedindo os outros de lerem os pergaminhos que lhe deram origem).

 Ambos, escatológicos, prometiam um reino final de paz e prosperidade para a raça humana, que estaria inevitavelmente chegando.

 Ambos combateram em alguns pontos a ciência verídica, em nome de suas próprias concepções (como o caso Lysenko na URSS ou o criacionismo/design inteligente cristão).

 Ambos contém um resquício de determinismo despótico - a ideia de que você pode condenado a sofrer pela eternidade pelos seus pensamentos (em outras palavras, por não acreditar) ou em sua vida terrena por ter ''delírios reformistas'' ao invés de apoiar cega e genuinamente a revolução/que você já nasceu pecador e corrompido só por ser humano, ou que por ter vindo de classes mais abastadas você é necessariamente um reacionário cujos interesses vão contra os do proletariado.

 Ambos geraram sistemas onde se pregava a obediência inquestionável ao ser supremo ou seu representante (sejam as igrejas, deus, o rei ou Lênin/Stálin).

 Ambos prometiam uma revolução pela liberdade e o progresso moral, mas acabaram legitimando (ou causando, ainda que sem justificativa interna) escravidão e servidão coletiva, além de criar sociedades moralmente reacionárias (como os cristãos racistas, homofóbicos e misóginos do século passado ou os igualmente homofóbicos, misóginos russos pós-URSS).

 Há vários outros acontecimentos e comparações curiosos ou bizarros que eu poderia demonstrar aqui; o episódio do estupro massivo na chegada do Exército Vermelho a Berlim e sua semelhança com o suposto genocídio de incontáveis ''homens, velhos, meninos e mulheres que já se deitaram com homens'' e o estupro de moças virgens no livro bíblico de Números é um triste exemplo.
 Não quero aqui simplesmente descartar o marxismo ou o cristianismo. Já fui um crente do segundo e ainda sou adepto do primeiro, embora acredite que coisas como a luta de classes como único/mais importante motor da história ou a inevitabilidade do comunismo sejam verdadeiras. Eu mais ''dialogo'' com Marx - para usar a expressão do professor Bertone - do que o sigo como alguém a quem foram reveladas profundas verdades sobre o funcionamento de nosso mundo. Mas foi, segundo alguns estudiosos, por causa do primeiro que muitos de nossos direitos trabalhistas foram conseguidos, e por causa do segundo que o desenvolvimento científico progrediu até sua forma na idade moderna.
 Apenas quero lembrar o leitor - talvez seguidor fiel de uma destas duas cosmovisões - que ele não deve se deixar dominar por simples coerções externas, desprovidas de crítica. O cristianismo e o movimento comunista, quando estiveram livres de questionamentos, provocaram as piores desgraças que um ser humano é capaz de conceber, tenha sido a Inquisição, os Gulags, as cruzadas, o holodomor ou o desprezo e manipulação do indivíduo em nome das classes dominantes. Mas o cristianismo liberal ainda é uma ideologia na qual muitos procuram auxílio para suas vidas, e o marxismo ainda é uma filosofia de protesto contra as injustiças geradas pelo modelo socioeconômico atual. Ambos ainda são fonte de inspiração para um enorme grupo de pessoas que desejam um ideal pelo qual lutar.
 Fica o recado: leia, discuta, reflita, duvide, critique as suas próprias posições para saber se elas estão bem fundamentadas e nunca negue informações/fatos só porque eles contradizem suas crenças. Esse é o modus operandi de um bom livre-pensador, que imuniza-o contra o perigo do charlatanismo e do totalitarismo e dá-lhe as armas necessárias para combatê-los.

5 comentários:

  1. Excelente texto!! Minha duvida seria, a palavra talvez nem seja esta" negar",mas sim como nao criticar e "aceitar" as ideologias que contradizem a crença que o individuo possue? aqui cabe outro questionamento sobre sua colocaçao "ja fui um crente do segundo' ,caso voce queira me responder, o que te levou a deixar de ser adepto ao Cristianismo? Por fim gostaria de saber qual a referencia da passagem sobre as mulheres virgem,no livro de Jo! Grata!

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    1. Alinne, meu processo de abandono do cristianismo foi bem longo. Começou com minha desconfiança em relação à veracidade ou autoridade da bíblia quando descobri, acho que aos 9, 10 ou 11 anos, a existência dos pergaminhos apócrifos, achados por um menino na década de 40. Depois, fui estudando e descobri a evolução, que pra mim era uma teoria suficiente e à alternativa ao criacionismo bíblico (com Moisés e tudo). Ouvia falar do big bang, das tragédias que nos acometiam, das várias religiões... na época dos 13, eu fiquei horrorizado com os escândalos de pedofilia na ICAR. O fato de aqueles crimes estarem ocorrendo na igreja que era dita como tão temente (e ''louvosa'') a deus (e mais ainda, na minha família católica, como a verdadeira igreja de Cristo) bagunçavam minha cabeça. Me fizeram romper com aquele inconsciente coletivo de que quanto mais religioso, mais moral/bondoso se é. Me aproximei do protestantismo nesse período, por achar que ele seria um cristianismo mais enxuto. Me decepcionei com o fato de muitas correntes dele ensinarem as mitologias do pentateuco como verdadeiras, e com a moral em muitos casos nada utilitária (e sim retrógrada) dos mesmos. E então abandonei as igrejas, mas ainda sim me declarava cristão evangélico.

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    2. De uns dois anos pra cá, já com um juízo mais formado, tomei contato com sites, livros e vlogs de outros ateus, como o Pirulla e o Clarion, que explicitavam algumas questões controversas que eu não via religiosos dando boas explicações: por que existe o mal, se deus é bom e tudo pode (e portanto, poderia não tê-lo permitido existir)? por que, se a bíblia é a palavra de deus, há tanta violência e mitologia nela? Isso é basicamente o paradoxo de Epicuro, de 300 a.C. Passei a pesquisar mais sobre as origens do cristianismo e da bíblia, e descobri que não havia tanto de divindade lá, ao menos não como havia de características dos próprios grupos israelitas e judeus que os escreveram, representando através de deus seus próprios sentimentos enquanto tribo em determinado momento histórico. Nessa época, que também deve ter sido a época em que eu mais lia a bíblia, também descobri absurdos vindos não do antigo testamento, mas do novo, coisas que eu não conseguia tomar como características de divina bondade ou de seriedade: o ato de jesus de curar cegos com cuspe e lama ou retirar os demônios do corpo de um homem, pô-los em porcos e fazer com que os mesmos corressem ao mar e morressem afogados, por exemplo, e também a condenação eterna pela simples condição de não crer nele e/ou não ser batizado. Era (e é) inaceitável pra mim que tantas pessoas boas de tantas outras religiões e mesmo ateus recebessem esse castigo absurdo. Eu notei então que na verdade pouquíssimas pessoas tem essa crença hoje em dia: nem mesmo eles concordam com isso. Daí a perceber que a maioria dos fiéis simplesmente escolhe o que lhe agrada para tomar como ''verdadeiro'' no cristianismo foi um pulinho, e para conceber que a religião é essencialmente construída pelo ser humano, um pulão.
      Eu acho que as respostas que a ciência dá sobre perguntas como a origem da vida, da mente e do nosso universo estão muito acima do que a religião, que nasceu de etiologias e busca de explicações sobre uma finalidade da vida, podia dar, e também acho que na questão da relação entre boa moralidade e religião, a primeira não só independe da segunda, como muitas vezes é mais fácil de se ter sem ela, devido ao irracionalismo e à noção de auto-importância elevada que esta última fornece a um povo/indivíduo, ao ponto de justificar guerras religiosas.
      Acho que dá pra resumir da seguinte forma: eu descobri que as origens da religião e dos textos sagrados não são as que os mesmos dizem ser, que seus dogmas centrais (como a existência de deus(es) e/ou do sobrenatural são falsos, e que ela é uma força que atrasa o progresso moral do mundo, porque, ao fornecer esperanças de um mundo de paz e justiça além-túmulo, faz com que os homens abandonem o desejo de tê-lo ainda aqui na terra (Marx afirmou mais ou menos isso, também), e tbm porque os textos sagrados provém de épocas de uma moral grotesca e anti-humanista. Foi o próprio progresso moral que fez as igrejas e o cristianismo como um todo deixarem a homofobia, o racismo e a misoginia de lado.
      Bom, isso é uma coisa complicada de falar porque envolve todo um processo que durou ao menos uns 5 anos, e ainda cheio de pesquisas e reflexões que eu fiz, tanto que nem me lembro de algumas delas. Outras realmente me foram marcantes. Na transiçãozinha entre a minha última forma de crença sobrenaturalista (algo meio que panteísmo) e o ateísmo de fato, por exemplo, eu meditava e orava pedindo sinais que me comprovassem a existência desse outro plano, e como coincidiu justamente com a abdicação de Bento XVI do posto de papa, eu andava estudando as profecias de Nostradamus e tentando fazer um paralelo entre elas, profecias do livro do Apocalipse e a eleição de um novo papa.

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    3. No final das contas, eu senti a força da ciência e do ceticismo pesar mais forte do que a livre associação que eu fazia desses escritos e eventos e os resquícios de metafísica no meu pensamento, e desde então (que eu me lembre) não me vejo mais perguntando ''mas será que não é verdade mesmo?'' ou coisa do tipo, embora algumas vezes eu me pergunte se não é melhor deixar essas crenças, por mais infundadas que sejam, quietas, já que trazem certos benefícios para quem acredita (especialmente depois que eu li Durkheim). Mas aí lembro que essa complacência e falta de crítica com a religião (assim como com qualquer ideologia) inevitavelmente leva ao autoritarismo e ao pensamento único, e retomo o dever não de atacá-las superficialmente, mas de lembrar que a ciência fornece explicações melhores sobre a natureza, que não há motivos para crer no sobrenatural, que os livros sagrados e as religiões não são fontes do melhor tipo de moralidade (nenhum dogmatismo é) ou espiritualidade (não no sentido de dicotomia corpo/alma, mas de sentimento interior de contemplação e harmonia com o universo), que sua própria história tem muito mais mão humana do que se pode pensar, entre outros, e, quando convidado a fazê-lo, eu gosto de debater sobre as questões mais centrais disso tudo. Caraca, como eu me estendi :0 mas enfim, é isso. Esse momento de romper com o cristianismo foi de vital importância para a construção do meu eu atual, e eu gostaria de passar por outro desses momentos de transformação radical, porque é como se nós déssemos um banho no espírito (em linguagem figurada, claro) e saíssemos completamente renovados, dispostos a ver o mundo de outra forma. Depois, talvez, eu escreva sobre esse processo aqui no blog, pra que cada ponto fique mais bem explicado e pra que eu possa trocar ideias e experiências com pessoas que leiam esses posts. Bom, obrigado pela atenção e pelo elogio! =D
      Ah, eu cometi um equívoco no texto. Isso pertence não ao livro de Jó, mas a Números 31:18, é Moisés que comanda o ato.

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  2. Li tudo! Foi muito esclarecedor! E muito impactante!

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