terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Se quiser falar de política, fale em luta de classes

 O nível geral da discussão política no Brasil é péssimo; pode-se dizer com segurança que ele chega a ser, em sua maior parte, inútil. A desinformação reina, e os debatedores discorrem longamente tendo por base premissas falsas, o que compromete toda a conclusão. Uma dessas premissas, que muitas vezes sai implícita nos discursos, é a de que não há diferença essencial de interesses entre os brasileiros, ou mesmo -- e eu me pergunto como esse absurdo é possível -- que não existe divisão da sociedade em classes.

 Tente lembrar do último post de uma página à la TV Revolta ou Revoltados ON LINE que chegou ao feed do seu facebook. Se tiver gasto seu precioso tempo lendo a legenda da foto, quem sabe os comentários, provavelmente terá percebido a retórica comum de que ''os brasileiros'' estão revoltados, que esse ou aquele político é um ''inimigo da nação'', que é necessário lutar contra a ''corrupção''. E só. Veja que incrível: todos os problemas do país quase que resumidos a ''desviadores'' de dinheiro público! Será que as coisas são mesmo simples assim?

Conceito de classe e classes modernas/contemporâneas


 Apesar de incontáveis pensadores terem analisado a divisão da sociedade -- em distintos modos de produção --, foi o filósofo, sociólogo, historiador e economista alemão Karl Marx (1818-1883) o responsável pelo estudo mais rigoroso sobre o tema. O próprio desenvolvimento histórico, segundo ele, encontra-se essencialmente no conflito entre as classes (''A história de todas as sociedades até hoje é a história da luta de classes'', diz o célebre Manifesto do Partido Comunista em 1848, com uma ressalva quanto às sociedades anteriores à invenção da escrita). Mas o que são classes? Marx diz o seguinte n'O 18 Brumário de Luís Bonaparte:

''Milhões de famílias existindo sob as mesmas condições econômicas que separam o seu modo de vida os seus interesses e a sua cultura do modo de de vida, dos interesses e da cultura das demais classes , contrapondo-se a elas como inimigas, formam uma classe.'' 

 E acrescenta:

''Mas na medida em existe apenas um vínculo local entre os parceiros, na medida em que a identidade de seus interesses não gera entre eles nenhum fator comum, nenhuma união nacional e nenhuma organização politica, eles não constituem classe nenhuma.''

 Pode-se dizer que no primeiro trecho o pensador fala da natureza das classes, e no segundo, da consciência de classe, o elemento que garante a coesão dos indivíduos pertencentes a uma mesma classe. Ele afirma que a sociedade moderna estaria basicamente divida em proletariado (aqueles que vendem sua força de trabalho) e burguesia (proprietários dos meios dos meios de produção social social² -- fábricas, terras e similares --, que empregam trabalho assalariado), embora hajam também os camponeses, pequeno-burgueses (pequenos comerciantes e empresários), profissionais liberais (advogados, médicos, engenheiros, executivos etc.), lumpemproletariado (mendigos, prostituas e outros grupos incapazes ou impedidos de trabalhar formalmente) e as ''classes ideológicas'' (categoria na qual Marx inclui o exército, o clero, a burocracia e a magistratura).

 ''Tudo bem'', você pode estar pensando, ''as pessoas ocupam papeis diferentes na sociedade. O que tem de especial nisso?''. Bem, há algo muito especial.

 A dimensão econômica (, expressão por excelência) da luta de classes


 Os interesses das várias classes acabam entrando em conflito pela própria natureza do modo de produção capitalista, que é o esqueleto da sociedade moderna e, portanto, da sociedade brasileira. Não é algo difícil de perceber, pense comigo: o burguês/capitalista compra um certo número de matéria-prima e instrumental de trabalho e contrata um certo número de trabalhadores. Para ele, o mais vantajoso é que os trabalhadores produzam o máximo possível pelo menor custo possível, do que se segue que é de seu interesse (enquanto personificação do capital) o prolongamento das jornadas diárias de trabalho, o aumento da sua intensidade e salários mais baixos quanto for possível, podendo assim acumular valor e garantir sua sobrevivência na guerra de mercado; o trabalhador intenta exatamente o oposto: quer se livrar o mais cedo possível do fardo do trabalho, deseja que o mesmo não seja exaustivo e aspira por uma recompensa que faça jus à sua produção.

 Mais que isso: uma vez que a propriedade dos meios de produção social é privada, os capitalistas têm o direito legal de fazer o que bem quiser do produto excedente do capital que controla (isto é, de todo o valor que lhes sobra após arcar com as despesas obrigatórias), e usa-o para substituir pouco a pouco seus empregados por maquinário, para cortar gastos; o fruto do trabalho dos próprios trabalhadores se volta contra eles e joga-os na rua, onde, pela lei da oferta e da procura, exercerão pressão deflacionária sobre os salários, tendo que vender suas forças de trabalho por um preço cada mais baixo se não quiserem morrer de fome.

 Também é do interesse da burguesia reduzir a oferta de mercadorias similares à sua (em outras palavras, eliminar a concorrência), pois isso lhes permite aumentar o preço de seus produtos e diminuir os salários de seus empregados (os empregados despedidos pelos concorrentes falidos funcionam como exército industrial de reserva, fazendo o que descrevi no parágrafo acima).

 As outras classes envolvem-se de forma variada no conflito, tal seja o seu papel no processo de produção e apropriação do trabalho social.

 Não há, portanto, política econômica que vá no interesse ''da nação'', como um todo. É preciso tomar lado.

A dimensão ''jurídico-penal'' da luta de classes


 Em seu Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política, Marx enfatizou o caráter do Estado enquanto superestrutura da base econômica da sociedade civil, constituída pelas relações de produção (no nosso caso, simplificadamente, propriedade privada dos meios de produção e trabalho assalariado). Por essa lógica, é preciso analisar com afinco a relação entre a legislação como um todo e a legislação penal em particular e o interesse das classes que detém o poder (econômico) na sociedade civil.

 Entre os anos 70-80, uma crise atingiu as maiores economias capitalistas, cuja taxa média de lucratividade empresarial estava em queda. Para resolver o problema, os governos, liderados por parlamentares burgueses, aplicaram o receituário econômico neoliberal: abolição do salário mínimo, redução drástica dos encargos trabalhistas, prolongamento da jornada de trabalho (3 medidas que aumentam a taxa de mais-valia), eliminação de benefícios sociais promovidos pelo Estado, privatização de empresas estatais, etc (sem que a carga tributária, em relação ao PIB, caísse). O resultado foi uma recuperação do investimento, acompanhada de um aumento do desemprego, da concentração de renda e da pobreza e da precarização da qualidade de vida dos trabalhadores.

 É claro que haveria protesto da classe trabalhadora, dentre outros inconvenientes da nova política econômica. Para lidar com esse problema, Margaret Thatcher, primeira-ministra inglesa entre 1979 e 1990, introduziu uma draconiana legislação antissindical, que foi imposta com a ajuda de uma força policial cínica e corrupta. Nos EUA, a chamada ''Teoria das janelas quebradas'' forneceu a base teórica para uma política de tolerância zero para as infrações à lei, por menores que fossem. Vetadas as duas formas de manifestação contra as consequências de estratégia neoliberal, a atividade sindical e os crimes ligados à condição de pobreza, os governos amansaram seus proletariados nacionais e consolidaram as medidas neoliberais. Estas, tomadas para salvar o sistema baseado na exploração da força de trabalho do proletariado ao invés de substituí-lo por um modo de produção harmônico e democrático - o socialismo -, foram ainda elogiadas como ''racionais'' e ''idealizadas e aplicadas no interesse de todos os indivíduos'' pelos economistas burgueses!²

 A relação entre forças repressivas do Estado moderno e poder econômico é, porém, bem mais antiga.

Concluindo

 É preciso evitar discussões inócuas e despolitizadas sobre a política. Se quisermos melhorar algo, precisamos ir além dos discursos vagos sobre corrupção pessoal e desvio de dinheiro público -- que deve ser combatido! -- e entender que interesses agem por detrás dos burocratas, tanto nos poderes legislativo e executivo quanto no judiciário. Quando houvermos feito-o, saberemos que a política, à exceção parcial de questões como direitos civis (lembremos que gênero, raça e orientação sexual têm uma integração infraestrutural com o capitalismo³), é uma questão de luta de classes.

 E então, ao lado de quem você combaterá?



Notas:

1 - Sobre os conceitos de força de trabalho, meios de produção, mais-valia, exploração da força de trabalho e grau da exploração da força de trabalho, ver:

http://boradiscutir.blogspot.com.br/2014/12/trabalho-e-forca-de-trabalho-em-marx.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/01/reproducao-do-capital-e-papel-da-mais.html
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2014/11/a-dinamica-da-exploracao-no-capitalismo.html

2 - Para saber mais sobre Margaret Thatcher e o neoliberalismo apresentado (mentirosamente) como ''interesse universal'' e única opção de regime socioeconômico possível, ver:

https://thenextrecession.wordpress.com/2013/04/09/thatcher-there-was-no-alternative/

3 - Sobre as questões de gênero, raça e orientação sexual e sua integração ao capitalismo, ver:

http://boradiscutir.blogspot.com.br/2015/02/racismo-misoginia-e-lgbtfobia-no.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário