domingo, 15 de fevereiro de 2015

O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica


Artigo de Carlos Lopes publicado no site do jornal Hora do Povo.







O neoliberalismo é uma lista de panaceias. Aliás, é a única doutrina, até hoje, que tem mais de uma panaceia. Nisso ele superou em muito os vendedores de elixir do Velho Oeste


O historiador inglês Perry Anderson relata algo muito interessante:


“Recordo-me de uma conversa que tive no Rio de Janeiro, em 1987, quando era consultor de uma equipe do Banco Mundial e fazia uma análise comparativa de cerca de 24 países do Sul, no que tocava a políticas econômicas. Um amigo neoliberal da equipe, sumamente inteligente, economista destacado, grande admirador da experiência chilena sob o regime de Pinochet, confiou-me que o problema crítico no Brasil durante a presidência de Sarney não era uma taxa de inflação demasiado alta – como a maioria dos funcionários do Banco Mundial tolamente acreditava –, mas uma taxa de inflação demasiado baixa. ‘Esperemos que os diques se rompam’, ele disse, ‘precisamos de uma hiperinflação aqui, para condicionar o povo a aceitar a medicina deflacionária drástica que falta neste país’.” (Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”, grifos nossos).


Mais interessante ainda foi o que aconteceu, logo depois, no Brasil.


Após a posse no Ministério da Fazenda, em dezembro de 1987, do sr. Maílson da Nóbrega – que chegara em maio ao Brasil, depois de dois anos na Inglaterra, de onde saiu um neoliberal tão consumado quanto néscio - a inflação mensal, medida pelo INPC, pulou de 13,97% (dez/1987) para 82,18% no último mês de sua gestão (março/1990). Durante esse período, Maílson congelou salários, confiscou recursos de cadernetas de poupança e aposentadorias, bloqueou gastos públicos, extinguiu órgãos do governo e até tentou privatizar as estatais. Nas suas próprias palavras, “foram dados os passos fundamentais para a abertura da economia, as privatizações e a modernização das finanças nacionais”.


A inflação anual triplicou em 1988, chegando a 993,28%; e dobrou em 1989, para 1.863,56%. Em dois anos, a política supostamente “anti-inflacionária” do sr. Maílson quintuplicou a inflação (mais exatamente, foi multiplicada por 4,7).


Pode ser que tudo isso se deva apenas ao fato de Maílson, que hoje destila a sua sapiência econômica na “Veja”, ser um rematado incompetente. Mas, como dizia aquele personagem de Cervantes, “pero que las hay, las hay”. Segundo Maílson, tudo o que ele fez estava certo: a inflação só não baixou por culpa do Congresso, dos seus colegas ministros, dos governadores, dos empresários nacionais, dos sindicatos de trabalhadores e até da Rede Globo – se não fossem eles, seu plano seria um sucesso...


Mas foi esse ambiente, envenenado por uma inflação de quase 2000%, que forneceu o caldo de cultura para a instalação do neoliberalismo, com todo o seu cortejo de gangsters, no poder, abanado por uma mídia completamente sem escrúpulos, antidemocrática, antinacional e antipopular.


Resta explicitar que também foi esse ambiente que fez com que aberrações como o Plano Collor e o Plano Real fossem impostas sem gerarem imediatamente um repúdio geral, apesar de implicarem na destruição do que o país construíra por seis décadas, inclusive parte de seu povo. A inflação tornou-se um espantalho para a chantagem neoliberal. Mais adiante, analisaremos o atual sistema de metas de inflação. Por agora, frisamos que seu evidente absurdo só não é percebido por causa do esmagamento diante do terrorismo, só possível depois dos acontecimentos do final da década de 80, em torno de uma fantasiosa ameaça de surto inflacionário.


OBSCURANTISMO


O neoliberalismo é uma lista de panaceias. Aliás, é a única doutrina, até hoje, que tem mais de uma panaceia. Nisso ele superou em muito os vendedores de elixir do Velho Oeste. Há pelo menos 10 panaceias, segundo o rol e incensado pelo inventor do Consenso de Washington (cf. John Williamson, “A short history of the Washington Consensus”, in conf. “From the Washington consensus towards a new global governance”, Barcelona, set./2004).


Em suma, em vez de teoria - esse produto do pensamento - o neoliberalismo não chega nem àquela vulgaridade apelidada de economia política “neoclássica”. Ele tem prescrições, e nenhuma preocupação em fundamentá-las. Pelo contrário, a preocupação é fugir de qualquer fundamentação e passar essas prescrições como óbvias, como as únicas possíveis. Não por acaso, quando os neoliberais, ao modo do sr. Meirelles, falam em “fundamentos”, sempre estão se referindo às suas próprias panaceias, cujo fundamento são elas mesmas.


Torna-se, assim, mais compreensível porque sempre o significado das palavras é pervertido pelos neoliberais, assim como seu ódio à qualquer vestígio de ciência, que faz lembrar o grito de guerra do fascista Millán-Astray: “¡Muera la inteligencia!”.
Tomemos como exemplo, outra vez, o “investimento direto estrangeiro” (IDE), a que nos referimos na parte anterior deste artigo.


O IDE – isto é, a penetração de empresas estrangeiras – sempre foi considerado, desde o século XIX, um problema para as economias dependentes ou coloniais, agravado pelo surgimento das multinacionais, ou seja, do capitalismo monopolista nos países centrais.


Se o leitor consultar qualquer trabalho sobre o assunto, por exemplo, a partir da década de 40 do século passado, verá que toda a literatura econômica é unânime em constatar que as multinacionais são um freio para o desenvolvimento dos países que não fazem parte do centro do sistema.


Não são apenas os autores “de esquerda” - por exemplo, o brasileiro Aristóteles Moura, nos seus extraordinários livros “O Dólar no Brasil” (1956) e “Capitais Estrangeiros no Brasil” (1959) - que chegaram a essa conclusão, ou os trabalhos dos pesquisadores norte-americanos da Labor Research Association - “Monopoly Today” (1950) e “Billionaire Corporations” (1954).


A própria ONU, já em 1949, no estudo “Les Mouvements Internationaux de Capitaux entre les deux Guerres”, apontava o problema já no período 1918-1939, ao que se seguiria uma série de outros trabalhos - sem contar os da Cepal, que também é um órgão da ONU.


Tomemos, para encerrar essa brevíssima recensão dos estudos sobre o tema, um famoso livro de alguém que não pode ser acusado nem mesmo de suspeita de ter relação com a “esquerda”, o economista norte-americano Raymond Vernon, professor de Harvard, ex-membro da equipe do Plano Marshall, um dos idealizadores do FMI e do GATT, funcionário durante décadas do Departamento de Estado e da SEC (a agência que, presumivelmente, cuida das Bolsas de Valores dos EUA).


Trata-se de um estudo empírico, publicado por Vernon em 1971, “Sovereignty at Bay: The Multinational Spread of U.S. Enterprises”, traduzido no mundo todo (inclusive no Brasil, já em 1978: “Soberania Ameaçada: A Expansão Multinacional das Empresas Americanas”; não conhecemos a tradução, mas ela foi bastante citada em trabalhos acadêmicos).


Pois bem, apesar do professor Vernon mostrar horror a tudo o que ele acha que é ideológico (como se ele mesmo não tivesse alguma ideologia), suas conclusões são semelhantes aos demais trabalhos sobre o assunto – o que está expresso no título que deu ao seu livro, apesar de, 10 anos depois, ter-se declarado arrependido por esse título. Mas não o mudou, embora tempo não lhe faltasse para fazê-lo, até seu falecimento, em 1999.


As únicas exceções a essa constatação sobre o IDE, naturalmente, eram os agentes diretos do capital estrangeiro como Gudin, Roberto Campos, Martínez de Hoz e seus equivalentes em outros países, todos alucinados por uma ditadura, que levaram as economias dessas nações, sob regimes tão entreguistas quanto repressivos, à bancarrota.


Não é difícil explicar porque, da década de 80 em diante, tenham aparecido tantos elementos propugnando que o melhor para as economias da América Latina, da África, da Ásia, do Leste europeu, é entregá-las ao arbítrio do capital norte-americano, ou germano-anglo-francês, ou japonês. A correlação de forças mundial é suficiente para explicá-lo – como na conhecida descrição de Lenin sobre o período de contrarrevolução que sucedeu 1905, “desânimo, desmoralização, cisões, dispersão, deserções, pornografia em vez de política. Fortalecimento da tendência para o idealismo filosófico, misticismo como disfarce de um estado de espírito contrarrevolucionário”. Afinal, como escreveu em outra ocasião – a da I Guerra Mundial – o mesmo autor, “toda crise na vida dos homens levanta alguns e abate outros”.


Mas é necessário voltar à própria história do que veio após o rompimento, pelos EUA, da relação entre o dólar e o ouro, para entendermos como uma mera série de slogans se impôs como ideologia desse período. No entanto, o que houve foi uma espécie de fusão entre uma ideologia preexistente, cinzenta, apagada e sem importância, com o que havia de mais reacionário, parasita e anti-humano nos países centrais: a cúpula dos bancos e demais antros especulativos, as aves de rapina do cartel bélico, os saqueadores do cartel do petróleo e assemelhados. Vejamos, então, o surgimento dessa ideologia.


O TRUQUE


O neoliberalismo está associado, com razão, ao nome de Friedrich von Hayek. Esse austríaco era, na década de 30 do século passado, um saco de pancadas nos debates econômicos. O que ele fez depois só pode ser compreendido como uma manobra desonesta para eludir essas derrotas – e uma tentativa auto-ilusória de tornar-se imune à crítica.


Essa manobra consistiu em desistir de fundamentar suas concepções, já consideradas ultrarreacionárias naquela época, transformando-as numa crença sem nem ao menos uma teologia que procurasse sustentá-la. Com isso, Hayek abandonava as pretensões teóricas para adentrar no terreno da mera propaganda enganosa.


Como se pode criticar um credo sem demonstrar a falsidade do seu fundamento? Ao eliminar o último, Hayek pretendia escapar da crítica.


Evidentemente, a crítica mais demolidora a uma crença sem fundamento é a demonstração da sua falta de fundamento. Mas Hayek estava contando com uma vantagem não acessível aos seus oponentes: a mídia, que dispensa qualquer fundamento para afirmar as maiores barbaridades.


Mas voltemos ao início da carreira de Hayek.
Sua derrota mais estrondosa foi numa polêmica contra o economista polonês Oskar Lange sobre a possibilidade de uma economia planificada – o “debate sobre o cálculo socialista”, em 1936.


Lange jamais foi um grande marxista. Pelo contrário, demonstrou em suas obras um entendimento no mínimo duvidoso sobre a teoria do valor - e sua concepção da sociedade socialista é basicamente aquilo que depois seria chamado, com infausto destino, “socialismo de mercado”.


Apesar dessas debilidades (que, aliás, só apareceriam plenamente em obras posteriores), Lange, no debate, demonstrou que a suposta impossibilidade do planejamento econômico, levantada por Hayek, era uma falácia. E, o que foi o golpe de misericórdia, Lange expôs o ridículo da posição de seu oponente, ao observar que, se o fundamento da teoria então defendida por Hayek, era que a oferta e a procura entram sempre em equilíbrio no “livre mercado” porque as decisões do homo economicus são sempre racionais (portanto, previsíveis), essa racionalidade tornaria o planejamento consciente da economia não só possível, como desejável. Levando às últimas consequências esse raciocínio, Lange mostrou que tal racionalidade dispensaria o “livre mercado”, pois ele seria completamente desnecessário se as decisões do indivíduo fossem sempre previsíveis. Nesse caso, inclusive, seria mais eficiente uma economia planificada sem qualquer mercado.


Com isso, Hayek ficou embaraçado pelo próprio fundamento da doutrina “neoclássica” de que, na época, era adepto – e o debate se encerrou com a acachapante vitória de Lange e dos marxistas.
O segundo debate mais importante em que Hayek se envolveu, foi com John Maynard Keynes. Nessa época, Hayek recém chegara à Inglaterra – e foi logo brigar com Lord Keynes, então em ascendente prestígio, que o levaria a ser o mais renomado economista não-marxista nas décadas posteriores.


A questão em debate pode ser formulada em termos simples: “foi uma significativa contribuição de John Maynard Keynes ao pensamento econômico sugerir que a economia moderna bem pode entrar num equilíbrio de desemprego e baixo desempenho. Este foi o fato vívido da Grande Depressão” (Galbraith, “A Journey Through Economic Time”, 1ª ed., 1994, pág. 229).


Em outras palavras: a economia capitalista, na época dos monopólios, não sairia da crise por si própria, mas somente com a intervenção do Estado.


Foi essa “sugestão” de Keynes que Hayek resolveu contestar – seguindo também os “neoclássicos” e outros idólatras do mercado, segundo os quais, na crise iniciada em 1929, como disse Schumpeter, se nada se fizesse, tudo se resolveria. O fato de que isso implicava na morte por fome de milhões de pessoas não era algo que preocupasse esses economistas. Muito menos que, como ressaltava Keynes, nem assim estaria garantida a saída da crise.


Keynes não precisou se esforçar para vencer o debate – a economia capitalista, então na pior fase da crise, ganhou o debate para ele. Mas a realidade, é forçoso reconhecer, nunca foi um impedimento para Hayek.


Assim, massacrado por marxistas e keynesianos, Hayek renegou os fundamentos dos “neoclássicos” - ou qualquer outro - e, pouco antes do fim da II Guerra, em 1944, publicou um livro que é o marco inicial do neoliberalismo: “The Road to Serfdom” (O Caminho da Servidão).


Como qualquer um que o leia pode comprovar, esse livro é um panfleto – foi escrito para a campanha do Partido Conservador contra o Partido Trabalhista. A tese central é que qualquer forma de coletivismo, qualquer ideia de justiça social (“justiça distributiva”), qualquer aspiração “a uma distribuição mais justa”, vale dizer, qualquer preocupação social, é uma tirania e leva a uma ditadura. Liberdade é a mesma coisa que um suposto “livre mercado”, sem intervenções, controle nem regulações do Estado ou da sociedade. Em suma, Hayek pintava a ditadura dos monopólios – pois o único “mercado” que existe no capitalismo dos países centrais é aquele manietado por esses monopólios – como o reino da liberdade.


Como panfleto eleitoral, foi um fracasso: o Partido Trabalhista ganhou as eleições, apesar do líder conservador ser Winston Churchill, que governara o país durante a guerra.


Mas, por que Hayek diz que a preocupação com a justiça social é uma tirania? Obviamente, porque, na sociedade, quem deve prevalecer são os “mais capazes”. A igualdade é um ideal “tirânico” exatamente porque tiraniza os mais capazes. A liberdade seria, portanto, sinônimo de desigualdade.


É essa a defesa da democracia feita por Hayek, bastante coerente com sua declaração, 37 anos depois, ao passar em revista o seu paraíso neoliberal (o Chile, sob a ditadura de Pinochet): “Pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal do que um governo democrático carente de liberalismo” (El Mercurio, 12/04/1981, entrevista, págs. D8/D9).


Vários autores, inclusive Paul Sweezy e John Kenneth Galbraith, já puseram em ridículo esse livro – portanto, aqui apenas observaremos que os “mais capazes” de Hayek são sempre os mais capazes de especular, os mais capazes de bajular, os mais capazes de roubar, os mais capazes de trair, os mais capazes de pisar no pescoço dos outros para se dar bem, os mais capazes de ser insensíveis diante de outro ser humano, etc., etc.


Por isso é que os neoliberais pregam a “desregulamentação” de tudo e vivem berrando por um “Estado indutor” que garanta um “ambiente de negócios” que estimule esses “mais capazes”, isto é, que deixe à solta a sua atividade antissocial. Senão, é uma terrível tirania.


Observemos que Hayek, nesse livro, desiste de qualquer fundamentação econômica – ele mesmo diz que seu suposto argumento é apenas “político”, isto é, consiste apenas em propaganda anticomunista e reacionária.


Na época, a reação até que fez um esforço para promover esse livro – a Universidade de Chicago, uma das obras filantrópicas de John D. Rockefeller, publicou uma edição nos EUA e um ex-comunista que se tornara um fanático anticomunista, logo depois um macartista dos mais assanhados, publicou uma condensação no Reader’s Digest.


Mas esse tipo de publicidade somente fez com que o livro fosse encarado como o que realmente era: um panfleto delirante, em seu direitismo troglodita, escrito por um autor capaz de criticar Hitler por ser demasiado “de esquerda” (literalmente: “o que levou [o nazismo] ao totalitarismo não foi o elemento especificamente alemão, mas o elemento socialista”).


Hayek e a sua seita continuariam a amargar sua apagada mediocridade pelos próximos 35 anos, mesmo depois que “três anos depois, em 1947, enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em outros países, Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça.  Entre os célebres participantes estavam não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. (…) Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. (…) Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. (…) eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo – na realidade imprescindível em si” (Perry Anderson, “Balanço do neoliberalismo”).


Alguns autores, inclusive Galbraith, chamaram isso de “darwinismo social”. Em respeito a Darwin, que não tem nada a ver com isso, achamos o nome inadequado. Na verdade, o mais preciso seria chamá-lo de neo-nazismo.

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