terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O 'lugar' da luta de classes na crítica da economia política



Nota: o objetivo deste breve texto é apresentar uma crítica a certas compreensões marxistas e não-marxistas sobre o fenômeno que os sujeitos de conhecimento reconhecem como 'luta de classes' e apresentar minha própria concepção sobre a temática, dispondo-a à avaliação do leitor.

 ''A luta de classes não é uma processo que age em um marco estrutural: a luta de classes é a síntese das condições em que os homens produzem sua existência e se acha, por isso mesmo, regida por leis que determinam seu desenvolvimento.'' (Ruy Mauro Marini) 
 "Uma palavra para evitar possíveis equívocos. Não foi róseo o colorido que dei às figuras do capitalista e do proprietário de terras. Mas, aqui, as pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e interesse de classe. Minha concepção do desenvolvimento da formação econômico-social como um processo histórico-natural exclui, mais do que qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações das quais ele continua sendo, socialmente, criatura, por mais que, subjetivamente, se ache acima delas." (Karl Marx, prefácio da primeira edição de O Capital, 1867)
 ''[O] capitalista é o capital personificado, exercendo no processo de produção apenas a função de representante do capital.'' (Idem, O Capital, livro III, capítulo 48) 
''A classe possuidora e a classe proletária representam a mesma alienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade nesta alienação; encontra nela uma confirmação, reconhece nesta alienação de si o seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada nesta alienação, vê nela a sua impotência e a realidade de uma existência inumana.'' (Idem, A Sagrada Família)   

 Quando eu estava no 2º ou 3º período da graduação em Economia, um dos professores gostava de zombar dos adeptos do marxismo falando de maneira jocosa em ''capitalistas malvadões'' quando tratava dos ''supostos'' problemas de uma ''economia de mercado''. Esta atitude, que reflete a seriedade intelectual com que os economistas do mainstream lidam com o marxismo e outras correntes teóricas heterodoxas, tem entretanto um ''lastro'' no discurso e no entendimento de certos militantes marxistas e/ou socialistas (bem como num certo senso comum), os quais sobre-enfatizam a índole moral dos indivíduos da classe burguesa, dando a entender que os problemas que afligem a classe trabalhadora na sociedade capitalista advém da particular maldade, avareza, crueldade etc. dos capitalistas/burgueses, ou empresários (proposição que, obviamente, muita gente rejeita, chegando ainda a crer que não existe luta de classes). A esta concepção, conecta-se outra segundo a qual a luta de classes é um ''deus ex machina'' e/ou praticamente se explica por si mesma.

 Em crítica a essas concepções, buscarei demonstrar aqui que a) existe ''luta de classes'', ou melhor, um antagonismo fundamental entre os interesses da classe capitalista e da classe trabalhadora; b) este antagonismo fundamental de interesses tem um sólido fundamento na própria natureza do capital; e c) por isto, ele dispensa considerações sobre a moralidade individual dos indivíduos da classe proprietária, embora isto não implique que os burgueses não possam ser bastante filhos da puta. 

 Pois bem, comecemos do começo. Se há luta de classes, ou ''antagonismo fundamental de interesses'' entre a classe capitalista e a classe trabalhadora, o que é isto? Como funciona? Trata-se do fato, que é até bastante compreensível e 'aceitável' para o senso comum, de que nenhuma classe social pode se apropriar de uma parte da produção social sem que esta parte deixe de estar disponível para outra classe social; numa linguagem técnica: para um dado nível de produto, há uma relação inversa entre salário real (isto é, o poder de compra do salário monetário, em quantidades de mercadorias) e a taxa normal de lucro. (Alguns consideram essa relação como o conflito distributivo capitalista básico).

 OK, mas (se ainda não ficou claro) qual é o ''sólido fundamento na própria natureza do capital'', então? Bem, o capital (ou valor-capital), se se o entende desde o ponto de vista da teoria desenvolvida por Marx, é um valor em forma desenvolvida que busca se reproduzir, ampliar-se, usando para isso, em sua forma geral (D-M-D'), a produção de mercadorias prenhes de mais-valia. E valor, deste mesmo ponto de vista, é a forma social especificamente capitalista da riqueza -- isto é, a forma social da riqueza nas sociedades em que predominam as relações capitalistas de produção; é riqueza abstrata, poder de compra. Assim, na ''dinâmica capitalista em geral'', poder de compra em determinada magnitude converte-se em poder de compra numa magnitude ainda maior.

 Obviamente, para converter-se numa quantidade ainda maior de ''poder de compra'', quanto maiores forem a massa e a taxa de lucro, tanto melhor convém aos capitais. Aliás, tanto maiores tenderão a ser aqueles dois para os capitais individuais quanto maior for a parcela da mais-valia globalmente produzida de que esses capitais consigam se apropriar e quanto menores forem seus custos; mais-valia, aliás, que é justamente a fração do produto social (isto é, da riqueza socialmente produzida) que os trabalhadores assalariados produzem e da qual não se apropriam sob a forma de salário real, materializando-se em produto excedente que, quando vendido a preços normais, proporciona lucro aos capitais. E bem, (para um dado nível de produtividade) quanto mais os trabalhadores trabalharem  -- portanto, quanto maiores forem as suas jornadas de trabalho e a intensidade deste trabalho --, mais produtos e mais valor eles produzirão, portanto (para um dado salário real) mais mais-valia. Ou seja: entre capitalistas e trabalhadores assalariados não há apenas um conflito distributivo, mas um ''conflito produtivo'', que está relacionado à própria ''lógica de funcionamento'' do capital.

  Ah, como sabemos, os capitais relacionam-se entre si basicamente através da concorrência. Principalmente a concorrência por mercados (demanda, vendas), mas também por insumos, etc. Pois bem: a forma básica da concorrência por mercados é a concorrência através dos preços de venda, e o instrumento básico para isso é a redução dos custos de produção. A concorrência, portanto, coage os capitalistas -- que, como disse o Marx numa citação feita mais acima, personificam o capital e exercem na produção a função de seus representantes -- a reduzirem os custos de produção relacionados à força de trabalho; em outras palavras, reduzir os salários e demais 'custos laborais' tanto quanto possível e ao mesmo tempo aumentar tanto quanto possível a produção, a fim de reduzir o custo total médio da produção, o custo unitário das mercadorias. Um caminho que se mostra particularmente atraente aos capitais que dispõem de tecnologias inferiores e, portanto, são incapazes de alcançar o nível de produtividade dos concorrentes. E que se mostra tanto mais fácil quanto mais necessitados de empregos estiverem os trabalhadores. 

[Pausa para alguns comentários: 1) vê, aí, a importância da legislação trabalhista (incluindo jornada normal de trabalho), do salário mínimo etc.?; 2) precisamente destas informações, certos economistas liberais ''ou'' empresariais dizem que é preciso flexibilizar a legislação trabalhista, reduzir os salários reais etc., pois do contrário a ''indústria nacional'' não terá competitividade internacional e aí sumirão os empregos, etc. A isso, respondemos que se o capital é incapaz de garantir um mínimo de condições ''civilizadas'' de trabalho e vida às maiorias, ele que saia de cena, juntamente com o patronato. O capital não é a forma ''natural'' da produção social de riqueza, nem é eterno; é só uma forma histórica, e portanto transitória. A classe trabalhadora pode (e deve) assumir o controle dos meios de produção, aliás exatamente rompendo com a sua condição de classe no processo; desproletarizando-se e vindo a se tornar uma coletividade de seres humanos livremente associados.]

 Chegamos às conclusões: como personificações do capital, agindo pelos ''interesses'' deste e de acordo com a lógica de funcionamento do mesmo, os capitalistas são coagidos, pela 'concorrência universal', a impor aos trabalhadores condições de trabalho e produção que contrastam com os interesses destes. Neste processo, entretanto, eles não são 'coitadinhos': lucro é fonte de poder de compra que serve ao deleite de consumo dos capitalistas, por exemplo. Tampouco estão isentos de agência moral e possibilidade de escolhas. Podem, enquanto indivíduos, darem total apoio à imposição de legislações que estabeleçam padrões minimamente 'civilizados' de vida para os trabalhadores e/ou fazer muito mais, como ninguém mais, ninguém menos que o camarada Friedrich Engels. Como também pode fazer exatamente o contrário, lutando com afinco em nome de seus lucros pela condenação da classe trabalhadora a condições trágicas, como a maioria da burguesia brasileira recentemente, em apoio à reforma trabalhista.

 Por fim: se o nosso ''inimigo final'', ou ''absoluto'', é o capital(ismo) -- o que, aqui e agora, inclui o imperialismo --, isto significa enfrentar os interesses da burguesia, pois que o interesse de classe da mesma é beneficiado pela lógica do capital, e que os privilégios desta classe nascem juntamente com o pressuposto central do capital: a propriedade privada dos meios de produção e, devido a esta, a proletarização da imensa maioria da humanidade.

                                                                              

Nenhum comentário:

Postar um comentário