domingo, 1 de novembro de 2015

Sobre o livre comércio (e vantagens comparativas)


Traduzo logo abaixo um texto de Matias Vernengo, professor titular da Bucknell University e coeditor da Review of Keynesian Economics, sobre o tema do comércio externo e sua liberalização ou regulamentação, retirado do blog Naked Keynesianism



Sobre comércio ''livre'' e comércio gerido (modelo ricardiano) 

 Em um de meus últimos posts eu prometi falar sobre ''livre comércio''. Como eu disse, o próprio nome está equivocado, assim como ''livre mercado''. Não apenas porque sugere que aqueles que se opõem a ele são de alguma forma adversários da liberdade, mas principalmente porque ele vagamente sugere que comércio e mercado são como fenômenos naturais, que floresciam somente se as restrições governamentais fossem eliminadas. 

 Na verdade, é bem sabido que, ao menos desde o clássico de Polanyi, que os mercados essenciais numa economia capitalista (os de terra, trabalho e dinheiro) foram lentamente criados por meio da interação de conflitos sociais articulados através de processos políticos e que sua própria existência resulta, em parte, do poder do  Estado. Logo, visões simplistas e maniqueístas acerca da relação entre o Estado e o ''livre'' mercado ignoram o fato de como Estados e mercados co-evoluíram historicamente.

 Por exemplo, o Banco da Inglaterra, criado em 1694, obteve o monopólio da criação de dinheiro apenas após Bank Charter Act de 1844, algo que resultou da vitória do City of London (interesses financeiros) sobre os bancos do país (mais próximos aos interesses comerciais). O monopólio da emissão de dinheiro seria impossível sem o suporte do governo (e seu monopólio da violência). O mesmo pode ser dito sobre transações comerciais internacionais. Por exemplo: é bem conhecido que o período chamado ''primeira globalização'' (1870-1914) viu um significante acréscimo no volume de comércio global. Entretanto, várias regiões na verdade se tornaram mais ''protecionistas'', i. e., aumentaram as tarifas sobre importações (veja Paul Bairoch para um boa discussão sobre o tópico). 

 Na América Latina as tarifas mais altas permitiram aos governos incrementar sua receita, o que, por sua vez, criou as condições para os exércitos nacionais reduzirem conflitos domésticos -- e centralizar a administração, fornecer garantias para os credores estrangeiros e financiar a construção de ferrovias e portos.

 Isso não significa que todo mundo na América Latina (ou em outras regiões para as quais o tema importa) se beneficiaram do acréscimo no comércio global durante o período [vale a pena lembrar que no México, no final do período, os camponeses fizeram revolta contra o Porfiriato na chamada Revolução Mexicana de 1910]. Não foi o ''livre'' comércio que produziu crescimento, mas a gestão do comércio para produzir mercadorias para os países centrais (um projeto particular apoiado por elites locais e grupos comerciais e financeiros internacionais) que levou ao crescimento (com altos níveis de desigualdade).

 Uma discussão mais lógica, por todos esses motivos, deveria ser não sobre ''livre'' comércio vs protecionismo, mas sobre que tipo de comércio gerido uma determinada sociedade deseja, e quem se beneficia dos diferentes arranjos comerciais. Por exemplo: em discussões correntes sobre acordos comerciais bi ou multilaterais os temas do investimento e cláusulas de propriedade são fundamentais. A disputa é principalmente sobre aqueles que querem proteger os interesses das corporações [e. g. (''a título de exemplificação'') direitos de propriedade, acesso às cortes estrangeiras, eliminação de regulações financeiras proibindo remessas de lucro ao exterior, etc.] e aqueles que podem ter interesses alternativos (e. g. a proteção dos empregos domésticos, criação de capacidade nacional para inovação industrial, o meio-ambiente, etc). De fato, para casos específicos, como defesa ou regras sanitárias e fitosanitárias, está bem estabelecido que o comércio deve ser regulado, ou seja, não ''livre'' mas sim gerido (para discussões sobre alguns problemas correntes envolvendo a agenda do ''livre'' comércio, olhe aqui e aqui).

 Mas os problemas para os defensores do ''livre'' comércio não estão limitados às inconsistências de suas posições políticas. Na verdade, apesar do consenso geral de economistas acadêmicos (convencionais) em favor do ''livre'' comércio, os fundamentais teóricos para a posição dos mesmos são bastante trêmulos. O argumento remonta aos Princípios de David Ricardo (veja também o trabalho paralelo de Robert Torrens). Ricardo argumentou que se Inglaterra e Portugal comercializassem sem a imposição de tarifas isso seria mutuamente benéfico, mesmo que Portugal fosse melhor em produzir ambos os produtos comercializados, vinho e algodão. A razão é simples: mesmo que os trabalhadores portugueses fossem mais produtivos do que suas contrapartes inglesas na produção de ambos os bens, eles poderiam ser melhores na produção de um deles (digamos, vinho) e ainda se beneficiariam de colocar todos os seus esforços na atividade em que se destacam.

 Em outras palavras, o argumento para o comércio sem tarifas e outras restrições estava baseado na ideia de que o comércio é equivalente a acesso a melhores tecnologias. Os portugueses poderiam se especializar no que eles são tecnologicamente melhores, e obter através do comércio as coisas que eles não produzissem. Os ingleses poderiam ter acesso a melhor vinho. Ambos teriam acesso a algodão mesmo que os ingleses fossem menos eficientes em produzi-lo. A mensagem é que especialização é a chave para a riqueza das nações.

 Entretanto, o que é frequentemente ignorado na discussão é que o argumento ricardiano da vantagem comparativa, como é o caso para todos os modelos econômicos, depende de certas premissas especiais, e que aquelas premissas correspondiam às próprias visões políticas de Ricardo. Primeiramente, Ricardo assumiu que todos os trabalhadores que estavam empregados na produção de vinho na Inglaterra encontrariam emprego na produção de algodão, e que todos os trabalhadores empregados na produção de algodão em Portugal poderiam achar trabalho na produção de vinho. A Lei dos Mercados de Say, que sugere que a crise geral de demanda não ocorre no mercado interno, foi estendida para os mercados externos também. Trabalhadores estão sempre empregados por definição (não necessariamente pleno emprego para Ricardo). Além disso, Ricardo assumiu que o capital era imóvel, isto é, mesmo que fosse mais barato de produzir em Portugal (dada a sua maior produtividade e menores custos) e exportar para a Inglaterra, capitalistas ingleses prefeririam manter o seu capital na Inglaterra e produzir em seu país natal.

 Note que se qualquer uma dessas premissas for violada, o argumento de Ricardo desaba. Em outras palavras, se os trabalhadores na Inglaterra e/ou em Portugal no setor ''deslocado'' não puderem achar empregos no outro setor, não é claro que todos se beneficiam do ''livre'' comércio. Além disso, se os capitalistas puderem e de fato se moverem de país para país (Interessantemente, Ricardo descendia de uma família de banqueiros que emigrou de Portugal para a Itália, desta para a Holanda e por fim para a Inglaterra), isso determinaria que ambos o algodão e o vinho seriam produzidos em Portugal. A Inglaterra estaria em uma difícil situação, importando ambos os bens e condenada a crescer num ritmo mais lento, o que é exatamente o oposto da situação histórica (para uma análise do comércio Anglo-Português depois do Tratado de Methuen de 1703 que permitiu ao vinho português ser exportado para a Inglaterra livre de tributações e o mesmo para os têxteis ingleses em Portugal, ver Trade and Power de Sandro Sideri).

 As razões das premissas especiais de Ricardo são bastante conhecidas. Ricardo representou os interesses financeiros e industriais, e era um severo crítico das Corn Laws, as tarifas sobre grãos importados impostas após as Guerras Napoleônicas, que beneficiava as classes dos aristocratas e latifundiários -- defendidas por seu amigo Robert Malthus. Ricardo assumiu que os salários estavam no nível da subsistência, e que as tarifas na importação de grãos levaria ao uso de mais (e menos produtivas) terras na Inglaterra para sua produção, incrementando a renda auferida pelos donos de terras. Para uma produção dada, e com salários constantes, a renda maior iria necessariamente reduzir lucros e a acumulação de capital. Em outras palavras, as premissas especiais (que Ricardo pensou relevantes para o caso particular da Inglaterra naquele contexto histórico particular) foram instrumentais em sua argumentação para a eliminação das tarifas sobre grãos importados. Isto era um argumento progressista pela industrialização e contra a aristocracia agrária (para uma discussão sobre as posições políticas de Ricardo, veja Ricardian Politics, de Milgate e Stimson).

 Generalizações do argumento ricardiano somente podem ser defendidas se seus pressupostos (incluindo que trabalhadores desalocados acham novos empregos e que não há mobilidade de capital) também são tido como geralmente válidos. Outros argumentos modernos em favor do ''livre'' comércio se apoiam no assim chamado modelo Heckscher-Ohlin-Samuleson (HOS), que está repleto de problemas lógicos, e é ainda menos defensável do que a generalização de pontos de vista ricardianos, mas eu vou lidar com aqueles em outro post.

Ps. Meu artigo ''O que os graduandos realmente precisam aprender sobre comércio e finanças'' pode prover uma discussão mais detalhadas sobre os assuntos abordados acima. Robert Vinneau postou aqui elementos da crítica sraffiana ao modelo HOS.

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Para outras críticas à teoria das vantagens comparativas, ver este artigo do site da World Economics Association e este texto do blog Critique of Crisis Theory. 

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