sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A súbita guinada neoliberal do Brasil

Por Franklin Serrano*



 A rápida desaceleração da economia brasileira apresenta um duro desafio para o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) liderado por Dilma Rousseff. Entre 2011 e 2014, o crescimento econômico médio foi de apenas 2,1% ao ano, comparado com 4,4% no período 2004-2010.

 A recente queda pode ser diretamente atribuída à política econômica implementada por Dilma no primeiro mandato (2011-14) . Esta mudança na orientação da política econômica procurou reduzir o papel direto do Estado na promoção da expansão da demanda agregada por meio de estímulos fiscais e a promoção da mudança estrutural pelo lado da oferta por intermédio do investimento público, uma estratégia que havia sido bastante exitosa até 2010. Por seu turno, as políticas sociais inclusivas preocupadas com a redução da desigualdade continuaram em curso.

 A presidenta Dilma e seu partido (incluindo o ex-presidente Lula) avaliaram – em uma tentativa de reduzir as críticas dos empresários, bancos, parte do Congresso e da mídia – que o governo estava intervindo “demais” na economia. Houve uma mudança na concepção do papel do Estado na economia na direção de prover incentivos (isenções fiscais generosas e incondicionais) para o investimento privado, de forma que este setor lideraria (ao invés de seguir) o crescimento econômico.

Esta política falhou completamente. Isto foi agravado quando uma rara estiagem em conjunto com a má condução da política energética pela Eletrobrás, a principal empresa estatal do setor elétrico, levaram o país à beira de uma séria crise de oferta energética e racionamento de energia em 2014, mesmo com a demanda em baixa devido à queda do crescimento econômico.

 Ao invés de retornar às políticas bem-sucedidas anteriores de 2005-2010, e melhorar o planejamento de longo prazo (por meio de melhores políticas tecnológicas e de infraestrutura), o segundo mandato de Dilma está completamente comprometido com políticas propostas pela oposição neoliberal. O propósito subjacente deste regime é gerar desemprego suficiente para enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores.

 Este poder, talvez de maneira não intencional, aumentou substancialmente devido a um mercado de trabalho mais aquecido entre 2006 e 2014 e às políticas sociais do governo PT. O desemprego caiu acentuadamente e os salários reais médios no setor formal cresceram a uma taxa média de 3% ao ano, a partir de 2006 [2]. Em 2015, o governo do PT passou a tomar ações decisivas contra isso. A geração de desemprego via políticas de austeridade e mudanças na distribuição em detrimento dos salários criaram um clima político em que é possível reverter o tamanho e a importância do Estado brasileiro na economia. 

Esta traição súbita e drástica contra a própria base do partido formada pela classe trabalhadora foi uma reação ao aumento das críticas à política econômica do primeiro mandato de Dilma feita pelo poderoso e conservador setor privado. Os conflitos distributivos e um novo Congresso hostil confrontaram uma presidenta e um partido que ao mesmo tempo parecem querer sinceramente mudanças sociais ao passo que abominam o conflito com as classes proprietárias conservadoras. Esta quadratura do círculo parecia possível até 2011 quando havia uma bonança de divisas, mas agora a moderação do PT e a pesada dependência do financiamento eleitoral de grandes empresas e bancos estão cobrando seu preço.

 Estas novas mudanças políticas têm sido muito mais significativas do que as mudanças nas condições externas, tais como a situação do comércio internacional e a disponibilidade de financiamento externo. Estes se deterioram desde 2011, mas não a ponto de desencadear uma crise na medida em que o Brasil é uma economia relativamente fechada. As exportações não são uma grande fonte de demanda e o país ainda tem níveis confortáveis de reservas cambiais e níveis relativamente baixos de dívida externa.

 O ministro da Fazenda Joaquim Levy disse ao jornal Correio Brasiliense na edição do dia 13 de Junho que ele estava a caminho de “sair da retórica e enfrentar algumas realidades”. Segundo Levy, existem pessoas que não queriam ingressar no mercado de trabalho, que agora terão que procurar emprego, e que é por esta razão que a oferta de trabalho deve crescer. Ainda de acordo com ele, “Não existe crescimento sem aumento da oferta de trabalho”. O ministro cometeu um erro óbvio: na teoria neoclássica do crescimento, a qual aludiu, é o pleno emprego que geraria o crescimento e não o desemprego, que, por definição, nada produz. 

 Ironicamente, a situação externa relativamente positiva, como recentemente assinalado por Matias Vernego [3], tem sido confirmada pelas agências que rebaixaram o Brasil no começo de setembro. A Standard & Poors justificou a classificação do Brasil abaixo do grau de investimento devido às dificuldades fiscais e a dívida interna do governo, não aos problemas de financiamento externo.

 É logicamente impossível para o mercado forçar um governo a dar calote na dívida interna denominada em sua própria moeda. Em qualquer país onde o Banco Central compra e vende qualquer quantidade de títulos governamentais de curto prazo no mercado secundário para estabelecer a taxa de juros básica da economia, quaisquer títulos não comprados pelo setor privado são comprados pelo Banco Central à taxa de juros estabelecida. Isto é ignorado pela S&P. Mas para ser justo, a S&P também rebaixou os títulos do governo japonês como também o fez com os títulos do governo dos Estados Unidos, então a insensatez da S&P não é restrita ao Brasil. Tal como as agências de classificação de risco disseram quando elas foram convocadas à Corte por seu papel na crise financeira de 2008, suas classificações são “apenas uma opinião” [4]. Infelizmente, a presidenta Dilma levou estas opiniões a sério.

 Os escândalos em andamento também estão tendo efeitos negativos sobre a economia. O governo teve uma reação desastrosa aos escândalos relacionados à companhia estatal Petrobras (com implicações sobre diversos quadros do PT no governo). Ao invés de tentar preservar a companhia enquanto a lei se encarrega dos acusados, a Petrobras foi tratada como um fio desencapado e o governo tentou distanciar-se dela. O governo aceitou quase todos os violentos ataques especulativos de curto prazo no valor das ações da empresa como refletindo verdadeiramente o valor real dos ativos da Petrobras. Isto agravou (e inclusive criou) sérios constrangimentos de crédito para a empresa.

 Assim, o governo paralisou os planos de investimento da Petrobras. Para piorar a situação, algumas grandes empresas que atendiam a Petrobras e estavam sob suspeita de corrupção foram impedidas de fazer qualquer negócio com o governo. A administração de Dilma não fez o suficiente para impedir isso. Como resultado, não apenas a Petrobras cortou investimentos como reduziu drasticamente suas encomendas de um grande número de grandes empresas privadas e de sua própria cadeia de fornecedores, e isto foi um desastre para vários setores, tais como o de construção naval.

 O impacto político dos próprios escândalos foi demasiadamente amplificado pela manipulação de magistrados com ambições políticas, atuando em concerto com os grandes meios de comunicação aliados à oposição. A resultante queda da popularidade colocou a administração de Dilma em uma posição política muito frágil. Isto tem ajudado o deslocamento da política na direção da austeridade na medida em que tem acentuado uma tendência, já dominante entre os líderes do PT imediatamente após as eleições de outubro de 2014, de fazer o que o “mercado” – isto é, grandes empresas privadas, a oposição e a mídia – quer. Estas políticas de austeridade, ao lado da reação desastrosa do governo ao escândalo na Petrobras – mais do que qualquer mudança nas condições econômicas internacionais – estão causando a profunda recessão atual. Se nós considerarmos a eficácia das medidas de austeridade buscadas pelo ministro da Fazenda Levy no controle do tamanho da dívida pública bruta para restaurar algum misterioso “nível de confiança”, esta terá sido um fracasso completo. Os gastos governamentais foram cortados da maneira mais arbitrária possível, e a recessão provocada pelas políticas fiscal, monetária, cambial e de rendas (aumento dos preços monitorados e de serviços de utilidade pública), ao lado da queda no valor das exportações, têm reduzido drasticamente as receitas fiscais, como era de se esperar. Desta forma, dentro de poucos meses, toda a meta de superávit primário teve de ser revisada para baixo.

 Além disso, a taxa de juros definida pelo Banco Central amplia os custos de gerenciamento e o estoque da dívida pública. Porém, se a eficácia for medida em termos dos objetivos reais da nova política, o sucesso é retumbante. A taxa de desemprego aumentou muito rapidamente. A inflação subiu e terminará o ano muito acima do limite superior da meta oficial de 6,5% [5]. O Banco Central simplesmente “suspendeu” a meta de inflação para este ano, depois de não exceder o limite superior por quase uma década e meia.

 Mas, na medida em que o propósito dessa inflação acelerada é reduzir os salários reais, algo que o governo eufemisticamente chama de “corrigir o desequilíbrio dos preços relativos”, o governo não evitou – e, na verdade, colaborou – para uma maior desvalorização cambial e aumento dos preços de serviços de utilidade pública. Por outro lado, o investimento público desabou.

 A eficiência dos serviços públicos tem sido comprometida por muitos cortes de gastos arbitrários e francamente ridículos. A UFRJ, universidade na qual leciono, recebeu menos do que 30% do seu orçamento aprovado para o calendário deste ano até Setembro. Histórias de horror como esta são abundantes no setor público brasileiro. Tais políticas ajudam a criar um consenso de que o Estado é ineficiente (e corrupto), provocando o coro em favor da redução, de forma mais permanente, dos gastos públicos e mesmo das transferências sociais.

 O governo já está planejando enviar ao Congresso amplas reformas do sistema público de seguridade social. No começo da década de 1990, Lula e o PT lideraram com parcial sucesso a oposição tanto à austeridade macroeconômica como às reformas neoliberais, e isto ajudou o Brasil a escapar de alguns dos piores impactos do neoliberalismo. Agora, eles estão liderando o movimento para as reformas neoliberais. Até o momento, estas novas políticas têm encontrado pouca resistência política na medida em que elas correspondem precisamente ao que as forças políticas conservadoras, que controlam o Congresso, querem, e porque agora não há nenhum grande partido de esquerda que se oponha a elas, uma vez que elas estão sendo implementadas (muito disciplinadamente) pelo próprio PT.

 Para os estudiosos da história brasileira, a eclosão da atual onda de escândalos e de pressões para a austeridade econômica não surpreende. Embora, historicamente, o presidente e o Executivo tenham sido muito poderosos relativamente ao Congresso e ao Judiciário, sempre que houve um presidente mais ou menos de esquerda, não importando o quanto moderado fosse, o Congresso e o Judiciário incitaram uma crise política para gerar um parlamentarismo informal. Isto aconteceu quando o ex-ditador Getúlio Vargas retornou como presidente eleito democraticamente na década de 1950 e com o presidente João Goulart antes do golpe militar na década de 1960. Houve uma tentativa fracassada de repetir esta estratégia durante o mandato de Lula, com a assim chamada crise do mensalão (referente às contribuições ilegais de campanha comprovadas e alegados subornos para membros do congresso). Isso está acontecendo novamente com a presidenta Dilma.

 O caso do presidente Fernando Collor foi completamente diferente. Sua candidatura foi um ato de desespero, uma vez que ninguém melhor foi encontrado que tivesse apelo popular e foi necessário para prevenir Lula e a esquerda de vencerem a eleição de 1989. Historicamente, existem duas formas fáceis para se livrar da esquerda na América Latina. A primeira é por meio de uma séria crise do balanço de pagamentos. A segunda, durante a Guerra Fria e especialmente depois da crise dos mísseis em Cuba, era um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos (o Chile teve os dois). Depois da década de 2000, a situação do balanço de pagamentos nos países em desenvolvimento em geral, e no Brasil em particular, melhorou significativamente. Com o fim da Guerra Fria, o Exército brasileiro não tem interesse em um golpe.

 A atual crise política é mais parecida com a situação de Vargas na década de 1950, na medida em que tanto naquela época como agora o Brasil não enfrenta nem uma crise no balanço de pagamentos nem a ameaça de um golpe militar. Mas é improvável que acabe tão tragicamente para a presidenta Dilma (o presidente Vargas cometeu suicídio) porque ela, o ex-presidente Lula e o resto do seu partido já se renderam sem muita luta.

Referências

[1] Ver SERRANO, F.; SUMMA, R. “Demanda agregada e a desaceleração econômica brasileira de 2011 a 2014”. In: Center for Economic and Policy Research, agosto de 2015. Disponível em: http://www.cepr.net/documents/publications/Brazil-2015-08-PORTUGUESE.pdf.
[2] Ver SUMMA, R.; SERRANO, F. “Distribution and cost-push inflation in Brazilian Economy under inflation targeting, 1999-2014”. In: Working Paper 13, Centro Sraffa, 2015.
[3] Ver http://nakedkeynesianism.blogspot.com.br/2015/09/from-bbb-razil-to-bbrazil-or-meaning-of.html. Acessado em 19/10/2015.
[4] Ver http://www.publicintegrity.org/2009/10/28/6995/under-attack-credit-raters-turn-first-amendment. Acessado em 19/10/2015.
[5] Ver http://www.bloomberg.com/news/articles/2015-06-25/brazil-changes-inflation-target-for-thefirsttime-since-2006. Acessado em 19/10/2015.

*Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisador Associado Sênior do Center for Economic and Policy Research (www.cepr.net).

O original encontra-se em www.excedente.org

Nenhum comentário:

Postar um comentário