Muitos se assustam com o caráter
ortodoxo da política
econômica aplicada pelo governo
nestes primeiros meses do segundo
mandato de Dilma Rousseff .
Outros tantos chegam a se mobilizar
para tentar resgatar um mandato
que, presumivelmente, teria que
ser de esquerda e, portanto, não deveria
implementar um ajuste ortodoxo
recessivo para combater os
efeitos da crise da economia mundial,
algo tipicamente de direita.
Várias questões emergem deste
tipo de percepção. O que é uma
política econômica de direita ou
esquerda? Qual a relação disso
com a ortodoxia/heterodoxia em
sua formulação? Por que o segundo
governo Dilma teria guinado à
direita? Comecemos respondendo
o último, e de maneira provocativa.
Dilma não faz um governo de
esquerda porque essa nunca foi a
proposta. E essa nunca foi a proposta
porque não se adéqua à estratégia
de desenvolvimento dos
governos do PT desde 2003!
Lula se elege em 2002 por
conta da crise da estratégia neoliberal
de desenvolvimento que havia
levado a economia brasileira a
pífias taxas de crescimento econômico, crescentes déficits e vulnerabilidades
externas e concentração
de renda e riqueza nos governos
anteriores. Dever-se-ia, portanto, reverter essa estratégia. Mas, o
que é uma estratégia neoliberal de
desenvolvimento? Aqui reside o
centro da incompreensão que leva
aqueles muitos a se assustarem
com a ortodoxia econômica dos
governos do PT.
Ao contrário do que se imagina,
a estratégia neoliberal de desenvolvimento
não é sinônimo de
uma política econômica (monetária, fiscal e cambial) ortodoxa e,
de alguma forma, é até independente.
O neoliberalismo, segundo
seus formuladores, se define
em um maior nível de abstração,
o da estratégia de desenvolvimento.
Segundo seus defensores, duas
seriam suas características: (i) é necessário
obter a estabilização macroeconômica
(inflacionária e das
contas públicas), como uma precondição,
e; (ii) dado (i), são necessárias
reformas estruturais (liberalização,
desregulamentação e
abertura de mercados, junto com
amplos processos de privatização)
que elevem o papel do mercado na
determinação dos preços e quantidades
de equilíbrio, retirando as
possíveis distorções introduzidas
por mecanismos populistas. Com
os corretos sinais fornecidos pelo
mercado e a elevação do ambiente
competitivo, a promessa sempre
é a de que crescerá a produtividade
e, portanto, a economia, assim
como ocorrerá uma redistribuição
da renda que for produzida.
A estratégia neoliberal de desenvolvimento
se define, portanto,
no âmbito dos marcos estruturais
da economia. E como se
obtém a estabilização macroeconômica
(i), pré-requisito para a
retomada do crescimento? Com
uma política ortodoxa ou heterodoxa?
A resposta é direta: pouco
importa. Tudo dependerá do ambiente
conjuntural. Daí entende-
-se como a mais pura ortodoxia
econômica tinha poucos problemas
nos anos 90 do século passado
para defender o controle de um
preço-chave em qualquer economia,
a taxa de câmbio, desde que
ela servisse como âncora para a estabilização
dos preços. Nesse momento,
a economia brasileira convivia
com uma política econômica
de bandas cambiais, política monetária
restritiva de combate à inflação e política fiscal também
restritiva, no intuito de obter superávits
primários necessários para
garantir o pagamento do serviço da dívida pública.
A crise de janeiro de 1999, ainda
nos marcos do governo FHC,
modificou a conjuntura e, portanto,
o caráter da política econômica
(regime de câmbio flutuante, com
intervenção do Banco Central, regime
de metas inflacionárias, manutenção/aprofundamento
da política
de superávits primários),
mas ainda dentro da mesma agenda
neoliberal de desenvolvimento.
Quando Lula assume o governo
em 2003, o que se modifica?
Nada. A política econômica – sob
o discurso de manutenção da credibilidade
– mantém o mesmo caráter
do segundo governo FHC e
as reformas estruturais pró-mercado
são ampliadas.
Por que os resultados foram diferentes?
Por que a economia passou
a crescer mais e houve algum
tipo de redistribuição desse crescimento?
Porque a política econômica mudou? Não. Porque a estratégia
de desenvolvimento guinou
à esquerda? Tampouco. Simplesmente
o que se modificou foi o
cenário conjuntural externo, com
grande crescimento das economias
para as quais a economia brasileira
exportava, e com um favorável
comportamento dos mercados internacionais de crédito. Isso permitiu
ao governo, mesmo sem nenhuma
modificação de estratégia,
elevação das taxas de crescimento,
sem pressões inflacionárias, e
maiores arrecadações do governo,
que permitiram algum tipo de política
social compensatória.
Mesmo durante esse período
do cenário externo favorável
(2002-2007) é preciso ressaltar
que: (i) a economia brasileira cresceu
mais do que em períodos anteriores,
mas se comparados com
nossos pares da América Latina, só
crescemos mais do que a economia
haitiana; (ii) por conta do aprofundamento
das reformas liberais, os
problemas estruturais de nossa economia
se agravaram (a reprimarização das exportações, relativa desindustrialização
e forte crescimento
do passivo externo). Assim, qualquer
reversão do cenário conjuntural
externo e esses problemas estruturais
crescentes se manifestariam
de forma agravada.
Esse cenário externo favorável se modifica radicalmente com
a crise da economia mundial em
2007/2008. A partir desse momento,
desconsiderando alguns vacilos iniciais, o governo tentou
conter os impactos da crise com
desoneração tributária de alguns
setores, expansão do crédito para
fi nanciar o consumo das famí-
lias e, com isso, garantir mercado
para a produção que procurava ser
mantida. Tratou-se de uma tímida
política econômica anticíclica,
não-ortodoxa, mas ainda dentro
da mesma estratégia liberal de desenvolvimento.
Com a longa duração da crise
econômica mundial, essa política
mostrou seus limites: (i) ampliação
dos déficits fiscais; (ii) superendividamento
das famílias, que restringe
o avanço do consumo e compromete
grande parcela de suas rendas
com mero pagamento de serviços de dívida. Já em 2014, mesmo
antes da campanha eleitoral, estava
claro que, independente de quem
ganhasse a eleição e dos discursos
proferidos na campanha, a resposta
aos efeitos da crise seria um ajuste
ortodoxo, retirando aquele leve ar
de heterodoxia que a política econômica
anticíclica tinha sustentado
até aquele momento.
A razão disso não é – como alguns
podem imaginar – que, no final das contas, a teoria econômica
ortodoxa tem razão e, portanto,
a forma correta de responder aos
efeitos de uma crise é aplicando um
ajuste recessivo, como, aliás, o atual
governo – em outras palavras – quer
nos fazer crer. A resposta para isso é
que o ajuste recessivo, uma resposta
ortodoxa de política econômica
para a atual crise, é a única forma
conjuntural de garantir os compromissos
necessários e assumidos pela
atual estratégia de desenvolvimento.
Portanto, só é possível entender
porque o governo Dilma não faz
um governo de esquerda se entendermos
a economia política de seu
governo, que, aliás, mantém a economia política de seu mentor político.
Nesta conjuntura, outra política
pressupõe outra estratégia de
desenvolvimento, o que, por sua
vez, pressupõe outra conformação
do poder econômico e político.
Um governo realmente de esquerda
seria aquele que rompesse
– de fato – com a estratégia neoliberal
de desenvolvimento e, por
conta disso, ao reduzir a vulnerabilidade
externa estrutural de sua
economia, promovesse uma verdadeira
modificação estrutural da
concentração de renda e riqueza,
que ampliasse os mercados internos
– que ainda poderiam ser expandidos
com uma verdadeira integração
regional, para além dos
acordos de livre comércio. Políticas
sociais e públicas muito além
do mero compensatório dos problemas
estruturais que decorrem,
justamente, da ampliação das reformas
estruturais liberalizantes.
Por que não se faz isso? Porque
isso seria alterar os marcos estruturais
do desenvolvimento e, portanto,
as classes e/ou frações de classe
que são beneficiadas pela atual
estratégia. Sendo assim, as conclusões
não poderiam ser outras. Por
um lado, Dilma não faz um governo
verdadeiramente de esquerda
porque essa nunca foi a proposta.
Por outro lado, essa nunca foi
a proposta porque, dada a aliança política e de classes que os governos
do PT construíram, nunca
poderia ter sido diferente.
*Presidente da Sociedade Latino-
-americana de Economia Política e Pensamento
Crítico (Sepla), professor associado
da Faculdade de Economia
da Universidade Federal Fluminense
(UFF), membro do Núcleo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas em Marx e
Marxismo (NIEP-UFF) e professor colaborador
da Escola Nacional Florestan
Fernandes (ENFF-MST).
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