A linguagem é uma das ferramentas mais incríveis já criadas pelo ser humano: ela conseguiu levar-nos a um nível de integração inatingível para outras espécies. Como artifício ''geneticamente'' social, também, ela reflete as características de uma sociedade, suas relações de poder. Observe o leitor que o português de expressão brasileira reflete o machismo presente na nossa cultura desde a colonização: se há um grupo de jovens de ambos os sexos, nós os tratamos por ''eles'', ''os jovens''; se há um grupo de crianças cuja maioria absoluta é de menina, com uma minoria irrisória do sexo masculino, ainda sim chamaremos o grupo de ''os meninos''. Mesmo palavras teoricamente válidas para os dois gêneros tem ''tom'' masculino (''O ser humanO'').
Se a linguagem é um reflexo das relações de poder, nada mais lógico do que haver um grande uso/trabalho dela na política. George Orwell, escritor da distopia clássica 1984 - uma crítica sagaz ao totalitarismo, em especial à URSS sob Stalin -, descreveu o processo de ''novilíngua'', no qual segmentos do debate político se apropriam de certos termos e modificam seu sentido, e por mera repetição e uso desse termo no contexto desse debate e em publicações acadêmicas, ele acaba sendo sacralizado dessa maneira. É o que tentam fazer hoje com os próprios termos de esquerda e direita. Direitistas hoje tentam ressignificar o termo direita para ser "toda posição que defende menos intervenções do Estado". Essa ressignificação interessa porque daí qualquer ditadura ou regime totalitarista, como o salazarismo, a ditadura militar, o fascismo ou nazismo podem ser atribuídas à esquerda. E, sutilmente, isso tem funcionado! Muita gente cai nessa ressignificação do termo e acha que esquerda e direita realmente significam isso, e significavam na época desses ditadores.¹
O assunto a que o título se refere é um exemplo de ''novilinguismo'' no seio da esquerda política, à qual pertenço. É bom lembrar que a transformação do significado das palavras não é necessariamente má: nos EUA, algum grupo mais à esquerda em algum momento decidiu que a liberdade era um valor muito caro para ser deixado à direita, desprezado e colocado em plano secundário, como era abertamente admitido por outros grupos mais à esquerda na Europa, favoráveis ao planejamento econômico. Esse grupo então começou a desconstruir o termo "liberal", ressignificando-o para alinhá-lo as ideias da esquerda. Possivelmente alguns intelectuais de peso aderiram à ideia por julgar que fazia sentido, e pronto, o sentido do termo estava modificado (Aqui, o termo tem significados diferentes: há o liberalismo econômico, o político e o moral - sendo que os dois últimos às vezes se confundem).²
A palavra ''opressão'' é usada pelos setores da esquerda cultural para indicar uma inferiorização/''prejudiciação'' sistemática para com as minorias sociológicas²: negros, mulheres e homo/bi/transsexuais, por exemplo. Ela é estrutural, e não interpessoal. O que isso quer dizer? Que você pode até ver alguém sendo chamado de ''branquelo'' aqui, um homem sendo tratado como se pertencer ao sexo masculino fosse intrinsecamente depreciante ali (ambos casos de repressão) ou ver drag queens sendo tratadas com toda a finesse acolá (o contrário de uma anti-transfobia), mas é o padrão de beleza europeu - mais precisamente o escandinavo - que predomina no Brasil, é a mulher que recebe menos pela mesma quantidade e qualidade de trabalho, é de ''viado!'' que nós xingamos os coleguinhas desde cedo e por aí vai.³
A existência dessas opressões está ligada à estruturação do poder e à hegemonia cultural na nossa história: o povo negro foi escravizado e submetido ao domínio de uma minoria branca europeia, e a nossa cultura quase sempre esteve ligada a um catolicismo conservador - além, é claro, da imposição dos valores militares da Ditadura, que influenciou toda uma geração. E não nos esqueçamos da minúscula participação das mulheres nos cargos de poder da política por todo esse tempo, causa e consequência de opressão das mesmas.
Trata-se, portanto, de uma palavra que merece ser usada - só que, a meu ver, ela está sendo usada inadequadamente. Certa vez, eu discutia em um grupo se um homem tentar convencer seus amigos machistas a não mais sê-lo ao invés de deixar feministas fazê-lo era tão ''roubo de protagonismo do movimento'' - entenda-se aqui, por ''movimento'', o feminismo - quanto comparecer a uma marcha das vadias ou postar fotos no facebook apoiando uma campanha como a ''Eu não quero ser estuprada''. Uma das moças afirmou que, ao dizer que era, eu estava sendo ''extremamente opressor''. Um comentário do facebook conseguindo ser tão... maléfico quanto a nossa estrutura social - que é mesmo demasiado machista (assim como eu e você somos inconscientemente, embora não tanto; mas isso é papo para outro post).
A tal treta. Não está na íntegra, mas dá pra entender. |
Pegando gancho nessa crítica, eu gostaria de deixar outra: a ideologização excessiva de certos movimentos sociais. É comum ver neles a afirmação de que homens são incapazes de ser feministas (embora possam ser pró-feminismo), e brancos, incapazes de ser antirracistas 100% eficientes porque ambos, homens e brancos (dos dois sexos) são incapazes de enxergar todas as nuances da opressão que as mulheres e os negros, respectivamente, sofrem. Eu tendo a concordar com o argumento.
O que me incomoda é que esses membros de movimentos sociais cheguem a acreditar tanto possuírem uma epistemologia privilegiada que repitam o (provável) erro de uma certa colega: em SP - se me lembro bem - a polícia só prendeu um rapaz que estava ''encoxando'' moças no metrô após o irmão de uma delas apresentar uma gravação em vídeo daquele fazendo-o, sendo que várias das tais moças já haviam-no denunciado. Essa colega jugou que fosse pelo machismo da polícia. Talvez tenha sido, mas devemos lembrar que nossa justiça se vale do princípio de que o réu é inocente até que se prove o contrário, e uma gravação em vídeo de um crime é uma ''prova'' muito mais consistente do que uma denúncia verbal. Tomemos cuidado para não deixar que os juízos de valor sobrepujem a visão dos fatos concretos.
1. Sobre direita e esquerda políticas: https://www.youtube.com/watch?v=h9LG3_ztAYY, https://www.youtube.com/watch?v=WpB387DH-mw, https://www.youtube.com/watch?v=5pPsAAnNHl0
2. ''Embora dados estatísticos mostrem que há mais mulheres do que homens no Brasil, elas ocupam menos cargos públicos e recebem salários menores do que os homens. Em contrapartida, há certas classes profissionais - como é o caso dos médicos ou dos advogados - que, apesar de serem minoria numérica no mercado de trabalho, têm um enorme prestígio social, o que significa um alto poder de mobilização na defesa dos seus interesses. Outras profissões, estatisticamente mais representativas, não tem tanta expressividade social'' (Coleção Sociologia Anglo, Volume 1, P.21). Essa expressividade social seria o princípio diferenciador entre maioria e minoria sociológicas: as mais dotadas da mesma seriam a maioria, e as menos dotadas, minorias.
3. Quem realiza jornadas duplas de trabalho? Quem é expulso de casa ou apanha na rua por sua orientação sexual? Quem teve sua cor de pele usada como xingamento nos jogos recentes da Copa?...
O que me incomoda é que esses membros de movimentos sociais cheguem a acreditar tanto possuírem uma epistemologia privilegiada que repitam o (provável) erro de uma certa colega: em SP - se me lembro bem - a polícia só prendeu um rapaz que estava ''encoxando'' moças no metrô após o irmão de uma delas apresentar uma gravação em vídeo daquele fazendo-o, sendo que várias das tais moças já haviam-no denunciado. Essa colega jugou que fosse pelo machismo da polícia. Talvez tenha sido, mas devemos lembrar que nossa justiça se vale do princípio de que o réu é inocente até que se prove o contrário, e uma gravação em vídeo de um crime é uma ''prova'' muito mais consistente do que uma denúncia verbal. Tomemos cuidado para não deixar que os juízos de valor sobrepujem a visão dos fatos concretos.
1. Sobre direita e esquerda políticas: https://www.youtube.com/watch?v=h9LG3_ztAYY, https://www.youtube.com/watch?v=WpB387DH-mw, https://www.youtube.com/watch?v=5pPsAAnNHl0
2. ''Embora dados estatísticos mostrem que há mais mulheres do que homens no Brasil, elas ocupam menos cargos públicos e recebem salários menores do que os homens. Em contrapartida, há certas classes profissionais - como é o caso dos médicos ou dos advogados - que, apesar de serem minoria numérica no mercado de trabalho, têm um enorme prestígio social, o que significa um alto poder de mobilização na defesa dos seus interesses. Outras profissões, estatisticamente mais representativas, não tem tanta expressividade social'' (Coleção Sociologia Anglo, Volume 1, P.21). Essa expressividade social seria o princípio diferenciador entre maioria e minoria sociológicas: as mais dotadas da mesma seriam a maioria, e as menos dotadas, minorias.
3. Quem realiza jornadas duplas de trabalho? Quem é expulso de casa ou apanha na rua por sua orientação sexual? Quem teve sua cor de pele usada como xingamento nos jogos recentes da Copa?...
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