quinta-feira, 17 de julho de 2014

''Marx hoje'', por Eric Hobsbawm

Para o falecido eminente historiador britânico, Marx permanece como um analista fundamental do desenvolvimento histórico e do funcionamento da economia capitalista, mas as formas de interpretar e usar sua obra no século XXI serão muito diferentes das do século passado.


I

''Em 2007, a Jewish Book Week realizou-se menos de uma quinzena antes da comemoração
do aniversário da morte de Karl Marx (14 de março) e a pouca distância da Sala Redonda de
Leitura do Museu Britânico, o lugar em Londres a que ele é sempre associado. Dois socialistas
muito diferentes, Jacques Attali e eu, participamos do evento para lhe prestar nossas honras
póstumas. No entanto, considerando-se a ocasião e a data, a homenagem encerrava duas
surpresas. Não se pode dizer que ao morrer, em 1883, Marx tivesse propriamente fracassado,
pois seus textos tinham começado a causar impacto na Alemanha (onde um movimento
encabeçado por discípulos seus já estava a caminho de controlar o movimento operário
alemão) e, principalmente, sobre intelectuais na Rússia. Entretanto, em 1883 havia pouca
coisa que justificasse o trabalho de toda a sua vida. Marx havia escrito alguns panfletos
brilhantes e a base de sua obra magna, inacabada, O capital, trabalho que pouco avançou na
última década de vida do autor. “Que obras?”, retrucou ele, acabrunhado, quando um visitante
lhe perguntou sobre suas obras. A chamada Primeira Internacional de 1864-73, sua principal
iniciativa política desde o fracasso da revolução de 1848, tinha ido a pique. Tampouco ele
granjeara para si um lugar importante na política ou na vida intelectual da Grã-Bretanha, onde
vivera como exilado durante mais de metade da vida.

Entretanto, que extraordinário êxito póstumo! Menos de 25 anos após sua morte, partidos
políticos operários fundados em seu nome, ou que afirmavam inspirar-se nele, recebiam de
15% a 47% dos votos em países com eleições democráticas — sendo a Grã-Bretanha a única
exceção. Depois de 1918, a maioria desses partidos passou a fazer parte dos governos,
deixando de ser apenas oposição, e assim eles permaneceram até depois do fim do fascismo,
quando então se dispuseram a repudiar sua inspiração original. Todos existem ainda. Nesse
meio-tempo, discípulos de Marx criaram grupos revolucionários em países não democráticos e
no Terceiro Mundo. Setenta anos após a morte de Marx, um terço da humanidade vivia sob
regimes regidos por partidos comunistas que alegavam representar suas ideias e materializar
suas aspirações. Bem mais de 20% da humanidade ainda vivem em países comunistas, embora
seus partidos governistas, com pequenas exceções, tenham mudado radicalmente sua política.
Em suma, se houve um pensador que deixou uma marca forte e indelével no século XX, foi ele.
No Cemitério Highgate estão sepultados dois pensadores do século xix — Karl Marx e Herbert
Spencer — e, curiosamente, da tumba de um se avista a do outro. Quando ambos eram vivos,
Herbert era considerado o Aristóteles da época, enquanto Karl era um sujeito que morava nas
ladeiras mais baixas de Hampstead à custa do dinheiro do amigo. Hoje ninguém sequer sabe
que Spencer está sepultado ali, enquanto peregrinos idosos, vindos do Japão e da Índia,
visitam o túmulo de Karl Marx, e comunistas exilados iranianos e iraquianos fazem questão de
ser enterrados à sua sombra.

A era de regimes comunistas e de partidos comunistas de massa chegou ao fim com a
derrocada da União Soviética, pois mesmo onde ainda sobrevivem, como na China e na Índia,
na prática abandonaram o velho projeto do marxismo-leninismo. E, quando assim procederam,
Karl Marx viu-se mais uma vez numa terra de ninguém. O comunismo alegara ser seu único
herdeiro verdadeiro, e suas ideias tinham sido em grande medida identificadas com o
movimento. Isso porque mesmo as tendências marxistas ou marxistas-leninistas dissidentes
que fincaram cabeças de ponte aqui e ali, depois que Stálin foi denunciado por Kruchev, em
1956, eram, quase certamente, cisões de partidos comunistas. Assim, durante a maior parte
dos primeiros vinte anos depois do centenário de sua morte, Marx se tornou, a rigor, um
homem do passado, que já não merecia que nos incomodássemos com ele. Houve mesmo um
jornalista que deu a entender que o fato de falarmos sobre ele aqui, esta noite, é uma tentativa
de resgatá-lo da “lata de lixo da história”. No entanto, Marx é hoje, mais uma vez, e com toda
justiça, um pensador para o século XXI.

Não creio que se deva dar demasiada importância à pesquisa de opinião da bbc segundo a
qual os ouvintes britânicos o apontavam como o maior de todos os filósofos, mas, se
digitarmos seu nome no Google, ele continua a ser a maior de todas as grandes presenças
intelectuais, só superada por Darwin e Einstein, mas bem à frente de Adam Smith e Freud.

Em meu entender, há duas razões para isso. A primeira é que o fim do marxismo oficial na
União Soviética liberou Marx da identificação pública com o leninismo na teoria e com os
regimes leninistas na prática. Ficou claríssimo que havia ainda muitas e boas razões para se
levar em conta o que Marx tinha a dizer sobre o mundo. E principalmente — essa é a segunda
razão — porque o mundo capitalista globalizado que surgiu na década de 1990 exibia, em
vários aspectos vitais, uma estranha semelhança com o mundo previsto por Marx no Manifesto
comunista. Isso ficou claro na reação do público ao sesquicentenário desse surpreendente
panfleto em 1998 — que foi, diga-se de passagem, um ano de enorme perturbação na
economia global. Dessa vez, paradoxalmente, quem redescobriu Marx foram os capitalistas, e
não os socialistas, que estavam desalentados demais para comemorar a data com muito
entusiasmo. Lembro-me de como fiquei atônito ao ser procurado pelo editor da revista de
bordo da United Airlines, de cujos leitores 80% devem ser executivos americanos. Eu havia
escrito um artigo sobre o Manifesto. Como ele achava que os leitores da revista estariam
interessados num debate sobre o Manifesto, perguntou se eu o autorizava a usar trechos de
meu artigo. Fiquei ainda mais espantado quando, num almoço mais ou menos na virada do
século, George Soros me perguntou o que eu achava de Marx. Por saber o quanto nossas ideias
eram divergentes, preferi evitar uma discussão e dei uma resposta ambígua. “Esse homem”,
disse Soros, “descobriu uma coisa com relação ao capitalismo, há 150 anos, em que devemos
prestar atenção.” E tinha descoberto mesmo. Pouco depois disso, autores que, ao que eu saiba,
nunca tinham sido comunistas voltaram a olhar para ele com seriedade, como faz Jacques
Attali em seu novo estudo sobre Marx. Attali também crê que Marx ainda tem muito a dizer
àqueles que desejam que o mundo seja uma sociedade diferente e melhor do que a que temos
atualmente. É bom lembrar que mesmo desse ponto de vista precisamos levar Karl Marx em
conta hoje em dia.

Em outubro de 2008, quando o jornal londrino Financial Times estampou a manchete
“Capitalismo em convulsão”, não podia mais haver dúvida de que Marx estava de volta aos
refletores. Enquanto o capitalismo mundial estiver passando por sua mais grave crise desde o
começo da década de 1930, será improvável que Marx saia de cena. Por outro lado, o Marx do
século XXI será, com certeza, bem diferente do Marx do século XX.

Três fatos dominavam o pensamento das pessoas sobre Marx no século passado. O primeiro
era a divisão entre os países nos quais a revolução era uma probabilidade e aqueles em que
isso não acontecia, ou seja, para falar em termos muito gerais, os países de capitalismo
desenvolvido do norte do Atlântico e do Pacífico, de um lado, e os restantes, do outro. O segundo fato decorre do primeiro: a herança de Marx bifurcou-se, naturalmente, numa herança social-democrata e reformista e numa herança revolucionária, esta dominada esmagadoramente pela Revolução Russa. Isso ficou claro depois de 1917 devido a um terceiro fato: o colapso do capitalismo e da sociedade burguesa oitocentistas naquela que chamei de a “Era da Catástrofe”, entre, digamos, 1914 e o fim da década de 1940. Essa crise foi tão grave que fez com que muitos duvidassem que o capitalismo pudesse se recuperar. Estaria ele destinado a ser substituído por uma economia socialista, como previra o marxista Joseph Schumpeter na década de 1940? Na realidade, o capitalismo se recuperou, mas não em sua forma anterior. Ao mesmo tempo, na União Soviética, uma alternativa socialista parecia ser imune a esfacelamento. Entre 1929 e 1960, não parecia impossível, mesmo para muitos não socialistas que reprovavam o lado político desses regimes, que o capitalismo estivesse perdendo forças e que a União Soviética estivesse provando que poderia produzir mais do que ele. Em 1957, o ano do Sputnik, isso não parecia absurdo. Mas era, o que ficou mais do que evidente depois de 1960.

Esses fatos e suas implicações para a política e a teoria pertencem ao período posterior à
morte de Marx e Engels. Situam-se fora do campo da experiência e das avaliações do próprio
Marx. Nosso juízo quanto ao marxismo do século XX não se baseia no pensamento do próprio
Marx, e sim em interpretações ou revisões póstumas do que ele escreveu. No máximo
podemos dizer que no fim da década de 1890, durante a primeira crise intelectual do
marxismo, a primeira geração de marxistas, aqueles que tinham mantido contato pessoal com
Marx ou, mais provavelmente, com Friedrich Engels, já começavam a discutir algumas
questões que se tornariam relevantes no século XX, como o revisionismo, o imperialismo e o
nacionalismo. Grande parte do debate marxista posterior é específico ao século XX, e não é
encontrado em Karl Marx, sobretudo o debate sobre como poderia ou deveria ser uma
economia socialista, uma discussão que surgiu, em grande parte, da experiência das economias
de guerra de 1914-8 e das crises quase revolucionárias ou revolucionárias do pós-guerra.

Assim, dificilmente Marx poderia ter afirmado que o socialismo era superior ao capitalismo
como meio de garantir o máximo de rapidez no desenvolvimento das forças de produção. Essa
assertiva pertence à era em que a crise capitalista do entreguerras confrontou-se com a União
Soviética dos planos quinquenais. Na realidade, o que Karl Marx asseverava não era que o
capitalismo havia alcançado o limite de sua capacidade de pôr em marcha as forças de
produção, e sim que a irregularidade do crescimento capitalista produzia crises periódicas de
superprodução que, mais cedo ou mais tarde, se mostrariam incompatíveis com a maneira
capitalista de gerir a economia e geraria conflitos sociais aos quais ele não poderia sobreviver.
Por sua própria natureza, o capitalismo era incapaz de estruturar a subsequente economia da
produção social. Esta, julgava Marx, teria de ser necessariamente socialista.

Por conseguinte, não surpreende que no século XX o “socialismo” estivesse no cerne dos
debates e das avaliações sobre Karl Marx. Isso não aconteceu porque o projeto de uma
economia socialista seja especificamente marxista — não é —, mas porque todos os partidos
de inspiração marxista tinham em comum esse projeto, e na verdade os partidos comunistas
afirmavam tê-lo instituído. Na forma em que existiu no século XX, esse projeto está morto. O
“socialismo”, como o conceito era entendido na União Soviética e nas demais “economias de
planejamento central”, vale dizer, nas economias centralizadas, teoricamente sem mercado e
de propriedade e controle estatais, morreu e não ressuscitará. As aspirações social-democratas
de construir economias socialistas tinham sido sempre ideais para o futuro, porém mesmo
como aspirações formais foram abandonadas no fim do século.

Em que medida eram marxianos o modelo de socialismo que existia na mente dos socialdemocratas
e o socialismo criado pelos regimes comunistas? Com relação a esse ponto, é
crucial lembrar que o próprio Marx se absteve, deliberadamente, de quaisquer declarações
específicas sobre a economia ou as instituições econômicas do socialismo e nada disse a
respeito da forma concreta de uma sociedade comunista, exceto que ela não poderia ser
construída ou programada, mas que teria de se desenvolver a partir de uma sociedade
socialista. As observações genéricas que fez sobre o assunto, como na Crítica do programa de
Gotha, dos social-democratas alemães, pouca orientação específica dão a seus sucessores, e na
realidade esses sucessores não pensaram seriamente naquilo que, segundo eles, seria um
problema acadêmico ou um exercício utópico para depois da revolução. Bastava saber que se
basearia — para citar o famoso “artigo 4” da constituição do Partido Trabalhista britânico —
“na propriedade comum dos meios de produção”, o que, de modo geral, julgava-se que seria
factível com a nacionalização das indústrias do país.

Curiosamente, a primeira teoria sobre uma economia socialista centralizada não partiu de
socialistas, mas de um economista italiano não socialista, Enrico Barone, em 1908. Até que
surgisse a questão da nacionalização das indústrias privadas na agenda da política prática, ao
fim da Primeira Guerra Mundial, ninguém mais havia pensado no assunto. Na época, os
socialistas enfrentavam os problemas de todo despreparados e sem orientação do passado ou
de outras pessoas.

Em qualquer forma de economia socialista está implícito o “planejamento”, porém Marx
nada disse de concreto sobre isso, e, quando o planejamento foi posto em prática na Rússia
soviética, depois da revolução, teve de ser em grande medida improvisado. Na teoria, isso foi
feito mediante a formulação de conceitos (como a análise de insumo-produto de Leontiev) e o
fornecimento das estatísticas relevantes. Mais tarde, esses instrumentos foram adotados
amplamente em economias não socialistas. Na prática, isso se fez imitando as economias de
guerra, igualmente improvisadas, principalmente a alemã, talvez com especial atenção à
indústria elétrica, em relação à qual Lênin era informado por simpatizantes políticos que
trabalhavam como executivos em empresas alemãs e americanas de eletricidade. Uma
economia de guerra continuou a ser o modelo básico da economia planificada soviética, ou
seja, uma economia que define certas metas a priori — industrialização ultrarrápida, vitória
na guerra, fabricação de uma bomba atômica ou viagem à Lua — e depois planeja o modo de
concretizá-las por meio da alocação de recursos, qualquer que seja o custo a curto prazo. Não
há nisso nada de exclusivamente socialista. Trabalhar para atingir metas definidas a priori
pode ser feito com maior ou menor sofisticação, mas a economia soviética nunca, na verdade,
foi além disso. E, embora tentasse a partir de 1960, nunca conseguiu sair do beco sem saída
que estava implícito na tentativa de ajustar mercados a uma estrutura de comando burocrática.
A social-democracia modificou o marxismo de outra maneira, postergando a construção de
uma economia socialista ou, de modo mais positivo, elaborando formas diferentes de uma
economia mista. Já que os partidos social-democratas mantiveram-se comprometidos com a
criação de uma economia plenamente socialista, impunha-se alguma reflexão sobre o assunto.

A contribuição mais interessante proveio de pensadores não marxistas, como os fabianistas
Sidney e Beatrice Webb, que imaginaram uma transformação gradual do capitalismo em
socialismo mediante uma série de reformas irreversíveis e cumulativas, e que, portanto,
dedicaram alguma reflexão política à forma institucional do socialismo, embora sem nenhuma
atenção a suas operações econômicas. O principal “revisionista” marxista, Eduard Bernstein,
abordou a questão com evasivas, insistindo que o movimento reformista era o mais importante
e que o objetivo final não tinha realidade prática. Na verdade, a maioria dos partidos socialdemocratas que ascenderam ao governo depois da Primeira Guerra Mundial optou pela
política de revisionismo, permitindo o funcionamento da economia capitalista, desde que
atendesse a algumas das exigências da classe operária. O locus classicus dessa atitude foi o
livro de Anthony Crosland The future of socialism (1956), segundo o qual, como o capitalismo
pós-1945 tinha dado solução ao problema de produzir uma sociedade de abundância, a
empresa pública (na forma clássica de nacionalização ou outra) não era necessária e a única
tarefa dos socialistas se reduzia a garantir uma distribuição equitativa da riqueza nacional.
Tudo isso estava bem distante de Marx, e, com efeito, da forma como os socialistas viam o
socialismo — em essência como uma sociedade sem mercado, uma tese que provavelmente
era também a de Karl Marx.

Quero acrescentar apenas que o debate mais recente sobre o papel do Estado e das empresas
estatais, travado entre os neoliberais em matéria de economia, de um lado, e seus críticos, de
outro, não é, em princípio, um debate especificamente marxista ou mesmo socialista. Ele
repousa na tentativa, surgida na década de 1970, de traduzir uma degeneração patológica do
princípio do laissez-faire em realidade econômica pela recusa sistemática dos Estados a
qualquer controle ou regulamentação das atividades das empresas com fins lucrativos. Essa
tentativa de entregar a sociedade humana ao mercado (supostamente) autocontrolador e
maximizador da riqueza e até do bem-estar, integrado (supostamente) por atores dedicados à
busca racional de seus interesses, não tinha precedentes em nenhuma fase anterior do
desenvolvimento capitalista em nenhuma economia desenvolvida, nem mesmo nos Estados
Unidos. Foi uma reductio ad absurdum da interpretação que seus ideólogos deram aos textos
de Adam Smith, do mesmo modo que a economia totalmente planificada da União Soviética,
igualmente extremista, nasceu da leitura que os bolcheviques fizeram das palavras de Marx.
Não admira que esse “fundamentalismo de mercado”, mais próximo da teologia que da
realidade econômica, também fracassasse.

O fim das economias estatais de planejamento central, assim como o virtual abandono da
meta de uma sociedade fundamentalmente transformada, que antes fazia parte das aspirações
dos desmoralizados partidos social-democratas, eliminou grande parte dos debates sobre o
socialismo que se ouviam no século XX. Esses debates estavam a certa distância do
pensamento do próprio Karl Marx, ainda que em grande parte fossem inspirados por ele e
conduzidos em seu nome. Por outro lado, Marx, por meio de seus textos, continuou a ser uma
força colossal em três sentidos: como pensador econômico, como pensador e analista da
história e como o reconhecido pai (junto com Durkheim e Max Weber) da reflexão moderna
sobre a sociedade. Não estou habilitado a expressar uma opinião quanto à sua persistente e
evidentemente séria posição como filósofo. Mas duas coisas, com certeza, nunca perderam
relevância para os nossos dias: a visão que Marx tinha do capitalismo como sistema
econômico historicamente temporário e a análise que fez de seu modus operandi —
continuamente expansionista e concentrador, gerador de crises e autotransformador.

II

Qual é a relevância de Marx no século XXI? O modelo de socialismo ao estilo soviético —
até agora a única tentativa de construir uma economia socialista — não existe mais. Por outro
lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da globalização e da pura e simples
capacidade de geração de riqueza por parte dos seres humanos. Isso diminuiu o poder e o
âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas
clássicas dos movimentos social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar
os governos nacionais em favor de reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de
mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desigualdade
econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao ritmo
cíclico básico da economia capitalista, incluindo a desordem que se tornou a mais grave crise
mundial desde a década de 1930.

Nossa capacidade produtiva possibilitou, pelo menos potencialmente, que grande parte dos
seres humanos passasse do reino da necessidade para o da afluência, da educação e de opções
de vida antes inimagináveis, embora a maior parte da população do mundo ainda esteja por
entrar nesse domínio. No entanto, durante a maior parte do século XX, os movimentos e
regimes socialistas ainda atuavam essencialmente dentro do reino da necessidade, mesmo nos
países ricos do Ocidente, onde surgiu uma sociedade de afluência popular nos vinte anos que
se seguiram a 1945. Contudo, no reino da afluência, os objetivos de alimentação, vestuário,
habitação, empregos para garantir renda e um sistema de bem-estar social para proteger as
pessoas das vicissitudes da vida, ainda que necessários, já não constituem um programa
suficiente para os socialistas.

Um terceiro desdobramento é negativo. Como a expansão espetacular da economia global
ameaçou o meio ambiente, tornou-se urgente a necessidade de controlar o crescimento
econômico desenfreado. Há um óbvio conflito entre a necessidade de reverter ou de pelo
menos controlar o impacto de nossa economia sobre a biosfera e os imperativos de um
mercado capitalista: crescimento máximo e contínuo na busca do lucro. Esse é o calcanhar de
Aquiles do capitalismo. Não podemos, no presente, prever de onde partirá a flecha que lhe será
fatal.

Assim, como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humanidade e
não somente para uma parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como analista econômico?
Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o entendimento da história humana?
Sim, porém o ponto que Attali sublinhou corretamente é a abrangência universal de seu
pensamento. Não se trata de um pensamento “interdisciplinar” no sentido convencional, mas
integra todas as disciplinas. Como escreveu Attali, “antes dele, os filósofos consideraram o
homem em sua totalidade, mas ele foi o primeiro a apreender o mundo como um todo que é,
ao mesmo tempo, político, econômico, científico e filosófico”.

É absolutamente óbvio que grande parte do que ele escreveu está obsoleto, e que parte de
seus textos não é — ou não é mais — aceitável. É também evidente que seus textos não
formam um corpus acabado, mas são, como toda reflexão que merece esse nome, um
interminável trabalho em curso. Ninguém mais vai transformá-lo em dogma e muito menos
numa ortodoxia protegida por instituições. Isso certamente teria chocado o próprio Marx. No
entanto, devemos também rejeitar a ideia de que existe uma nítida diferença entre um
marxismo “correto” e outro “incorreto”. A forma de investigação de Marx podia produzir
diferentes resultados e perspectivas políticas. Com efeito, ela gerou esse resultado com o
próprio Marx, que imaginou uma possível transição pacífica para o poder na Grã-Bretanha e
na Holanda, e a possível evolução da comunidade rural russa para o socialismo. Kautsky e até
Bernstein foram herdeiros de Marx, tanto (ou tão pouco, como se prefira) quanto Plekhanov e
Lênin. É por isso que encaro com ceticismo a distinção que Attali faz entre um verdadeiro
Marx e uma série de subsequentes simplificadores ou falsificadores de seu pensamento —
Engels, Kautsky, Lênin. Era tão legítimo para os russos, os primeiros leitores atentos de O
capital, ver a teoria marxiana como uma maneira de fazer passar países como o deles do
atraso para a modernidade, através do desenvolvimento econômico do tipo ocidental, quanto
era também legítimo para o próprio Marx especular se uma transição direta para o socialismo
não poderia ocorrer com base nas comunidades rurais russas. Provavelmente, na verdade, isso
estava mais de acordo com a linha geral do pensamento do próprio Marx. A experiência
soviética não foi criticada porque o socialismo só pudesse ser construído depois que o mundo
inteiro tivesse se tornado capitalista, o que não foi o que Marx disse nem o que se pode
afirmar com segurança que fosse sua convicção. A crítica tinha uma base objetiva: a Rússia
era atrasada demais para produzir qualquer coisa que não fosse a caricatura de uma sociedade
socialista — “um império chinês vermelho”, como consta que Plekhanov teria avisado. Em
1917, esse teria sido o consenso predominante entre todos os marxistas, até mesmo entre a
maioria dos marxistas russos. Por outro lado, a crítica feita aos chamados “marxistas legais”
da década de 1890, que defendiam a ideia de Attali, segundo a qual a principal tarefa dos
marxistas consistia em criar um florescente capitalismo industrial na Rússia, também era
empírica. Uma Rússia capitalista liberal tampouco seria viável com o tsarismo.

No entanto, vários aspectos centrais da análise de Marx continuam válidos e relevantes. O
primeiro, obviamente, é a análise da irresistível dinâmica global do desenvolvimento
econômico capitalista e de sua capacidade de destruir tudo quanto se antepusesse a ele, até
mesmo aqueles elementos do legado do passado humano do qual ele próprio se beneficiara,
como as estruturas familiares. O segundo é a análise do mecanismo de crescimento capitalista,
pela geração de “contradições” internas — surtos infindáveis de tensões e soluções
temporárias, o crescimento levando a crises e mudanças, tudo produzindo concentração
econômica numa economia cada vez mais globalizada. Mao sonhou com uma sociedade
renovada constantemente pela revolução permanente; o capitalismo realizou esse projeto com
a mudança histórica, mediante o que Schumpeter, seguindo Marx, chamou de “destruição
criadora” permanente. Marx acreditava que esse processo acabaria por levar — forçosamente
— a uma economia enormemente concentrada. E foi isso que Attali quis dizer ao declarar
numa entrevista recente que o número de pessoas que decidem o que acontece nessa economia
é da ordem de mil, ou no máximo 10 mil. Marx acreditava que isso conduziria à supressão do
capitalismo, previsão que ainda me parece plausível, mas de uma forma diferente da
imaginada por ele.

Por outro lado, sua previsão de que tal supressão ocorreria mediante a “expropriação dos
expropriadores”, com um vasto proletariado levando ao socialismo, não se baseava em sua
análise do mecanismo do capitalismo, e sim em pressupostos apriorísticos separados. Na
melhor das hipóteses, baseava-se na previsão de que a industrialização produziria populações
majoritariamente assalariadas, como estava ocorrendo na Inglaterra da época. Isso podia ser
correto como uma previsão de médio prazo, mas não, como sabemos, a longo prazo. Depois da
década de 1840, Marx e Engels tampouco esperaram que o fenômeno gerasse a pauperização
politicamente radicalizadora em que depositavam suas esperanças. Como era óbvio para
ambos, não havia de modo algum amplos segmentos do proletariado que estivessem se
tornando mais pobres. Com efeito, um observador americano dos congressos proletários do
Partido Social-Democrata Alemão na década de 1900 observou que os camaradas que deles
participavam pareciam “um ou dois pães acima da pobreza”. Por outro lado, o evidente
crescimento da desigualdade econômica entre diferentes partes do mundo e entre as classes
não produz necessariamente a “expropriação dos expropriadores” a que Marx se referiu. Em
suma, as esperanças para o futuro eram vistas em sua análise, mas não derivavam dela.

O terceiro aspecto foi bem expressado pelo falecido sir John Hicks, laureado com o Nobel
de economia, que escreveu: “As pessoas que desejam atribuir um rumo geral à história
deveriam usar as categorias marxistas ou uma versão modificada delas, uma vez que não
existem muitas soluções alternativas”.

Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI,
mas, quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira
aceitar as respostas dadas por seus vários discípulos.''

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