''She keeps me warm'', de Wes Nunes. Até onde a ideologia do individualismo e do hedonismo realmente corresponde às necessidades afetivas, emocionais, sociais e psicológicas dos LGBTs? |
''Todos contra a homofobia, a lesbofobia e a transfobia'' é o maior grupo sobre o tema LGBT na comunidade lusófona do facebook. Tempos atrás, um membro publicou lá um texto do Coletivo LGBT Comunista - SP que, apresentando a organização, tratava da relação entre LGBTs e a dinâmica de uma economia capitalista -- mais precisamente a questão do exército industrial de reserva e a exploração agressiva da força de trabalho de LGBTs (eu mesmo escrevi um texto sobre isso; você pode conferir aqui). Alguns comentadores, bem... comentaram furiosamente, com palavras de ordem contra os terríveis comunistas -- os quais deveriam ser mantidos bem longe ''do nosso movimento por liberdade sexual''. Eu discuti com um deles. E fui bloqueado.
O que não foi bloqueado, porém, é a lembrança disso, a tal ''liberdade sexual'', na qual consistiria a própria essência do movimento LGBT. E isso provavelmente se deu porque é exatamente sob a bandeira dela que se proclamam, por parte de inúmeros heterossexuais cisgêneros, milhares de mensagens de ''apoio'' à comunidade gay (e as lésbicas? e os(as) bissexuais? e as pessoas trans?) na forma de um ''cada um faz o que quiser com seu c*''. Indivíduos desprezíveis como Marco Feliciano e Silas Malafaia, conhecidos por sua perseguição e preconceito notável contra LGBTs, são chamados por esses paladinos do direito de se ''fazer o que quiser com o seu...'' de ''fiscalizadores de...'' -- às vezes até mesmo pelos próprios LGBTs. O negócio, talvez essa nossa vanguarda do progressismo e da liberalidade comportamental não consiga observar, é que o problema que existe para as pessoas LGBTs (insisto: ''problema que existe para as pessoas LGBTs'', não ''das pessoas LGBTs''; não se trata de algo relacionado a uma essência imutável da ontologia LGBT, mas sim de algo referente à sua socialização) é muito mais profundo, delicado e doloroso.
No mínimo já há 3 décadas cada um pode ''fazer (quase tudo) o que quiser com seu...'' no Brasil; a perseguição e o extermínio de LGBTs não é política de Estado e membros das forças de segurança (assim como civis comuns) que sejam descobertos tendo essa atitude são -- se o caso for resolvido -- punidos. Sobrevive, porém, a violência física contra LGBTs, e sobrevive porque se mantém a sua base: a violência simbólica. Tal coisa nada mais é que a significação negativa (a dano, portanto, dos próprios LGBTs, embora não só deles) das práticas e outros critérios que definem uma determinada identidade.
Pensemos no ensino fundamental II, ou no ensino médio. Quantas e quantas vezes você chamou um colega de ''viado'' ou ''viadinho'' pra irritar, ou da mesma forma íntima como se chama um amigo de ''filho da puta'' ou coisa que o valha? Eu posso lembrar de incontáveis momentos nos quais tive essa atitude. Quantas vezes, sugerindo ou ordenando a alguém que deixasse de fazer isso ou aquilo, você se referiu àquilo como ''coisa de gay''? Quão comum e corriqueiro é o hábito de mandar alguém ir ''tomar no...'' como forma de xingamento, de ofensa à honra (e das mais sérias)?
Esses costumes, que nos parecem tão naturais, e nos dois primeiros casos até mesmo inofensivos, são uma terrível forma de violência simbólica contra milhões de LGBTs Brasil e mundo afora. O que se sente ao perceber que aquilo que te caracteriza é sinônimo de piada, de nojento, de desonra -- enfim, do que não se deve ser nem fazer? Não especulemos: um artigo outrora publicado aqui traz dados vitais sobre isso (embora focado em jovens, e sobretudo estudantes).
Essa violência simbólica, essa significação negativa da(s) identidade(s) LGBT a dano dos próprios LGBTs inclui ainda formas muito mais terríveis de discriminação e de sofrimento. LGBTs, como quaisquer outros seres humanos, têm família. Aprendem a amar aqueles que lhes criaram e com quem conviveram. Depositam neles suas confianças e contam com eles como fonte de estabilidade, de carinho, de conforto e de ajuda. E entretanto, no despertar da orientação sexual (se estivermos falando de LGBs), descobrem ser coisas que essas pessoas detestam, repugnam, condenam. Enfrentam o pequeno drama da heterossexualidade presumida [1] até os níveis mais drásticos da invenção de todo tipo de desculpa ou artifício para encobrir suas identidades, seus desejos e práticas. Quando chegam ao ponto de não conseguir mais ocultar quem são, muitos veem seus mundos desabarem, na forma de uma rejeição monstruosa de suas famílias. Foi o caso de um rapaz de minha cidade, Teresina-PI, que se suicidou jogando-se do edifício em que morava. Estudava no melhor colégio da cidade (um dos melhores do Brasil), era rico e talvez bem-aparentado, mas era gay. Já não é coisa alguma a não ser uma memória e um número numa triste estatística.
LGBTs também têm, como quaisquer outros seres humanos, de trabalhar para comer, beber, vestir-se, ter um teto etc., e assim sobreviver. Mas que dignidade de trabalho há para LGBTs em nossa sociedade? Depois de um ensino fundamental e médio difíceis, cheios de pressões e complicações extras, não raro tem de enfrentar novos ocultamentos da própria orientação sexual (no caso de LGBs ''discretos''), trabalhos mal-remunerados e/ou relativamente estigmatizados (caso de LGBs que desviam mais das normas de gênero, como os vários gays afeminados e lésbicas masculinas que têm de ir para profissões como cabeleireiro ou motorista não porque queiram ou gostem, mas pela falta de oportunidades melhores), ou mesmo (no caso de muitas, senão quase todas as mulheres trans) a ''profissão'' mais estigmatizada, fetichizada e precarizada de todas: a prostituição.
O movimento LGBT, ao menos dentro de nossas fronteiras, não tem por que ter como foco ou objetivo uma ''liberdade sexual'' abstrata, mas sim o combate à violência simbólica de que são vítimas homossexuais, bissexuais e transgêneros todos os dias neste país -- violência esta que se transforma em agressão física, em exclusão afetiva, em precarização laboral e em todo um conjunto de fatores que são fonte de dor e sofrimento para milhões de LGBTs. Este duro combate, que só poderá ser realizado com o auxílio da maioria cisgênera e heterossexual de nossa população e que precisará pôr o Estado em ação militante, precisará da conscientização dessa mesma maioria e de certos LGBTs, que, infectados pela ideologia liberal-burguesa, só conseguem enxergar uma vontade hedonista de fazer sexo sem maiores reclamações alheias num grupo de pessoas que, heterogêneas e dotadas, cada uma, de sua própria história e condições particulares, anseiam serem enfim reconhecidas em plenitude como seres humanos.
Finalizo esse texto com as palavras de um amigo, que por acaso também concluem uma nota do mesmo sobre o caso da frase homofóbica de Levy Fidélix nos últimos debates eleitorais para a presidência e como aqueles que se veem como ''pró-gays'' o enxergaram:
[1] Dois ou três anos atrás, uma grande amiga me disse que estava irritada com a forma pela qual a Rede Globo estava ''forçando'', ''empurrando'' a homossexualidade sobre os telespectadores. À época eu só ri, não me veio à mente sequer o comentário de que, para começar, ninguém é ou era obrigado a assistir as novelas da emissora ou os seus trechos em que apareciam os personagens homossexuais. Hoje eu talvez pudesse perguntar: ''E quanto aos e às homossexuais, muitos deles até boa parte de suas vidas só conhecendo pessoas heterossexuais, sendo vistos como heterossexuais e socializados de forma a se adequar à prática erótico-afetiva heterossexual? Também eles não são vítimas de uma coerção compulsória?''
O que não foi bloqueado, porém, é a lembrança disso, a tal ''liberdade sexual'', na qual consistiria a própria essência do movimento LGBT. E isso provavelmente se deu porque é exatamente sob a bandeira dela que se proclamam, por parte de inúmeros heterossexuais cisgêneros, milhares de mensagens de ''apoio'' à comunidade gay (e as lésbicas? e os(as) bissexuais? e as pessoas trans?) na forma de um ''cada um faz o que quiser com seu c*''. Indivíduos desprezíveis como Marco Feliciano e Silas Malafaia, conhecidos por sua perseguição e preconceito notável contra LGBTs, são chamados por esses paladinos do direito de se ''fazer o que quiser com o seu...'' de ''fiscalizadores de...'' -- às vezes até mesmo pelos próprios LGBTs. O negócio, talvez essa nossa vanguarda do progressismo e da liberalidade comportamental não consiga observar, é que o problema que existe para as pessoas LGBTs (insisto: ''problema que existe para as pessoas LGBTs'', não ''das pessoas LGBTs''; não se trata de algo relacionado a uma essência imutável da ontologia LGBT, mas sim de algo referente à sua socialização) é muito mais profundo, delicado e doloroso.
No mínimo já há 3 décadas cada um pode ''fazer (quase tudo) o que quiser com seu...'' no Brasil; a perseguição e o extermínio de LGBTs não é política de Estado e membros das forças de segurança (assim como civis comuns) que sejam descobertos tendo essa atitude são -- se o caso for resolvido -- punidos. Sobrevive, porém, a violência física contra LGBTs, e sobrevive porque se mantém a sua base: a violência simbólica. Tal coisa nada mais é que a significação negativa (a dano, portanto, dos próprios LGBTs, embora não só deles) das práticas e outros critérios que definem uma determinada identidade.
Pensemos no ensino fundamental II, ou no ensino médio. Quantas e quantas vezes você chamou um colega de ''viado'' ou ''viadinho'' pra irritar, ou da mesma forma íntima como se chama um amigo de ''filho da puta'' ou coisa que o valha? Eu posso lembrar de incontáveis momentos nos quais tive essa atitude. Quantas vezes, sugerindo ou ordenando a alguém que deixasse de fazer isso ou aquilo, você se referiu àquilo como ''coisa de gay''? Quão comum e corriqueiro é o hábito de mandar alguém ir ''tomar no...'' como forma de xingamento, de ofensa à honra (e das mais sérias)?
Esses costumes, que nos parecem tão naturais, e nos dois primeiros casos até mesmo inofensivos, são uma terrível forma de violência simbólica contra milhões de LGBTs Brasil e mundo afora. O que se sente ao perceber que aquilo que te caracteriza é sinônimo de piada, de nojento, de desonra -- enfim, do que não se deve ser nem fazer? Não especulemos: um artigo outrora publicado aqui traz dados vitais sobre isso (embora focado em jovens, e sobretudo estudantes).
Essa violência simbólica, essa significação negativa da(s) identidade(s) LGBT a dano dos próprios LGBTs inclui ainda formas muito mais terríveis de discriminação e de sofrimento. LGBTs, como quaisquer outros seres humanos, têm família. Aprendem a amar aqueles que lhes criaram e com quem conviveram. Depositam neles suas confianças e contam com eles como fonte de estabilidade, de carinho, de conforto e de ajuda. E entretanto, no despertar da orientação sexual (se estivermos falando de LGBs), descobrem ser coisas que essas pessoas detestam, repugnam, condenam. Enfrentam o pequeno drama da heterossexualidade presumida [1] até os níveis mais drásticos da invenção de todo tipo de desculpa ou artifício para encobrir suas identidades, seus desejos e práticas. Quando chegam ao ponto de não conseguir mais ocultar quem são, muitos veem seus mundos desabarem, na forma de uma rejeição monstruosa de suas famílias. Foi o caso de um rapaz de minha cidade, Teresina-PI, que se suicidou jogando-se do edifício em que morava. Estudava no melhor colégio da cidade (um dos melhores do Brasil), era rico e talvez bem-aparentado, mas era gay. Já não é coisa alguma a não ser uma memória e um número numa triste estatística.
LGBTs também têm, como quaisquer outros seres humanos, de trabalhar para comer, beber, vestir-se, ter um teto etc., e assim sobreviver. Mas que dignidade de trabalho há para LGBTs em nossa sociedade? Depois de um ensino fundamental e médio difíceis, cheios de pressões e complicações extras, não raro tem de enfrentar novos ocultamentos da própria orientação sexual (no caso de LGBs ''discretos''), trabalhos mal-remunerados e/ou relativamente estigmatizados (caso de LGBs que desviam mais das normas de gênero, como os vários gays afeminados e lésbicas masculinas que têm de ir para profissões como cabeleireiro ou motorista não porque queiram ou gostem, mas pela falta de oportunidades melhores), ou mesmo (no caso de muitas, senão quase todas as mulheres trans) a ''profissão'' mais estigmatizada, fetichizada e precarizada de todas: a prostituição.
O movimento LGBT, ao menos dentro de nossas fronteiras, não tem por que ter como foco ou objetivo uma ''liberdade sexual'' abstrata, mas sim o combate à violência simbólica de que são vítimas homossexuais, bissexuais e transgêneros todos os dias neste país -- violência esta que se transforma em agressão física, em exclusão afetiva, em precarização laboral e em todo um conjunto de fatores que são fonte de dor e sofrimento para milhões de LGBTs. Este duro combate, que só poderá ser realizado com o auxílio da maioria cisgênera e heterossexual de nossa população e que precisará pôr o Estado em ação militante, precisará da conscientização dessa mesma maioria e de certos LGBTs, que, infectados pela ideologia liberal-burguesa, só conseguem enxergar uma vontade hedonista de fazer sexo sem maiores reclamações alheias num grupo de pessoas que, heterogêneas e dotadas, cada uma, de sua própria história e condições particulares, anseiam serem enfim reconhecidas em plenitude como seres humanos.
Finalizo esse texto com as palavras de um amigo, que por acaso também concluem uma nota do mesmo sobre o caso da frase homofóbica de Levy Fidélix nos últimos debates eleitorais para a presidência e como aqueles que se veem como ''pró-gays'' o enxergaram:
Um homossexual é uma pessoa como você. Ele tem sonhos, ambições, gostos e desgostos. O que ele gosta em sua prática sexual é tão estranho como o que a maioria das pessoas gostaria de fazer ou não. Mas o mais importante: assim como você, ele ama. E assim como você, ele gostaria de ter o seu direito de amar resguardado e protegido. Ele gostaria que a sociedade celebrasse a sua união e o seu amor. Porque ele, assim como você, pensa que o amor move montanhas, que esse é um sentimento nobre e que deve ser sempre cultivado. Melhor do que o termo "fiscais de bunda" ou "fiscais de cu" para quem é anti-gay, seria "fiscais de coração". Porque eu já conheci muitos homossexuais que não gostam de sexo anal. Mas eu nunca conheci um que nunca amou na vida.
[1] Dois ou três anos atrás, uma grande amiga me disse que estava irritada com a forma pela qual a Rede Globo estava ''forçando'', ''empurrando'' a homossexualidade sobre os telespectadores. À época eu só ri, não me veio à mente sequer o comentário de que, para começar, ninguém é ou era obrigado a assistir as novelas da emissora ou os seus trechos em que apareciam os personagens homossexuais. Hoje eu talvez pudesse perguntar: ''E quanto aos e às homossexuais, muitos deles até boa parte de suas vidas só conhecendo pessoas heterossexuais, sendo vistos como heterossexuais e socializados de forma a se adequar à prática erótico-afetiva heterossexual? Também eles não são vítimas de uma coerção compulsória?''
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