Não é necessário estabelecer aqui o balanço dos horrores produzidos
pela sociedade mercantil na sua atual fase neoliberal. São
bem conhecidos. A tão elogiada «mão invisível» começou a desferir
golpes por toda a parte. Todos nós estamos em vias de nos tornarmos
«não rentáveis». Presentemente as crises já não derivam das
imperfeições do sistema produtor de mercadorias, mas, pelo contrário, do seu desenvolvimento integral. Já não há lugar para oposições ou
soluções imanentes ao sistema. Não é por preconceito favorável ao
radicalismo ou à «utopia», mas sim por realismo que é preciso encarar
agora saídas radicalmente anticapitalistas. É necessário abandonar a
ilusão de que os problemas colocados pelo mercado possam encontrar
ainda solução no terreno da própria economia de mercado. Será
mais fácil acabar de uma vez por todas com a besta. Durante mais
de cento e cinquenta anos o movimento operário e democrático aceitou
a existência dela para lhe aplicar mil grilhetas e rodeá-la de mil
paliçadas. O que se verificou foi que a primeira crise da valorização ou a primeira contestação mais séria são suficientes para que a besta
esqueça que está prisioneira e rompa todas as cadeias. O capitalismo
- tornado «social», «democrático», «humano» e mesmo «ecológico» à
custa de esforços seculares - pode de um dia para o outro passar a ser
o capitalismo sem mais adjetivos: um sistema fetiche cego, pronto
para tudo devorar de modo a assegurar a sua sobrevivência.
Mas como sair da sociedade mercantil? Depois do esgotamento
dos movimentos dos anos sessenta e setenta e depois da acalmia
absoluta dos anos oitenta, assistiu-se ao longo dos anos noventa a
um recrudescimento progressivo de novos movimentos que contestam
a ordem mundial existente. A luta contra os efeitos perversos da
«mundialização» (ou «globalização») neoliberal constitui o denominador
comum desses movimentos. Sendo assim, a nossa apresentação da crítica do valor conclui-se com uma análise breve de algumas
das ideias mais divulgadas na «rede» da anti-globalização.
De entre as reações às «misérias do mundo» provocadas pelo capitalismo contemporâneo, a que prevaleceu até agora é a condenação dos políticos neoliberais que lhes contrapõe - explícita ou implicitamente - o regresso às receitas keynesianas e a um papel prevalecente do Estado. Este discurso não contesta a mercadoria enquanto tal, mas somente a sua ação sobre os diferentes aspectos da vida. O objectivo é então o de «voltar a enquadrar» a economia na sociedade por intermédio de reformas corajosas levadas a cabo por amplas coligações de homens de boa vontade. Como expressões típicas deste movimento, representado a nível mundial pelas cimeiras alternativas de Porto Alegre, podemos citar, em França, a associação Attac, que nasceu para exigir a aplicação de taxas sobre as transações financeiras, o jornal Le Monde diplomatique, os escritos do sociólogo Pierre Bourdieu e as ações de José Bové, dirigentes da Confederação Camponesa. Este último fala da situação nos seguintes termos: «Se todas as atividades humanas passam a ser de ordem mercantil, o conflito dá-se entre duas concepções da sociedade. Uma, que deixa o mercado, com as suas próprias regras, organizar a sociedade, integrar todas as atividades humanas, a saúde, a cultura, a educação, etc., e que tem do seu lado a lei do dinheiro, sendo o seu estádio último [...] a mercantilização da vida. A outra, em que quem tem o poder de organizar a sociedade são os cidadãos, as instituições políticas, o espaço de vida e outras vertentes, como o ambiente e a cultura.» [1] Pergunta-se: será que a crítica radical da mercadoria e do mercado desenvolvido pela via da crítica do valor encontra a sua realização prática num movimento baseado em tais princípios e que tem entre os seus textos fundadores um escrito intitulado O mundo não é uma mercadoria?
Em primeiro lugar é preciso sublinhar que este movimento se propõe lutar contra o «flagelo neoliberal» [2] e não contra o capitalismo em geral, e menos ainda contra a mercadoria, o dinheiro, o valor e o Estado. É verdade que os seus representantes proclamam que querem ultrapassar a mera descrição dos sintomas e as análises superficiais. Segundo Bourdieu, «é preciso evidentemente recuar até às verdadeiras determinações econômicas e sociais» [3] dos problemas, na perspectiva de «ajudar as vítimas da política neoliberal a descobrir os efeitos diversos de uma mesma causa em acontecimentos e experiências que à primeira vista são radicalmente diferentes» [4]. O que falta, porém, é precisamente uma crítica capaz de indicar a raiz comum dos diferentes problemas: o neoliberalismo constitui o único alvo dessa crítica redutora. Esta perspectiva pretende que a política e o Estado libertem o capitalismo dos seus «excessos» - antes de mais do poder da especulação financeira - para restabelecer um verdadeiro Estado-providência. Aliás, a lógica da mercadoria nem chega a ser aflorada. Este tipo de contestação propõe-se somente impedir que a educação, a saúde, a cultura, a arte, a agricultura e outros domínios específicos se tornem também mercadorias (pressupondo, evidentemente, que não o são já).
Como é natural, podemos perguntar se é verdadeiramente desejável um tal regresso ao fordismo keynesiano. Em face das desgraças produzidas em cadeia pelo neoliberalismo, pode parecer compreensível que se alimente alguma nostalgia pelo «capitalismo social».
Deste modo, Bourdieu insiste com frequência em problemas atuais (segregação social e étnica, etc.) decorrentes da política neoliberal de habitação iniciada nos anos setenta [5]. Perguntar-se-á, porém, se eram agradáveis os HLM dos anos sessenta e se De Gaulle tinha começado a construir um verdadeiro Estado de justiça social. Mas é mais útil demonstrar que esse regresso é simplesmente impossível. Àqueles que, em desespero de causa, seriam capazes de se contentar com um capitalismo de rosto humano, teremos que demonstrar que o tempo dessa opção está decididamente ultrapassado.
Essa ilusão baseia-se na convicção de que a mundialização neoliberal não é o resultado inevitável da lógica capitalista e ao mesmo tempo um sinal da sua extrema fraqueza, mas sim o resultado de uma espécie de conspiração preparada há muito tempo [6]. Segundo esse discurso, com a mundialização, os detentores do poder econômico e sobretudo do poder financeiro procuram anular todas as conquistas obtidas durante um século de lutas pela «democratização» e pelos «direitos sociais». Autores como Bourdieu não vêem a ambiguidade profunda de tais «conquistas», que, mesmo tendo sido arrancadas às classes burguesas contra sua vontade, nem por isso deixaram de ser úteis e inclusivamente indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo. Se Bourdieu escreve em dado momento que, «pelo fato de os dominadores deste jogo serem dominados pelas regras do jogo que dominam, a regra do lucro, este campo funciona como uma máquina infernal sem sujeito que impõe a sua lei aos Estados e às empresas» [7], tal não representa mais do que uma afirmação isolada. No seu discurso, a evolução do capitalismo não é governada pelas respectivas contradições internas, a concorrência e o sujeito autômato. Cada melhoramento da condição dos «dominados» ficar-se-ia a dever a uma ação política e social, concebida como sendo o contrário do capitalismo, e não como parte integrante dele mesmo. Tudo se reduz então às relações de forças e à boa vontade ou má vontade dos atores [8]. A mundialização «econômica não é um efeito mecânico das leis da técnica ou da economia, mas sim o produto de uma política posta em ação» [9]: tal política teria sido imposta pelo esforço constante dos think tanks neoliberais. Tratar-se-ia de um processo de involução, de uma verdadeira «revolução conservadora»: «Começa-se assim a suspeitar de que a precariedade é produto não de uma fatalidade econômica, identificada com a famosa “mundialização”, mas de uma vontade política.» [10] Contudo, se a introdução do capitalismo não foi uma fatalidade, e se não somos obrigados a aceitar a sua existência como se fosse um destino, não se pode, por outro lado, desejar que o capitalismo seja diferente da sua própria natureza e que se mantenha mesmo nas suas épocas de crise um capitalismo simpático, «de rosto humano». A «vontade política» mais não fez do que dar execução às leis que regem a derradeira fase do capitalismo, numa circunstância em que este esgotou já a sua vida natural e procura desesperadamente manter uma aparência de produção de valor. A mundialização neoliberal não é um «retrocesso» contra o qual fosse necessário defender as aquisições da democracia social. A mundialização é antes o estádio que se segue logicamente ao Estado-providência. Não há abuso no fato de os neoliberais se apresentarem a si mesmos como os representantes do «progresso» e das «reformas»: eles constituem a melhor expressão do que são o progresso e as reformas na sociedade capitalista.
Aos olhos destes defensores do Estado social democrático, a «economia» não é a forma total da vida social moderna, mas sim um sector à parte contra cujo imperialismo se poderia mobilizar a arte, a ciência, etc., que pertenceriam a um outro mundo. Mas o que esta escola de pensamento pretende ressuscitar é sobretudo o Estado regulador da época keynesiana. Os escritos de Bourdieu testemunham-no à saciedade. Para ele, «o Estado é uma realidade ambígua. Não podemos contentar-nos em dizer que é um instrumento ao serviço dos dominantes, [...] ele tem uma autonomia tanto maior quanto mais antigo e mais forte for» [11]. Ora, isto concede evidentemente uma dignidade particular ao Estado francês, apesar de todas as proclamações em prol de um «novo internacionalismo» ou de um «Estado social europeu», concebido por seu turno como etapa para se alcançar um Estado mundial. Para Bourdieu, o Estado é algo que os dominados podem opor ao capital: «O Estado, em todos os países, é, por um lado, um sinal que as conquistas sociais deixam impresso na realidade» [12], A existência do Estado seria algo de inaceitável por parte do capital: «Os neoliberais não querem nem Estados nacionais, nos quais vêem meros obstáculos ao livre funcionamento da economia, nem a fortiori Estado supranacional» [13]. Segundo Bourdieu, é portanto necessário defender o Estado, traído precisamente pela «grande nobreza de Estado»: «Na situação atual, as lutas críticas dos intelectuais, dos sindicatos, das associações, têm que se voltar prioritariamente contra o definhamento do Estado [...]. Penso que os dominados têm interesse em defender o Estado.» [14] Bourdieu lamenta-se de hoje em dia o Estado já não exigir dos cidadãos «devoção, entusiasmo» [15]: acusa os socialistas do fato de terem «levado até ao fim a destruição da crença no Estado» [16]. Quer «descobrir uma verdadeira política», mesmo nos termos mais tradicionais, desde que se seja uma política «sem concessões para com as quimeras anti-institucionais» [17]. Bourdieu vai ao ponto de desejar o regresso dos honestos chefes carismáticos: lamenta o fato de os partidos já não produzirem «personalidades inspiradas» [18] e de serem «cada vez mais raros [...] os grandes tribunos, os homens políticos capazes de compreender e explicar as grandes expectativas e reivindicações dos seus eleitores» [19].
Na submissão da política à economia, Bourdieu não reconhece um resultado do fato - por nós já mencionado - de ao Estado faltar estruturalmente um meio autônomo de intervenção, mas tão- -somente a consequência de uma cegueira ideológica. Indigna-se, pois, por ver «todos esses altos representantes do Estado que rebaixam a sua dignidade estatutária prodigalizando vênias diante dos patrões das multinacionais» [20], e assegura com frequência que a margem de manobra dos dirigentes é muito menos reduzida do que se pretende fazer crer. Naturalmente, Bourdieu tem reservas em relação ao Estado, tal como este se encontra hoje em dia. Contudo, é preciso recordar-lhe que não é suficiente dizer-se que «este movimento social deve apoiar-se no Estado, mas mudando o Estado» [21]: o problema não reside apenas nos conteúdos concretos do Estado, mas na própria forma Estado. Quando Bourdieu julga divisar a particularidade negativa da mundialização neoliberal no fato de esta, «diferentemente do que sucedeu com a que noutros tempos ocorreu na Europa ao nível do Estado nacional, ocorrer agora sem Estado» [22], negligencia o que foi o papel do Estado durante séculos: obrigar as populações, a ferro e fogo, à «integração no mercado». Deveria ser suficiente recordar que o Estado continua a ser desde as infra-estruturas até à repressão, o garante indispensável da valorização capitalista. Para além do mais, o reformista estatista não é sequer «realista»: a tentativa contraditória de planificar e regular por intermédio do Estado aquilo que nos seus próprios fundamentos é algo de cego e inconsciente - a economia mercantil - levou já à desarticulação do socialismo nos países de Leste. Se um governo nacional tomasse verdadeiramente medidas radicais contra o grande capital, seria punido pela retirada imediata dos capitais internacionais e por uma derrocada das Bolsas e dos investimentos. O que não seria necessariamente uma catástrofe, se se quiser gerir os recursos de maneira diferente. Mas seria efetivamente uma catástrofe no quadro da economia de mercado que estes reformistas não põem em causa.
Quando estes neokeynesianos falam em «crise», pensam somente nas «bolhas especulativas». A ideia de uma crise estrutural do sistema capitalista é coisa que não lhes aflora ao espírito, e muitas vezes identificam a mundialização com uma fase de prosperidade capitalista acrescida. Segundo eles, reforçar o papel do Estado e combater o poder financeiro e a lógica do lucro a curto prazo terá como consequência o regresso do pleno emprego. Das suas intenções não faz parte nem a crítica do trabalho, nem a compreensão das razões do efetivo desaparecimento do trabalho. Na sua óptica, a diminuição contínua da força de trabalho empregue é o resultado de uma escolha deliberada, ditada por uma avidez míope; seria portanto possível inverter esta tendência por meio de uma decisão política. Na verdade, são as novas tecnologias que reduziram consideravelmente o trabalho necessário à produção, pondo assim termo ao crescimento fordista que pôde alimentar as políticas keynesianas. O simples fato de, apesar do desemprego e do seu crescimento, a produção continuar a existir e inclusivamente aumentar demonstra só por si não ser verdade que «sem trabalho deixar-se-á de produzir», a menos que se esteja a utilizar o termo «trabalho» abusivamente como sinônimo de toda e qualquer atividade. Em vez de procurar inutilmente voltar atrás e recriar artificialmente trabalho fictício em «ateliers de formação» ou em «empresas de inserção», mais valeria libertar o indivíduo da necessidade de vender a sua força de trabalho para poder viver. É algo de tanto mais urgente quanto essa força de trabalho se revela cada vez mais um bem invendável, e os que não conseguem vender-se são convidados a atribuir a culpa a si mesmos - porque não se «adaptam» suficientemente ao mercado - e a considerar-se parasitas supérfluos. E mesmo que o regresso ao «pleno emprego» fosse possível, só seria desejável aos olhos daqueles que conservassem uma apreciação moral favorável ao trabalho.
Opor as realidades «sólidas» e «honestas» do Estado e da nação, do trabalho e dos «investimentos produtivos» ao capital financeiro e à especulação burguesa arrisca-se a ser, independentemente das intenções de quem defende tais ideias, um jogo bastante perigoso, mais útil para mobilizar sentimentos de ódio do que para criar um movimento de emancipação social. Este último não pode de modo algum limitar-se a escolher um pólo da abstração mercantil (o Estado, o trabalho) para o opor ao outro (o dinheiro, a finança). Porém, em vez de opor a emancipação social ao capitalismo, o que está em moda é opor a «democracia» ao «mundo descontrolado da finança». O que acontece é que a polêmica contra a especulação é perfeitamente compatível com o elogio do «capitalismo são», relativamente ao qual os «excessos financeiros» seriam uma espécie de doença. Com efeito, em 1995, o presidente Jacques Chirac chamava à especulação monetária «a AIDS das nossas economias». Como é evidente, esta argumentação confunde a causa e o efeito da crise. Como dissemos já, não é o peso da finança parasitária que esmaga uma economia capitalista que em caso contrário pudesse estar de boa saúde, antes é a economia do valor que, tendo atingido o seu ponto de esgotamento, continua a sobreviver provisoriamente graças à especulação.
Quase desde o início do capitalismo tem existido um falso anticapitalismo que não critica o trabalho e a transformação do trabalho em valor, sendo que, pelo contrário, esse falso anticapitalismo vê numa coisa e na outra o lado positivo e «concreto» da relação capitalista e quer eliminar o capital «monopolizador», que seria o lado negativo, «abstrato», do capital. Este lado mau depressa passa a ser identificado com um grupo social determinado e não tarda que se descubra que a culpa é dos «judeus». O papel central desempenhado por esta demagogia durante o nazismo tornou difícil utilizá-la abertamente nos dias que correm. Mas ela continua a espalhar-se, por vezes nas ocasiões mais inesperadas [23]. Esta forma de anticapitalismo não é uma «meia verdade»; pelo contrário, ela contribui para canalizar o descontentamento social para objetivos secundários ou falsos que não colocam em perigo o modo de produção capitalista. De acordo com esta lógica, seria preciso sacrificar uns quantos especuladores e um punhado de políticos corruptos para salvar o essencial.
O movimento Attac, bem como as organizações que se empenham na luta pelo perdão da dívida dos países do terceiro mundo, peia reforma do Banco Mundial e por outros objetivos do mesmo tipo, tomaram em alguma medida o lugar dos partidos sociais-democratas europeus a partir do momento em que estes passaram completamente para o campo neoliberal [24]. Apesar de uma certa retórica anticapitalista em algumas ocasiões, compreende-se facilmente que a perspectiva deste movimento é totalmente reformista. A única promessa que faz - aliás, irrealizável - vai no sentido de que tudo fique na mesma e de que se evite o pior. Este movimento permanece fechado dentro do universo da política tradicional, e a sua verdadeira vocação é dar voz aos «cidadãos» e à «sociedade civil». Dirige-se em permanência aos «eleitos», dando assim legitimidade à cobertura democrática da sociedade mercantil. Mesmo os críticos mais acérrimos da Organização Mundial do Comércio (OMC), como a Confederação Camponesa, afirmam que essa organização internacional, uma vez que foi criada por governos e que é constituída por Estados aderentes, «é, portanto [!], a priori, um organismo mundial legítimo»; se «rapidamente se transformou num instrumento autônomo ao serviço do comércio» é porque os Estados «se acantonaram num papel de caucionamento» [25]. Estes críticos acreditam que os «representantes dos países, designadamente no plano mais elevado que seria a ONU (a propósito da qual circulam enormes ilusões, como se uma assembleia de Estados fosse melhor do que os Estados particulares, ou como se a «cúpula» da Mafia fosse preferível a cada um dos mafiosos em particular), têm condições para estabelecer o «primado da política sobre o mercado» [26]. E nem sequer se referem a uma política que seja fruto dos seus sonhos, mas muito simplesmente à política efetivamente existente que é um dos pilares do sistema que pretensamente combatem
Mas esta tentativa de «voltar a credibilizar a política» não consiste apenas na eterna evocação dos ideais da sociedade burguesa para os opor à realidade dessa mesma sociedade. É pior do que isso. Tal como historicamente sucedeu com a social-democracia, os porta-vozes deste movimento estão prontos para participar na gestão do que existe - o que na prática só pode significar participar na administração da urgência contínua e da repressão. Apresentam-se como uma elite de substituição, mais sólida do que a brigada dos ladrões neoliberais: «É preciso voltar a dar sentido à política; para tanto é necessário propor projetos para o futuro capazes de dar sentido a um mundo econômico e social que ao longo das últimas décadas conheceu transformações enormes» [27]. Com efeito, estão convencidos de que conhecem melhor do que os atuais governantes as verdadeiras necessidades da economia: «Na lógica do interesse devidamente compreendido, a política estritamente econômica não é necessariamente econômica - [se se leva em conta] a insegurança das pessoas e dos bens, consequentemente a polícia, etc» [28]. Prometem, caso as suas propostas obtenham realização, possibilidades de lucro superiores às atuais: «É conveniente acabar com a aceitação monocelular da mundialização, para que se possa compreender o que ela, na realidade, tem a ganhar com o florescimento dos territórios locais» [29]. Nem sequer têm a intenção de contestar as multinacionais enquanto tal, antes seriam capazes de se contentar se «as grandes firmas passarem de uma atitude de predador dos recursos locais [...] para a de cooperantes na construção desses mesmos recursos» [30].
Este reformismo transforma-se definitivamente em inimigo de toda a emancipação social quando declara abertamente querer restabelecer nos seus direitos o trabalho, tão maltratado pelos economistas neoliberais que nada sabem «do mundo econômico e social, tal como ele efetivamente é» [31]. O movimento quer salvar a sociedade do trabalho ameaçada pelas loucuras neoliberais: «Para que o sistema econômico funcione, é preciso que os trabalhadores para ele contribuam com as suas próprias condições de produção e de reprodução, mas também as condições de funcionamento do próprio sistema econômico, a começar pela sua capacidade de acreditar na empresa, no trabalho, na necessidade do trabalho, etc» [32]. Ou seja, trabalhadores que amem apaixonadamente o trabalho, a empresa e o Estado, que os desejem democraticamente por iniciativa própria: afinal, toda a evolução da sociedade mercantil ao longo dos séculos tinha exatamente por objectivo a criação desta personagem, aliás perfeitamente conseguida na Rússia de Stalin. Assim sendo, o trabalho é naturalmente proclamado o primeiro de todos os «direitos» [33]. Mas sabe-se que o direito ao trabalho significa na prática, como foi o caso nos países do «socialismo real», o dever - pago ou não pago - de trabalhar. Tendo em vista esta solução, deixa de ser propriamente espantoso o fato de num dos seus programas o movimento Attac exigir a criação de uma «polícia de proximidade», uma «polícia de educação cívica» [34]. É essa, e há-de continuar a ser, a última palavra dos reformistas democráticos.
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JAPPE, Anselm. ''Sobre alguns falsos amigos: crítica do neoliberalismo ou crítica do capitalismo?''. In: _____. As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006, pp. 243-253.
Referências do texto:
1 Bové, Le Monde, pág. 244.
2 Bourdieu, Contre-feux, pág. 7.
3 Bourdieu, La Misére du monde, pág. 944.
4 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 37.
5 Bourdieu, La Misére du monde, págs. 219-221.
6 Como é evidente a globalização neoliberal foi posta em marcha de maneira cuidadosamente planeada e com objetivos precisos, mas essa estratégia só foi bem sucedida por ter sido capaz de extrair as consequências do processo de extinção da fase fordista-keynesiana, o qual aliás havia já começado.
7 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 45.
8 Não é surpreendente, portanto, que para Bourdieu o marxismo seja «a mais economista das tradições», e que o marxismo e o neoliberalismo sejam por ele tratados como instancias do mesmo «fatalismo econômico» fundado na «fetichização das forças produtivas» (citado em Callinicos, La Théorie sociale, pág. 73). Bourdieu escreve: «E talvez não seja por acaso que tanta gente da minha geração passou sem problemas de um fatalismo marxista para um fatalismo neoliberal: nos dois casos o economismo desresponsabiliza e desmobiliza anulando a política e impondo toda uma série de fins não discutidos, crescimento máximo, competitividade, produtividade» (Bourdieu, Contrefeux, pág. 56). Como é natural, Bourdieu tem razão em relação a um certo marxismo tradicional, mas renuncia a priori a fazer uso da crítica marxiana da economia política. Com efeito, a crítica da economia política recordar-lhe-ia que na sociedade mercantil a tirania econômica está inscrita nas estruturas do social, em vez de ser resultado de uma imposição exterior.
9 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 95.
10 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 98.
11 Bourdieu, Contre-feux, pág. 39.
12 Bourdieu, Contre-feux. pág. 38.
13 Bourdieu, Contre-feux, pág. 68.
14 Bourdieu, Contre-feux, pág. 46.
15 Bourdieu, Contre-feux, pág. 12.
16 Bourdieu, Contre-feux, pág. 14.
17. Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 10.
18 Bourdieu, Contre-feux, pág. 13.
19 Bourdieu, La Misère du monde, pág, 941.
20 Bourdieu, Contre-feux, pág. 116.
21 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 63.
22 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 107.
23 Cf. Moishe Postone, «Anti-Semitism and National Socialism», in: E. Rabinbach e J. Zipes (orgs.), Qermans and Jews since the Holocaust, Holmes & Meier, New York, 1986. Postone analisa nesse trabalho os mecanismos projetivos do anti-semitismo moderno que constrói a figura do «judeu» como incarnação do valor abstrato. Correspondentemente, Auschwitz seria a «fábrica» destinada a um tresloucado empreendimento de aniquilação do valor. Porém, se é necessário denunciar o anti-semitismo latente de muitas teorias que se pretendem anticapitalistas, é preciso opormo-nos igualmente àqueles que denunciam como anti-semita toda e qualquer crítica do capitalismo. A crítica do valor conduz precisamente a uma crítica dos mecanismos estruturais do capitalismo que não atribui os respectivos males às ações de grupos humanos particulares.
24 Uma ideia muito popular neste contexto é a de «comércio equitativo», definido como o fato de «os bens serem pagos pelo preço real da sua produção» (José Bové, Le Monde, pág. 255). Porém, no interior da lógica do valor - que já está tacitamente pressuposta neste discurso -, as trocas comerciais entre os países ricos e os países pobres não são simplesmente «injustas». É precisamente o seu caráter equitativo, designadamente o fato de o parâmetro ser o mesmo para o conjunto dos diferentes agentes econômicos, que oprime os países pobres. Com efeito, no mercado mundial, os países não recebem a massa de valor que corresponde ao trabalho efetivamente empregue, mas sim a massa de valor que corresponde à sua produtividade. São precisamente os países e as empresas que utilizam menos trabalho - porque a sua produtividade é mais elevada - que podem apropriar-se na concorrência de uma parte maior do valor global. A partir do momento em que se aceitou a produção abstrata de riqueza, é absurdo reclamar uma distribuição mais «justa» dessa riqueza abstrata: só a riqueza concreta pode ser distribuída segundo um critério de justiça, ou seja, segundo princípios que a sociedade estabeleça de forma consciente. O valor, como dissemos já, tem necessariamente que se tornar mais-valia; de outro modo cessaria igualmente toda a produção de valor.
25 José Bové, Le Monde, pág. 263.
26 José Bové, Le Monde, pág. 274.
27 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 44.
28 Bourdieu, Contre-feux, pág. 45.
29 Attac, Agir local, pág. 11.
30 Attac, Agir local, pág. 32.
31 Bourdieu, Contre-feux, pág. 115. Com efeito, esses economistas ingratos não compreendem que são «as reservas de capital social que protegem toda uma parte da ordem social presente de cair na anomia» (Contre-feux, pág. 117); noutro local Bourdieu fala dos «valores de serviço obscuro em benefício do interesse colectivo por parte do funcionário e do militante» (Contre-feux, pág. 12).
32 Bourdieu, Contre-feux, pág. 101.
33 Bourdieu, Contre-feux, pág. 30.
34 Attac, Agir local, pág. 104.
Bibliografia usada no texto:
Attac, Agir global, penser global. Les citoyens face à la mondialisation, Paris, Éditions Mille et Une Nuits, 2001.
Bourdieu, Pierre, Contre-feux. Propos pour servir à la résistance contre l'invasion néolibérale, Paris, Éditions Raisons d’Agir, 1998. Trad. port.: Contrafogos, Oeiras, Celta, 1998.
Bourdieu, Pierre, Contre-feux 2. Pour un mouvement social européen, Paris, Éditions Raison dAgir, 2001. Trad. port.: Contrafogos 2. Por um movimento social europeu, Oeiras, Celta, 2001.
De entre as reações às «misérias do mundo» provocadas pelo capitalismo contemporâneo, a que prevaleceu até agora é a condenação dos políticos neoliberais que lhes contrapõe - explícita ou implicitamente - o regresso às receitas keynesianas e a um papel prevalecente do Estado. Este discurso não contesta a mercadoria enquanto tal, mas somente a sua ação sobre os diferentes aspectos da vida. O objectivo é então o de «voltar a enquadrar» a economia na sociedade por intermédio de reformas corajosas levadas a cabo por amplas coligações de homens de boa vontade. Como expressões típicas deste movimento, representado a nível mundial pelas cimeiras alternativas de Porto Alegre, podemos citar, em França, a associação Attac, que nasceu para exigir a aplicação de taxas sobre as transações financeiras, o jornal Le Monde diplomatique, os escritos do sociólogo Pierre Bourdieu e as ações de José Bové, dirigentes da Confederação Camponesa. Este último fala da situação nos seguintes termos: «Se todas as atividades humanas passam a ser de ordem mercantil, o conflito dá-se entre duas concepções da sociedade. Uma, que deixa o mercado, com as suas próprias regras, organizar a sociedade, integrar todas as atividades humanas, a saúde, a cultura, a educação, etc., e que tem do seu lado a lei do dinheiro, sendo o seu estádio último [...] a mercantilização da vida. A outra, em que quem tem o poder de organizar a sociedade são os cidadãos, as instituições políticas, o espaço de vida e outras vertentes, como o ambiente e a cultura.» [1] Pergunta-se: será que a crítica radical da mercadoria e do mercado desenvolvido pela via da crítica do valor encontra a sua realização prática num movimento baseado em tais princípios e que tem entre os seus textos fundadores um escrito intitulado O mundo não é uma mercadoria?
Em primeiro lugar é preciso sublinhar que este movimento se propõe lutar contra o «flagelo neoliberal» [2] e não contra o capitalismo em geral, e menos ainda contra a mercadoria, o dinheiro, o valor e o Estado. É verdade que os seus representantes proclamam que querem ultrapassar a mera descrição dos sintomas e as análises superficiais. Segundo Bourdieu, «é preciso evidentemente recuar até às verdadeiras determinações econômicas e sociais» [3] dos problemas, na perspectiva de «ajudar as vítimas da política neoliberal a descobrir os efeitos diversos de uma mesma causa em acontecimentos e experiências que à primeira vista são radicalmente diferentes» [4]. O que falta, porém, é precisamente uma crítica capaz de indicar a raiz comum dos diferentes problemas: o neoliberalismo constitui o único alvo dessa crítica redutora. Esta perspectiva pretende que a política e o Estado libertem o capitalismo dos seus «excessos» - antes de mais do poder da especulação financeira - para restabelecer um verdadeiro Estado-providência. Aliás, a lógica da mercadoria nem chega a ser aflorada. Este tipo de contestação propõe-se somente impedir que a educação, a saúde, a cultura, a arte, a agricultura e outros domínios específicos se tornem também mercadorias (pressupondo, evidentemente, que não o são já).
Como é natural, podemos perguntar se é verdadeiramente desejável um tal regresso ao fordismo keynesiano. Em face das desgraças produzidas em cadeia pelo neoliberalismo, pode parecer compreensível que se alimente alguma nostalgia pelo «capitalismo social».
Deste modo, Bourdieu insiste com frequência em problemas atuais (segregação social e étnica, etc.) decorrentes da política neoliberal de habitação iniciada nos anos setenta [5]. Perguntar-se-á, porém, se eram agradáveis os HLM dos anos sessenta e se De Gaulle tinha começado a construir um verdadeiro Estado de justiça social. Mas é mais útil demonstrar que esse regresso é simplesmente impossível. Àqueles que, em desespero de causa, seriam capazes de se contentar com um capitalismo de rosto humano, teremos que demonstrar que o tempo dessa opção está decididamente ultrapassado.
Essa ilusão baseia-se na convicção de que a mundialização neoliberal não é o resultado inevitável da lógica capitalista e ao mesmo tempo um sinal da sua extrema fraqueza, mas sim o resultado de uma espécie de conspiração preparada há muito tempo [6]. Segundo esse discurso, com a mundialização, os detentores do poder econômico e sobretudo do poder financeiro procuram anular todas as conquistas obtidas durante um século de lutas pela «democratização» e pelos «direitos sociais». Autores como Bourdieu não vêem a ambiguidade profunda de tais «conquistas», que, mesmo tendo sido arrancadas às classes burguesas contra sua vontade, nem por isso deixaram de ser úteis e inclusivamente indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo. Se Bourdieu escreve em dado momento que, «pelo fato de os dominadores deste jogo serem dominados pelas regras do jogo que dominam, a regra do lucro, este campo funciona como uma máquina infernal sem sujeito que impõe a sua lei aos Estados e às empresas» [7], tal não representa mais do que uma afirmação isolada. No seu discurso, a evolução do capitalismo não é governada pelas respectivas contradições internas, a concorrência e o sujeito autômato. Cada melhoramento da condição dos «dominados» ficar-se-ia a dever a uma ação política e social, concebida como sendo o contrário do capitalismo, e não como parte integrante dele mesmo. Tudo se reduz então às relações de forças e à boa vontade ou má vontade dos atores [8]. A mundialização «econômica não é um efeito mecânico das leis da técnica ou da economia, mas sim o produto de uma política posta em ação» [9]: tal política teria sido imposta pelo esforço constante dos think tanks neoliberais. Tratar-se-ia de um processo de involução, de uma verdadeira «revolução conservadora»: «Começa-se assim a suspeitar de que a precariedade é produto não de uma fatalidade econômica, identificada com a famosa “mundialização”, mas de uma vontade política.» [10] Contudo, se a introdução do capitalismo não foi uma fatalidade, e se não somos obrigados a aceitar a sua existência como se fosse um destino, não se pode, por outro lado, desejar que o capitalismo seja diferente da sua própria natureza e que se mantenha mesmo nas suas épocas de crise um capitalismo simpático, «de rosto humano». A «vontade política» mais não fez do que dar execução às leis que regem a derradeira fase do capitalismo, numa circunstância em que este esgotou já a sua vida natural e procura desesperadamente manter uma aparência de produção de valor. A mundialização neoliberal não é um «retrocesso» contra o qual fosse necessário defender as aquisições da democracia social. A mundialização é antes o estádio que se segue logicamente ao Estado-providência. Não há abuso no fato de os neoliberais se apresentarem a si mesmos como os representantes do «progresso» e das «reformas»: eles constituem a melhor expressão do que são o progresso e as reformas na sociedade capitalista.
Aos olhos destes defensores do Estado social democrático, a «economia» não é a forma total da vida social moderna, mas sim um sector à parte contra cujo imperialismo se poderia mobilizar a arte, a ciência, etc., que pertenceriam a um outro mundo. Mas o que esta escola de pensamento pretende ressuscitar é sobretudo o Estado regulador da época keynesiana. Os escritos de Bourdieu testemunham-no à saciedade. Para ele, «o Estado é uma realidade ambígua. Não podemos contentar-nos em dizer que é um instrumento ao serviço dos dominantes, [...] ele tem uma autonomia tanto maior quanto mais antigo e mais forte for» [11]. Ora, isto concede evidentemente uma dignidade particular ao Estado francês, apesar de todas as proclamações em prol de um «novo internacionalismo» ou de um «Estado social europeu», concebido por seu turno como etapa para se alcançar um Estado mundial. Para Bourdieu, o Estado é algo que os dominados podem opor ao capital: «O Estado, em todos os países, é, por um lado, um sinal que as conquistas sociais deixam impresso na realidade» [12], A existência do Estado seria algo de inaceitável por parte do capital: «Os neoliberais não querem nem Estados nacionais, nos quais vêem meros obstáculos ao livre funcionamento da economia, nem a fortiori Estado supranacional» [13]. Segundo Bourdieu, é portanto necessário defender o Estado, traído precisamente pela «grande nobreza de Estado»: «Na situação atual, as lutas críticas dos intelectuais, dos sindicatos, das associações, têm que se voltar prioritariamente contra o definhamento do Estado [...]. Penso que os dominados têm interesse em defender o Estado.» [14] Bourdieu lamenta-se de hoje em dia o Estado já não exigir dos cidadãos «devoção, entusiasmo» [15]: acusa os socialistas do fato de terem «levado até ao fim a destruição da crença no Estado» [16]. Quer «descobrir uma verdadeira política», mesmo nos termos mais tradicionais, desde que se seja uma política «sem concessões para com as quimeras anti-institucionais» [17]. Bourdieu vai ao ponto de desejar o regresso dos honestos chefes carismáticos: lamenta o fato de os partidos já não produzirem «personalidades inspiradas» [18] e de serem «cada vez mais raros [...] os grandes tribunos, os homens políticos capazes de compreender e explicar as grandes expectativas e reivindicações dos seus eleitores» [19].
Na submissão da política à economia, Bourdieu não reconhece um resultado do fato - por nós já mencionado - de ao Estado faltar estruturalmente um meio autônomo de intervenção, mas tão- -somente a consequência de uma cegueira ideológica. Indigna-se, pois, por ver «todos esses altos representantes do Estado que rebaixam a sua dignidade estatutária prodigalizando vênias diante dos patrões das multinacionais» [20], e assegura com frequência que a margem de manobra dos dirigentes é muito menos reduzida do que se pretende fazer crer. Naturalmente, Bourdieu tem reservas em relação ao Estado, tal como este se encontra hoje em dia. Contudo, é preciso recordar-lhe que não é suficiente dizer-se que «este movimento social deve apoiar-se no Estado, mas mudando o Estado» [21]: o problema não reside apenas nos conteúdos concretos do Estado, mas na própria forma Estado. Quando Bourdieu julga divisar a particularidade negativa da mundialização neoliberal no fato de esta, «diferentemente do que sucedeu com a que noutros tempos ocorreu na Europa ao nível do Estado nacional, ocorrer agora sem Estado» [22], negligencia o que foi o papel do Estado durante séculos: obrigar as populações, a ferro e fogo, à «integração no mercado». Deveria ser suficiente recordar que o Estado continua a ser desde as infra-estruturas até à repressão, o garante indispensável da valorização capitalista. Para além do mais, o reformista estatista não é sequer «realista»: a tentativa contraditória de planificar e regular por intermédio do Estado aquilo que nos seus próprios fundamentos é algo de cego e inconsciente - a economia mercantil - levou já à desarticulação do socialismo nos países de Leste. Se um governo nacional tomasse verdadeiramente medidas radicais contra o grande capital, seria punido pela retirada imediata dos capitais internacionais e por uma derrocada das Bolsas e dos investimentos. O que não seria necessariamente uma catástrofe, se se quiser gerir os recursos de maneira diferente. Mas seria efetivamente uma catástrofe no quadro da economia de mercado que estes reformistas não põem em causa.
Quando estes neokeynesianos falam em «crise», pensam somente nas «bolhas especulativas». A ideia de uma crise estrutural do sistema capitalista é coisa que não lhes aflora ao espírito, e muitas vezes identificam a mundialização com uma fase de prosperidade capitalista acrescida. Segundo eles, reforçar o papel do Estado e combater o poder financeiro e a lógica do lucro a curto prazo terá como consequência o regresso do pleno emprego. Das suas intenções não faz parte nem a crítica do trabalho, nem a compreensão das razões do efetivo desaparecimento do trabalho. Na sua óptica, a diminuição contínua da força de trabalho empregue é o resultado de uma escolha deliberada, ditada por uma avidez míope; seria portanto possível inverter esta tendência por meio de uma decisão política. Na verdade, são as novas tecnologias que reduziram consideravelmente o trabalho necessário à produção, pondo assim termo ao crescimento fordista que pôde alimentar as políticas keynesianas. O simples fato de, apesar do desemprego e do seu crescimento, a produção continuar a existir e inclusivamente aumentar demonstra só por si não ser verdade que «sem trabalho deixar-se-á de produzir», a menos que se esteja a utilizar o termo «trabalho» abusivamente como sinônimo de toda e qualquer atividade. Em vez de procurar inutilmente voltar atrás e recriar artificialmente trabalho fictício em «ateliers de formação» ou em «empresas de inserção», mais valeria libertar o indivíduo da necessidade de vender a sua força de trabalho para poder viver. É algo de tanto mais urgente quanto essa força de trabalho se revela cada vez mais um bem invendável, e os que não conseguem vender-se são convidados a atribuir a culpa a si mesmos - porque não se «adaptam» suficientemente ao mercado - e a considerar-se parasitas supérfluos. E mesmo que o regresso ao «pleno emprego» fosse possível, só seria desejável aos olhos daqueles que conservassem uma apreciação moral favorável ao trabalho.
Opor as realidades «sólidas» e «honestas» do Estado e da nação, do trabalho e dos «investimentos produtivos» ao capital financeiro e à especulação burguesa arrisca-se a ser, independentemente das intenções de quem defende tais ideias, um jogo bastante perigoso, mais útil para mobilizar sentimentos de ódio do que para criar um movimento de emancipação social. Este último não pode de modo algum limitar-se a escolher um pólo da abstração mercantil (o Estado, o trabalho) para o opor ao outro (o dinheiro, a finança). Porém, em vez de opor a emancipação social ao capitalismo, o que está em moda é opor a «democracia» ao «mundo descontrolado da finança». O que acontece é que a polêmica contra a especulação é perfeitamente compatível com o elogio do «capitalismo são», relativamente ao qual os «excessos financeiros» seriam uma espécie de doença. Com efeito, em 1995, o presidente Jacques Chirac chamava à especulação monetária «a AIDS das nossas economias». Como é evidente, esta argumentação confunde a causa e o efeito da crise. Como dissemos já, não é o peso da finança parasitária que esmaga uma economia capitalista que em caso contrário pudesse estar de boa saúde, antes é a economia do valor que, tendo atingido o seu ponto de esgotamento, continua a sobreviver provisoriamente graças à especulação.
Quase desde o início do capitalismo tem existido um falso anticapitalismo que não critica o trabalho e a transformação do trabalho em valor, sendo que, pelo contrário, esse falso anticapitalismo vê numa coisa e na outra o lado positivo e «concreto» da relação capitalista e quer eliminar o capital «monopolizador», que seria o lado negativo, «abstrato», do capital. Este lado mau depressa passa a ser identificado com um grupo social determinado e não tarda que se descubra que a culpa é dos «judeus». O papel central desempenhado por esta demagogia durante o nazismo tornou difícil utilizá-la abertamente nos dias que correm. Mas ela continua a espalhar-se, por vezes nas ocasiões mais inesperadas [23]. Esta forma de anticapitalismo não é uma «meia verdade»; pelo contrário, ela contribui para canalizar o descontentamento social para objetivos secundários ou falsos que não colocam em perigo o modo de produção capitalista. De acordo com esta lógica, seria preciso sacrificar uns quantos especuladores e um punhado de políticos corruptos para salvar o essencial.
O movimento Attac, bem como as organizações que se empenham na luta pelo perdão da dívida dos países do terceiro mundo, peia reforma do Banco Mundial e por outros objetivos do mesmo tipo, tomaram em alguma medida o lugar dos partidos sociais-democratas europeus a partir do momento em que estes passaram completamente para o campo neoliberal [24]. Apesar de uma certa retórica anticapitalista em algumas ocasiões, compreende-se facilmente que a perspectiva deste movimento é totalmente reformista. A única promessa que faz - aliás, irrealizável - vai no sentido de que tudo fique na mesma e de que se evite o pior. Este movimento permanece fechado dentro do universo da política tradicional, e a sua verdadeira vocação é dar voz aos «cidadãos» e à «sociedade civil». Dirige-se em permanência aos «eleitos», dando assim legitimidade à cobertura democrática da sociedade mercantil. Mesmo os críticos mais acérrimos da Organização Mundial do Comércio (OMC), como a Confederação Camponesa, afirmam que essa organização internacional, uma vez que foi criada por governos e que é constituída por Estados aderentes, «é, portanto [!], a priori, um organismo mundial legítimo»; se «rapidamente se transformou num instrumento autônomo ao serviço do comércio» é porque os Estados «se acantonaram num papel de caucionamento» [25]. Estes críticos acreditam que os «representantes dos países, designadamente no plano mais elevado que seria a ONU (a propósito da qual circulam enormes ilusões, como se uma assembleia de Estados fosse melhor do que os Estados particulares, ou como se a «cúpula» da Mafia fosse preferível a cada um dos mafiosos em particular), têm condições para estabelecer o «primado da política sobre o mercado» [26]. E nem sequer se referem a uma política que seja fruto dos seus sonhos, mas muito simplesmente à política efetivamente existente que é um dos pilares do sistema que pretensamente combatem
Mas esta tentativa de «voltar a credibilizar a política» não consiste apenas na eterna evocação dos ideais da sociedade burguesa para os opor à realidade dessa mesma sociedade. É pior do que isso. Tal como historicamente sucedeu com a social-democracia, os porta-vozes deste movimento estão prontos para participar na gestão do que existe - o que na prática só pode significar participar na administração da urgência contínua e da repressão. Apresentam-se como uma elite de substituição, mais sólida do que a brigada dos ladrões neoliberais: «É preciso voltar a dar sentido à política; para tanto é necessário propor projetos para o futuro capazes de dar sentido a um mundo econômico e social que ao longo das últimas décadas conheceu transformações enormes» [27]. Com efeito, estão convencidos de que conhecem melhor do que os atuais governantes as verdadeiras necessidades da economia: «Na lógica do interesse devidamente compreendido, a política estritamente econômica não é necessariamente econômica - [se se leva em conta] a insegurança das pessoas e dos bens, consequentemente a polícia, etc» [28]. Prometem, caso as suas propostas obtenham realização, possibilidades de lucro superiores às atuais: «É conveniente acabar com a aceitação monocelular da mundialização, para que se possa compreender o que ela, na realidade, tem a ganhar com o florescimento dos territórios locais» [29]. Nem sequer têm a intenção de contestar as multinacionais enquanto tal, antes seriam capazes de se contentar se «as grandes firmas passarem de uma atitude de predador dos recursos locais [...] para a de cooperantes na construção desses mesmos recursos» [30].
Este reformismo transforma-se definitivamente em inimigo de toda a emancipação social quando declara abertamente querer restabelecer nos seus direitos o trabalho, tão maltratado pelos economistas neoliberais que nada sabem «do mundo econômico e social, tal como ele efetivamente é» [31]. O movimento quer salvar a sociedade do trabalho ameaçada pelas loucuras neoliberais: «Para que o sistema econômico funcione, é preciso que os trabalhadores para ele contribuam com as suas próprias condições de produção e de reprodução, mas também as condições de funcionamento do próprio sistema econômico, a começar pela sua capacidade de acreditar na empresa, no trabalho, na necessidade do trabalho, etc» [32]. Ou seja, trabalhadores que amem apaixonadamente o trabalho, a empresa e o Estado, que os desejem democraticamente por iniciativa própria: afinal, toda a evolução da sociedade mercantil ao longo dos séculos tinha exatamente por objectivo a criação desta personagem, aliás perfeitamente conseguida na Rússia de Stalin. Assim sendo, o trabalho é naturalmente proclamado o primeiro de todos os «direitos» [33]. Mas sabe-se que o direito ao trabalho significa na prática, como foi o caso nos países do «socialismo real», o dever - pago ou não pago - de trabalhar. Tendo em vista esta solução, deixa de ser propriamente espantoso o fato de num dos seus programas o movimento Attac exigir a criação de uma «polícia de proximidade», uma «polícia de educação cívica» [34]. É essa, e há-de continuar a ser, a última palavra dos reformistas democráticos.
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JAPPE, Anselm. ''Sobre alguns falsos amigos: crítica do neoliberalismo ou crítica do capitalismo?''. In: _____. As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006, pp. 243-253.
Referências do texto:
1 Bové, Le Monde, pág. 244.
2 Bourdieu, Contre-feux, pág. 7.
3 Bourdieu, La Misére du monde, pág. 944.
4 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 37.
5 Bourdieu, La Misére du monde, págs. 219-221.
6 Como é evidente a globalização neoliberal foi posta em marcha de maneira cuidadosamente planeada e com objetivos precisos, mas essa estratégia só foi bem sucedida por ter sido capaz de extrair as consequências do processo de extinção da fase fordista-keynesiana, o qual aliás havia já começado.
7 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 45.
8 Não é surpreendente, portanto, que para Bourdieu o marxismo seja «a mais economista das tradições», e que o marxismo e o neoliberalismo sejam por ele tratados como instancias do mesmo «fatalismo econômico» fundado na «fetichização das forças produtivas» (citado em Callinicos, La Théorie sociale, pág. 73). Bourdieu escreve: «E talvez não seja por acaso que tanta gente da minha geração passou sem problemas de um fatalismo marxista para um fatalismo neoliberal: nos dois casos o economismo desresponsabiliza e desmobiliza anulando a política e impondo toda uma série de fins não discutidos, crescimento máximo, competitividade, produtividade» (Bourdieu, Contrefeux, pág. 56). Como é natural, Bourdieu tem razão em relação a um certo marxismo tradicional, mas renuncia a priori a fazer uso da crítica marxiana da economia política. Com efeito, a crítica da economia política recordar-lhe-ia que na sociedade mercantil a tirania econômica está inscrita nas estruturas do social, em vez de ser resultado de uma imposição exterior.
9 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 95.
10 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 98.
11 Bourdieu, Contre-feux, pág. 39.
12 Bourdieu, Contre-feux. pág. 38.
13 Bourdieu, Contre-feux, pág. 68.
14 Bourdieu, Contre-feux, pág. 46.
15 Bourdieu, Contre-feux, pág. 12.
16 Bourdieu, Contre-feux, pág. 14.
17. Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 10.
18 Bourdieu, Contre-feux, pág. 13.
19 Bourdieu, La Misère du monde, pág, 941.
20 Bourdieu, Contre-feux, pág. 116.
21 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 63.
22 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 107.
23 Cf. Moishe Postone, «Anti-Semitism and National Socialism», in: E. Rabinbach e J. Zipes (orgs.), Qermans and Jews since the Holocaust, Holmes & Meier, New York, 1986. Postone analisa nesse trabalho os mecanismos projetivos do anti-semitismo moderno que constrói a figura do «judeu» como incarnação do valor abstrato. Correspondentemente, Auschwitz seria a «fábrica» destinada a um tresloucado empreendimento de aniquilação do valor. Porém, se é necessário denunciar o anti-semitismo latente de muitas teorias que se pretendem anticapitalistas, é preciso opormo-nos igualmente àqueles que denunciam como anti-semita toda e qualquer crítica do capitalismo. A crítica do valor conduz precisamente a uma crítica dos mecanismos estruturais do capitalismo que não atribui os respectivos males às ações de grupos humanos particulares.
24 Uma ideia muito popular neste contexto é a de «comércio equitativo», definido como o fato de «os bens serem pagos pelo preço real da sua produção» (José Bové, Le Monde, pág. 255). Porém, no interior da lógica do valor - que já está tacitamente pressuposta neste discurso -, as trocas comerciais entre os países ricos e os países pobres não são simplesmente «injustas». É precisamente o seu caráter equitativo, designadamente o fato de o parâmetro ser o mesmo para o conjunto dos diferentes agentes econômicos, que oprime os países pobres. Com efeito, no mercado mundial, os países não recebem a massa de valor que corresponde ao trabalho efetivamente empregue, mas sim a massa de valor que corresponde à sua produtividade. São precisamente os países e as empresas que utilizam menos trabalho - porque a sua produtividade é mais elevada - que podem apropriar-se na concorrência de uma parte maior do valor global. A partir do momento em que se aceitou a produção abstrata de riqueza, é absurdo reclamar uma distribuição mais «justa» dessa riqueza abstrata: só a riqueza concreta pode ser distribuída segundo um critério de justiça, ou seja, segundo princípios que a sociedade estabeleça de forma consciente. O valor, como dissemos já, tem necessariamente que se tornar mais-valia; de outro modo cessaria igualmente toda a produção de valor.
25 José Bové, Le Monde, pág. 263.
26 José Bové, Le Monde, pág. 274.
27 Bourdieu, Contre-feux 2, pág. 44.
28 Bourdieu, Contre-feux, pág. 45.
29 Attac, Agir local, pág. 11.
30 Attac, Agir local, pág. 32.
31 Bourdieu, Contre-feux, pág. 115. Com efeito, esses economistas ingratos não compreendem que são «as reservas de capital social que protegem toda uma parte da ordem social presente de cair na anomia» (Contre-feux, pág. 117); noutro local Bourdieu fala dos «valores de serviço obscuro em benefício do interesse colectivo por parte do funcionário e do militante» (Contre-feux, pág. 12).
32 Bourdieu, Contre-feux, pág. 101.
33 Bourdieu, Contre-feux, pág. 30.
34 Attac, Agir local, pág. 104.
Bibliografia usada no texto:
Attac, Agir global, penser global. Les citoyens face à la mondialisation, Paris, Éditions Mille et Une Nuits, 2001.
Bourdieu, Pierre, Contre-feux. Propos pour servir à la résistance contre l'invasion néolibérale, Paris, Éditions Raisons d’Agir, 1998. Trad. port.: Contrafogos, Oeiras, Celta, 1998.
Bourdieu, Pierre, Contre-feux 2. Pour un mouvement social européen, Paris, Éditions Raison dAgir, 2001. Trad. port.: Contrafogos 2. Por um movimento social europeu, Oeiras, Celta, 2001.
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